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Historia de la educación - anuario

versión On-line ISSN 2313-9277

Hist. educ. anu. vol.7  Ciudad autonoma de Buenos Aires. ene./dic. 2006

 

ARTÍCULOS

O fracasso das reformas educacionais: um diagnóstico sob suspeita1

 

Diana Gonçalves Vidal2

2 Professora de História da Educação da Faculdade de Educação da USP, Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE) e Presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE).

 


Resumo

O artigo tem por objetivo discutir o diagnóstico do fracasso das reformas, interrogando-se sobre as várias representações de escola e escolarização em luta quando se elaboram, impõem ou se resistem às reformas educativas. Para tanto, estrutura-se em quatro seções. Na primeira, esboça rapidamente o percurso de trabalho e pesquisa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE), origem da reflexão. A seguir, discorre sobre os conceitos mobilizados na análise. Cultura escolar, gramática da escola e forma escolar emergem como problema. Na terceira parte, explora as alterações propostas no tempo escolar pela reforma Fernando de Azevedo no Rio de Janeiro (1927-1930) e as resistências operadas por pais, alunos e professores como forma de evidenciar as diferentes representações de escola e escolarização em luta na sociedade no período. Por fim, a guisa de conclusão, problematiza as relações entre reforma educacional e mudança no discurso educacional, sublinhando que há mudanças realizadas pela cultura escolar que antecipam as reformas, como há propostas reformistas que logram se instalar nos fazeres ordinários da escola. Afirma, assim, a necessidade de compreender a operacionalização das práticas escolares, no intercâmbio com a sociedade e a história, no entendimento de que os saberes técnicos e as reformas educativas são, eles também, constituídos no jogo das representações concorrentes sobre o que é a escola e como deve atuar.

Palavra chave: Reforma educativas; História da Educação; Escola nova, Crise educacional.

Abstract

This paper aims at discussing the diagnosis of failure of the educational reforms by questioning the various representations of school and schooling there are in dispute at the time the educational reforms are being defined, imposed upon or resisted to. Therefore, it is organized in four sections. In the first, the itinerary of work and research of the Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação- NIEPHE- (Interdisciplinary Center of Studies and Researches in History of Education), source of this work's discussion, are briefly presented. This is followed by the presentation of the concepts mobilized by the analysis: school culture, school grammar and school structure. The third section explores the changes in the school time proposed by the Fernando de Azevedo Reform in Rio de Janeiro (1927-1930) and the resistances displayed by parents, students and teachers as ways to put in evidence the different representations of school and schooling at play in the society at that period of time. The closing section problematizes the relations between the educational reforms and the changes in the educational discourse highlighting that there are changes in the school culture that anticipate the reforms, just as there are reforms that manage to reach the school everyday practices. It states, therefore, the importance of understanding the school practices in their social and historical relationships considering that the technical knowledge and the educational reforms are also constituted in the interplay of the competing representations of what the school is, and how it schools should operate.


 

Desde o doutorado, defendido em 1995, venho me interessando pelo tema das reformas da instrução pública no Brasil. Particularmente tenho me dedicado a investigar as reformas Carneiro Leão, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, implantadas no Rio de Janeiro, em 1922, 1927 e 1931, respectivamente - todas, pelo olhar retrospectivo da historiografia, imbuídas do ideal escolanovista, ainda que nem sempre os educadores fizessem menção direta a ele. Antônio Carneiro Leão referia-se a métodos ativos de ensino, dando prioridade à "modernização do ensino, à generalização das melhores práticas pedagógicas e à intensificação do carinho pela criança" (Carneiro Leão, 1926, p. 39). Anísio Teixeira propunha a adoção da designação escola progressiva como corolário de uma escola de experiência e de vida, de atividade e de trabalho. Fernando de Azevedo foi o único a empregar explicitamente a expressão escola nova, mas esta só passou a ser enfatizada em seus discursos após a aprovação do texto da reforma pelo Conselho Municipal, em 19283.

Aglutinavam estava reformas, no entanto, um anseio de renovação educacional que se expressava na reestruturação dos mecanismos de controle das camadas populares no espaço urbano, na disseminação dos preceitos do trabalho produtivo e eficiente e na adaptação dos indivíduos a uma sociedade percebida como em permanente mudança. Nesse contexto, pretendiam uma convergência entre reforma educacional e reforma social. A referência imediata do movimento havia sido dada pela rejeição às regras associadas ao termo tradicional, embora a expansão do escolanovismo operasse apropriações do modelo, dos materiais e métodos escolares negados, conferindo novos significados às práticas escolares e aos problemas enfrentados pelo aumento de escolaridade da população (Vidal, 2000).

A constituição do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE), em 1996, visou a ampliar o espectro da pesquisa pela incorporação de investigadores, em nível de iniciação científica, mestrado e doutorado, de forma a explorar os diferentes matizes das reformas cariocas dos anos 1920 e 1930, a fim de verificar suas estratégias de implementação e as práticas disseminadas no interior das escolas públicas primárias, com atenção à distribuição de objetos, à difusão de métodos e às relações que a escola estabeleceu cotidianamente com a cidade e a população carioca. Devo ressaltar que as questões de que irei tratar aqui derivam da dinâmica de discussão e trabalho do grupo.

O investimento do NIEPHE deu-se em duas direções: na mobilização de um arsenal teórico que permitisse pensar as ligações entre a escola pública e a sociedade e no levantamento de fontes primárias, como legislação, imprensa pedagógica, fotografias, correspondência de educadores, produção bibliográfica, dentre outras, que viabilizassem os estudos. No segundo caso, o exercício propiciou a publicação de documentos (em excertos e na íntegra), em suporte papel ou digital.

Quanto ao aporte teórico, a equipe tem recorrido aos conceitos de forma escolar, colhido em Guy Vincent, e cultura escolar, tomado de Dominique Julia e André Chervel, na medida em que permitem, ao mesmo tempo, perceber as continuidades do processo de escolarização e avaliar as mudanças. A eles, agrega a noção de escola real, elaborada por David Tyack e Larry Cuban, de modo a entender como se foi gestando uma representação hegemônica de escola primária que, a despeito de contraditoriamente construída pelos vários grupos sociais em conflito, apresenta-se como homogênea e emerge, na fala dos sujeitos, como base de reivindicações sociais ou resistência a alterações. Faz uso, ainda, das categorias estratégias e táticas, propostas por Michel de Certeau, insistindo sobre as resistências do lugar ao gasto do tempo, mas demonstrando interesse pelo uso do tempo, ou seja, pelos câmbios, ainda que pequenos, operados no dia-a-dia, e compreendendo o consumo cultural como ativo, o que permite interrogar-se sobre as apropriações realizadas constantemente pelos sujeitos dos objetos postos em circulação no espaço da escola. Utiliza, por fim, o conceito de lutas de representação, cunhado por Roger Chartier, na medida em que compreende a ação humana como constituída por "práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição" (1991, p. 183), o que reenvia à percepção da realidade como contraditoriamente construída pela atividade dos grupos sociais.

Nesse enfoque, a escola pública primária, nas primeiras décadas do século XX, adquire os contornos de um empreendimento possível, na trama das representações de escola em luta. A definição da educação ideal assume o cerne da disputa entre os vários grupos sociais, despontando no discurso de educadores e políticos, nas baixas taxas de freqüência, nas inovações propostas por professores e na multiplicidade de modelos escolares. A abordagem supõe colocar sob suspeita os diagnósticos que seguidamente caracterizam a escola sob o signo da crise e se indagam acerca do insucesso das reformas educativas. Ou, por outra, questionar-se acerca da relação aparentemente imediata entre crise, reforma educativa e mudança no discurso educacional.

1. Crise, reforma e mudança: questões para o debate

José Mário Pires Azanha, em artigo publicado em 1991, já afirmava que "o reconhecimento da existência de uma crise na instituição da escola deveria antes nos conduzir a rever nossas idéias sobre ela do que, apressadamente, levar a esforços para reformá-la" (Azanha, 1991, p. 66). Propunha um programa de pesquisa que pudesse iluminar as relações efetivamente praticadas na escola, pela descrição das práticas escolares e seus correlatos, "objetivados em mentalidades, discurso, procedimentos, hábitos, atitudes, regulamentações, 'resultados escolares' etc." (Idem, p. 67), na assunção de que a compreensão que se tinha da escola era excessivamente simplificada.

Evidenciava Azanha que a própria noção de crise comportava os supostos de uma análise exterior às relações cotidianas da escola e se traduzia na avaliação dos resultados esperados, perspectivados pelas representações do que a instituição deveria ser. O procedimento negava, para o autor, a existência de uma cultura escolar, historicamente constituída e relativamente autônoma. Os argumentos de Azanha antecipavam em 10 anos a conferência de abertura do I Congresso Brasileiro de História da Educação, pronunciada por António Viñao Frago, e já sustentavam a conclusão de era preciso invadir a caixa-preta da escola para conhecer seu funcionamento interno e poder transformá-la.

Indagando-se acerca do fracasso das reformas educativas, António Viñao Frago, chamava a atenção, dentre outros aspectos, para o "caráter fundamentalmente histórico da cultura escolar e ahistórico de algumas reformas". Assim, o insucesso reformista provinha da ignorância da existência

desse conjunto de tradições e regularidades institucionais, sedimentadas ao longo do tempo, de regras de jogo e supostos compartilhados, não explícitos, que são os que permitem aos professores organizar a atividade acadêmica, fazer a aula e, dada a sucessão ininterrupta de reformas que se postulam a partir do poder político e administrativo, adaptá-las, transformando-as, às exigências que derivam da cultura ou gramática. (Vinão Frago, 2001, p. 30-31).

Ao associar cultura escolar às permanências, tradições e regularidades, Viñao Frago, oferecia uma resposta ao problema, ao mesmo tempo que percebia os riscos de uma análise alicerçada apenas nas continuidades. Advogava, assim, a necessidade de uma teoria explicativa em história da educação que repousasse sobre os câmbios.

Fazia coro ao trabalho de David Tyack e Larry Cuban que, nos anos 1990, ao analisar a invariância da instituição escolar nos Estados Unidos da América, haviam criado o conceito de gramática da escola. Não claramente definida, a gramática básica da escola, primária e secundária poderia ser percebida pela divisão do tempo e do espaço, classificação dos alunos e escolarização de conteúdos.

Partindo da constatação de que, por mais de um século, os norteamericanos haviam traduzido seus anseios culturais e esperanças de incorporação de imigrantes e outsiders ao ideal americano em dramáticas demandas por reforma educacional, os autores se propunham a tentar localizar as causas do relativo fracasso dessas iniciativas. Para tanto, apostavam em estudos de longa duração que, não se restringindo ao enfoque das mudanças pretendidas, permitissem perceber as continuidades em práticas básicas da escola e se abrissem à compreensão da hibridação entre as idéias reformistas e as presentes no cotidiano escolar como virtudes do sistema, resultantes da seleção operada pelo professor no que era mais eficiente em cada modelo. Iniciavam, assim, um percurso que se desdobrava em duas matrizes históricas: a escola primária graduada e a unidade Carnegie de crédito para o ensino secundário. Situavam o surgimento de ambas na conformação do sistema educativo norte-americano no fim do século XIX e início do XX (Tyack e Cuban, 1999, p. 88 e seg.).

Para os autores, a freqüência da maioria dos norte-americanos aos bancos escolares, durante o novecentos, havia consolidado uma identificação entre a gramática da escola e a concepção de uma escola real ou de verdade que obstaculizava as mudanças. Embora lidando com a noção de hibridações, os autores argumentavam a pujança (e a permanência) da gramática da escola, responsabilizando a comunidade escolar, bem como a falta de continuidade dos recursos técnicos e financeiros para apoio à inovação pela falência das reformas.

Também preocupado em compreender as constantes na organização escolar, Guy Vincent, uma década antes, em 1980, considerou a gênese dos três elementos para ele constitutivos da instituição em nível primário: o espaço, o tempo e a relação pedagógica. Era a emersão da escola como um lugar específico e separado das outras práticas sociais, onde se constituíam saberes escritos formalizados, produziam-se efeitos duráveis de socialização sobre os estudantes, disseminava-se a aprendizagem das maneiras de exercício de poder e propagava-se o ensino da língua na construção de uma relação escritural com a linguagem e o mundo, que configurava a forma escolar. Vincent localiza o nascimento desse modelo na escola lassalista da França no fim do século XVII.

Apesar de afirmar que o regramento do tempo, a organização espacial da escola e o constrangimento moral do aluno tinham sido alterados com a introdução das Leis Guizot (1833) e Jules Ferry (1880), que tornaram laico o ensino elementar francês, Guy Vincent considerava que a forma escolar criada por La Salle havia sido mantida em sua essência (permanecendo como tal até os dias de hoje). Para Vincent, a alteração fundamental fora operada pela passagem de uma cultura fundada na oralidade para uma cultura escritural, baseada na difusão da palavra escrita (crescimento da alfabetização), mas principalmente na organização do pensamento e da relação do homem com o mundo pela lógica escritural. A proposta de Vincent não se constitui como uma resposta à falência das reformas educativas, mas ao diagnóstico da crise educacional. Para o autor, a suposta crise é apenas a evidência de que a forma escolar extrapolou os muros escolares e avançou sobre toda a sociedade, escolarizando-a. É, portanto, o signo do sucesso da escola (Vincent et al, 2001).

Ao enfatizar os aspectos estruturais da escola, os autores acabavam por identificar reforma a mudanças e as práticas instauradas no interior da escola a resistências. De maneira diversa, Antoine Prost, ao investigar o ensino científico, em 1996, propunha problematizar essa relação direta, interrogando-se sobre os câmbios impetrados por simples medidas (técnicas ou não) que parecem imperceptíveis. Afirmava serem reforma e mudança duas realidades diferentes. A reflexão incitava a perceber a cultura escolar como também promotora de alterações. Era essa, muito possivelmente, a perspectiva de Dominique Julia (2001) ao mencionar a crise como possibilidade de compreender as múltiplas relações estabelecidas no interior da escola, no artigo amplamente citado "A cultura escolar como objeto histórico". A valorização do estudo das práticas escolares vinha a par da aposta nas "mudanças muito pequenas que insensivelmente transformam o interior do sistema" (p. 15).

Questão semelhante foi tratada por Anne-Marie Chartier (2000), que a ampliou, indagando-se sobre a possibilidade de uma pesquisa histórica analisar cientificamente as práticas escolares. Partindo da constatação de que "não é fácil falar da prática de outra forma que não de maneira negativa" (Bourdieu) e de que "ao subir, descer, girar ao redor das práticas, alguma coisa escapa sem cessar, que não pode ser dita nem ensinada, mas deve ser praticada" (Michel de Certeau), perguntava-se sobre como conduzir investigações que, ao mesmo tempo em que invadissem o interior da escola, evitassem análises que deslizassem para o anacronismo, concebendo o passado na sua identidade com o presente - supondo regras de uso de materiais escolares induzidas pelas práticas escolares contemporâneas - ou se apoiassem na mera empiria, deduzindo os fazeres a partir do estudo dos objetos - esquecendo-se de que, ao se subtraírem à lei do presente, esses objetos inanimados adquiriam certa autonomia.

Lembrava que em sociedades escolarizadas (a francesa mais fortemente que a brasileira), a escola tendia a constituir-se como uma realidade supostamente conhecida, uma vez que tanto pesquisadores quanto diversos grupos sociais dela participam ou participaram ao menos na qualidade de alunos. A proximidade com os enunciados de Tyack e Cuban era apenas inicial. Para Tyack e Cuban, a constatação sinalizava a relevância dos estudos acerca da gramática da escola. Para Anne-Marie Chartier, remetia à importância de investigar os fazeres ordinários, pois compreendia que, seguidamente designada mas não descrita, "a não ser de maneira incidental ou indireta" (2000, p. 158), a escola se fazia ausente exatamente naquilo que executava: a prática escolar.

Instigava a elaborar um meta-discurso que permitisse falar da escola na escola, que possibilitasse descrever os fazeres ordinários, deslocando a atenção das observações aos dizíveis, às modalidades de dizer ou escrever, e tendo em conta que todas as vezes que um procedimento ou prática escolar obtinha sucesso, tornava-se invisível. O procedimento implicava, para a autora, a recusa ao repertório estrutural da forma escolar, proposta por Guy Vincent, e a busca, amparada no trabalho de André Chervel, de

inovações pedagógicas que foram rejeitadas, digeridas e pervertidas pela instituição escolar, ou, ao contrário, integradas nas suas formas variáveis, orgânicas ou marginais, institucionais ou militantes. (Chartier, 2000, p. 166).

Nesse sentido, apontava para a relação constante que a cultura escolar opera com a sociedade, tanto no que se apropria das dinâmicas sociais quanto no que as constitui como produto das ações praticadas pelos sujeitos no interior das escolas. A operação conduz ao entendimento da cultura escolar como portadora de índices das lutas sociais pela definição de escola ideal, acolhendo reivindicações e promovendo a introjeção de valores e comportamentos.

Refletir sobre a constituição do sistema educacional no Rio de Janeiro pode ser elucidativo das questões aqui abordadas. De maneira a não alongar a exposição, tomarei como pretexto apenas a organização do tempo escolar na reforma educacional implantada por Fernando de Azevedo.

2. Tempo escolar na reforma Fernando de Azevedo.

Ao assumir a Diretoria Geral da Instrução Pública do Distrito Federal, em 1927, a convite de Antônio Prado Júnior, Fernando de Azevedo iniciou um programa de reformulação do sistema escolar carioca com base nos princípios pedagógicos de escola-comunidade, escola única e escola do trabalho. No discurso proferido a 8 de setembro daquele ano, no salão do Jockey Club, depois reproduzido no Boletim de Educação Pública e utilizado como introdução ao Projeto de reforma do ensino primário apresentado ao Conselho Municipal, o educador resumia, assim, a proposta:

...Como é preciso, para este fim, desenvolver o sentido da acção, a vida intensa e creadora, á escola do estudo (lernschule), á escola passiva tradicional, á escola do automatismo livresco, succedeu, na nova concepção, a escola do trabalho (arbeitschule), a escola activa e de experiência pessoal em que todo o estudo deve ser acquisição e trabalho, feito em comum (Azevedo, 1927, p. 17).

A premissa da renovação escolar se associava ao empenho na extensão da escolaridade primária às camadas populares. Para tanto, foram efetuados não apenas inquéritos sobre distribuição geográfica das crianças em idade escolar, como também foi prevista a instalação de prédios escolares em regiões com maior densidade populacional. A expansão escolar surgia como resposta aos anseios de reforma social pela reforma da escola, esposados pelos educadores da época, como se afirma na introdução deste artigo. A escola primária era apresentada como lugar dedicado por excelência à preparação do indivíduo para atuar na sociedade de maneira solidária e harmônica, o que visava a elidir o comportamento revolucionário ou contestatório, e a induzir ao trabalho produtivo, o que supunha o encaminhamento vocacional e o estímulo à formação técnica em prol do fortalecimento econômico da nação. Para cumprir tal missão, a escola primária precisava ser gratuita e obrigatória, e seus fazeres ordinários deveriam se regrados tendo em mira os ideais a difundir.

Largamente estudada por historiadores da educação, desde os anos 1970, a reforma implementada na capital da República entre 1927 e 1930 dispensa uma caracterização detalhada no âmbito deste artigo. É insistentemente narrada pelo próprio Azevedo, que n'A cultura brasileira (1943) lhe dedica lugar de destaque. O mestrado de Nelson Piletti (1982), um dos exemplos mais remotos de abordagem, além de análises já consagradas, como de Carvalho (1988, 1989 e 1993), ou recentes, como Paulilo (2001), Rodrigues (2002), Abdala (2003) e Silva (2004), podem ser visitadas para esse fim. Nesse sentido, este artigo privilegia apenas uma questão: os dispositivos de conformação e as táticas de apropriação do tempo escolar disseminadas no interior das escolas e as relações que estabeleceu com o tempo social. Com o expediente, visa iluminar aspectos das articulações entre crise, reforma educativa e mudança no universo escolar.

A reformulação do ensino primário encetada por Azevedo pretendeu alterar quantitativamente e qualitativamente os tempos da escola primária carioca. Na primeira perspectiva, a intervenção foi de duas ordens: redução do curso primário de sete para cinco anos de duração, sendo o quinto ano dedicado ao ensino pré-vocacional; e homogeneização da jornada escolar em 4h e 30 min diárias. Para tanto, tornaram-se necessárias a diminuição do dia de aula nas escolas de turno único de 5 para 4h e 30 min, com antecipação do horário de saída em 30 minutos e redução de 30 para 20 minutos no tempo do recreio; e a prorrogação de 4h e 20 min para 4h e 30 min na aula das escolas de dois turnos, com antecipação de 20 minutos no horário de entrada e 10 no de saída no turno da manhã (das 7h e 50 min para 7h e 30 min e das 12h e 10 min para 12h) e prorrogação de 10 minutos à entrada e 20 à saída do turno da tarde (das 12h e 20 min para 12h e 30 min e das 16h e 40 min para as 17h) (Silva, 2004, p. 121). As mudanças qualitativas visaram a assegurar o fluxo dos trabalhos escolares, reforçando dispositivos de controle da freqüência escolar e, portanto, da assiduidade e pontualidade de alunos e professores. Nesse tocante, não apenas foram instituídas multas pecuniárias aos pais dos alunos ausentes, que variavam de 5$ a 200$000, de acordo com o Art. 47 do Decreto 3.281, de 23 de janeiro de 1928; como foram criadas punições aos retardatários: corte do ponto aos docentes e impedimento de ingresso no espaço escolar aos discentes. Por outro lado, o reticulado do quadro diário de disciplinas foi substituído: em vez da fragmentação das atividades em períodos de 5, 10, 30 ou 60 minutos, foi instaurada a noção de tempo de interesse para a aprendizagem dos saberes escolares.

Essas medidas incidiram diferentemente no cotidiano escolar. Ora traduziram a perspectiva de alteração das práticas, ora se apresentaram como continuidade do trabalho executado anteriormente. No discurso do educador, entretanto, emergiram sempre como signo de mudança necessária em função do diagnóstico da crise que atingia o sistema escolar carioca.

O Estado, no Distrito Federal, ainda não enfrentou o problema da alphabetização e das malhas, de tecido largo e frouxo, que estendeu, para colher a população em edade escolar, escapam, todos os annos, milhares de crianças, que não recebem instrucção em escolas públicas, nem têm meios de a pagar em estabelecimentos particulares. Ainda não apparelhada para exercer efficazmente essa funcção elementar, não será de surprehender, na actual organização, o carater antiquado que reveste. As instituições do ensino primário, installadas ao acaso, sem uma visão aguda de nossas realidades e sem qualquer espirito de finalidade social, e talhadas ainda pelos moldes da velha escola primaria de letras, obedecem a princípios de organização a que já não se conformam as modernas legislações escolares (Azevedo, 1927, p. 15).

Mal aparelhada, ineficiente, antiga, instalada ao acaso e sem finalidade definida: essa era a escola primária que o educador pretendia reformar. A contundência da análise ocultava as ações implementadas anteriormente pelo Estado e apagava os esforços que seguidamente tinham acompanhado a prática de educadores cariocas no exercício da docência, na difusão de modelos pedagógicos e no aperfeiçoamento das lides do magistério4. Forjando uma ruptura entre um passado remoto que se fazia atual e os desafios a enfrentar na modernização da escola carioca, Azevedo desenhava o plano de reformulação do ensino que propunha como novo. Tornava-se beneficiário da engrenagem que, ao encadear crise e reforma educativa, situava a mudança como positiva e exterior ao universo da escola. Escudado em premissas pedagógicas, permitia-se intervir nas práticas escolares, mas também se arrogava o direito de incidir nas práticas sociais. Assegurar a freqüência escolar obrigatória, ponto nodal da argumentação, era o que entretecia as duas vertentes de ação, justificando constituir o tempo escolar em tempo social. A questão assim colocada dava relevo a representações sociais concorrentes de escola e seu lugar social na época. O artigo publicado pelo jornal Correio da manhã, em 11 de março de 1928, oferecia subsídios ao debate.

Pelo novo regulamento das escolas primárias, o horário para as aulas do primeiro turno é de 7,30 às 12 horas. Quer dizer: quando a criança sai de casa para ir ter a sua aula, o comércio a varejo de gêneros alimentícios está começando a abrir as portas. Assim, se essa criança tem de levar a sua merenda, o que é natural e habitual, não a logrará em casa, salvo se os pais se dispuserem a fornecer-lhe alimento guardado de véspera, numa cidade em que o verão é asfixiante e nem todos podem ter geladeiras no domicílio.

Mas não é só a criança sacrificada. A professora ainda fica em situação mais difícil. Se ela mora em Copacabana, na Gávea e em Botafogo, devendo lecionar na Tijuca, no Engenho Novo ou em Cascadura, ou se ela reside em qualquer dessas localidades suburbanas e ensina no centro da urbs, terá de sair de casa no mínimo às 6 da manhã, em jejum. O ponto é, improrrogavelmente, encerrado às 7,20.

A diretoria de instrução está sendo superintendida por dois técnicos. Mais de uma vez em livros e artigos publicados, em conferências pronunciadas, os drs. Fernando de Azevedo e Vicente Licínio Cardoso têm afirmado e reafirmado dos propósitos de nobre alcance em favor da educação popular. Não nos parece possível, por isso mesmo, nem admissível, que ambos estejam indiferentes a essa questão de horários, que tão sérios transtornos está causando. (Apud Silva, 2004, p. 137).

O articulista realçava a imbricação entre tempo escolar e tempo social, explicitando que alterações no horário de entrada de alunos e professores na escola demandavam ajustes no horário de funcionamento do comércio e dos transportes, na organização do tempo e da economia familiares e na distribuição populacional. A interferência na vida da cidade era o principal argumento mobilizado para sensibilizar as autoridades educacionais a rever o panorama de insatisfação criado, na certeza de que a escola era impotente para ajustar os fazeres sociais às suas necessidades. A conseqüência tornava-se previsível: a freqüência escolar seria abalada. Opunha-se, assim, à aposta de Azevedo de que os tempos escolares poderiam ditar os sociais, e denunciava a ainda fraca inserção da escola na sociedade carioca. A questão, que em momentos assumia a forma de uma disputa entre o governo da casa e o governo da escola, evidenciava outras dimensões das práticas sociais:

Infelizmente, alguns pais de alunos não têm querido auxiliar as autoridades escolares para o cumprimento desse horário, havendo em todos os distritos, notadamente nos da zona urbana, a maior irregularidade à hora de entrada dos alunos, sob a alegação de que a entrada do 1o. turno às 7,30 não dá tempo para que as crianças compareçam à escola com a primeira refeição e possam igualmente desobrigar-se de serviços domésticos. (Jornal do Commércio, 24 de maio de 1928, Apud Silva, 2004, p. 141).

Realizar serviços domésticos era, e é até hoje, uma tarefa comum às crianças de famílias mais pobres, cujo trabalho, no lar ou na rua, se afigurava (se afigura) como uma das formas de sobrevivência familiar. Se a essa prática for associada a menção à falta de geladeiras nas casas, o que, por certo, era uma realidade no Rio de Janeiro dos anos 1920, pode-se estimar que a alteração do horário da escola entrava em litígio com a rotina das camadas populares - justamente a parcela da sociedade que a reforma pretendia integrar aos bancos escolares. Não se deve pretender ver, aqui, uma recusa da escola por parte da população menos favorecida, reeditando análises historiográficas que afirmavam o desinteresse popular pela escolarização, pioneiramente questionadas por Demartini (1980), mas introduzir a perspectiva de que o conflito sinalizava representações sociais de escola e escolarização em luta. Os estatutos da primeira associação de moradores do país, a Beneficiadora de Vila Isabel, criada em 1910, que tinha, explicitamente, entre os seus objetivos, "a criação de escolas elementares e profissionais, diurnas e noturnas, para menores e adultos e, especialmente, com os poderes municipais, a edificação e instalação de uma escola modelo digna do bairro de Vila Isabel" (Silva, 1988, p. 36-37), são apenas um exemplo do anseio popular pela difusão da escola primária.

Mas, se a escola emergia como reivindicação nas camadas menos favorecidas da sociedade carioca e como proposta das elites na sua extensão a toda a população do Rio de Janeiro, o debate tornado público pelos jornais alertava para as diferentes representações em jogo. A prioridade à instituição escolar, desejada pelas autoridades educacionais, contrastava com a posição complementar a ela conferida pelas demais instituições sociais, neste caso a família. As penalidades previstas, como multa pecuniária, não eram suficientes para assegurar nem a regularidade da presença nem a pontualidade dos alunos e, seguramente, não estimulavam a permanência nos bancos escolares durante todo o curso primário. Para os pais, as crianças deveriam ir à escola, mas no horário que lhes fosse mais conveniente e de acordo com os projetos familiares concebidos para cada membro.

Aqui, a categoria família ganhava outra substância. Famílias abastadas e famílias desfavorecidas concebiam diversamente o lugar social da escola. O inquérito realizado em 1932 pelo Serviço de Classificação e Promoção de Alunos, já durante a administração Anísio Teixeira da instrução pública carioca (1931-1935), parecia oferecer subsídios à percepção dessa diferença. Os resultados apontavam que a evasão escolar se estendia a todas as classes sociais utilizadas como parâmetro (indigentes, pobres, remediados e abastados) e que a freqüência média nas escolas primárias do Distrito Federal se situava em torno de três anos. Menos de 1/3 dos alunos matriculava-se no 3º ano. Os 4º e 5º anos representavam apenas 10% da matrícula total (Teixeira, 1935, p. 36 e 77). O diagnóstico sinalizava que, findo o 3º ano escolar, as crianças pobres entravam no mercado de trabalho e as abastadas procuravam preparar-se para ingresso no secundário. Incitou a administração pública a dividir o ensino em dois ciclos: primário (três anos iniciais, com o objetivo de ensinar a ler, escrever e contar) e intermediário (dois anos seguintes, para enriquecimento da bagagem cultural do aluno), de forma a atender às demandas de aprendizagem dos saberes elementares das classes populares e de aperfeiçoamento da cultura geral das classes médias e altas.

Os diferentes significados sociais atribuídos à escola e à escolarização por famílias abastadas e desfavorecidas e por autoridades escolares, indiciados nesta argumentação, indicam as disputas em torno da representação hegemônica de escola, oferecendo pistas à percepção da realidade social como contraditoriamente construída pelos grupos. Assegurar a freqüência escolar obrigatória por parte de todas as camadas sociais impunha homogeneizar as representações em luta e constituir a noção de escola proposta pela administração pública como hegemônica. O intento não foi obtido pela reforma Azevedo, nem pela reforma Anísio Teixeira, que a seguiu no Rio de Janeiro. No entanto, não é possível afirmar que nas décadas posteriores não se foi firmando a importância social da freqüência regular e obrigatória à escola por todas as crianças cariocas (e brasileiras) e do caráter único dessa educação pública. Mas, para que isso se efetivasse, negociações precisaram ser feitas entre os grupos, e os contornos da escola paulatinamente foram sendo redesenhados, acomodando os interesses díspares, ainda que o olhar retrospectivo da historiografia não lhes tenha dado relevo. Simultaneamente, as relações entre a escola e a sociedade se transformaram, tanto pela impregnação dos fazeres sociais à escola, quanto pela disseminação de dispositivos escolares no seio da sociedade - faces complementares da cultura escolar. As constantes mudanças dos conteúdos curriculares e as incessantes cobranças sociais sobre a ação da escola trazem a medida dessas lutas.

As disputas, entretanto, não se restringiam ao diálogo entre a instituição escolar e as demais instituições sociais, ou não se situavam apenas externamente aos muros escolares. Ocorriam também no interior da escola e resultavam das diversas representações sociais em jogo. Explorar matizes das práticas escolares pode ser operatório. Para tanto, outro artigo publicado em um jornal carioca serve de mote.

Parece que o sr. Fernando de Azevedo nunca lecionou ou esteve em contato com o movimento escolar, tal o absurdo do novo regime.

O horário atual foi feito para crianças-bonecas e não para criançasanimadas; e também para serventes elétricos. Há apenas 10 minutos de intervalo entre a terminação de um turno e o início do outro. É humanamente impossível impedir que os alunos deixem cair no chão papelinhos, aparas de lápis e mesmo terra dos seus sapatos. O professor por maior vigilância que exerça ao terminar a aula tem sempre a decepção de notar que a sala mostre que já foi ocupada, ou por haver um pequeno desarranjo no material escolar ou pelo que expus anteriormente.

Pois o sr. Fernando de Azevedo acha que em 10 minutos os serventes elétricos podem limpar as salas, encher as talhas e moringues, lavar os aparelhos sanitários, remover os papéis das cestas existentes nas salas, varrer os logradouros destinados ao recreio etc. etc. (Azurém, 1928).

Deixando de lado a menção aos serventes elétricos, que conduziria a análise para questões ligadas à higiene escolar, vale destacar a referência às crianças-bonecas por oposição a crianças-animadas. Não era apenas à fisiologia da criança, mas, muito possivelmente, às teorias pedagógicas que propalavam o ensino ativo, desde o final do século XIX em circulação na escola primária e na escola normal carioca e nos anos 1920 associadas à noção de escola ativa, a que se remetia o articulista, portavoz de uma "leitora assídua" (talvez uma professora primária), que buscara sua coluna, Tópicos da cidade, para expressar a insatisfação com o novo horário proposto pela administração Azevedo.

A metáfora dava visibilidade às concepções de aluno que impregnavam o magistério carioca à época e que tornavam possível a introdução no universo da escola de outras medidas concernentes ao tempo escolar, como o respeito ao interesse da criança na organização das atividades diárias. Ao assumir a Direção Geral da Instrução Pública, Fernando de Azevedo havia encontrado o ensino primário articulado em torno de uma rígida grade de disciplinas que, para os efeitos deste artigo, foi exemplificada, tomando apenas o conteúdo relativo ao 1º e 2º anos do primeiro turno.


(Apud Silva, 2004, p. 113)

Contrapondo-se ao quadriculado do horário, Azevedo sugeria que o tempo psicológico do interesse regesse o trabalho escolar. De acordo com o reformador,

Não é a hora que fixa irremediavelmente o limite da lição, é a necessidade psicológica', do interesse despertado que o mestre deve aproveitar, tratando, sem limite de tempo, a matéria ou desenvolvendo o trabalho, por que a classe se interessou e que ela mesma, por isto, não desejaria abandonar (Azevedo, 1930, p. 15).

A proposta encontrou ressonância na prática docente. Por um lado, conferia maior autonomia e liberdade ao professor no uso do tempo escolar, permitindo-lhe fugir à fixidez da distribuição disciplinar anterior. Por outro, emergia no seio de uma corporação já habituada a lidar com o controle do tempo na organização do ensino seriado, instituído pelos grupos escolares no final do século XIX no Rio de Janeiro. A orientação se fazia acompanhar do incentivo à realização de centros de interesse, na esteira das proposições do educador belga Ovide Decroly, aglutinando as diversas disciplinas em torno de temas específicos, tomados a partir da realidade do aluno, de forma a conciliar ação individual e trabalho coletivo e transformar a criança em experimentadora ativa. Estes últimos não obtiveram boa acolhida pelo professorado carioca, posto que envolviam recriar práticas docentes constituídas com algum sucesso no âmbito da cultura escolar. No entanto, a noção de um tempo escolar fluido, arbitrado pelo professor, instalou-se no interior dos fazeres ordinários da aula, perdurando até os dias de hoje como uma conquista da reforma, tornada invisível nas análises historiográficas efetuadas posteriormente, uma vez que passou a se constituir na configuração mesma do ensino primário, ou no desenho da escola primária real. Ao se apropriarem de estratégias implementadas pela reforma Azevedo, os professores cariocas agiram no campo das táticas, escolhendo, nem sempre de maneira consciente, aquilo que lhes tornava mais eficaz a prática docente, o que melhor respondia às urgências da aula, e colocando de lado os dispositivos pouco operativos ou cuja implantação demandava um investimento superior aos possíveis ganhos. Era o caso dos centros de interesse. Criar a ambiência necessária para a integração dos diversos conteúdos curriculares e manter a atividade constante da criança implicava redesenhar as formas de exercício do poder e de controle da disciplina em sala de aula, fugindo ao paradigma do silêncio ou da oralidade regrada que a escola primária havia erigido em pilar na introdução do ensino simultâneo: forma de o professor reger a classe, cujo sucesso também a havia tornado invisível e constituído como aspecto da escola primária real.

No entanto, a proposta de partir da realidade da criança na construção do saber e das práticas escolares parecia atraente e permaneceu em certa medida no universo escolar. Funcionava como contrapartida à expansão da escola primária. Valorizar a experiência e a atividade das crianças, ainda que para descartá-las em um momento posterior, era uma estratégia implementada pelos poderes públicos na cooptação de um número cada vez maior de alunos, visando a assegurar sua permanência no intramuros da escola, diminuindo as distâncias entre os fazeres escolares e os fazeres sociais. Essa valorização foi apropriada pelo professorado, sempre e quando lhe facilitava o trabalho docente, ao mesmo tempo em que mantinha a posição de autoridade, conferida exatamente pelo apartamento entre um e outro universo. A trama das escolhas daquilo que permanecia nas práticas ordinárias da escola ou era expurgado, e a proporção em que era incorporado ou eliminado, remetia às relações complexas do que De Certeau (1994) denomina jogo polemológico, que entremeando estratégias de poder e táticas de subversão pretende garantir a sobrevivência, neste caso, de professores, mas também de alunos, no interior de um espaço definido, a escola, e ao longo de um tempo determinado, o curso primário ou a carreira docente.

3. O diagnóstico do fracasso das reformas sob suspeita

Se crise, reforma educacional e mudança parecem questões articuladas no discurso educacional, não devem ser tomadas como necessariamente imbricadas. Há câmbios, operados nos fazeres ordinários da escola pela sedimentação de práticas, que se demonstram eficientes na gerência dos conflitos emergentes no interior das escolas e decorrentes de sua relação com a sociedade. Podem antecipar reformas, que deles se apropriam e transformam. Há mudanças impetradas pelas reformas educativas que, associadas a elementos da cultura escolar, sabidamente eficazes, alteram o cotidiano das escolas. Isso supõe afirmar que, quando avaliamos a implantação das reformas, estas não devem ser tomadas em toda a sua completude, mas na decomposição de suas propostas. Nos dois casos, as estratégias do poder e as táticas de subversão sinalizam o consumo produtivo dos sujeitos, acionado em situações diversas e em função do repertório de possibilidades de atuação que cada grupo detém.

Nesse sentido, conduzir um estudo que tome a escola e, no caso deste artigo, a escola pública primária, como objeto de investigação e se sensibilize pelas mudanças impõe ter clareza de que se as alterações nas práticas não resultam necessariamente de reformas, os fazeres escolares também não saem ilesos dos câmbios impostos pelos dispositivos reformistas. Por outro lado, cabe salientar que as mudanças se operam não apenas em função de premissas pedagógicas, mas espelham as tensões que se estabelecem na sociedade entre as várias instituições sociais. Assim, não apenas o Estado e a escola, mas também a família e a Igreja interferem na alteração das práticas escolares. Por fim, há que se ter em mente que vários grupos sociais freqüentam o interior das escolas e põem, diferentemente, em funcionamento os mecanismos que aí estão à disposição. Portanto, não apenas professores se apropriam das normas, materiais e métodos escolares de maneira a solucionar as urgências do dia-adia, como também os alunos exercitam formas de poder e resistência no intramuro escolar. Ou seja, é preciso ter claro que os sujeitos encarnam representações que se produzem nas situações concretas do fazer ordinário da escola.

Os conceitos de forma escolar e gramática da escola, ao oferecerem subsídios a um estudo das continuidades, tornam-se, assim, importantes, mas insuficientes para recobrir a dinâmica do cotidiano e articular simbolicamente todas as ações humanas. O recurso à categoria cultura escolar, no que admite a consideração da mudança, amplia o enfoque sobre o universo escolar e absorve as práticas escolares como categorias de análise. Tal operação, entretanto, só é possível se se colocar sob suspeita a noção de escola como uma realidade conhecida.

Atravessada pela cultura da sociedade e produtora de uma cultura original que se desfolha sobre o social, como o querem André Chervel e Dominique Julia, a escola, por ser freqüentada por um conjunto cada vez maior de pessoas, tem se tornado mais e mais invisível nos fazeres que pratica, como alerta Anne-Marie Chartier. Com isso, tem se tornado palco de interpretações que acentuam sua distância ou incongruência em relação aos saberes técnicos ou às leis e reformas educativas, posto que tais avaliações se baseiam principalmente no suposto de uma escola tida por conhecida, o que elide a investigação sobre o cotidiano escolar. Em lugar de julgar a instituição escola e seus sujeitos, cumpre compreender seu funcionamento interno, a operacionalização das práticas escolares, no intercâmbio com a sociedade e a história, no entendimento de que os saberes técnicos e as reformas educativas são, eles também, constituídos no jogo das representações concorrentes sobre o que é a escola e como deve atuar.

A concepção de uma escola real ou de uma escola de verdade vê-se então redimensionada. Como representação hegemônica suscita menos a descrença na eficácia das reformas e mais a percepção das representações em luta. Afinal, como "matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social" (Chartier, 1991, p. 182), induzem à compreensão das várias identidades coletivas em conflito. E, no terreno movediço da luta social, possibilitam vislumbrar as dinâmicas do cotidiano que só pelo olhar retrospectivo e restrito ao inventário das continuidades pode se apresentar como refratário às mudanças.

A pergunta que se coloca, então, já não é "por que fracassam as reformas?" e sim que representações de escola e de seus sujeitos, praticadas pelos diferentes grupos sociais - e aqui é preciso pensar nas múltiplas e cambiantes composições desses grupos - estão em litígio na elaboração, imposição e resistência às reformas educativas? Quais as resistências operadas e as apropriações efetuadas pelos diversos sujeitos escolares das imposições do espaço nas instâncias do tempo? E o que essa luta nos revela acerca dos vários significados sociais da escola?

Essa perspectiva de análise não pretende tornar equivalentes os diversos pontos de vista e retirar a dimensão política dos estudos sobre as reformas. Almeja recolocar a escola no âmago das tensões sociais e percebê- la como lugar de conflito e consenso, produzidos social e historicamente. Cabe ressaltar, por fim, que somente se torna viável, na medida em que combina a ênfase nos microestudos a interpretações de média e longa duração. Assim, enquanto o detalhamento dos acontecimentos cotidianos permite reconhecer o passado na sua singularidade, a amplitude de abordagem possibilita perceber permanências e avaliar mudanças.

Notas

1 Este texto foi apresentado na mesa-redonda O Estado, instância promotora de ensino, durante o V Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, ocorrido de 5 a 8 de abril de 2004, na cidade de Évora, em Portugal.

3 Para uma análise comparativa das três reformas, ver Vidal e Paulilo, 2002.

4 Ver Villela, 2002; e Cardoso, 2002.

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