Introdução
A competência motora (CM) representa o grau de performance, a qualidade, a coordenação e o controle em uma variedade de movimentos (Burton & Miller, 1998). As mudanças no estilo de vida, que podem ser parcialmente atribuídas a mudanças no ambiente físico e social, têm levado à privação progressiva de experiências de movimento e aventuras lúdicas por parte das crianças, o que tem tornado crianças e adolescentes mais sedentários (Drenowatz & Greier 2019).
Dentre estas mudanças no estilo de vida, a diminuição de oportunidades para que crianças estejam em ambientes externos durante o tempo livre tem impactado de maneira preocupante os níveis de competência motora na infância. As brincadeiras, são um agente fundamental na formação da competência motora, mas estão diretamente relacionadas à quantidade e qualidade dos espaços destinados a elas, o que se constitui em um problema em cidades grandes onde os lugares tradicionais de brincadeira, as ruas, se tornaram potencialmente arriscados. As zonas urbanas, em geral são compostas por uma ausência de políticas de acesso às atividades físicas e esportivas (AFES), bem como de aparelhos públicos, para que todos possam usufruir, sempre e quando essa seja sua escolha (PROGRAMA DAS NAÇOES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2017).
Nesse cenário, os jogos digitais têm, cada vez mais, assumido o papel que eram das brincadeiras tradicionais que aconteciam ao ar livre. Muito se fala da contribuição dos jogos digitais para o desenvolvimento de funções cognitivas, tais como a atenção, percepção memória e raciocínio (Munguba et al., 2005). No entanto, estudos têm indicado que o envolvimento demasiado com jogos digitais contribui com o aumento do sedentarismo e obesidade infantil, devido à falta de interesse e envolvimento da criança em outras atividades. O tempo dedicado aos jogos digitais tem tirado o tempo de movimentar-se das crianças, o que tem contribuído para níveis de competência motora preocupantes durante a infância, especialmente em cenários de baixo nível socioeconômico (Ré et al., 2018; Silva et al., 2019) em que existe, geralmente, mais violência, menos espaços públicos destinados ao brincar e às práticas de atividades físicas e esportivas (AFES). O resultado são crianças com pouca bagagem motora, podendo ocasionar prejuízos em todo ciclo da vida, uma vez que hábitos de atividade física desenvolvidos durante a infância possuem grande probabilidade de serem assumidos e continuados durante a adolescência e a vida adulta (Silva da & Silva da 2015; Soares et al. 2014; de Sousa Pereira & Costa Moreira 2013).
O estudo da competência motora e dos hábitos diários de movimentar-se em crianças pode contribuir para o planejamento de políticas públicas que favoreçam mudanças de hábitos no sentido de promover o movimentar-se e seu desenvolvimento e, em médio e longo prazo, contribuir para a redução das taxas de sedentarismo, prevenção de doenças crônico-degenerativas e o aumento dos índices de desenvolvimento humano locais.
O município de Santana de Parnaíba, cidade a noroeste de São Paulo com aproximadamente 142 mil habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTCA, 2020), apresenta o índice de desenvolvimento humano municipal de 0,8 (IBGE, 2010), considerado elevado. Apesar de ter uma região central urbana, o município é composto por bairros que apresentam ruas tranquilas com pouco volume de tráfego de veículos motorizados, as residências em sua grande maioria são casas e tem uma grande participação de crianças em brincadeiras e jogos de rua (França et al., 1998). O município oferece uma estrutura de aparelhos públicos para prática de esportes (3 ginásios esportivos, 7 piscinas públicas sendo 2 centros aquáticos) e atividades ao ar livre (4 parques municipais e 10 praças de esporte e lazer) além de projetos esportivos para os munícipes (no ano de 2006 o município atendia 527 cidadãos/semana) em seus projetos de esporte, lazer e recreação (Secretaria Municipal de Atividade Física Esporte e Lazer de Santana de Parnaíba, 2006).
Assim, o presente estudo teve como objetivos comparar a CM entre crianças de 10 anos de idade que brincam durante o tempo livre com jogos digitais e crianças que brincam ao ar livre.
A hipótese desse estudo é que, mesmo tendo espaço físico público disponível e políticas públicas de incentivo a prática das AFES, as crianças que substituem as brincadeiras de rua pelos jogos digitais, apresentam níveis de CM abaixo do esperado para a idade.
Material e Métodos
A pesquisa foi realizada com uma amostra de 40 crianças, de ambos os sexos (22 meninas e 18 meninos), com idade média de 10 anos (+-3 meses) voluntárias, moradoras de Santana de Parnaíba/SP, estudantes de colégios municipais da cidade.
Após os responsáveis assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram coletados dados informados pelos responsáveis, através de um anamnese, para caracterização da amostra e quantificação das horas diárias em atividades de jogos digitais e atividades ao ar livre. Logo, temos um grupo de 20 crianças que brincam, com maior frequência (mais de 5 vezes/semana), ao ar livre (grupo RUA), e outras 20 crianças que se envolvem durante o tempo livre, prioritariamente( mais de 5 vezes/semana) com jogos digitais (grupo JD). Ambos os grupos frequentam as aulas de educação física escolar de 50 minutos 2 vezes por semana.
As crianças foram submetidas a uma bateria de testes ( KTK - Körperkoordinationstest Für Kinder) que avalia a coordenação motora de crianças com idades entre 5 e 14 anos. O KTK serve tanto para avaliar a coordenação motora global como identificar crianças com distúrbios coordenativos/motores. De acordo com o estudo que avaliou a validade e fidedignidade da classificação do KTK para a população de crianças brasileiras, tal teste é adequado, e o método da soma do pontuação das tarefas do teste pode ser usado para crianças brasileiras (Moreira et al., 2019).
Foram aplicadas as quatro tarefas propostas pela bateria do teste: Equilíbrio em marcha à ré (ER); Saltos laterais (SL); Saltos monopedais (SP); e Transposição lateral (TL). Para cada tarefa do teste cada criança recebia instrução verbal e demonstração, e ainda executava uma tentativa de familiarização. Em seguida, uma tentativa válida era filmada (câmera celular Samsung Galaxy) no plano lateral para avaliação posterior. O desempenho da criança refere-se a aspectos quantitativos, sendo registrado o número de passos realizados na marcha à ré, a altura alcançada nos saltos monopedais, a quantidade de vezes no salto lateral e o número de transposições realizadas na transposição lateral. Na lista de checagem do teste, para cada tarefa existem critérios para classificação de desempenho para cada faixa etária.
Foi aplicado o teste t para verificar a diferença entre os grupos RUA e grupo JD para cada tarefas (ER, SL, SP e TL) do teste e também para a média geral de ambos os grupos.
Resultados e Discussão
O presente estudo buscou investigar a competência motora de 2 grupos de crianças de 10 anos de idade; grupo RUA que durante o tempo livre brinca ao ar livre; e o grupo JD que usam o tempo livre para brincar com jogos digitais. A hipótese era de que crianças que se envolvem prioritariamente com jogos digitais apresentariam competência motora abaixo do esperado mesmo sendo participantes das aulas de educação física escolar. Os resultados descritivos de cada uma das 4 tarefas do teste KTK, bem como os valores de p do teste t para cada tarefa comparando os dois grupos está apresentado na Tabela 1.
O teste t apontou diferença significativa entre os grupos para a média geral (p=0,00) e ainda para 3 das quatro das tarefas do KTK; sendo elas, saltos laterais (p=0,000), saltos monopedais (p=0,01), transposição lateral (p= 0,00). Apenas não foi encontrado diferença significativa para a bateria de testes de equilíbrio em marcha à ré. Os resultados mostram que o grupo RUA teve maiores escores tanto nas tarefas independentes do teste quanto na média geral comparado ao grupo JD. Tais resultados estão em concordância com a literatura, uma vez que estudos que investigaram habilidades locomotoras em escolares gaúchos com idade entre 05 e 10 anos que não praticam atividades motoras extracurriculares, apontam que o desempenho dos padrões locomotores se encontram “abaixo da média” e “muito pobre” (Marramarco et al., 2012; Valentini, 2002) o que corrobora com os resultados do presente estudo.
De acordo com a tabela de classificação da coordenação motora do KTK (Tabela 2) os resultados mostraram que o grupo de crianças que brincam ao ar livre, apresentam nível “bom” de competência motora, de acordo com o esperado para a idade. No entanto, o grupo que brinca com jogos digitais, apresenta nível “muito fraco” de competência motora para a idade.
Baseado nestes resultados é plausível supor que a baixa competência motora recebe influência do tipo de atividade extracurricular que as crianças desempenham durante a infância. As aulas de educação física escolar, realizadas duas vezes por semana (frequência prevista pela LDB 9493/96 (Brasil, n.d.)), não parece ser suficiente para que crianças alcancem níveis satisfatórios de competência motora. Estes resultados estão de acordo com os resultados de outro estudo que avaliou crianças de 9 anos do município de Suzano/SP e não observou classificação “boa” para competência motora destes escolares que praticam aula de educação física de 50 minutos duas vezes por semana (Silva da & Silva, 2015).
Considerando os resultados deste e dos demais estudos mencionados, é sugerido que o desenvolvimento das capacidades coordenativas não depende somente dos processos de maturação biológica, mas da quantidade e qualidade de experiências motoras vivenciadas (Gallahue & Ozmun, 2005; Gonçalves, 2012). Neste sentido, é fundamental o engajamento das crianças em práticas motoras além do horário escolar (Valentini & Rudisill, 2006), seja durante as atividades lúdicas da vida diária da criança, seja em programas de AFES. Um estudo com escolares de 6 e 7 anos de idade observou que todas as crianças apresentaram classificação “abaixo da média” para níveis de competência motora. Entretanto, após aplicação de um programa de 12 semanas de intervenção motora (extracurricular) verificou-se um aumento nos níveis de competência motora fazendo com que os sujeitos passassem da classificação “abaixo da média” para “média” (Braga et al., 2009).
A fim de aprofundar a discussão considerando escolares de outras culturas, o estudo que avaliou a competência motora de escolares portugueses com idade entre 6 e 7 anos, demonstra que 76,2% dos 286 escolares avaliados apresentaram percentil “acima da média” no desempenho das habilidades locomotoras (Lopes, 2006). Entretanto, todos os escolares avaliados neste estudo participavam de alguma atividade esportiva extracurricular. Outros estudos em diferentes países (Estados Unidos e Holanda) nos quais programas de intervenção foram aplicados para escolares que apresentavam níveis de competência motora “abaixo da média” apresentaram resultados positivos com melhora da competência motora após a intervenção (Goodway & Branta, 2003; Niemeijer et al., 2007). Ainda, um acompanhamento de 4 anos em jovens austríacos de 10 anos de idade investigou as associações entre participação em clubes esportivos, competência motora e tempo de mídia (definido como tempo assistindo TV e/ou brincando com jogos digitais). Os resultados do estudo apontaram que a participação em clubes esportivos está associada com alta competência motora e, ao contrário, o alto tempo dedicado a jogos digitais ou TV está associado com baixa competência motora. Ainda, o estudo aponta que tempo elevado de envolvimento com mídias digitais impactou no processo de desenvolvimento motor ao longo dos anos subsequentes (Drenowatz & Greier, 2019).
Tendo em vista a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 60 minutos diários de atividade física vigorosa para crianças e jovens e o baixo envolvimento de escolares brasileiros na prática de AFES (PNUD, 2017), pode-se supor que este cenário deve impactar negativamente a saúde futuramente na adolescência e vida adulta. Em geral, a falta de aceso à prática de AFES, sejam elas práticas esportivas formais ou atividades do dia-dia, assim como a falta de acesso à equipamentos públicos para práticas de esporte, lazer e recreação, têm sido apontado como elementos determinantes para os índices de inatividade da população (PNUD, 2017). Além disso, o nível de atividade física, que está diretamente associado ao nível de competência motora (Drenowatz & Greier, 2019), é um elemento fundamental a ser considerado no índice de desenvolvimento humano da população. Regiões com maiores índices de desenvolvimento humano apresentam mais iniciativas e políticas públicas no campo das AFES (PNUD, 2017) o que corrobora com os dados do município de Santana de Parnaíba. Entretanto, mesmo em municípios bem aparelhados com espaços físicos e políticas públicas de promoção das AFES, como é o caso de Santana de Parnaíba, é possível observar níveis preocupantes de competência motora em escolares, como os apresentados no presente estudo. Sendo assim, parece que além da disponibilidade de aparelhos e políticas públicas que incentivam a prática das AFES, outros fatores podem estar impactando diretamente na competência motora das crianças.
Em um estudo de coorte da cidade de Pelotas, foi identificado que o nível de atividade física materna está positivamente relacionado com sedentarismo em crianças e jovens de 10 a 12 anos (Hallal et al., 2006). Outro estudo com grande número de crianças belgas mostrou que o nível de atividade física da família estava correlacionado com a competência motora de crianças (Cools et al., 2011). Estes resultados indicam a influência dos hábitos e da intervenção da família na rotina diária das crianças; e os efeitos disso na saúde e competência motora. Uma revisão sistemática da literatura aponta que atividades externas foram consistentemente associadas com nível de atividade física e menor nível de sedentarismo comparado com atividades em ambientes internos (Gray et al., 2015).
Em suma, parece que associação entre a disponibilidade de equipamentos e políticas públicas de incentivo a prática das AFES, hábitos familiares ativos e incentivos a atividades externas durante o tempo livre parecem ser determinantes para os níveis de competência motora e sedentarismo em crianças e consequentemente adolescentes e jovens. Assim, é fundamental o papel das famílias no controle do tempo destinado aos jogos digitais das crianças, assim como no papel de modelo de adultos ativos e incentivadores da prática de atividades ao ar livre e envolvimento com as AFES.
Também é importante ressaltar a importância dos jogos digitais para o desenvolvimento das funções cognitivas do indivíduo. Porém, seu uso em demasia durante a infância deve ser evitado, uma vez o envolvimento com jogos digitais diminui o tempo de atividades ao ar livre, que são positivas para o desenvolvimento tanto motor quanto cognitivo e também para a saúde.
Assim, a hipótese do estudo foi confirmada uma vez que o grupo de crianças, envolvidos prioritariamente com jogos digitais em suas atividades durante o tempo livre, apresentaram níveis de competência motora abaixo do esperado para idade, o que não aconteceu com o grupo que brinca em ambientes externos. Ou seja, mesmo participando das aulas de educação física escolar e morando em um município equipado com aparelhos e políticas públicas de incentivo a prática de AFES, foram encontrados níveis preocupantes de competência motora em crianças de 10 anos de idade que dedicam muito tempo aos jogos digitais.
Uma limitação do presente estudo foi não controlar os níveis de atividade física das famílias das crianças investigadas. Ainda sim, levando em consideração que a família exerce grande influência sobre a rotina de crianças de 10 anos de idade, os resultados sugerem que permitir que crianças dediquem muito tempo a atividades em telas, sejam jogos digitais, programas de televisão ou vídeos em geral, parece provocar um efeito negativo na competência motora e na saúde durante a infância e, possivelmente, na adolescência e vida adulta. Logo, é esperado, que os resultados deste estudo possam contribuir de forma significativa não só para o delineamento de políticas públicas de incentivo a prática de AFES, como também para criação de campanhas de conscientização das famílias sobre a importância do exemplo e incentivo para uma rotina diária ativa; e também para o cuidado com relação ao tempo dedicado às telas, principalmente durante a infância.
Conclusão
Por meio deste estudo foi possível identificar que que o tipo de atividade realizada no tempo livre das crianças impacta o nível de competência motora. A privação dos movimentos e das experiências motoras diversificadas, devido ao estilo de vida atual, tem influenciado negativamente na capacidade de coordenação corporal das crianças, deixando claro que se os recursos digitais forem a única atividade durante o tempo livre o desenvolvimento e a saúde dos indivíduos ficarão comprometidos. Assim, parece fundamental o papel de políticas públicas que favoreçam oportunidades equânimes de práticas de lazer ativo, atividades físicas e esportivas, bem como o papel da família como modelo e estímulo para o envolvimento com atividades lúdicas e recreativas ao ar livre. Para tal, é fundamental que os municípios adotem políticas de popularização de programas de lazer ativo, atividades físicas e esportivas de maneira que atenda democraticamente todas as faixas etárias bem como todas as regiões da cidade. Ainda, se faz essencial uma relação íntima entre os órgãos responsáveis pela escola (tais como secretaria de educação) e esporte (secretaria de esportes) para viabilizar o espaço, bem como o professor de Educação Física da escola como ferramentas complementares em projetos extracurriculares de atividades físicas e esportivas para crianças e jovens. No que tange as ações de integração e formação da família como aliados no incentivo à prática de atividades físicas e esportivas é primordial o desenvolvimento de projetos de formação nos quais as famílias tenham a oportunidade de receberem informações sobre a relevância de uma infância ativa e os desdobramentos disso para a sociedade a médio e longo prazo. Por fim, o sucesso de tais ações perpassa pelo desenvolvimento do senso coletivo de pertencimento. Para isso, tanto as famílias quanto as crianças devem ser estimulados a estar envolvidos em ações de manutenção e fortalecimento dos programas de lazer ativo, atividades físicas e esportivas; tais como eventos de confraternização ou, ainda, revitalização de espaços para as práticas.