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Relaciones internacionales

versión On-line ISSN 2314-2766

Relac. int. vol.26 no.52 La Plata jun. 2017

 

LECTURAS

Memória do primeiro golpe do Estado de Gana. Meu primeiro golpe do Estado e outras histórias reais das décadas perdidas da África John Dramani Mahama Geração, 2014

Vanicléia Silva Santos Doutora em História, Professora de História da África - Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Email: vanijacobina@gmail.com

Em 24 de julho de 2012, quando lançava "My First Coup d'Etat" em Nova York, John Dramani Mahama soube do falecimento do então Presidente de Gana, John Atta Mills. Dramani era o Vice-Presidente. Seguindo a Constituição, ele se tornou imediatamente o Presidente do país. Alguns presidentes têm escrito suas próprias biografias, que não rememoram apenas aspectos da vida privada do indivíduo, mas também refletem sobre como a política e a sociedade na qual viveram impactaram nas trajetórias de homens comuns que se tornaram grandes personalidades políticas. Uma das mais famosas obras deste gênero na atualidade foi escrita pelo atual Presidente dos Estados Unidos (2008-2016),1 Barack Obama, "Dreams from my father" (traduzido no Brasil como A Origem dos Meus Sonhos, em 2008). A autobiografia do atual Presidente de Gana foi publicada originalmente em inglês com o título "My First Coup d'Etat: And Other True Stories from the Lost Decades of Africa" (New York: Bloomsbury Publishers, 2012). No Brasil, o título foi traduzido para Meu primeiro golpe do Estado e outras histórias reais das décadas perdidas da África e lançado em 2014, em Brasília. O título do livro é uma referência ao primeiro golpe de Estado em Gana (1966), que derrubou o Presidente da jovem nação2, Kwame Nkrumah,3 também autor de sua autobiografia Ghana: The Autobiography of Kwame Nkrumah (1957). Aliás, os políticos ganenses possuem uma tradição de escrever importantes livros sobre a política do país. O livro de John Dramani Mahama é composto por nove capítulos e uma introdução que apresenta a ideia central da obra e situa os leitores pouco familiarizados com a história contemporânea do país. Os capítulos abordam importantes momentos da história política e econômica de Gana, desde os anos 1960 até os anos 1990, como os resquícios do colonialismo britânico, os desafios pós-coloniais, a euforia da liberdade, a influência norte-americana, a fragilidade da democracia diante das disputas pelo poder central, a depressão econômica, os interesses internacionais e as relações com os países vizinhos, especialmente Nigéria e Costa do Marfim. O livro segue uma cronologia de crises políticas e o impacto destes eventos na sociedade em geral e na família dos Mahama. O nome do autor, John Dramani Mahama, é resultado das tradições locais (rito de nomeação da criança recém-nascida) e da cultura ocidental (p. 109-116). Quando nasceu foi nomeado como Dramani, referência ao respeitado tio-avô falecido; e na escola recebeu um nome próprio anglicano, tornando-se John. Conforme a tradição ocidental adotada pela elite em Gana, era preciso ter um sobrenome paterno – por isso Mahama, nome do pai. Para distinguir John Dramani Mahama do pai, Emmanuel Adama Mahama, chamarei o autor de Dramani (na vida política é conhecido por Mahama).

Embora a narrativa seja em primeira pessoa, quem escreve não é o Dramani jovem que viveu aqueles fatos. Quem escreve é o John Dramani Mahama, o político do alto dos seus 50 anos de idade, envolvido no alto escalão da política nacional de Gana. Assim, é preciso problematizar a memória do autor. Dramani selecionou relatos históricos a partir de uma intenção subjetiva e objetiva de um projeto político público e pessoal – a produção de um discurso oficial e "verdadeiro" sobre si. Neste sentido, para o leitor, tudo parece ter uma ordem cronológica e lógica para que as sequências também tenham relações inteligíveis. Em outras palavras, a narrativa se aproxima de um romance, porque a vida real não é uma sequência de fatos contínuos e lógicos (BOURDIEU, 2016: 188-189). A retrospectiva é feita a partir de uma perspectiva. Todos os fatos elencados na narrativa levariam Dramani a tornar-se o homem que ele é hoje: foi marcado pela separação da mãe, aos seis anos de idade, que o levou de Bole (norte) para viver com pai em Acra (sul). Foi o único filho escolhido para estudar na mais importante escola de Gana, o internato Achimota College and School. A prisão do pai por um ano, em decorrência do golpe de Estado de 1966. A permanência no colégio interno ainda em tenra idade. As idas e vindas entre o sul ocidentalizado, onde estudava, e o norte, onde passava as férias nas casas das famílias materna e paterna. O retorno, na adolescência, para Tamale, a cidade do pai ao norte, onde estudou na Tamale Secondary School. A experiência com o sucesso econômico da indústria de arroz do pai e a posterior perda causada por deslealdade e instabilidades políticas. A entrada na Universidade de Gana para estudar História e o consecutivo envolvimento de Dramani com o movimento estudantil. A retirada do poder do Presidente Hilla Limann pelo capitão Jerry Rawlins (1981) como parte dos sucessivos golpes de Estados (1966-1992) e a continuidade das tentativas de aplicação prática do conceito de "nacionalismo africano". As fugas de cérebros do país e o exílio do pai na Costa do Marfim, Nigéria e Londres. A paixão pelas ideias socialistas e as pós-graduações de Dramani na Universidade de Gana e em Moscou (1986). A volta da democracia em 1993 e o retorno do pai ao país.
O retorno do pai do exílio em Londres culminou com a eleição de Dramani como membro do parlamento pelo partido National Democratic Congress. Mas esse fato não aparece no livro. Em resumo, a linha mestra da narrativa se assenta em três pontos centrais: (1) a vida política na qual a família Mahama estava inserida, (2) a centralidade da figura paterna para o autor e (3) a importância da educação de alta qualidade que Dramani obteve. Ao meu ver, o livro é, sobretudo uma homenagem do autor ao pai, Emmanuel Adama Mahama. Isso faz, por exemplo, que a mãe esteja ausente da narrativa depois da infância e só reapareça nas últimas duas páginas do livro, quando é narrado o reencontro dela com o filho que vivia em Londres. Dramani é parte da elite de Gana. Por meio das descrições, pode-se notar que viveu nas melhores casas, morava nos melhores bairros, tinha acesso à música americana e tecnologias, como TV, geladeira, máquina de chá inglesa, carro e viagens aéreas, que eram pouco comuns para quem vivia longe dos centros urbanos nos anos 1970, em qualquer parte do mundo. A forma como a família viveu a experiência da crise econômica, de racionamento de alimento, água, luz, combustível e outros é completamente diferente das classes marginalizadas. Também, pode-se concluir fácilmente que o fato da família participar da política nacional, fazia com que sentissem as instabilidades políticas mais de perto. Os filhos da elite da Gana viviam em dois mundos – a tradição africana na qual nasceram e foram primeiramente educados e a educação ocidentalizada recebida posteriormente. Neste sentido, sem questionar a possibilidade das múltiplas identidades, da alienação colonial, da violência psicológica e da imposição dos valores ocidentais, Dramani considera o pai um "inglês". Em decorrência desse sujeito entre dois mundos, o livro tem alguns problemas que não prejudicam a contribuição que este traz para o campo dos estudos da África pós-colonial ou pós-independência. O primeiro problema é relativo ao uso de termos etnocêntricos para
explicar os costumes nas pequenas vilas, onde viviam os avós paterno e maternos de Dramani. Ao invés de usar os termos locais para se referir aos grupos étnicos, foram usados termos inadequados do ponto de vista histórico e antropológico, como "tribo", "tribalismo", "hierarquias tribais", para tratar dos diferentes povos e suas formas de organização social; usou "animismo" para referirse à cerimônia de oferendas aos deuses ancestrais que desciam ao mundo dos vivos para visitar a comunidade. O segundo é referente ao olhar acrítico do autor para a administração colonial que perdurou até 1957. A colonização britânica, assim como a francesa, portuguesa e belga usaram da violência e submissão como forma de controle colonial. Todas se utilizaram do trabalho forçado na agricultura ou mineração, formas de trabalho análogas à escravidão. No período colonial, Adama, o bisavô de Dramani, era o chefe Soma Wura. O avô era o Gbemfu Wura. Mas ambos eram subordinados ao comissário de distrito, um inglês que, localmente, podia julgar e legislar. Os chefes perderam seus poderes reais quando instituído o sistema do "indirect rule"4. Nenhum dos chefes poderia contestar a ordem do comissário, que havia determinado que levariam o pequeno Mahama para estudar em uma cidade distante. A obediência era importante para manter os privilégios e a estabilidade dos chefes no poder. A principal contribuição do livro é que se trata de uma narrativa em primeira pessoa de um intelectual e político ganense. É um retrato diferente e original de um país africano, sem as habituais narrativas de guerras sangrentas, os clichês românticos ou relatos de viajantes estrangeiros que influenciaram tantos estudos sobre a região até o século XIX. O livro é fundamental aos interessados em compreender uma face da política de Gana pós-colonial nas três primeiras décadas após a independência, nas quais os sistemas políticos herdados dos colonizadores se confrontavam com os sistemas tradicionais de organização política. Mais do que um retrato fiel da História de Gana ou de um acurado estudo histórico sobre o país, o livro deve ser lido como uma narrativa política pelo historiador. A obra é permeada de intenções que fazem sentido para o próprio presente histórico do autor e conforma uma concepção de passado, delineada pela memória. Portanto, é preciso localizar suas condições de enunciação e os objetivos da obra para melhor situar a construção da tessitura histórica elabora pelo autor. A narrativa escrita por Dramani depois que ele já era uma pessoa pública, envolvido na política nacional e internacional, e ainda muito próximo aos eventos narrados, implicou em (auto) censuras específicas ou esquecimentos e trocas de nomes verdadeiros por fictícios. Este livro de agradabilíssima leitura nos coloca novamente no debate da proximidade ente história e romance e do atualíssimo papel da História para o presente. Referência: BOURDIEU, Pierre, 2006, A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. (Org.). Usos & abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: FGV, pp. 183-191.

Referencias:

1 Quando esta resenha for publicada os presidentes Barack Obama (EUA) e John Dramani Mahama (Gana) já terão sido substituídos pelos seus respectivos sucessores, Donald Trump e Nana Akufo-Addo, vencedores das eleições em 2016.
2 A Costa do Ouro era uma colônia britânica desde meados do século XIX, que se tornou independente em 1957 e teve o nome mudado para Gana. O nome da nova nação era uma referência ao grande reino de Gana que existiu no Oeste da África, entre os séculos VIII e XII.
3 Kwame Nkrumah foi um intelectual e político de Gana. Tornou-se o Primeiro Ministro pósindependência e depois o primeiro Presidente de Gana (1960-1966). Faleceu no exílio na Costa do Marfim, em 1972
4 A tradução literal seria domínio indireto. No sistema britânico, o indirect rule não visava integrar os nativos africanos na gestão da colônia, mas apenas explorar a mão de obra local para reduzir os custos administrativos da burocracia colonial.

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