SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número1Consideraciones preliminares para un nuevo modelo teórico de la métrica griega antigua: el caso del verso eólicoLa influencia de la etopeya y la suasoria en la Heroida XV: una mirada desde el novísimo papiro de Safo (p.gc. inv. 105 + P.Sapph. Obbink) índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Synthesis (La Plata)

versión impresa ISSN 0328-1205versión On-line ISSN 1851-779X

Synthesis (La Plata) vol.25 no.1 La Plata ene. 2018

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.24215/1851779xe028 

Artículos

Odisseu disfarçado na Odisseia (Cantos 15-24): trabalho, efemeridade e sofrimento

André Malta Campos1 

1Universidade de São Paulo

Resumen

En el presente artículo me propongo explorar de un modo general el êthos que Odiseo construye para sí mismo entre los cantos 15 a 24 de Odisea, cuando debe actuar disfrazado delante de Eumeo, los pretendientes, Penélope y, finalmente, su propio padre. En su comportamiento, podemos notar una evolución de su “persona”, que el héroe ajusta a cada uno de sus interlocutores y situaciones, explorando especialmente temas tales como el trabajo, el carácter efímero de lo humano y el sufrimiento.

Palabras clave Odiseo; disfraz; Odisea

Abstract

My aim here is to provide an overview of how Odysseus elaborates an êthos for himself between Books 15 and 24 of the Odyssey, when he must act in disguise in front of Eumaeus, the suitors, Penelope and, finally, his own father. Throughout his behavior we can see the way his “persona” evolves and is adjusted to each one of his interlocutors and situations, with special attention given to themes such as work, ephemerality and suffering.

Keywords Odysseus; disguise; Odyssey

O recurso ao disfarce é, como se sabe, um elemento central na segunda metade da Odisseia. Transformado em velho mendigo por Atena no Canto 13, logo ao retornar a Ítaca, Odisseu terá que reentrar sua terra elaborando para si uma personalidade e uma história de vida capazes de convencerem seus interlocutores de que estão diante de um desconhecido, quando na verdade é o rei que está de volta para os testar. Essa construção, no entanto, está longe de ser uniforme e simples: o herói, ao longo da sua atuação, vai modificando uma série de elementos relativos ao seu disfarce, para que se adaptem a diferentes contextos e destinatários, e com isso vai explorando também diferentes temas. Mesmo quando não é mais um mendigo e os pretendentes já foram todos mortos, vemos ainda no encontro com o pai, no Canto 24, como essa habilidade de se transformar em outro permanece operante como característica central do protagonista.

Aqui, quero explorar panoramicamente alguns momentos centrais desse êthos em transformação, deixando porém de lado o Canto 14, que, enquanto “début cênico” do herói, merece uma análise à parte.1 Para situar o leitor, é preciso dizer que, na minha leitura, inicialmente Odisseu opera diante do servo como um mendigo interesseiro, para assim “entrar no papel” e não ser objeto de qualquer suspeita. Essa postura primeira, contudo, parece sofrer uma alteração necessária já a partir do Canto 15, quando o herói deve pôr em prática a estratégia de se dirigir ao palácio: Odisseu introduzirá então um elemento novo na sua caracterização de mendigo, ao submeter o porqueiro a novo “teste” (peiretízon, vv. 303-306).2 Dizendo não querer “dar despesa” aos porqueiros (verbo katatrýkho), o mendigo se oferece para desempenhar algum tipo de atividade doméstica (drestosýne) junto aos pretendentes no palácio (vv. 307-324), recebendo do anfitrião uma veemente negativa (vv. 326-339). A resposta é, naturalmente, aquela esperada pelo senhor, que vê reafirmada a justiça de Eumeu: este não quer submeter o hóspede à violência alheia e tampouco o considera um incômodo, mesmo na escassez.

Com essa estratégia, porém, o herói, além de ter mais certeza do caráter de seu servo, pode começar a construir sua partida para o palácio e se apresentar como mendigo disposto a trabalhar. Embora um comentador como Peter Jones veja nessa oferta simplesmente o recurso a mais um lugar-comum da figura do mendicante,3 parece-me que a intenção de Odisseu aqui é diferenciar-se do mendigo habitual: sim, dizer que quer transmitir suas informações a Penélope (v. 314) é em parte retomar a caracterização suspeita do mentiroso interesseiro, mas a crítica aos pretendentes (v. 315), somada à preocupação em não consumir mais os bens do porqueiro (v. 309) e à disposição em servir aos “bons”, com exemplos de atividades possíveis (vv. 319-324), só pode soar positivamente aos ouvidos de um serviçal.

No início do Canto 17, tendo já se revelado para Telêmaco, Odisseu retomará na cabana, diante de Eumeu, esse motivo do trabalho: numa espécie de “teatro” armado com o filho, ele afirma que tem que abandonar o campo porque é idoso demais para a lida rural (vv. 17-25). Ou seja: mostra-se novamente disposto a realizar algum tipo de tarefa, mas uma que seja condizente com sua idade. Essa transformação na sua postura, adaptável ao novo contexto, será importante para que o servo não mais o perceba –como Penélope depois não o perceberá– simplesmente como pedinte interesseiro e bom de lábia: sua origem nobre vai assim parecendo cada vez mais verdadeira. A caminho e já dentro de seu próprio palácio, é esse motivo da preguiça e do trabalho que o poema vai explorar consistentemente a partir do Canto 17, com o mendigo sendo agora tomado –pelos pretendentes e pelos servos fiéis a eles– por um parasita, figura preguiçosa e disposta apenas a saciar o “estômago impreenchível” (gastéra ánalton): é o que afirma o servo vil Melanteu (Od. 17.226-228), é o que explicitam Eurímaco (Od. 18.362-364) e um pretendente anônimo (Od. 20.376-379).4 A presença de um pedinte rival no Canto 18, ao mesmo tempo, serve para reforçar a caracterização habitual e indiferenciada: ainda que mensageiro ocasional, Iro se destacava pelo “louco estômago” (gastéri márgei), comendo e bebendo de forma incessante (vv. 1-3).

O mendigo Odisseu, no entanto, a despeito de admitir a ditadura do gastér, para não “sair do papel” (vv. 52-57 e também Od. 17.286), não só mostra força superior à do jovem Iro, mas reage à fala de Eurímaco dizendo que tem capacidade de arar o campo e combater (vv. 366-380), de certa forma desmentindo o que dissera anteriormente na cabana.5 No mesmo Canto 18, na cena do confronto com a serva Melanto (vv. 307-345), ele ainda realiza o trabalho que indicara a Eumeu no Canto 15 (v. 322): tomando o lugar das servas, cuida da iluminação da sala, dando ordens que quase traem sua verdadeira identidade.6 Esses elementos todos, se passam despercebidos aos que são desrespeitosos no palácio, são no entanto fundamentais para que Odisseu mostre-se, mesmo constrangido pelos males da mendicância, com um comportamento superior àquele habitual, e afim à sua origem nobre. Note-se como, no início do Canto 19, no episódio da remoção das armas, é novamente esse motivo do trabalho que vem à tona, quando Telêmaco diz a Euricleia que precisa da ajuda do pedinte para que este não se comporte como um “inútil” (aergón): a construção da figura do mendigo prestativo de fato mostra-se mais uma vez fundamental, servindo aqui para manter Odisseu dentro de sua casa após a partida dos demais (vv. 14-30).7

Além desse ponto específico, é preciso investigar em linhas gerais como o herói explora seu disfarce no encontro com o filho e com os pretendentes, até o momento do diálogo com Penélope. No Canto 16, no breve contato com Telêmaco anterior à revelação ordenada por Atena, o mendigo condena de modo veemente os pretendentes por seus “atrevimentos” e “ultrajes” (atásthala; aeikéa/aeikelíos; vv. 91-111), expressando seu desejo de massacrá-los caso fosse “o filho do ilibado Odisseu, ou ele próprio... / voltasse” (è paîs ex Odysêos amýmonos eè kaì autós / élthoi, vv. 100-101).8 Mais à frente, quando retoma sua “mentira cretense” diante dos pretendentes, no Canto 17 (vv. 415-444), o mendigo já reduz o relato, adequando de um modo oportuno o conteúdo ao interlocutor (o que não deve ter passado despercebido ao porqueiro, que estava presente): omite a princípio qualquer informação sobre a volta de Odisseu, junto também com a origem cretense, que parece ficar implicada. Mantida basicamente a aventura no Egito já narrada no Canto 14 (Od. 17.427-441 = 14.258-272), ele conclui a narrativa breve dizendo desta vez ter vindo de Chipre, alteração que talvez se justifique pelo fato de que a menção aos tesprotos o conduziria a falar das notícias sobre o herói, como na versão dos Cantos 14 e 19. De modo geral, o que vai enfatizado é a transição de uma vida antes abastada rumo à mendicância presente, o que confere sabedoria à figura do velho. Mas a “moral” construída aqui (os desdobramentos da postura violenta) é ignorada pelos invasores do palácio.9

Curiosamente, a resposta violenta de Antínoo –chamando o pedinte de “atrevido e impudente” (tharsaléos kaì anaidés, v. 449)– destaca aquelas qualidades que Odisseu explorara, segundo minha leitura, na cabana do porqueiro, mas que agora deve necessariamente readequar, por causa da proximidade com Eumeu e Penélope (cuja confiança deve ganhar) e da contraposição aos jovens soberbos: é como se Odisseu, já tendo se exercitado no disfarce de mendigo desavergonhado que mente (mas ele dizia a verdade), agora devesse atenuar esse aspecto típico do papel que desempenha, ou, melhor dizendo, devesse explorar mais a vivência própria de quem caiu nessa condição, como fará na já citada fala a Anfínomo do Canto 18 (vv. 125-150), quando a transitoriedade humana servirá de base à censura aberta aos pretendentes, e a volta iminente do herói –omitida aqui no Canto 17– será anunciada. O antes sabichão mendigo vai, no novo contexto, ficando efetivamente sábio e ganhando uma severidade condizente com o andamento do poema e o desfecho sangrento que anuncia. Por isso Eumeu já pode vê-lo como figura superior e com autoridade (“não és insensato”, oudè... ess’anóemon, Od. 17.273), numa cena recheada de ironia, com Odisseu “reconhecendo” seu palácio com facilidade, ou na conversa posterior com Penélope, quando o servo afirma que o mendigo fala “com proporção” (katà moîran, v. 580) e ouve da senhora a resposta de que o estrangeiro não era “imprudente” (ouk áphron ho xeînos, v. 586).10

Finalmente, no diálogo do mendigo com a mulher, anunciado desde o Canto 17 (vv. 507-590) mas que surge apenas no 19, Odisseu –sem discrepar do que dissera a Eumeu– concentra-se menos na sua história de vida e mais nos dados sobre o rei ausente, aquelas informações por que tanto ansiava a esposa;11 lembre-se que no Canto 17 ela soube por Telêmaco que Odisseu estava preso na ilha de Calipso (vv. 142-143), que Teoclímeno lhe dissera que ele já estava na pátria (vv. 157-159), e que o próprio porqueiro registrara que o mendigo anunciava a volta do rei (vv. 525-527). A narrativa aqui vai ser entrecortada, dividindo-se em três etapas (vv. 165-202, 221-248 e 262-307), com todas a orbitar em torno do esposo desaparecido. Antes da conversa, porém, temos o preâmbulo, com a já mencionada remoção das armas da sala e novo confronto entre o mendigo e a serva má, Melanto (vv. 1-102). A acusação por parte da escrava de que o velho ficou na casa para “espiar as mulheres” (opipeúseis gynaîkas, vv. 66-69) faz desta vez Odisseu, ao contrário do que acontecera ao receber dela o primeiro insulto, no Canto 18 (vv. 338-339), explorar um discurso mais extenso e menos violento, em que destaca de novo o tópico da transitoriedade humana: quem dá hoje ao indigente pode ser o necessitado de amanhã, reviravolta a que ela mesma está sujeita, sobretudo por seu “atrevimento” (atasthállousa, vv. 71-88). Como Penélope está presente e é quem intervém na sequência, repreendendo Melanto, podemos imaginar que a fala de Odisseu está a serviço da construção do seu êthos junto à senhora: o de um velho respeitoso que está longe de se lançar ao assédio –postura talvez esperada num mendigo, mas que foi trazida à baila naquele contexto precisamente por quem dormia com um dos pretendentes, Eurímaco, como sabemos pela boca do narrador no Canto 18 (vv. 320-325).12

Que Penélope age com desconfiança em relação ao mendigo fica claro no momento em que ordena a Eurínome que prepare um banco para o pedinte dizer seu épos (eípei épos, v. 98, ecoando os usos em Od. 14.131, 463, 509), e quando manifesta seu desejo de o “questionar” (ethélo dé mim exeréesthai, v. 99); mais à frente, ela vai explicitar essa sua suspeita (ou desinteresse) em relação a estrangeiros, algo que, no entanto, a própria conversa interessada que está tendo vem contradizer, o que revela um misto de fé e descrença (vv. 134-135). Em tais circunstâncias, segundo o esquema de progressão do disfarce que estamos propondo, Odisseu não deve se comportar como fez com Eumeu no Canto 14. Se lá ele explorou a figura do pedinte desavergonhado –falastrão e interesseiro–, aqui ele se apresenta como alguém mais respeitoso e evasivo: primeiro compara Penélope a um rei justo, tocando assim no tema central do poema (vv. 107-115), e em seguida revela vergonha de choramingar em casa alheia, sujeito à acusação de ser um bêbado a “navegar em lágrimas” (dakryplóein, um aparente neologismo, vv. 115-122). As ironias se fazem sentir, seja ao chamá-la de “mulher” (ô gýnai, v. 107), substantivo que tem em grego, como em português, também o sentido de “esposa”, como ficará claro nas interpelações subsequentes de verso inteiro, “Mulher muito respeitável do Laercida Odisseu” (ô gýnai aidoíe Laertiádeo Odysêos, vv. 165, 262, 336 e 583); seja no uso do adjetivo “multissofrido” (polýstonos, v. 118), que pela construção típica dos epítetos do herói alude à sua identidade real; seja ainda pela referência à sua estada em casa estranha (oíkoi em allotríoi, v. 119).13 Mas o fundamental é notar como a suspeita de bebedeira que ele levanta contra si mesmo tem função apologética precisa na passagem: sendo acusação tipicamente dirigida contra os pedintes, como vemos explicitamente com Melanto (Od. 18.331) e com Antínoo (Od. 21.292-294), e um estereótipo que o próprio herói soube explorar bem ao fingir embriaguez na “fábula” final do Canto 14 (vv. 462-518), trazida à tona aqui ela opera, inversamente, como chancela da figura respeitosa de velho mendigo, o mesmo velho que rebatera havia pouco a acusação de assédio contra as mulheres e que é capaz de falar com propriedade sobre as intempéries da vida.14

Após a longa resposta de Penélope, em que rememora o estratagema da mortalha, temos enfim a primeira daquelas três etapas da narrativa de Odisseu: fingindo contrariedade, mas resignação (vv. 165-171), o mendigo põe-se a revelar sua origem cretense e sua identidade (vv. 172-184). Agora ele é uma figura mais nítida, porque irmão de Idomeneu e com nome próprio, Éton, “Faiscante”.15Para nossa surpresa, a menção a Odisseu surge sem demora: o mendigo o viu muito tempo atrás, porque o acolhera por doze dias no seu caminho rumo a Troia (vv. 185-202; ele mesmo, Éton, não participara da guerra, ao contrário do que tinha dito na versão para Eumeu). A referência faz Penélope chorar “o homem seu ali ao lado” (héon ándra parémenon, v. 209; note-se como a ironia é apontada pelo próprio narrador)16 e o relato é interrompido; Odisseu, na primeira conversa com a esposa em vinte anos, controla-se para não chorar também, e a rainha cobra sinais comprobatórios (vv. 203-219). Tal como na primeira, nesta segunda etapa da sua narrativa Odisseu continua a “tornar a muita mentira dita semelhante aos fatos” (íske pseúdea pollà légon etýmoisin homoîa) –para recuperarmos o comentário do narrador no verso 203, cuja construção pleonástica no original parece só reforçar a habilidade ilusionista do herói.17 Veja-se como nestas palavras iniciais, antes de descrever a capa e a túnica que ele mesmo vestia, a fusão entre fato e ficção é nítida:

τὴν δ᾽ ἀπαμειβόμενος προσέφη πολύμητις Ὀδυσσεύς·

‘ὦ γύναι, ἀργαλέον τόσσον χρόνον ἀμφὶς ἐόντα

εἰπέμεν· ἤδη γάρ οἱ ἐεικοστὸν ἔτος ἐστὶν

ἐξ οὗ κεῖθεν ἔβη καὶ ἐμῆς ἀπελήλυθε πάτρης·

αὐτάρ τοι ἐρέω ὥς μοι ἰνδάλλεται ἦτορ.

(Od. 19.221-224)

Mulher, é árduo, por tanto tempo estando separado (amphìs eónta),

falar: agora pra ele já é o vigésimo ano

desde que de lá partiu e se foi da minha pátria,

mas vou te dizer, tal qual se me afigura por dentro.

A alegada dificuldade em relembrar é em parte dissimulada, porque se trata das próprias vestes, mas é ao mesmo tempo real, por causa do intervalo de tempo; a separação é igualmente uma impostura, se tomada como separação entre o mendigo e Odisseu (tal como Penélope entende), mas é também verdadeira, se lida enquanto separação ele que experimentou em relação a sua esposa/casa (como nós podemos entender, adicionalmente).18 Na continuação, ao expor as primeiras provas de que efetivamente conheceu o herói –a capa com broche e a túnica que então vestia (khlaînan, vv. 225-231, e khitôna, vv. 232-235)–, o herói carrega nos seus detalhes maravilhosos, fazendo assim um elogio simultâneo de si mesmo e da esposa, que ele bem sabia ter sido a responsável pela confecção das peças, como ela própria confessará depois, comovida (vv. 255-257). Para reforçar o disfarce, porém, ele simula dúvida –o herói teria trazido as vestes de casa ou talvez ganhado depois de presente, por causa das amizades que tinha (vv. 236-240)?19 Pois foi justamente isso que o próprio mendigo fizera com seu hóspede no passado –dera-lhe uma espada e uma túnica (vv. 241-243). O motivo da roupa dada como símbolo da hospitalidade ressurge mais uma vez, e o mendigo que antes cobrava uma vestimenta de Eumeu quer agora mostrar como já desempenhou corretamente o papel de anfitrião. A prova final oferecida a Penélope –a descrição do arauto Euríbates (vv. 244-248)– fecha a segunda parte da narrativa mentirosa de Odisseu, satisfazendo a curiosidade da rainha. Esta, no entanto, ainda que contente com a aparente sinceridade, reafirma a descrença na volta do marido (vv. 253-260).

A terceira etapa do relato é a mais longa e aquela em que o motivo da mentira que é verdadeira é sentido de modo mais agudo: aqui Odisseu parece ser o “cretense verídico” que mencionara anteriormente (Eteókretes, v. 176) –a referência era a princípio aos cretenses “de fato” da ilha, mas como não ver aí um jogo desconcertante com a fama de embusteiros que vai implícita no disfarce que assume? Não por acaso, depois de consolar Penélope em seu lamento pela perda do marido (ainda mais agudo, diz, quando esse marido é alguém como Odisseu!, vv. 262-267), o mendigo destaca o acerto do que vai dizer sobre a volta do herói:

ἀλλὰ γόου μὲν παῦσαι, ἐμεῖο δὲ σύνθεο μῦθον·

νημερτέως γάρ τοι μυθήσομαι οὐδ᾽ ἐπικεύσω

ὡς ἤδη Ὀδυσῆος ἐγὼ περὶ νόστου ἄκουσα

ἀγχοῦ, Θεσπρωτῶν ἀνδρῶν ἐν πίονι δήμῳ,

ζωοῦ· αὐτὰρ ἄγει κειμήλια πολλὰ καὶ ἐσθλὰ (…)

(Od. 19.268-272)

Mas deixa de choro e presta atenção à minha fala,

pois eu vou te relatar sem erro (nemertéos) e sem esconder

como eu mesmo já ouvi (ákousa) sobre a volta de Odisseu,

bem próxima, lá na rica terra dos varões tesprotos

vivo, a carregar um belo e numeroso tesouro (...)

A referência aos tesprotos (de que o herói lá tinha um tesouro acumulado e estava pronto para partir) recupera o que tinha sido dito a Eumeu no Canto 14. Antes, porém, de repetir os versos já utilizados, Odisseu introduz, muito significativamente, duas informações que não tinham aparecido até aqui nas mentiras: a morte dos companheiros ao deixarem a ilha Trinácia, depois de devorarem as vacas do Sol (vv. 273-277), e a subsequente acolhida junto aos feácios (vv. 278-284; a estada por sete anos com Calipso é omitida).20 Note-se como no verso 275 ele joga com o próprio nome –uma piscadela para Penélope?–, dizendo que Zeus e o Sol deram a Odisseu “o ódio seu” (odýsanto gàr autôi), o que representa uma inesperada tomada de consciência retrospectiva acerca dessa perseguição divina anterior, e como ao mesmo tempo essa afirmação entra em choque com os versos 285 e 286, quando justifica o atraso do herói em retornar por sua vontade de angariar bens: “Assim muitas espertezas, acima dos mortais homens, / sabe Odisseu e ninguém mais com ele rivaliza”. O retorno sofrido, marcado pela cólera dos deuses, é atenuado no fim por uma tranquilidade aquisitiva que falseia a ansiedade do herói em voltar para sua terra pátria.

Tudo isso (diz o mendigo) ele soube pelo relato de Fídon, rei dos tesprotos (vv. 287 ~ 14.316). Esse mesmo rei: (a) jurou que o transporte de Odisseu era iminente (vv. 288-290), e (b) despachou o mendigo para Dulíquio (vv. 291-292), não sem antes (c) mostrar a riqueza que Odisseu reunira (vv. 293-295) e (d) dizer que o herói partira para Dodona, para saber se voltaria às claras ou escondido (vv. 296-299). A sequência reorganiza o que no Canto 14 seguia uma ordem mais natural: (c) mostra a riqueza que Odisseu reunira (vv. 323-326, com um verso a mais), (d) diz que o herói partiu para Dodona (vv. 327-330), (a) jura que seu transporte é iminente (vv. 331-333), e (b) despacha o mendigo para Dulíquio (vv. 334-335). Mas, mais importante do que notar esse rearranjo formular, é perceber como Odisseu trabalha para ser mais digno de fé aqui do que foi lá. Ele não só omite os dados referentes a sua transformação em mendigo e a chegada a Ítaca, destacados na conclusão do relato no Canto 14 (vv. 336-359),21 mas ainda, para ganhar gradualmente a confiança da rainha, anuncia a volta de Odisseu no fim do discurso, e não no início. Com o porqueiro, os mesmo cinco versos do juramento (Od. 19.303-307 = 14.158-162), surgidos fora de hora, estavam a serviço da precipitação fingida do mendigo interesseiro, ávido por ganhar uma capa antes mesmo de contar sua história, enquanto aqui eles aparecem como coroamento de um relato embasado por sinais, vindos do próprio pedinte e de outros. Se por um lado isso não desfaz o desânimo da mulher, por outro não deixa de ser um detalhe sutil do processo de caracterização do mendigo-Odisseu: como acontece em Homero, versos idênticos, ditos em contextos diversos, podem sugerir nova percepção, tanto do que é dito quanto de quem diz.

Lembre-se que o juramento no Canto 14 vinha atrelado à solicitação de “capa e túnica” (v. 154) –que culminou no empréstimo feito por Eumeu ao fim do episódio, e na promessa de vestes novas, a serem dadas por Telêmaco (segundo o porqueiro, Od. 14.515-516 e 15.337-338, e o próprio Telêmaco, Od. 16.79), ou por Penélope (Od. 17.550). Mas aqui capa e túnica, tendo atuado como sinais confirmatórios da identidade de Odisseu, estão a serviço do estabelecimento gradual de uma relação de confiança, e não desconfiança.22 O mendigo não só não solicita nenhuma peça nova de roupa para passar a noite, como recusa a oferta feita na sequência por Penélope, de “capas e mais brilhantes lençóis” (khlaínas kaì rhégea sigalóenta, v. 318), alegando que para ele “se tornaram, capas e mais brilhantes lençóis, / odiosos” (vv. 337-338). O contraste em relação à cena anterior com Eumeu é claro, e tem a ver não só com essa postura nova, de mendigo respeitoso e contido, mas também (podemos especular) com o receio de que esse novo “guarda-roupa”, não sendo mais de origem humilde, pudesse trair a verdadeira identidade do hóspede. Quanto à oferta de que uma serva lavasse seus pés (v. 317) –que acompanha o outro gesto de hospitalidade–, sabemos que a recusa se liga à condenação anterior do comportamento de Melanto: ao requerer uma velha (vv. 343-348) ao invés de uma provável figura jovem, que seria o natural, o mendigo reforça sua postura respeitosa, de quem não quer assediar, como confirmam as palavras seguintes da senhora, que o chama de “ponderado” (pepnyménos, vv. 350-352).23

A cena seguinte de reconhecimento da cicatriz por Euricleia, funcionando com um grande interlúdio (vv. 386-507) –e mostrando que mesmo o mais esperto herói não era infalível, tendo sido aliás reconhecido outrora por Helena, quando também se disfarçara de mendigo (Od. 4.249-251)–, a cena toda realiza uma espécie de cesura na conversa de Odisseu com a esposa: se na primeira parte ela buscava informação de um modo mais passivo, a seguir será a vez de tomar a iniciativa e encaminhar a história para a sua conclusão, com a proposta final da prova do arco.24 Nesse sentido, é importante perceber como, no mesmo discurso em que faz as ofertas hospitaleiras mencionadas acima, Penélope justifica a insistência na boa acolhida com esta reflexão gnômica, que se conecta à comparação feita um pouco antes pelo mendigo entre a rainha e o rei “ilibado” (basilêos amýmonos, vv. 107-115):

(…) ἄνθρωποι δὲ μινυνθάδιοι τελέθουσιν.

ὃς μὲν ἀπηνὴς αὐτὸς ἔῃ καὶ ἀπηνέα εἰδῇ,

τῷ δὲ καταρῶνται πάντες βροτοὶ ἄλγε᾽ ὀπίσσω

ζωῷ, ἀτὰρ τεθνεῶτί γ᾽ ἐφεψιόωνται ἅπαντες·

ὃς δ᾽ ἂν ἀμύμων αὐτὸς ἔῃ καὶ ἀμύμονα εἰδῇ,

τοῦ μέν τε κλέος εὐρὺ δὶα ξεῖνοι φορέουσι

πάντας ἐπ᾽ ἀνθρώπους, πολλοί τέ μιν ἐσθλὸν ἔειπον.

(Od. 19.328-334)

(...) Os homens (ánthropoi), diminuta a vida, findam.

Quem é, por si, intratável (apenés), com ideias intratáveis (apenéa eidêi),

pra esse todos invocam dores no porvir enquanto

vivo, e quando então já morto fazem troça dele, todos;

mas quem, por si, ilibado (amýmon), com ideias ilibadas (amýmona eidêi),

desse a vasta glória (kléos eurý) difundem os amigos hóspedes (xeînoi)

por entre todos os homens, e muitos de bravo (esthlón) o chamam.

Não vou abordar aqui o restante do diálogo com a esposa, nem os desdobramentos da prova do arco e o reconhecimento entre marido e mulher. Dentro do percurso da volta (re)velada do herói, quero apenas analisar a cena do encontro –sob disfarce– com o pai, no Canto 24. Ela se insere num movimento final da Odisseia, de retomada dos acontecimentos anteriores e de antecipação de eventos futuros, ou, na terminologia narratológica, de “analepses” e “prolepses”. No Canto 23, Odisseu repisa o relato de suas aventuras para Penélope (vv. 310-341), na mais longa passagem em discurso indireto de toda a poesia homérica,25 mas igualmente anuncia a ela o programa da viagem futura que Tirésias lhe dera como missão (vv. 267-284).26 Na primeira parte do Canto 24, com as almas dos pretendentes no Hades, há nova analepse por parte de Anfimedonte: é essa figura menor, nomeada apenas no Canto 22 (v. 242) e logo depois morta por Telêmaco (v. 284), que rememora para Agamênon os acontecimentos no palácio de Odisseu (vv. 121-185).27 A conversa, como se sabe, vem logo após outro diálogo, entre Aquiles e o Atrida (vv. 15-98), sobre a bela morte e o sepultamento majestoso do filho de Tétis, com sua “brava glória” (kléos esthlón, v. 94) entrando em choque com o “odioso fim” (lygròn ólethron, v. 96) daquele que morreu assassinado pela esposa e seu amante. Trata-se da retomada do paradigma moral presente desde o começo da Odisseia, aqui a serviço da condenação dos vis pretendentes presentes à cena, cujos funerais contrastam com os do grande herói.28 Mas a retomada comporta também uma antecipação, ou previsão, da parte de Agamênon –tanto da futura “glória” e “gracioso canto” relativos a Penélope (kléos/aoidèn kharíessan, vv. 196-198), quanto do “canto odioso” relativo a Clitemnestra (stygerè aoidé, v. 200), este último responsável por atribuir “pesada fama” a toda e qualquer mulher, mesmo no caso daquela cuja conduta seja correta. O poema, ao apontar para si, reforça a ideologia misógina.29

O tom geral, como se vê, é de fechamento, com a recolha de temas e histórias que foram centrais ao longo de toda a narrativa, e com a sugestão de efeitos esperados e de novos desdobramentos, numa formulação quase cíclica. Nesse sentido, a figura de Laertes, o pai de Odisseu, serve para que o herói retome seu passado longínquo e o ligue à promessa de futuro representada pelo filho amadurecido: como sabemos, os três combaterão junto contra os familiares dos pretendentes, nos instantes finais do poema. O velho, a princípio, representa a imagem de abandono a que foi entregue a casa de Odisseu, tal como o cão Argo na cena comovente do Canto 17.30 Essa triste figura nos é introduzida por Atena, disfarçada de Mentes, no Canto 1 (vv. 189-193), quando a deusa afirma que “distante lá no sítio sofre dores” (apáneuthen ep’agroû pémata páskhein, v. 190) e que “o cansaço se apodera de seus membros” (kámatos katà guia lábeisin, v. 192). Mais à frente, no Canto 11 –quando voltamos no tempo–, Odisseu fica sabendo pela boca de Anticleia que Laertes “não tem capas e mais brilhantes lençóis” (khlaînai kaì rhégea sigalóenta, v. 189), mas usa “vestes vis” (kakà heímata, v. 191), “jaz em dor no espírito cultivando grande luto” (keît’akhéon méga dè phresì pénthos aéxei, v. 195) e “dura velhice o atinge” (khalepòn d’epì gêras hikánei, v. 196). No Canto 15, passados vários anos desde o encontro com a mãe no Hades, o herói ouve novo relato sobre o pai, agora vindo de Eumeu: o porqueiro diz que o velho chora pela esposa morta e pelo filho desaparecido, e que experimenta uma velhice “crua” (en omôi gérai; vv. 353-357). Esse quadro geral –estendido no tempo– de idoso desamparado, vindo se somar às referências tanto às capas quanto às vestes vis, conectam Laertes claramente à figura do mendigo (repare-se como kakà... heímata, em Od. 11.191, é usada para o filho pedinte em 14.506; 19.72; 23.115; e 24.156). Isso faz não só com que ele se identifique com o disfarce de Odisseu, mas também que em certo sentido seja estrangeiro na sua própria terra, como apontou Peter Jones.31

Quando Odisseu o avista no campo, depois de ter se ausentado por vinte anos, é precisamente essa figura lastimável que encontra, numa das descrições mais pungentes de toda poesia homérica, que trabalha aqui também com a relação pai-filho que vemos destacada no último canto da Ilíada, nas figuras de Aquiles-Peleu e Heitor-Príamo. A mesma túnica “imunda” que o herói passara a usar ao final do Canto 13 (rhypóonta, v. 435) –voluntariamente, segundo o plano de vingança estabelecido pela deusa–, Laertes usa aqui (rhypóonta, v. 227) como sinal de sua falta de recurso, em função da ausência prolongada do filho:

τὸν δ᾽ οἶον πατέρ᾽ εὗρεν ἐϋκτιμένῃ ἐν ἀλωῇ,

λιστρεύοντα φυτόν: ῥυπόωντα δὲ ἕστο χιτῶνα

ῥαπτὸν ἀεικέλιον, περὶ δὲ κνήμῃσι βοείας

κνημῖδας ῥαπτὰς δέδετο, γραπτῦς ἀλεείνων,

χειρῖδάς τ᾽ ἐπὶ χερσὶ βάτων ἕνεκ᾽· αὐτὰρ ὕπερθεν

αἰγείην κυνέην κεφαλῇ ἔχε, πένθος ἀέξων.

τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησε πολύτλας δῖος Ὀδυσσεὺς

γήραϊ τειρόμενον, μέγα δὲ φρεσὶ πένθος ἔχοντα,

στὰς ἄρ᾽ ὑπὸ βλωθρὴν ὄγχνην κατὰ δάκρυον εἶβε.

μερμήριξε δ᾽ ἔπειτα κατὰ φρένα καὶ κατὰ θυμὸν

κύσσαι καὶ περιφῦναι ἑὸν πατέρ᾽, ἠδὲ ἕκαστα

εἰπεῖν, ὡς ἔλθοι καὶ ἵκοιτ᾽ ἐς πατρίδα γαῖαν,

ἦ πρῶτ᾽ ἐξερέοιτο ἕκαστά τε πειρήσαιτο.

ὧδε δέ οἱ φρονέοντι δοάσσατο κέρδιον εἶναι,

πρῶτον κερτομίοις ἐπέεσσιν πειρηθῆναι.

(Od. 24.226-240)

Encontrou seu pai apenas na vinha bem-construída,

enxadeando uma planta: vestia túnica imunda,

ultrajante, remendada, e nas canelas prendera

remendadas caneleiras de couro, contra arranhões,

e luvas nas mãos, por causa dos espinhos; tinha um gorro

de pele de cabra no alto da cabeça, ampliando o luto.

Assim então que o notou multitenaz Odisseu

–corroído pela idade, com grande luto no espírito–,

parou sob uma pereira alta e lágrimas verteu.

E ponderou, na sequência, isto no ânimo e no espírito:

beijar e abraçar o seu pai, e a ele cada coisa

contar de como chegara e atingira a terra pátria,

ou primeiro perguntar cada coisa e o pôr à prova.

E em seu espírito assim pareceu mais proveitoso:

em primeiro com cortantes palavras o pôr à prova (peirethênai).

A aproximação, já sem o disfarce de mendigo e com os pretendentes todos mortos, dispensaria qualquer tipo de cautela ou preocupação, o que faz com que esse novo “teste” –de certa forma antecipado para Penélope no Canto 23 (vv. 359-360) e dado como certo instantes antes de o herói ponderar consigo sobre como agir (vv. 216 e 221)– seja a princípio condenado por nós. Mas o desconfiado Odisseu precisa saber se Laertes o esqueceu e se lamenta de fato sua ausência; ao mesmo tempo, o ato de pôr à prova tem uma função identitária tão relevante quanto a própria cicatriz impressa na pele: assim o pai saberá que tem diante de si o multiastuto filho, sempre de olho no que é “mais proveitoso” (kérdion).32 Vale notar que Laertes “baixava a cabeça” (katékhon kephalén, v. 242) no começo da conversa, o que explicaria, de modo pragmático, o não-reconhecimento de Odisseu, mas não devemos insistir demais no realismo, porque mesmo depois da revelação o velho exigirá um sinal de confirmação. Vale notar também que, na sequência, o pai não se queixará em momento nenhum do fato de ter sido submetido a um teste: esse silêncio homérico não é irrelevante.

Retomemos o encontro: Odisseu começa por elogiar o cuidado com o pomar, mas critica a condição física e as “vestes ultrajantes” do velho, não condizentes com sua aparência de rei (aeikéa, vv. 244-255). Em seguida, pede informações sobre sua identidade, se a ilha onde ancorou é mesmo Ítaca e se está vivo ou morto o filho de Laertes, a quem acolhera no passado como hóspede (vv. 256-279). O ancião, já em lágrimas (despertadas pela calculada referência ao filho), primeiro responde que sim, que a terra é Ítaca, mas que não há possibilidade de a hospitalidade ser reciprocada por causa dos jovens que agora controlam a pólis (vv. 281-286), e depois solicita mais dados sobre o encontro com o convidado –que era seu filho– e a origem do estrangeiro (vv. 287-301).

O herói conclui então a sua última história mentirosa, a mais breve de todas: a origem cretense é abandonada, e agora ele se chama Epérito e vem de Alibante; uma divindade o fez vagar até Ítaca contra a sua vontade (!); faz cinco anos que viu Odisseu e os sinais à sua partida eram favoráveis (vv. 303-314).33 Repare-se que o “estrangeiro” –não estando mais no papel anterior de mendigo– não anuncia a volta do herói para Laertes, e também como aqui reaparece o tradicional motivo da supressão do nome, pela menção tardia a “Odisseu”, presente no diálogo apenas no verso 309. A dor profunda do velho faz com que Odisseu não se contenha, revelando sua identidade e a matança dos pretendentes (vv. 315-326). O pai pede um sinal e o herói mostra prontamente a cicatriz, além de indicar no pomar as árvores que Laertes lhe dera quando menino; os dois se abraçam e a conversa prepara a ação seguinte (vv. 327-361).

Essa cobrança de indícios comprobatórios não deixa de aproximar um do outro, ambos igualmente desconfiados e precavidos, tal como acontecera com Penélope no Canto 23; as plantas, por sua vez, enquanto sinal do convívio íntimo de pai e filho, também retomam um elemento importante na cena anterior com a esposa.34 No geral pode-se dizer, a título de conclusão, que ressalta a necessidade recorrente que tem Odisseu de fazer o papel do outro, mesmo quando não está fisicamente transformado, como se a manipulação retórica e a mudança de identidade constituíssem uma segunda pele sua, sempre a serviço do esclarecimento de uma realidade adversa ou ameaçadora: esta precisa passar por uma comprovação antes de ser encarada de frente, desprovida de subterfúgios.

Referências

Allen, T. (1908) Homeri Opera, 4 vols., Oxford. [ Links ]

Odyssey [ Links ]

Di Benedetto, V. (2010) Omero: Odissea, Milano. [ Links ]

Emlyn-Jones, C. (1986) “True and Lying Tales in the Odyssey”, G&R 33/1: 1-10. [ Links ]

Jones, P. (1988) Homer’s Odyssey: a Commentary Based on the Translation of Richmond Lattimore, London. [ Links ]

Monro, D. (1902) Homer’s Odyssey. Vol. 2 (Books XIII-XXIV), Oxford. [ Links ]

Pierron, A. (1875) L’Odyssée d’Homère, 2 vols., Paris. [ Links ]

Rutherford, R. (1992) Homer: Odyssey. Books XIX and XX, Cambridge. [ Links ]

Stanford, W. (1947) The Odyssey of Homer, 2 vols., London. [ Links ]

Trahman, C. (1952) “Odysseus’ Lies (Odyssey, Books 13-19)”, Phoenix 6/2: 31-43. [ Links ]

Notas

1. Fiz a abordagem desse passo fundamental do poema em “O manto e a construção do mendigo mentiroso em Odisseia 14”, texto apresentado no VIII Coloquio Internacional “Cartografías del yo em el mundo antiguo”, organizado pelo Centro de Estudios Helénicos da Universidade Nacional de La Plata, entre 26 e 29 de junho de 2018.

2. Cf. De Jong (2001: 375-376). Todas as traduções do grego são de minha autoria, a partir da edição de Thomas Allen (1908).

3. Cf. Jones (1988: 143).

4. Cf. De Jong (2001: 416-418 e 455).

5. Cf. Jones (1988: 170).

6. Cf. De Jong (2001: 452).

7. Cf. De Jong (2001: 460-462) e Rutherford (1992: 134).

8. Pela construção, trata-se de uma quase revelação de Odisseu antes de se revelar (em seguida ele fala sugestivamente em “meu palácio”, en emoîsi megároisi, v. 106); cf. Monro (1902: 76), Stanford (1947: vol. 2, 267) e De Jong (2001: 392).

9. Cf. Emlyn-Jones (1986: 7-8) e Trahman (1952: 40-41). Ver também De Jong (2001: 427-428).

10. Cf. Jones (1988: 260).

11. Cf. Trahman (1952: 41-42) e Jones (1988: 172 e 176). Ver ainda De Jong (2001: 459-460).

12. Cf. De Jong (2001: 465), Di Benedetto (2010: 982-983) e Rutherford (1992: 140). Veja-se como o detalhe do “banco” ou “escabelo” de Penélope (thrênyn, v. 57) contrasta com seu uso impróprio –enquanto arma de ataque– nos Cantos 17 (v. 462) e 18 (v. 394), conforme apontou Di Benedetto (2010: 980).

13. Cf. De Jong (2001: 467) e Rutherford (1992: 146).

14. Cf. Jones (1988: 177).

15. É esse o nome de um dos cavalos de Heitor no Canto 8 da Ilíada (v. 185); ver Rutherford (1992: 161).

16. Cf. De Jong (2001: 470).

17. Cf. Rutherford (1992:165) e Pierron (1875: vol. 2, 264).

18. Cf. Monro (1902: 159) e Stanford (1947: vol. 2, 325).

19. Cf. De Jong (2001: 471) e Rutherford (1992: 171).

20. A referência à “quilha da nau” no verso 278 (epì trópios neós) retoma um elemento importante da sua chegada à ilha de Calipso (Od. 5.130; 7.252; e 12.421-438), mas a referência no verso seguinte à Esquéria mostra claramente que Odisseu quer fundir esses dois momentos em um só. Lembre-se que Telêmaco já havia dito à mãe que o pai estava vivo na ilha da ninfa, no Canto 17 (vv. 142-143), e que no Canto 23, ao fazer seu relato para Penélope, o herói não omitirá essa informação (vv. 333-337).

21. Segundo Jones (1988: 178), a obsessão de Penélope com as notícias do marido faz com que ela também não pergunte a respeito.

22. Cf. Rutherford (1992: 173).

23. Cf. Rutherford (1992: 176-178), Pierron (1875: vol. 2, 273-274), Monro (1902: 166) e Jones (1988: 180). Por que Odisseu usa o pronome possesivo da primeira pessoa do plural no verso 344, “mulher não há de tocar nosso pé” (oudè gynè podòs hápsetai hemetéroio)? Monro (1902: 165) diz que não se trata de simples variação do singular, e que é como se Odisseu “falasse por outros além de sei mesmo”. Já Di Benedetto (2010: 1012) fala em “solidariedade”. De alguma forma, esse detalhe aponta para a verdadeira identidade do herói e sua reunião com Penélope. Veja-se ainda o “nosso pai” que o herói usa no Canto 24 (v. 216).

24. Cf. Rutherford (1992: 179).

25. Cf. De Jong (2001: 562-563); a estudiosa chama atenção para o fato de que a ordenação cronológica apresentada aí faz com que admiremos a forma complexa com que o poema organizou esses acontecimentos.

26. Cf. De Jong (2001: 565).

27. Cf. De Jong (2001: 571) e Di Benedetto (2010: 1216).

28. Cf. Jones (1988: 217 e 219) e De Jong (2001: 569 e 582). Note-se como Agamênon, após o relato de Anfimedonte, e apesar dos laços de hospitalidade existentes entre eles, ignora-o e faz o elogio de Odisseu e Penélope; ver Pierron (1875: vol. 2, 428).

29. Cf. De Jong (2001: 574).

30. Cf. De Jong (2001: 574).

31. Cf. Jones (1988: 222).

32. Cf. De Jong (2001: 578).

33.“Epérito” liga-se a éris, “discórdia”, assim como Odisseu ao verbo odýssomai? Para esse nome e os demais forjados na cena, ver Monro (1902: 275) e Stanford (1947: vol. 2, 423).

34. Cf. De Jong (2001: 581).

Creative Commons License Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-CompartirIgual 4.0 Internacional.