1. Introdução
No que se refere à biblioteconomia, ainda há uma lacuna nos estudos históricos e epistemológicos sobre as contribuições de atores e da luta histórica pelo acesso à informação engendrada por populações de origem africana e da diáspora. No contexto latino-americano, existe pouca visibilização de publicações, bibliografias e atuação bibliotecária de pessoas como E. J. Josey, Clara Stanton Jones, Daniel P. Murray e outras que contribuíram para a construção de uma Biblioteconomia preocupada com a justiça social, racial e de gênero. Especialmente no Brasil, pesquisas como de Silva (2019) promoveram a discussão sobre as ausências formativas na profissão bibliotecária sobre movimentos criados nos últimos dois séculos, que buscavam ativamente o enfrentamento à segregação informacional e à injustiça informacional aplicada aos povos (negros, africanos, indígenas, ciganos, latinos, caribenhos e outros) historicamente colocados em lugar de subordinação em sociedades racializadas e coloniais.
Ao longo dos séculos, movimentos sociais e sujeitos subalternizados se organizaram para fundar e acessar bibliotecas e sociedades de leitura, criar jornais e revistas que os representassem, além de contribuir no desenvolvimento de diversas áreas do conhecimento, entre elas, a biblioteconomia e a bibliografia. Um dos movimentos criados e geridos por atores pertencentes a povos marginalizados é o da biblioteconomia negra. A mesma se refere ao “movimento reflexivo que discute a formação na área, a atuação bibliotecária de profissionais negros e a produção científica realizada por bibliotecários negros e não-negros sobre questões étnico-raciais” (Silva, 2019, p. 107). Ademais, a biblioteconomia negra inclui esferas interligadas às questões sociais, econômicas, políticas e educacionais de populações de origem africana e da diáspora, via lentes teóricas, metodológicas e instrumentais oriundas da Biblioteconomia e Bibliografia (Silva, 2019).
Este movimento se encontra vinculado à luta por direitos civis, pela justiça informacional (Mathiesen, 2015) e a justiça social (Mehra, 2015), enfocando o tratamento justo e equitativo em quaisquer esferas da vida de um sujeito (Mehra, 2015). Ademais, entende os sujeitos como fontes de informação, sujeitos informacionais e buscadores de informação, assumindo que as pessoas precisam de oportunidades para participar da construção do conhecimento e de sua promoção, do acesso à informação de forma justa e equitativa, assim como devem ser sentir justamente reconhecidas nas informações disponibilizadas (Mathiesen, 2015).
A praxis do movimento da biblioteconomia negra se ampara na bibliografia não só como instrumento de resistência, visibilidade e representatividade para a população negra e da diáspora africana, mas também como registro e preservação de memória, exposição do pensamento negro construtor de epistemes críticas dentro da área e direcionador da prática profissional bibliotecária (Silva, 2019, Silva & Saldanha, 2019).
Para além dos aspectos supracitados, o movimento da biblioteconomia negra promoveu a insurgência pelo acesso às bibliotecas, à formação de grupos não-hegemônicos em biblioteconomia e a preservação de recursos informacionais para as futuras gerações, bem como denunciou as ausências da intelectualidade negra na profissão bibliotecária (Silva & Saldanha, 2018; Silva, 2019).
O contexto norte-americano dos séculos XIX e XX de (re)construção das histórias e experiências negras perpassa pela atuação de pessoas bibliotecárias negras, arquivistas, bibliófilas, bibliógrafas e colecionadoras que buscaram recuperar a produção da e sobre a população negra, africana e da diáspora. Esses sujeitos tomaram para si a tarefa de coletar, organizar, preservar e disponibilizar informações por intermédio de coleções negras criadas com esse propósito. Tais construções surgiram da necessidade de se criar coleções que permitissem sedimentar contra-narrativas àquelas propagadas pelo discurso hegemônico, especialmente após o final da Segunda Guerra Mundial. Nesse período, se acentuou a perda de direitos da população negra, falhou a tentativa de integração racial e houve avanço na implementação das Leis Jim Crow – reconhecidas como leis rígidas contra pessoas afro-americanas elaboradas como um sistema de castas raciais presente, especialmente, nos estados do sul e da fronteira dos Estados Unidos entre 1877 e 1960 – que fortificaram a segregação racial ocorrida nos Estados Unidos (Britannica, 2021; Long, 1952/2020; Pilgrim, 2000; Xavier, 2012).
Em contrapartida, com a reconstrução a partir de 1950, se intensificaram os registros escritos, coletados e organizados por pessoas negras que contribuíram para o conhecimento da história e experiência da população negra dos Estados Unidos da América. Dentre eles, obras como A short history of the American negro (1913), de Benjamin Griffith Brawley, The negro (1915) e Black reconstruction in America, 1860-1880 (1935), de W. E. B. Du Bois; as coleções pertencentes à Library of Congress de ativistas e personalidades negras como Collection Frederick Douglass Newspapers, 1847 to 1874, Collection Rosa Parks Papers, Collection William A. Gladstone Afro-American Military Collection, assim como as bibliografias elaboradas por pessoas negras, tais como Negro year book: an annual encyclopedia of the negro (1915) e A bibliography of the negro in Africa and America (1928), compiladas por W. E. B. Du Bois e sociólogo, Monroe N. Work, Bibliography of materials by and about negro Americans for young readers (1963), editada pelo bibliotecário Miles M. Jackson, e anos mais tarde, Early American negro writings: a bibliographical study (1945), The Negro in the United States (1970) e Afro-brasiliana: a working bibliography (1978), compiladas e editadas pela bibliotecária e bibliógrafa, Dorothy Porter Wesley. Essas obras e coleções foram seminais para a construção dos centros de pesquisa negros mundialmente conhecidos na contemporaneidade, tais como o Moorland-Spingarn Research Center, Ruby and Calvin Fletcher African American History Museum, Black Resource Center e Schomburg Center for Research in Black Culture, sendo este último o foco deste artigo.
Nesse sentido, esta pesquisa aborda a atuação do bibliófilo, arquivista e bibliotecário afro-porto-riquenho, Arturo Alfonso Schomburg, na recuperação, organização e coleta de recursos informacionais representantes da experiência e do pensamento negro, africano e da diáspora africana, os quais compõem as coleções disponíveis no Schomburg Center for Research in Black Culture.
Para tanto, este estudo está estruturado com seções sobre a memorabilia e importância de coleções negras para a preservação da experiência negra, africana e afrodiaspórica, seguida da biobibliografia e atuação de Schomburg, e foi finalizada com a explanação sobre o Schomburg Center for Research in Black Culture.
2. Metodologia
No que se refere à metodologia usada para a construção desta pesquisa, trata-se de um estudo qualitativo, bibliográfico e documental, no qual o corpus é oriundo de levantamento realizado em três bases de dados: a Web of Science (WOS), Scielo e Journal Storage (JSTOR) coletado no período de 10 a 20 de dezembro de 2021. Recuperamos materiais pelos termos de busca “Arturo Schomburg” e “Arturo Alfonso Schomburg”, no recorte temporal de 1970 a 2021. Ao total, 125 materiais foram exportados em planilha eletrônica para leitura e realizada exclusão de duplicatas. Como recorte, 57 publicações foram analisadas distribuídas entre artigos, capítulos de livros e livros, e os materiais de interesse foram traduzidos para o português e lidos na íntegra para extração de informações pertinentes ao estudo. Dentre os estudos pertinentes, podemos citar como exemplo, o livro “Arthur Alfonso Schomburg, Black Bibliophile & Collector: a biography”, de Elinor des Verney Sinette; o artigo “Arturo Alfonso Schomburg in the Twenty-first Century: an introduction”, de Laura Helton e Rafia Zafar, publicado em 2021 no periódico African American Review; o artigo “The Afterlives of Arturo Alfonso Schomburg”, de Vanessa Valdés, publicado na Small Axe, de 2020; e o capítulo “Migración y cultura nacional puertorriqueñas: perspectivas proletarias (1979)”, que compõe a obra de Anayra Santory e Jorge Mareia Quintero Rivera, intitulada Table of Contents: Antología del pensamiento crítico puertorriqueño contemporâneo, entre outros. Ainda, foram consideradas informações obtidas de sites de bibliotecas portadoras das Coleções Negras1 e do Centro evidenciado no presente artigo.
3. Memorabilia negra e coleções negras
A coleção é compreendida por Susan Stewart (1993, pp. 151-152) como:
uma forma de arte como jogo, uma forma que envolve a ressignificação de objetos dentro de um mundo de atenção e manipulação de contexto. Como outras formas de arte, sua função não é a restauração do contexto de origem, mas sim a criação de um novo contexto, um contexto que está em uma relação metafórica, ao invés de contígua, com o mundo da vida cotidiana.
Coleções negras “contêm uma riqueza de conhecimento que apoia, aumenta e inspira não apenas os estudos negros, mas potencialmente também qualquer investigação pertencente a pessoas da diáspora africana” (Bledsoe, 2018, s./p.). Essas coleções, para além da importância de registro, preservação, disseminação e recuperação da história e cultura negras, se transformam em suporte para memorabilia negra, a qual considera o valor social dos objetos para a promoção da memória coletiva negra (Baker, Motley & Henderson, 2004).
Stacey Menzel Baker, Carol M. Motley e Geraldine R. Henderson (2004, p. 40) destacam a memorabilia negra enquanto possuidora de duas classificações:
Os itens que têm valor estético por destino incluem pinturas dos “mestres negros” e artistas contemporâneos, esculturas e estatuetas. Objetos estéticos por metamorfose incluem moedas representando negros, correntes de escravizados, documentos e materiais promocionais com imagens afro-americanas [...].
Historicamente, esses objetos surgiram a partir da Guerra Civil, quando fabricantes e anunciantes utilizavam de imagens de pessoas negras como símbolos e marcas de produtos em anúncios, pôsteres e rótulos de produtos. Nesse sentido, muitos colecionadores negros começaram a preservar objetos que considerassem representativos da luta coletiva e insurgência das pessoas negras estadunidenses e da diáspora africana. Por isso, muitas das coleções negras são compostas por diversos recursos informacionais incluindo, além de livros, artigos, panfletos e outros recursos tradicionais, também outros materiais representativos de uma ligação com o passado (Belk, 1991) e possibilitadores de formas outras de entendê-lo e ressignificá-lo (Baker, Motley & Henderson, 2004; Casmier-Paz, 2003).
Retomando o passado, é salutar relembrar as coleções negras dos Estados Unidos advindas da atuação profissional de pessoas negras da biblioteconomia, bibliografia e arquivologia. No século XX, preocupado com a ausência de materiais que documentassem a experiência negra norte-americana, o bibliotecário da Fisk University, Arna Bontemps, elaborou coleções especiais obtidas da coleta de artigos e obras escritas por pessoas afro-americanas dos Estados Unidos. Atualmente, tais coleções compõe The Special Collections and Archives of the John Hope and Aurelia E. Franklin Library, da Fisk University, com recursos informacionais datados desde 1865, cujo intuito de retratar a história, cultura e experiência negra americana e da diáspora africana (Fisk University, 2021).
Ao longo de sua carreira como bibliotecário, Bontemps também elaborou sua própria coleção negra, a qual hoje faz parte da Syracuse University. Os recursos informacionais componentes de sua coleção especial são arquivos de correspondências, escritos, artigos, ensaios, roteiros, além de outros materiais que fazem parte da memorabilia negra, dentre os quais destacam-se livros de endereços, citações, material financeiro, recortes sobre o próprio Bontemps, resenhas, guias e lembranças sobre África, materiais de direitos civis, Langston Hughes, dentre outros (Syracuse University, 2017).
Por sua vez, a coleção sobre o ativista dos direitos humanos, autor e educador James Weldon Johnson, intitulada James Weldon Johnson Memorial Collection (JWJ) localizada na Universidade de Yale, foi fundada em 1941 e criada por Carl Van Vechten. Considerado um arquivo-chave da história e cultura africana e afro-americana, a coleção promove a documentação e celebração das realizações artísticas e culturais, além de atividades intelectuais e políticas de pessoas afro-americanas. Se tornou uma das coleções negras mais consultadas da Biblioteca de Yale, e seu compromisso com a população negra e com a luta por reconhecimento e representação desta população advém da disponibilização dos mais de 13.000 volumes, cartas de personalidades históricas, teses, musicais e centenas de materiais manuscritos para pesquisa e consulta local (Beinecke Rare Book & Manuscript Library, 2021).
Ainda no que se refere às coleções negras, outra contribuição que merece destaque é a atuação da bibliotecária negra Dorothy Porter Wesley na curadoria e organização da Coleção do Moorland-Spingarn Research Center, da Universidade de Howard, elaborada com diversos recursos informacionais da e sobre a população de origem africana nos Estados Unidos e no mundo (Silva, Garcez, Sales & Saldanha, 2021; Sims-Wood, 2014).
Por último, destacamos a Coleção Negra que compõe o Schomburg Center for Research in Black Culture, a qual será enfocada na seção após a apresentação da biobibliografia de Schomburg.
4. Arturo Alfonso Schomburg: a biobibliografia de um homem multifacetado
A biobibliografia está relacionada a uma “espécie do gênero de fontes de informação biográfica”, que também considera a possibilidade de criação de um discurso “dentro de um saber bibliográfico” (Mata, 2020, p. 24). Nesse sentido, esta seção aborda a vida e atuação do colecionador, arquivista, bibliotecário autodidata e apoiador das artes visuais, Schomburg visando elucidar sobre a sua contribuição para a Biblioteconomia Negra, em especial, para a coleta, organização e preservação da história, memória e bibliografia negras (Sánchez González, 2001).
Afro-latino de origem espanhola e dinamarquesa, Schomburg nasceu em San Juan, Porto Rico, em 1874. Filho de mãe solo afro-porto-riquenha e de um pai descendente de alemães, teve sua vida marcada por sua dedicação aos estudos das histórias e da cultura dos povos negros em todo o mundo com o intuito de combater a supremacia branca e o preconceito racial (Holton, 2007; Sinnette, 1995; Valdés, 2020, 2021).
Criador do primeiro arquivo transnacional da cultura negra, Schomburg desenvolveu seu histórico através de uma abordagem realizada em três etapas, a saber: a primeira etapa: a recuperação histórica se referia à identificação e aquisição de livros e materiais da história negra internacional; a segunda se dedicava a apresentar e tornar essas descobertas históricas relevantes e acessíveis ao público; e por fim, a terceira e última etapa de sua abordagem tratava da articulação de “uma teia conectada de pessoas de ascendência africana que podem desenhar umas sobre as outras em suas mentes ou por meio de suas ações em sua busca por mudança social” (Holton, 2007, p. 218). Schomburg acreditava que além de escrever e publicar artigos e panfletos, esses materiais deveriam chegar às mãos dos leitores, e essa seria a forma de tornar o conhecimento acessível para todos (Valdés, 2020).
De acordo com Lisa Sánchez González (2001), Schomburg desenvolveu sua coleção com a intenção de nomear, enaltecer e dar visibilidade às contribuições de pessoas negras para a sociedade transamericana, e ao fazer isso, ele implementou uma forma de intervenção no conhecimento historiográfico produzido à época. Ademais, dada sua história familiar interracial e seu poderoso laço afetivo com sua mãe, buscou a criação de sua própria identidade étnico-racial via livros, documentos e materiais que visibilizassem o conhecimento e história negra (Sinnette, 1989).
Conhecido como bibliófilo, arquivista, historiador autodidata, bibliotecário autodidata, professor de espanhol e curador negro, Schomburg era membro da American Negro Academy (ANA), organização onde atuou ativamente nas causas em prol da libertação cubana e porto-riquenha, e pelo uso de seu arquivo para o desenvolvimento de recursos voltados para a educação (Dodson, 2015; Holton, 2007; Lewis, 1995; Sinnette, 1989; Valdés, 2021).
A American Negro Academy (ANA) era uma associação de afro-americanos criada em 1897 em Washington, pelo Reverendo Alexander Crummell e por personalidades da ciência, das artes e das letras com destaque na sociedade em que viviam. A ANA tinha como propósito “encorajar a pesquisa, a redação e a publicação de trabalhos acadêmicos que tratassem da experiência negra global” (Dodson, 2015, p. 550). Além disso, os membros da Associação eram incentivados a praticar o arquivamento de materiais por e sobre os afros, e, sobretudo, a realizarem pesquisas e coletarem evidências informativas, inspiradoras e enaltecedoras dos africanos e seus descendentes (Dodson, 2015; Sinnette, 1989; Stewart, 2015; Valdés, 2021). Dessa forma, a ANA buscava ser uma fonte de liderança e proteção para o povo negro, além de ser “arma para garantir a igualdade e destruir o racismo.” (Stewart, 2015, p. 88).
Após ingressar na ANA, Schomburg foi eleito presidente da primeira sociedade erudita negra do país fundada por John Edward Bruce e W. E. B. Du Bois (Helton & Zafar, 2021; Laurent-Perrault, 2020; Stewart, 2015; Valdés, 2021). Essa organização, assim como a Negro Society of Historical Research, sedimentou o interesse de Schomburg em desenvolver estudos e coletar materiais referentes às histórias, culturas e experiências negras, pois assim promoveria a consciência histórica e racial de pessoas africanas e da diáspora africana (Holton, 2007; Laurent-Perrault, 2020; Sinnette, 1989).
Ao longo de seu desenvolvimento intelectual, Schomburg publicou textos como “It Hayti Decadent?” (1904), “The Negro Digs Up His Past” (1925), “My trip to Cuba in quest of negro books” (1933), livros como “Racial integrity: a plea for the establishment of a chair of Negro history in our schools and colleges, etc.” (1979), compilou bibliografias como “A Bibliographical Checklist of American Negro Poetry” (1916), entre outros.
Em seu trabalho como curador, Schomburg encontrou discursos publicados de cunho racialmente preconceituoso e de propaganda racista em jornais e outros materiais coletados. Em resposta ao obscurantismo daquele contexto e à crença perpetuada de que pessoas negras e africanas eram biológica, intelectual e socialmente inferiores aos brancos, os cientistas – assim como as pessoas do campo bibliográfico, bibliotecário e informacional – se opuseram a essa falácia, e refutaram essa narrativa através de sua atuação profissional, pesquisas e publicações (Dodson, 2015, Porter, 1995). Respondeu tal falácia buscando por evidências que não só provassem seu valor pessoal como homem negro intelectual, como também das pessoas de origem africana, aquelas com quem escolheu se identificar étnica e racialmente. Por isso, decidiu combater a propaganda anti-negra por intermédio do estudo, análise e exploração objetiva de documentos da história e memorabilia negra (Sinnette, 1989).
Sua prática de coletar, colecionar, organizar, conservar e documentar artefatos surgiu da influência de seu colega maçom, John Edward Bruce, que nascido no período de escravidão em 1856 tornou-se livre ao fim da Guerra Civil dos Estados Unidos. Bruce Grit como era conhecido, era autodidata, panfleteiro, fundador de jornais e escritor de livros, ensaios e peças criados com a missão de evidenciar a história do povo negro dos Estados Unidos (Valdés, 2021). Schomburg e Bruce foram responsáveis pela criação da Negro Society for Historical Research (NSHR), uma instituição de historiadores nacionalistas negros que mais tarde se uniu à Marcus Garvey's Universal Negro Improvement Assocation (Holton, 2007; Valdés, 2021).
Foi através de doações da Carnegie Corporation que, em 1926, a New York Public Library adquiriu a coleção particular de Schomburg para ser disponibilizada na Biblioteca da 135th Street Branch no Harlem, permitindo maior visibilidade em periódicos majoritariamente brancos como, por exemplo, o New York Times (Helton & Zafar, 2021; Sánchez González, 2001; Valdés, 2021). A biblioteca, que abrigava a anteriormente chamada Coleção Schomburg, ofertava também um programa birracial de palestras com Schomburg e as demais personalidades negras da época, como W. E. DuBois, Carl Van Doren e R. R. Moton, e se tornou local de referência para as pessoas da Renascença do Harlem (Hart, 1973).
No ano de 1930, Schomburg atuou como curador da Special Negro Collection da Fisk University devido sua expertise na construção de coleções negras. Com sua curadoria, promoveu o conhecimento sobre obras representantes da anterioridade africana e afrodiaspórica até, então, desconhecidas do público leitor (Fisk University, 2021; Sinnette, 1989).
Posteriormente, a impressionante Coleção Schomburg armazenada na New York Public Library deu origem ao Schomburg Center for Research in Black Culture, um dos mais importantes centros de pesquisa afrodiaspórica do mundo. O Centro Schomburg é composto por coleções que excedem a marca de dez milhões de itens armazenados em seus acervos, sendo estes livros raros, pinturas, fotografias, esculturas, manuscritos, correspondências, registros arquivados de instituições e organizações africanas, entre outros materiais referentes à cultura e experiência negra (Dodson, 2015; Helton & Zafar, 2021; Mirabal, 2020; Valdés, 2021).
Integrante da sociedade novaiorquina de 1891, ano em que se mudou com sua esposa e dois filhos, ao longo de sua carreira, Schomburg atuou em várias esferas sociais e políticas no estado de New York. Como integrante do pan-africanismo, era defensor do surgimento de nações negras livres no continente africano, e da criação de cursos de história do povo negro em escolas e universidades. Inclusive, foi fundador, cofundador e membro ativo em diversas associações e instituições acadêmicas. Integrou também o alto escalão da Maçonaria, alcançando o cargo de Grande Secretário, da Grande Loja do Estado de New York. Desde 1891, pertencia ao Clube Borinquen, de Sotero Figueroa, Pachín Marín, juntamente com os demais afro-porto-riquenhos locais. Foi apoiador do Partido Revolucionário Cubano (PRC), chefiado pelo político José Martí. Tornou-se secretário do clube revolucionário Los dos Antilles, criado com o intuito de apoiar política e financeiramente a Guerra em prol da independência de Cuba e os planos de José Martí, que buscavam dar fim ao colonialismo espanhol (Helton & Zafar, 2021; Laurent-Perrault, 2020; Mirabal, 2020; Sinnette, 1989, Valdés, 2021).
Schomburg atuou ainda como organizador da American Negro Book Collectors Exchange, cujo objetivo estava em reunir a literatura escrita por “pessoas de cor” (Dodson, 2015). Esse trabalho, realizado juntamente com bibliófilos da época, serviu como uma forma de compensação literária de materiais escritos pelos afros (Dodson, 2015; Stewart, 2015).
As contribuições de Schomburg através de seus trabalhos e da sua coleção fundamentaram o reconhecimento da contribuição dos negros, afro-porto-riquenhos e africanos para a fundação e para a cultura das nações americanas (Sánchez González, 2001). Exímio escritor, Schomburg iniciou a elaboração de um livro de receitas no qual citava ingredientes específicos do cardápio para relacionar a história dos afro-americanos com a arte da culinária, evidenciando, assim, as inter-relações entre os alimentos da culinária norte-americana e a africana (Zafar, 2021). Infelizmente, Schomburg faleceu em 1938 e deixou incompleto o registro sobre como a culinária negra precisava ser registrada e documentada, e não conseguiu organizar como havia realizado com os materiais literários e históricos da diáspora africana (Helton & Zafar, 2021; Valdés, 2020).
5. Schomburg Center for Research in Black Culture: o legado
Inicialmente designada como The Division of Negro Literature, History, and Prints, o Schomburg Center for Research in Black Culture in Harlem é um dos principais representantes da memorabilia negra e importante instituição cultural negra. Seu principal enfoque está na pesquisa, preservação e fornecimento de recursos informacionais que retratem as experiências negras dos Estados Unidos, do continente africano e dos negros em diáspora.
O centro está localizado em uma unidade de pesquisa da New York Public Library com o intuito de exclusivamente documentar e interpretar as histórias e culturas afros. Suas coleções são compostas por mais de 10 milhões de itens, dos quais incluem livros, correspondências, papéis pessoais e profissionais de personalidades negras do passado e da contemporaneidade, assim como fotografias, filmes, programas e recursos informacionais gravados em forma oral (Stewart, 2015).
Os arquivos da seção Africana do Schomburg Center encontram-se organizados em cinco divisões com base no formato dos materiais alojados, a saber: a) Livros, publicações em série e microformas são gerenciados pela Divisão de Pesquisa e Referência Geral; b) No que concerne aos materiais impressos e acervo raro, estes são organizados e geridos pela Divisão de Manuscritos, Arquivos e Livros Raros; c) a Divisão de Fotografias e Impressos armazenam materiais em seus respectivos formatos; d) a Divisão de Arte e Artefatos é composta por pinturas, gravuras, esculturas, artefatos e filmes; e) a Divisão de Imagens em Movimento e Som Gravado é composto por um repositório com coleções de filmes, fitas de áudio e vídeo e gravações de som do Centro (Dodson, 2015).
Entendido também como um repositório com vistas a promover o acesso das futuras gerações ao conhecimento negro, o Centro engloba documentos denominados de Arquivos Africana, os quais servem de fomento para pesquisadores, intelectuais, profissionais de diversos campos do conhecimento que visam conhecer e compreender sobre as histórias, culturas, memória e sociabilidades negras. Destina-se a informar ao público negro e demais interessados sobre as experiências negras não somente nos Estados Unidos, como em outros lugares do globo (Dodson, 2015; Helton & Zafar, 2021; Valdés, 2020).
Por estar no localizado no Harlem, o Schomburg Center enfoca na vida cultural da comunidade do bairro, possibilitando acesso gratuito a diversas coleções permanentes, via programas e eventos fomentadores da diversidade e riqueza da cultura negra (New York Public Library, 2021). Atualmente, as ações destinadas ao público englobam desde festivais literários, festivais de quadrinhos negros, exposições e projetos multimídias, exposições de tesouros da biblioteca, programas culturais, blog, podcasts, além de permitir a afiliação de membros ao Centro (New York Public Library, 2022).
No que se refere à atuação do bibliotecário e arquivista Schomburg na criação das coleções que deram origem ao Schomburg Center, relembramos que seu objetivo ao construir as coleções estava em reunir experiências e documentos que fossem de encontro às perspectivas de inferioridade epistêmica das populações negras propagadas pelo grupo hegemônico daquela época. Por isso, no início do século XX, uniu-se aos bibliófilos e colecionadores negros daquele período para defender, reunir e disseminar as contribuições negras e africanas na construção da sociedade norte-americana, além de encorajar o orgulho racial na comunidade negra americana. (Dodson, 2015; Helton & Zafar, 2021; Sinnette, 1989; Valdés, 2020). Conforme Howard Dodson (2015, p. 551):
Schomburg, talvez mais do que seus colegas bibliófilos, estava ativamente envolvido no uso de seu arquivo para buscar uma agenda educacional. Ele usou a informação e o conhecimento que reuniu para educar e capacitar os negros, para desmascarar os mitos da inferioridade negra entre negros e brancos e para transformar a consciência dos americanos brancos de quem eram os negros e o que estes haviam conquistado como humanos seres.
Nesse sentido, o trabalho e as coleções de e elaboradas por Schomburg – entendidos como seu legado para a comunidade negra, africana e afrodiaspórica – refutam “efetivamente a ideologia dominante da supremacia branca e as formas populares e oficiais de conhecimento historiográfico nas quais esse discurso [racista] estava inserido” (Holton, 2007, p. 220). Conhecido como “Sherlock Holmes da História Negra” (Sinnette, 1989), deixou para a posteridade um “contra-arquivo” pessoal que se tornou a primeira grande coleção do mundo de obras africanas, transamericanas e transatlânticas, reconhecido até os dias de hoje como o maior arquivo combinado da diáspora africana (Holton, 2007; Sánchez González, 2001).
Mesmo após depositar a sua coleção negra na 135th Street Branch da New York Public Library, Schomburg continuou curador de sua própria coleção, publicou artigos, coletou materiais e organizou exposições. Além disso, divulgava as experiências negras em suas palestras e produziu recursos informacionais e educacionais que possibilitaram a elevação da consciência étnico-racial, política e intelectual de sujeitos negros e da diáspora africana. Ademais, enquanto um historiador autodidata, “usou esses recursos para desafiar os discursos sociais, políticos e culturais predominantes sobre os negros e sua história, cultura e inteligência” (Dodson, 2015, p. 552). A despeito da atuação de seus colegas bibliófilos, da sua contribuição para a luta antirracista e seu trabalho em evidenciar os protagonismos negros, Schomburg parece ter se dedicado a usar sua coleção para criar uma outra compreensão do público sobre as histórias, memórias e culturas africanas e afrodiaspóricas. (Dodson, 2015).
Considerações finais
Este artigo objetivou evidenciar a importância de coleções negras para a preservação da experiência negra, africana e afrodiaspórica. Para isso, nos ativemos na atuação do bibliófilo, arquivista e bibliotecário, Schomburg, cujos esforços de coleta, organização e disponibilização das informações se concretizaram no Schomburg Center for Research in Black Culture.
Quando nos voltamos para visibilizar as contribuições de atores da biblioteconomia negra, neste caso, a americana, percebemos as urgências e demandas por acesso à informação que possibilitem o reconhecimento das contribuições das populações negras e afrodiaspóricas para a construção intelectual e estrutural das sociedades que hoje vivemos, inclusive, pelo resgate de fontes informacionais étnico-raciais e históricas de populações historicamente marginalizadas.
A coleção pessoal de Schomburg deu início a um dos maiores centros de informação étnico-racial e afrodiaspórica no mundo. Sua atuação torna evidente que as conquistas alcançadas pelos negros no campo biblioteconômico-informacional, assim como fora dele, são de interesse de pesquisa acadêmica com vistas à reconstrução da historiografia negra em diversos campos do conhecimento.
Schomburg faz seu legado não somente por sua associação com o Novo Movimento do Negro na Renascença do Harlem, mas também pela sua contribuição em vida com a elaboração de obras sob o olhar e perspectivas negras e afrodiaspóricas (Helton & Zafar, 2021). Evelyne Laurent-Perrault destaca que Schomburg deixou como lição o fato de nunca desistir, e que o “desmantelamento da supremacia branca pode ser alcançado apenas por meio de uma abordagem transnacional entre línguas, regiões, continentes e povos” (Laurent-Perrault, 2020, p. 138).
Esperamos que esta pesquisa instigue a mais estudos históricos em Biblioteconomia, especialmente, aqueles situados no combate ao discurso hegemônico que até hoje invisibiliza e torna ausentes a contribuição de atores negros em diversas esferas sociais e epistêmicas.