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Synthesis (La Plata)

versão impressa ISSN 0328-1205

Synthesis (La Plata) v.14  La Plata jan./dez. 2007

 

ARTÍCULOS

Polú Pollá Pollôn: Multiplicidade no proêmio da Odisséia

André Malta

Universidade de São Paulo

Resumen
El proemio de "Odisea", aparentemente compuesto de manera poco coherente, en realidad presenta - apoyándose precisamente en la multiformidad - informaciones esenciales para el desarrollo de la acción y de la caracterización de su principal héroe. Comenzando por las posibles significaciones de "polútropos" (v.1), este artículo busca dilucidar importantes formulaciones y movimientos exhibidos en esa introducción y de esa manera demostrar que ella adelanta enteramente coordinadas fundamentales de "Odisea".

PALABRAS-CLAVE: Odisea. Proemio. Narrativa. Héroe. Multiformidad.

Abstratc
The proem of the "Odyssey", apparently loosely composed, actually presents - basing itself precisely upon multiformity - information that is essential to the development of action and the characterization of its main hero. Starting with some possible meanings for "polútropos" (v.1), this paper tries to elucidate the main formulations and movements displayed by this beginning and so demonstrate that it fully anticipates important coordinates of the "Odyssey".

KEYWORDS: Odyssey. Proem. Narrative. Hero. Multiformity.

O varão me evoca, Musa, multiforme , que muitíssimo
vagou depois de pilhar a sacra pólis de Tróia,
e de muitos homens viu cidades e soube a mente,
e muitas dores no mar em seu ânimo sofreu,
almejando sua vida e a volta dos companheiros.
Mas nem assim os salvou, apesar de se empenhar,
pois pereceram por causa dos próprios atrevimentos,
os tolos, que devoraram os bois do Sobrepassante
Sol - o qual deles então tirou o dia da volta!
Disso a partir de algo, deusa de Zeus, nos fala também.
(trad. André Malta)

Sabemos que foi a partir da sistematização dos aspectos presentes na abertura tanto da Ilíada quanto da Odisséia que se forjaram regras ou diretrizes válidas para os exórdios de todas as principais epopéias derivadas da tradição clássica - inclusive a regra, já num contexto desligado de qualquer religiosidade, de se invocar a deusa Musa, junto com a enunciação do próprio argumento, ou separadamente. No entanto, essa posição modelar desfrutada pelos proêmios dos épicos homéricos - tão bem salientada pelos comentários de Quintiliano em suas Instituições Oratórias (10.1.48) - sofreu um certo abalo quando do estabelecimento da filologia clássica como área do saber, em fins dos século XVIII e início do XIX, época em que se desenvolveu com bastante força, animada pelo espírito romântico, a chamada corrente "analista" de leitura, capaz de divisar as diversas camadas primitivas que entraram na conformação final dos nossos dois poemas. Para esses estudiosos, que aplicavam aos épicos, de modo geral, uma concepção de unidade própria da cultura letrada, qualquer discrepância ou inconsistência no interior dos versos homéricos devia ser posta na conta de compiladores de um período posterior, que reuniam extratos diversos sem aparar as devidas arestas.
Nessa fúria de decomposição, nada mais natural que os próprios proêmios acabassem sendo atingidos, por não se submeterem, se vistos de perto, ao princípio dominante da unidade. É o caso da leitura proposta pelo historiador da literatura Maurice Croiset no século XIX, que acreditava que o proêmio da Ilíada, em razão de sua "pouca precisão", não poderia ter relação com o poema completo, e sim com a camada referente à rixa entre Aquiles e Agamênon; o da Odisséia, do mesmo modo, revelaria uma fase na história formativa do poema em que o poema se reduzia às viagens do herói apenas, e os acontecimentos em Ítaca não tinham ainda conquistado o lugar e a forma que vieram a ter. Se não, como entender o fato de a abertura da Ilíada não mencionar Pátroclo nem Heitor, heróis decisivos para a trama da fúria? E por que o exórdio da Odisséia não faz menção alguma aos acontecimentos em Ítaca, a Penélope, a Telêmaco e aos pretendentes?1
Ainda assim, de uma forma geral, no confronto entre os dois proêmios, o da Ilíada parece ter tido melhor fortuna crítica, por conta da "limpidez" maior de sua formulação, que a despeito do conteúdo "impreciso" preserva uma linha de pensamento clara, coerente e unitária, e portanto menos suscetível a ataques e contestações. 2 O proêmio da Odisséia , ao contrário, sempre se colocou como um desafio aos críticos. Seus dez versos, ao invés de se beneficiarem do fato de superaram numericamente os sete da Ilíada - permitindo, em tese, um maior esclarecimento -, parecem se tornar ainda mais obscuros em sua intenção de nos "orientar" sobre a narrativa. Por que fazer referência apenas às viagens de Odisseu, que correspondem a um terço do poema (cantos 5-12), e dar tanta ênfase à ação desastrosa dos seus companheiros, que devoraram o gado do Sol, um episódio cujo grau de importância na narrativa não pode ser comprado, por exemplo, ao daqueles envolvendo os atos soberbos dos pretendentes? Por que a formulação "viu cidades de muitos homens", quando ele na realidade entrou em contato com seres extraordinários que parecem não estar aí incluídos?
Essas interrogações são feitas logo no princípio da mais recente edição com comentários ao poema, liderada por Alfred Heubeck, e são respondidas praticamente da mesma forma que Croiset já o fizera cerca de um século atrás: o proêmio dá conta de um canto mais primitivo e menor e, mesmo depois da expansão, acabou não sendo remodelado.3 Mas bem antes, já em 1946, B. A. van Groningen tentava explicar o problema de uma outra forma. Para ele, o proêmio da Odisséia é o resultado não de um projeto consciente e lúcido de abertura poética, mas de uma associação relativamente livre de idéias, típica do estilo homérico: "O poeta menciona o tema com uma palavra enérgica, `varão'; depois comunica de maneira geral o que aconteceu com esse homem - mas nesse ínterim um detalhe fortuito chama sua atenção e interrompe o fio narrativo, que não estava muito bem retesado. O resultado disso é que um elemento de interesse menor no conjunto da obra [a ação envolvendo seus companheiros] acaba encontrando espaço aqui".4
A mais importante tentativa, porém, de compreender não apenas a dicção geral do proêmio, mas sobretudo seus principais elementos constitutivos, foi feita por Pietro Pucci num artigo publicado em 1982, no qual procurou mostrar como, através do recurso ao sistema formular, a Odisséia já em seu princípio faz uma série de alusões à Ilíada , que servem para complementar e contrapor os sentidos dos poemas e a caracterização de suas figuras principais, e como, nesse jogo alusivo, o adjetivo que caracteriza Odisseu no primeiro verso do poema, polútropos , "multiforme", sinaliza de maneira privilegiada, em níveis múltiplos, um movimento que seria próprio da tradição odisséica.5
Meu objetivo aqui é dar continuidade a esse tipo de leitura - não propriamente a centrada na alusividade e na suposição de tradições paralelas, mas a que entende que o proêmio da Odisséia é parte integrante sua e estabelece uma série de relações com o restante da narrativa; dentro dessa perspectiva, gostaria de acentuar exatamente o caráter multifacetado desse exórdio, que se dá tanto no nível semântico quanto formal, a indicar, logo de saída, aspectos importantes do poema e de seu principal herói.6
Logo de saída, impõe-se um elemento de inegável destaque - a repetição do adjetivo polús, que aparece quatro vezes nos quatro versos iniciais: polútropos, (mála) pollá, pollôn, pollá . Trata-se, não há dúvida, de uma amplificação patética que não é difícil encontramos na poesia épica. Na Ilíada , lemos logo no proêmio que a fúria destruidora de Aquiles acarretou aos acaios "milhares" ( muría ) de dores e levou "muitas" ( pollás ) almas ao Hades. Da chamada Pequena Ilíada, épico perdido, temos ainda seus versos de abertura, em que o poeta diz cantar a terra de Ílion, onde os dânaos sofreram "muito" ( pollá ). Para não ficarmos apenas na literatura grega, podemos citar a abertura da Eneida , onde Virgílio, com o propósito da emulação, empregou para qualificar as ações de Enéias as formas multum (" muito agitado", 3), multa (" muitas afrontas sofreu", 5) e tot ("tantas aventuras, " tantos trabalhos", 9-10).
Esse caráter intenso, grandioso e extraordinário, próprio do universo heróico, não é capaz, no entanto, de explicar por si só a importância que o princípio do poema dá a essa forma polús . Lembrar que o uso anafórico de expressões numéricas é bastante comum no grego antigo é algo válido,7 mas insuficiente quando não se levam em consideração contextos como a abertura de um poema da envergadura da Odisséia . Examinando a construção mais de perto, notamos que, além de entrar na composição do adjetivo-chave que caracteriza o herói, polútropos - posto em posição de realce, entre duas cesuras -, polús aparece ainda no enfático final desse primeiro verso, empregado adverbialmente ( pollá ) e reforçado pelo advérbio mála , "muito", o que permite a tradução conjunta dos termos por "muitíssimo". Não bastasse isso, no original, mas não na tradução, ele surge na posição inicial tanto do terceiro quanto do quarto verso, o que lhe confere, tratando-se de uma parte já destacada do poema e de um uso seqüencial, grande realce - pollôn d'anthrópon , "e de muitos homens "; pollà d'... álgea , "e muitas... dores". Mas não temos a presença do poliptoto apenas. No campo sonoro, pollá (que aparece duas vezes) também se porta como uma espécie de célula-base a partir da qual se disseminam nessas primeiras linhas as assonâncias em ômicron e alpha, e as aliterações em pi e lâmbda.
A princípio, a explicação para essa insistência singular na multiplicidade pode ser buscada na própria maneira como o herói do poema é caracterizado: em se tratando do polútropos Odisseu, nada mais natural que tenha vagado muitíssimo, entrado em contado com muitos homens e sofrido muitas dores. Nessa leitura, o final do primeiro verso (cujo sentido só se completa no segundo, num cavalgamento), e também, com menor força, os versos 3 e 4, funcionariam como uma glosa ao adjetivo polútropos , entendido quase como um sinônimo de polúplagktos , "multierrante" (17, 511): o multierrante é o que muito vagou, e que, por ter muito vagado, muitos homens conheceu e muitos sofrimentos padeceu. Esse tipo de construção explicativa, em que se desenvolve uma idéia anterior, muitas vezes sem lhe acrescentar nada de novo, não é rara em Homero (ver p. ex. 1, 298-300).
Aceitar, porém, apenas esse sentido para o epíteto, como alguns fizeram,8 significaria ignorar aquela série de adjetivos empregados sistematicamente em Homero para qualificar Odisseu, adjetivos todos esses aparentados pela presença do mesmo elemento de composição polú -, com o qual os gregos forjavam uma série de termos. No total, são cinco: polúmetis , "multiastuto", polúphron , "multipensante", polumékhanos , "multiengenhoso", polúainos , "multíloquo", e polútlas , "multitenaz". São epítetos que, ao contrário de polútropos (presente com função não ornamental, isto é, servindo ao contexto , no proêmio e em 10, 330), têm largo emprego na épica, estabelecendo uma identificação imediata com o herói, porque, à exceção de polúphron e polúmetis , (pouco) usados também para o deus Hefesto, o distinguem.9
Atualmente, os comentadores tendem a ver em polútropos um sinônimo de três dos cinco adjetivos citados acima ( polúmetis, polúphron, polumékhanos ), considerando menos atrativa a hipótese de uma referência sucinta às suas perambulações.10 O herói multiforme, polútropos , é portanto o herói cuja mente se volta em várias direções, é o herói inteligente, que possui muitos recursos, astuto, versátil, como já entendia Lívio Andronico (III a.C.) com sua tradução do termo pelo latim versutum , inaugurando uma prática seguida por diversos tradutores nas línguas modernas. Trata-se, sob essa ótica, de um fenômeno mais psicológico que geográfico ou espacial, de um virar-se, voltar-se (verbo trépo em grego, cognato de trópos ), metafórico, e não concreto. De fato, os contextos em que esse qualificativo surge junto ao deus Hermes, no hino homérico dedicado a ele (13; 439), corroboram essa leitura: é a esperteza que está em relevo.
Seria possível, entretanto, encontrar no proêmio alguma outra indicação desse caráter ardiloso de Odisseu, ou ela se restringiria ao próprio adjetivo? As proposições relativas ao tanto que vagou, viu e sofreu - que vem imediatamente a seguir - não teriam nenhuma relação direta com ele? Dois elementos são centrais para se responder a essas questões. O primeiro, menos relevante, diz respeito ao ato de ter pilhado a cidade de Tróia ("depois de pilhar a sacra pólis de Tróia", 2). Essa menção - como todos os principais comentadores já apontaram -, além de evocar de forma geral a atividade guerreira de quem é, como Aquiles, ptolíporthos , 11 inevitavelmente evoca também sua participação decisiva no estratagema do cavalo de madeira, nesse dólos que decretou a ruína de Tróia (8, 494). Estamos aqui no âmbito da sua característica astúcia, e nada nos autoriza a descartar sua insinuação nesse segundo verso.
Mais importante que esse verso, porém, é o seguinte, em que se diz que "de muitos homens viu cidades e soube a mente". Percebemos nela a coordenação de duas ações, ver e conhecer, que têm como objeto, respectivamente, as cidades ( ástea ) e a mente ( nóon ) dos homens. Com esses dois verbos, está claro, Homero quer expressar a experiência cognitiva de Odisseu, num nível que não devemos entretanto reduzir ao do mero contato com povos alheios. Ver ( íden ), conhecer ( égno ) e mente ( nóon ) são termos que nos remetem muito facilmente, mais uma vez, ao âmbito da astúcia, e a situações que são absolutamente essenciais à ação do poema. No plano divino, se tomarmos Zeus como exemplo, poderemos notar, ainda que recorrendo apenas aos epítetos "amplividente" (eurúopa), "astucioso" ( metíeta ou metióeis ) e à locução "mente de Zeus" (Trab., 483; XV, 461; XVI, 688), como em relação a ele astúcia, percepção e olhar se ligam de maneira inseparável. Nos Trabalhos e os dias de Hesíodo, fala-se muito claramente de Zeus como aquele "cujo olho tudo vê e tudo sabe" ( pánta idòn kaì pánta noésas , 267). Não se trata naturalmente, neste início da Odisséia , de uma totalidade , porque se está falando de uma figura mortal. De todo modo, é uma figura mortal também perspicaz e atenta, que possui um largo conhecimento e que, auxiliada por Palas Atena, sabe agir segundo uma forma de inteligência aparentada daquela de Zeus.
Assim, mais do que indicar o outro ou o objeto da ação, e nos levar a perguntar que cidades e homens (não especificados) são esses com que Odisseu travou conhecimento, essa formulação nos fala antes do herói e de seu próprio modo de ser e agir, e conseqüentemente de operações cognitivas que estão disseminadas ao longo de todo o poema, em que o herói quer prever, ver, ouvir, saber, reconhecer, em que deve estar atento ao outro para escapar das dificuldades, em que deve conhecer o inimigo para derrotá-lo ou superá-lo. O poeta, ao nos dizer que Odisseu centra sua atenção na mente/forma de pensar alheia, revela antes a preocupação do próprio herói , sempre alerta e desconfiado, com esse aspecto, com o nóos - esse termo que em Homero designa na maioria das vezes a percepção, o discernimento, a reflexão (ou o local onde se situam), e em geral se contrapõe a thumós , que diz mais respeito ao impulso e à vontade.12 E aqui devemos lembrar que no encontro com Atena, tão eloqüente a respeito do caráter do herói, ele é qualificado por ela de angkhínoos (13, 332), composto de difícil tradução, mas que pode ser vertido pela perífrase "aquela cuja mente anda próxima", ou "aquele cuja mente espreita".
Sendo assim, se por um lado sabemos que um dos modos de indicar a sagacidade ou mêtis de Odisseu opera exatamente com o termo que encontramos no proêmio, "mente" ( nóos )13 - e com as ações de ver ( eîdon ) e conhecer ( gignósko ) -, por outro não podemos ignorar que, além de indicar um traço típico do herói, ele tem também um papel fundamental no poema ao entrar na formação dos nomes de dois personagens de destaque, que são verdadeiros antípodas - Alcínoo ( Alkínoos ), "o de mente valorosa", rei dos feácios que acolheu Odisseu de forma hospitaleira, e Antínoo ( Antínoos ), "o de mente contrária" ou "o contrário ao pensamento", líder dos pretendentes que ultrajou a morada do herói. A mente, portanto, ou forma de pensar (com suas implicações psicológicas e também morais, porque a mente deve ser "piedosa", theoudés , 8, 576; 9, 176), reforçada por essas duas indicações onomásticas, surge como um dos temas principais do poema, numa narrativa que a todo momento insiste em destacar a ponderação e a perspicácia - não só de Odisseu, mas também de Penélope, sua esposa, que recebe o epíteto "bastante sensata", períphron , e de Telêmaco, seu filho, sempre pepnuménos , "ponderado".14 Phrénes e pepnûsthai , aliás, são formas intimamente conectadas a nóos e conhecimento no passo em que se menciona o saber de Tirésias (10, 494), as três sendo apresentadas aí quase como intercambiáveis.
Mas não podemos abordar a inteligência por esse ângulo tão-somente. Se no percurso narrativo, e em relação a Odisseu, visão e (re)conhecimento vão desempenhar um papel fundamental, e serão decisivos em vários momentos críticos das aventuras do herói, esses mecanismos não vão, no entanto, se revelar de uma maneira inequívoca. Há o reverso negativo dessa sabedoria, que no poema pode se resumir a uma perigosa e desastrosa curiosidade do herói, responsável por mortes e sofrimentos, e assim se identificar antes com cegueira e desconhecimento, outro par fundamental na história. A sagacidade de Odisseu pode se manifestar de modo destrutivo, deletério, como acontece com Egisto (1, 300; 3, 198) ou Clitemnestra (11, 422), designados como dolómetis , "ardilosos", forma que na Ilíada se aplica a Zeus (I, 540). Nesse caso, o conhecimento acarreta dores, e é exatamente delas que o proêmio nos fala no verso seguinte (4): ao muito vagar, Odisseu muito viu e muito conheceu, e (em decorrência disso) muito sofreu. Mas podemos tomar essa última coordenação por uma seqüência de causa e efeito?
Voltemos mais tarde a essa possível insinuação de um excesso da parte de Odisseu - excesso de conhecimento que resultou num excesso de dores. A conclusão que por enquanto quero tirar do que foi dito até aqui é que não extrapolaremos em afirmar que o "multiforme" ( polútropos ) do verso inicial do poema de certo modo reúne em si, através do recurso à repetição de polús, as idéias apresentadas nos versos seguintes - as idéias de intenso vagar e também de intenso saber -, e que portanto, além do sentido aceito mais antigamente de "multierrante" ( polúplagktos ), desenvolvido imediatamente a seguir (1-2), o adjetivo admite outra idéia também apontada na continuação imediata do proêmio , a de polúmetis, polúphron, polumékhanos (2-3)15 - além, vale acrescentar, da de polútlas (4)16
Mas isso ainda não esgota as possibilidades de sentido para polútropos . Há outras duas importantes - uma delas aberta pelo epíteto polúainos , o único da série em polú - que ainda não consideramos, e que, diga-se de passagem, tem baixíssima ocorrência.17 Esse termo aînos remete, segundo Pierre Chantraine em seu dicionário etimológico, "à noção de se emitir palavras carregadas de importância ou sentido", e acaba admitindo duas traduções, ora simplesmente por "palavra, discurso, história", ora ainda por "elogio, louvor".18 Essa duplicidade se estende ao epíteto de Odisseu, que alguns traduzem, com valor passivo, por "muito elogiado, ilustre", e outros, com valor ativo, por "o de muitas histórias, de muitas palavras sábias, plenas de sentido". Nessa segunda acepção, o adjetivo mostra uma grande afinidade com polútropos , que, como apontou Pucci em seu artigo, pode indicar não apenas o de muitos volteios mentais, mas também o de muitos tropos , volteios de linguagem , o que possui muitos modos ou formas de se expressar ou de empregar o discurso. Não se trata de uma teorização sem apoio no texto, e o próprio estudioso italiano lembra com pertinência não só a figura de Autólico, o avô de Odisseu, célebre pelos perjúrios (19, 396), mas também, naturalmente, do jogo utilizado pelo herói quando se autonomeia "Ninguém" para o Ciclope no canto 9, fazendo oú tis, pronome, valer como nome próprio Oûtis (a partir de 366), e mé tis , outra forma grega para "ninguém", se confundir com mêtis , "astúcia" (410-414).19 O manejo verbal e a flutuação de sentido marcam seu próprio nascimento: a ama Euricléia, ao sugerir para o bebê Odisseu o nome "Poliareto", produz uma significativa ambigüidade, uma vez que em grego essa denominação remete à idéia do "muito desejado" e também do "muito amaldiçoado"; na seqüência, esse último sentido acaba sendo corroborado pelo avô do herói, que escolhe "Odisseu" em conexão com o verbo odússomai , outra forma oscilante, entre a voz média "odiar" e a passiva "ser odiado" (19, 403-9).20
Quero apenas lembrar também, reforçando esse ponto, a maneira como Odisseu, a exemplo do avô, joga ele mesmo - ainda oculto à esposa - com o sentido de seu nome (19, 275), ou como opera em diferentes níveis com a verdade e a mentira, a revelação e o encobrimento, nos passos em que narra, não só para Penélope (como no citado acima), mas também para Atena (canto 13), Eumeu (14), Antínoo (17) e Laertes (24), as suas "histórias cretenses", que ilustram perfeitamente o emprego "escorregadio" e irônico de sua fala. Fala que por sinal não deixa de se valer da estrutura formular para se potencializar, como quando o herói repete, no canto 14 (305-309), na "ficção" que formula para Eumeu, os mesmos versos ditos em sua história "verdadeira" aos feácios no canto 12 (415-419): nessas linhas, o chamado auditório externo (leitores/ouvintes) é capaz de perceber as camadas de sentido que se sobrepõem, mas estas ficam por sua vez vedadas ao auditório interno (personagem/interlocutor). E falamos em história "verdadeira", entre aspas, porque, como sabemos, o próprio relato a Alcínoo não deixa de ser problemático quanto ao uso da linguagem, uma vez que se trata de uma longa narrativa em primeira pessoa em que Odisseu - no restante do poema objeto da narração - se confunde com a figura do cantor/narrador e vira um de seus personagens, borrando assim a linha que separa objetividade e subjetividade. Além do mais, nos deparamos ainda com o fato contraditório de que esse longo discurso com pretensão de verdade construído por Odisseu recorre a elementos pouco verossímeis, enquanto as suas mentiras cretenses têm apoio em dados facilmente verificáveis ou possíveis.21
Ora, nada indica melhor essa multiplicidade de usos e sentidos da linguagem do que o próprio adjetivo que estamos estudando, polútropos , que segundo observamos caracteriza logo de saída Odisseu de maneira elástica, ampla e flutuante. É bom dizer que não se trata, como se poderia imaginar, de interpretação recente: um bom indício da instabilidade no significado desse termo que fala da multissignificação nos dá o diálogo Hípias Menor de Platão, em que Sócrates diz não entender em que sentido Hípias o toma para qualificar Odisseu (364e); pode, claro, se tratar de mais uma ironia socrática, mas a mera possibilidade de se fingir desconhecer o seu significado aponta para o seu caráter aberto: o "multiforme" podia ser entendido, como postulava Hípias e talvez a grande maioria dos gregos de então, como um sinônimo de "ardiloso, mentiroso, trapaceiro" (365b), mas nada podia roubar ao termo seu traço cambiante e capacidade de se abrir para novas acepções, inclusive a contrária, como pretende Sócrates (371e). É significativa, a esse respeito, a notícia de uma variante que buscava talvez desfazer exatamente a polissemia e impor uma visão mais tardia, variante essa ( polúkroton ) que, segundo Stanford, caracterizaria Odisseu inequivocamente como um trapaceiro inescrupuloso.22
O interessante é que essa possibilidade de flutuação de sentido, aberta por polútropos - que faria assim referência (empregado concreta e metaforicamente) às muitas viagens, às muitas astúcias, às muitas dores e às muitas formas de falar de Odisseu - apresenta-se, sob modalidades diferentes, no interior do próprio proêmio, como que para exemplificar o caráter polivalente do multíloquo herói a ser cantado. Poderíamos, naturalmente, apontar certas flutuações também na abertura da Ilíada (p. ex., a que verbo se liga o "desde que" do v. 6?), para ficarmos apenas nos poemas homéricos. Mas o proêmio da Odisséia parece de fato operar com um vaguear único, porque presente em diferentes níveis e fortemente ligado ao teor da narrativa.
O primeiro termo "problemático", depois do epíteto do primeiro verso, é o substantivo que já discutimos aqui, nóon , que surge na terceira linha - é conhecida a antiga lição de Zenódoto, que propõe nómon (norma, lei, costume), substituição aceita por poucos (Horácio traduz o termo por "mores") e recusada por muitos, porque seria um emprego isolado do substantivo em Homero (mas nómos não deixa de se insinuar no uso moral de nóos , como vimos). Para contornar esse problema e salvar Zenódoto, chegou-se a pensar - uma vez que os textos a princípio não eram acentuados - em nomón , "pastagem, terra, província", idéia (não de todo descabida) que viria complementar a referência imediatamente anterior a "cidades", ou se constituir em mera redundância.23 Outros usos também chamaram a atenção dos comentadores nesse proêmio. Um deles diz respeito ao termo Huperíon , usado no genitivo junto a "Sol" no verso oitavo ( boûs Huperíonos Eelíoio ). Trata-se de um patronímico, isto é, "(bois) do Sol de Hipérion", ou apenas de um adjetivo, a indicar o Sol "superior" ou "que vai por cima", "supereunte"?24 Não é preciso que nos decidamos, como também não é preciso que nos decidamos a respeito do sentido exato do verso que fecha esse proêmio, "Disso a partir de algo, deusa de Zeus, nos fala também". Esse "também" ( kaí ), que certas traduções tendem a desconsiderar, tem papel importante no original, gerando uma ambigüidade indicada pelos comentadores - "nos fala também", isto é, "não guarda contigo, mas reparta conosco também, que nada sabemos, teu conhecimento" (o que se encaixaria na visão mítica das Musas como detentoras do saber, como em II, 485-486), e/ou "fala como também já falaste com outros antes de nós" (o que revelaria uma longa tradição oral envolvendo o herói). Trata-se de compartilhar da ciência da Musa e/ou da ciência dos antepassados; Stanford se inclina para a segunda possibilidade, enquanto Heubeck pende para a primeira. Há ainda, no princípio desse mesmo verso, uma indeterminação que contribui para a indeterminação da própria narrativa. Esse enfático "a partir de algo" ( hamóthen ge ) - uma forma empregada só aqui em toda a poesia homérica - parece indicar, para lembrar as palavras de Joachim Latacz, que o poeta não tem nenhum plano prévio ou foco narrativo.25 Além disso, nele também não se especifica se está em jogo o valor espacial (a partir de algum lugar, na movimentada geografia do poema) ou temporal (a partir de algum momento na história),26 assim como também não se define uma única relação com a Musa, uma vez que ora ela deve falar ao cantor apenas ("me evoca", 1), ora à comunidade ("fala a nós", 10), o que implica um movimento pendular do aedo, primeiro em direção à deusa, para se inspirar, e depois em direção à audiência, para servir de porta-voz.
Essas indefinições, por sua vez, nos levam diretamente, pela construção anelar, de volta ao primeiro verso, e à primeira palavra do poema: ándra , "varão". A ausência do nome de Odisseu sempre chamou a atenção dos que se debruçaram sobre o poema, quando o comparavam com a Ilíada , que nomeia Aquiles já no primeiro verso. Mas é a abertura de sentidos propiciada pelo uso do substantivo comum que o torna absolutamente necessário, ao se fazer referência a um personagem que é multiforme . Com o uso de ándra , temos ao mesmo tempo: 1) a referência geral à condição humana, já que anér é um sinônimo de ánthropos; 2) ligada a essa primeira, a referência à condição mortal (como sinônimo de brotós), em oposição à divina; 3) a referência à figura do homem adulto, cabeça de uma família (sinônimo de pósis); e 4) sobretudo o desaparecimento concreto de Odisseu (seu nome só aparece no v. 21), que vai ser tematizado ao longo da Telemaquéia, e retomada, sucessivamente, no episódio do Ciclope, em que é Ninguém; na corte dos feácios, em que permanece por longo tempo anônimo; e na própria Ítaca, onde surge como um mendigo praticamente sem nome, a não ser por uma única ocasião, quando se autonomeia "Éton" (19, 183). Naturalmente, não é o caso de afirmar que, com ándra na abertura do poema, ficamos sem saber quem é esse homem, até que ele seja nomeado: desde o princípio sabemos que esta é uma história sobre Odisseu, sem margem para equívocos. Essa forma inicial é apenas uma maneira pertinente de ocultar o nome de um herói que experimenta, voluntária e involuntariamente, a ocultação, o anonimato, e de indicar, ao mesmo tempo, várias possibilidades de se acessar esse herói, como símbolo da condição humana, mortal, e senhor do lar. 27
No fim das contas, a figura de Odisseu só pode ser precisada de maneira imprecisa, nebulosa, porque, polimórfico, a variedade é sua marca principal. Trata-se de um herói que é muitos ao mesmo tempo - glorioso e sem nome, belo e repugnante, herói e mendigo, forte e envelhecido, presente e ausente, visível e invisível, verdadeiro e mentiroso, sem voz e multíloquo, esperto e às vezes tolo, imóvel e erradio, manipulador e vítima. Como Proteu diante de Menelau no canto 4, ele assume muitas formas - até mesmo no plano concreto -, o que não nos impede de enxergar no "multiforme" uma menção também à sua capacidade de transformação física, de que o poema nos dá claras informações, além daquelas mutações de outra ordem.28 Esse dado vem se juntar aos demais, para formamos um quadro final em que polútropos, "multiforme", pode indicar extensa errância, versatilidade mental, contínua tenacidade, variedade no uso da linguagem e variedade no aspecto, traços todos esses indicados, de uma forma ou de outra, nesses versos iniciais do poema. É como se esse adjetivo primeiro fosse o mote a ser glosado extensivamente ao longo do poema, e como se condensadamente o próprio proêmio já o glosasse.
O curioso é que nesse mesmo proêmio - para retomarmos uma questão que deixamos em aberto -, em meio às instabilidades e indefinições apontadas, opera-se uma delimitação que, se não recai diretamente sobre Odisseu, serve entretanto para defini-lo de uma forma aparentemente clara. De fato, se excluirmos o último verso, que retoma a invocação, podemos notar que a abertura do poema se reparte em dois blocos distintos - o inicial, que apresenta com a devida "incerteza" Odisseu (1-4), e o final, que trata de maneira precisa do triste fim de seus companheiros, ocasionado por seus "próprios atrevimentos" (6-9); a unir esses dois blocos, no verso central, a enunciação indireta do tema da volta ("almejando sua vida e a volta dos companheiros", 5). Na busca pelo retorno, Odisseu é apresentado como o rei empenhado ( hiémenos ) na salvação alheia, o rei que se importa com os seus homens, e que portanto não pode ser responsabilizado pelas suas mortes: contra todas as advertências, tolos ( népioi ), eles devoraram os bois do Sol e acabaram privados do "dia da volta". Nesse esboço de moral, o herói seria um exemplo de virtude real, menos pelo que se diz dele e mais pelo que se diz dos seus companheiros, com os quais contrasta.
Que esse contraste existe, não se pode negar. Mas não é possível julgar essa passagem sem levar em consideração aquela outra logo abaixo (33-34), porque ambas tratam do mesmo problema ético do "atrevimento" e da responsabilização pelos atos excessivos. Apesar da discussão sobre a pertinência ou não de se dar o mesmo tratamento aos erros dos companheiros de Odisseu, de um lado, e aos de Egisto e dos pretendentes, de outro, discussão que não podemos retomar aqui,29 não podemos de todo modo ignorar a relação que esse verso 7 ("pois pereceram por causa dos próprios atrevimentos") estabelece com o discurso de Zeus - em que afirma que os homens têm dores além do quinhão por seus próprios atrevimentos ( sphêisin atasthalíeisin ), e não por conta dos deuses. Se antes se tratava de opor Odisseu a seus comandados, aqui se trata de opor os deuses aos homens: de um lado os isentos de culpa; de outro, os culpáveis.
A questão que surge, entretanto, é se com isso o poema em sua abertura de fato apresenta Odisseu numa luz inteiramente favorável, se é evidente a avaliação positiva que dele se faz - se, para resumir numa só palavra, Homero é realmente philodusseús ? 30 Em resposta, podemos num primeiro momento aludir ao fato de que o uso do termo álgea , "dores", no verso 34, estabelece uma ligação com as mesmas dores, álgea , do verso 4, e que essas "muitas dores" que Odisseu sofreu sejam de alguma forma decorrentes de um comportamento seu soberbo. Afinal, ainda que Zeus não esteja se referindo ao herói em seu discurso, não é possível excluí-lo, "varão" ( ándra ) que é, da raça humana, a qual tem dores além da sina por suas próprias atitudes desmedidas. Mas o que reforça definitivamente essa leitura são os relatos feitos a Alcínoo (cantos 9 a 12), em que Odisseu , ele mesmo, junto com pintar sua figura de rei zeloso (o que ocorre logo de saída, 9, 43-44), não se furta a mencionar deslizes que impugnam qualquer tentativa de se construir dele uma visão homogênea e harmoniosa. Sabemos que no canto 10 (437) Euríloco afirma - em termos muitos semelhantes aos do proêmio - que amigos morreram na caverna no Ciclope por causa do atrevimento dele , Odisseu ( toútou atasthalíeisin ) - lembre-se sempre que estamos diante das rememorações do próprio herói -, e sabemos sobretudo que o episódio envolvendo o gigante foi decisivo também para a vingança de um deus, Posídon. No próprio canto 9, Odisseu, ao relembrar a aventura, diz que pressentira que cruzaria com uma criatura selvagem e sem lei, e que teria sido melhor ter dado ouvidos aos companheiros, que queriam dissuadi-lo do encontro (224-229). Nesse sentido, sua curiosidade e seus maus conselhos não diferem muito dos de seus companheiros, insensatos também na terra dos Cícones, onde se deixavam ficar (9, 39-46) - como Odisseu em Eéia, junto a Circe -, ou no episódio do saco dos ventos (10, 34-47). Não podemos deixar de acrescentar à lista sua atuação no encontro com Cila: não avisa os amigos a respeito do monstro, esquece o conselho de que não se armasse, não chama por Crateis (como a feiticeira indicara) e, ao final, parece usar os companheiros como isca (12, 223-255). Na realidade, se examinarmos com atenção seu comportamento, somos obrigados a notar, como de fato já se notou, que no próprio episódio do gado do Sol a isenção de culpa do herói não é tão inequívoca quanto o proêmio dá a entender - uma vez que ele de certa forma contribui para a loucura dos amigos ao se afastar e dormir, repetindo dessa maneira uma forma de desatenção também sinalizada pelo seu adormecimento nos acontecimentos seguintes à partida da Eólia. 31
Assim, se por um lado a menção à comilança dos bois do sol indica a importância da questão moral e contrapõe num nível imediato o esperto Odisseu aos seus tolos companheiros (anunciando indiretamente a contraposição em relação aos atrevidos pretendentes, que seriam em Ítaca os equivalentes em desregramento),32 por outro ela contamina, num movimento mais profundo, acentuando essa questão, a figura do personagem principal, que deve também ser vista de modo mais complexo no que diz respeito à causalidade das muitas dores que sofreu. O episódio, visto isoladamente, de modo antecipado, salva Odisseu da condenação, mas ao mesmo tempo não deixa de ativar, na memória móvel e total de ouvintes e leitores, uma série de atos e relações bem conhecidos, que ultrapassam a visão de um Odisseu imaculado. Vale sublinhar aqui que a estada na Trinácia não é simplesmente mais uma parada dentro dos errores de Odisseu, mas a última terra a que chega antes de mergulhar no desaparecimento que representam os sete anos junto a Calipso.33 Ela figuraria assim como uma espécie de "coroamento" dos descaminhos do rei, pelo qual, segundo a mentalidade arcaica, o povo acaba pagando.34
Que o proêmio responsabilize esse povo - no caso, os comandados - pelo crime, sem que no entanto deixe de instigar à reflexão mais atenta das questões morais envolvendo o herói principal e os deuses - essa talvez se constitua numa outra indefinição ou "abertura" fundamental desses versos iniciais da Odisséia , que mais uma vez "borram" as linhas demarcatórias precisas - ou que, como o próprio Odisseu, nos falam em mais de um nível, ainda que aparentem univocidade. A intromissão indesejada dos companheiros e de um episódio específico, quando se quer apresentar o grande Odisseu e suas aventuras, rompe já de saída com qualquer pretensão de linearidade, e nos prepara para movimentos variados, mas extremamente significativos. Portanto, se Homero "perambula" em seu proêmio, não é apenas porque o estilo digressivo a isso o convida, como quis Groningen, mas talvez também porque a perambulação aqui seja, como na Ilíada não é, absolutamente necessária.
A multiplicidade sinalizada por polús nessa miniatura da Odisséia que é seu proêmio, e que nele reverbera em variados níveis, essa multiplicidade, indo além da necessidade de marcar o caráter grandioso e extraordinário da poesia épica, define de forma consistente um caráter heróico em constante movimento, poikilométes , ativo e passivo, mutante e protéico, no pensamento, na experiência, na expressão física e verbal, ziguezagueante no espaço e no espírito, cujo trópos está inextricavelmente ligado aos deslocamentos gêmeos e múltiplos do nóos e do nóstos (cognatos de néomai , "ir, vir"?) - ou, para mencionarmos mais um eloqüente jogo verbal, paronomástico, do nóos polukerdés ("mente multivantojosa", 13, 255) e do nóstos polukedés ("volta multiaflitiva", 9, 38). Essas idas e vindas de Odisseu, por sua vez, estão oportunamente atadas aos volteios e negaceios da própria narrativa odisséica, não-linear e multinivelada, clara e obscura, cíclica e una, e ainda - por que não? - espelhado na multitessitura do estilo oral arcaico, como suas variações horizontais e verticais. E sabemos, nesse caso, que a Odisséia nos dá a mais instigante de todas, porque na sua lição mais chocante Zenódoto nos convida a ir com Telêmaco não para Esparta, mas Creta... (1, 93 e 285).35 Todos esses elementos conferem à leitura do poema o estatuto de permanente desafio, porque lhe emprestam uma complexidade perante a qual compreender a Ilíada parece tarefa simples e desinteressante. Isso talvez explique, mais do que o lado fantasioso, aventureiro e romanesco, a identificação do poema com a modernidade, que há mais ou menos um século o elegeu como o principal épico de Homero, e que não se cansa de se deliciar com seus labirintos.

NOTAS

1 Croiset (1887: 108/272-273).

2 É a visão adotada já por Immanuel Bekker, em 1863, e citada por Pietro Pucci (1988: 11). Joachim Latacz (1985: 135) também pensa assim.

3 Heubeck (1988-1993: 68-69).

4 Van Groningen (1999: 115).

5 O artigo integra o volume já citado (n. 2). Para uma sinopse do seu enfoque, ver Werner (2004: 17-23), que se inspira na abordagem de Pucci.

6 Vou considerar apenas os dez primeiros versos, embora alguns estudiosos entendam que o proêmio se estende até o v. 21. É o que pensa Peter Jones (1988: 1), e também K. Rüter e S.E. Basset, citados por Jenny Strauss-Clay (1976: 314). Rüter prefere falar em "proêmio" (1-10) e "prólogo" (11-21), e Latacz (1985: 138) em "proêmio estendido".

7 Heubeck (1988-1993: 70).

8 No século XIX essa parecia ser uma interpretação corrente; ver Alexis Pierron (1875: 6). W. B. Stanford (1947: 206) acha que ela é provável.

9 No Hino Homérico a Hermes , também esse deus é polúmetis .

10 Heubeck (1988-1993: 69).

11 A lembrança do epíteto ptolíporthos já é por assim dizer ativada pela simples presença de polútropos , com quem faz uma longa rima toante, e nesse sentido só é reforçada pela frase ptolíethron épersen .

12 Snell (1975: 29-38).

13 É importante destacar que não estamos sugerindo, entre mêtis , "astúcia", e nóos , "mente", uma simples sinonímia. Mas, a despeito de possíveis distinções, os exemplos da poesia homérica não deixam dúvidas sobre a atração natural que existe entre esses conceitos (IX, 104 e 423; X, 223-226; XV, 509; XXIII, 590).

14 Essas fórmulas em geral surgem na introdução dos discursos de mãe e filho, assim como polúmetis precede as falas de Odisseu. Ver Norman Austin (1975: 39-40/74-79).

15 Stanford (1947: 206) sugere a tradução por "the man of many moves", para dar conta do plano intelectual e geográfico.

16 Dois outros adjetivos iniciados por polú - são empregados para Odisseu no poema, sem a função de epíteto: polutlémon e polústonos .

17 Na Odisséia , aparece uma só vez, quando Odisseu é interpelado pelas Sereias (XII, 184).

18 Chantraine (1968/1980: 35-36).

19 Pucci (1988: 25-26).

20 A esse respeito, ver capítulo 5 do livro de John Peradotto (1990).

21 Para essa questão, ver o trabalho de Graciela Zecchin de Fasano (2004: 105-124).

22 Stanford (1947: 206) e Heubeck (1988-1993: 70).

23 Heubeck (1988-1993: 71).

24 Pierron (1875: 7), Stanford (1947: 208) e Heubeck (1988-1993: 72).

25 Latacz (1985: 135).

26 Zecchin de Fasano (2004: 38) e Pierron (1875: 7).

27 Note-se, no canto 14, a relutância de Eumeu em dizer o nome de Odisseu (142-147), que é pronunciado apenas perto do fim de seu discurso, quando é substituído pela denominação geral Etheîon , "Confiável".

28 A associação entre politropia e aparência mutante é indicada por Vernant & Detienne (1974: 47).

29 Quem a expõe com competência, a favor de uma aproximação entre os erros desses personagens, é Rainer Friedrich (1987: 375-400).

30 Strauss-Clay (1976: 317) e Zecchin de Fasano (2004: 35).

31 Werner (2004: 199-212).

32 Nagler (1990: 340-345).

33 Zecchin de Fasano (2004: 36-38).

34 Thomas Walsh (1995: 385-410) concentrando-se na construção retórica, afirma que o episódio do gado do Sol, antecedendo na cronologia da narrativa a estada na ilha de Calipso, ao ser referido no proêmio serve para indicar na seqüência o ponto de partida do poema - o momento em que Odisseu se encontra na ilha da ninfa.

35 Sobre possíveis versões alternativas, ver Steve Reece (1994: 157-173).

OBRAS CITADAS

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