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Synthesis (La Plata)

versión impresa ISSN 0328-1205versión On-line ISSN 1851-779X

Synthesis (La Plata) vol.25 no.2 La Plata dic. 2018

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.24215/1851779xe037 

Artículos

Ver para contar: Odisseu, as Sereias e o flerte com a morte

See to tell: Odysseus, the Sirens and the flirt with death

Alexandre Santos de Moraes1  asmoraes@gmail.com

1Universidad Federal Fluminense de Río de Janeiro, Brasil

Resumo

O episódio das Sereias permite discutir os efeitos de sentido de uma escolha bem conhecida de Odisseu. Diante do risco iminente, o herói faz a opção pelo enfrentamento, recusando a possibilidade concreta e conhecida de atravessar as paragens em segurança através do expediente da cera no ouvido proposto por Circe. O artigo analisa essa passagem situando-a no marco da caracterização de Odisseu como uma personagem que busca experiências como parte do impulso de construção de sua própria identidade heroica.

Palavras-chave Homero; Odisseu; Sereias; Experiência

Abstract

It is possible to discuss the meanings of one of the well-known choices of Odysseus in the Sirens episode. In face of imminent danger, the hero chooses to deal with it, rejecting the possibility of safely crossing the way with wax in his ear as suggested by Circe. The article explores this passage by framing it as part of an interpretation of Odysseus as a character who searches for experiences as part of the construction of his own heroic identity.

Keywords Homer; Odysseus; Sirens; Experience

1. Introdução

Considera-se que núcleo narrativo da Odisseia é o relato do périplo de Odisseu. Diante da audiência dos feácios, o protagonista assume a palavra e se torna narrador dos próprios feitos. Os ouvintes passam então a conhecer em detalhes não apenas suas ações, os embates, os conflitos e as soluções que adotou diante dos encontros insólitos, mas o gênio ardiloso que a todos encantava pela capacidade de produzir inúmeros ardis. Odisseu polýmetis não apenas recorre à mêtis, como se a inteligência astuciosa fosse um atributo de que pudesse dispor diante das circunstâncias, mas a revela como parte indissociável seu próprio ser, o que o leva a ser compreendido como “a astúcia feita homem”.1 Pois é o uso acurado deste “saber oblíquo” que põe em xeque algumas escolhas pontuais do personagem.

Entende-se que sua viagem é uma forma de luta pela sobrevivência na qual o herói se vale de todos os artifícios necessários para atingir Ítaca e reassumir a soberania de seu palácio. No entanto, isso não significa dizer o herói age segundo um código de conduta diferente do de Aquiles,2 particularmente porque à guerra entregou sua juventude em busca da “glória imperecível”, kléos áphthiton (Ilíada IX.410-416). Há nos esforços de Odisseu um sentido prático, posto que se tornou a única testemunha das próprias façanhas e precisava se manter vivo para narrá-las, garantindo assim a sobrevivência de seu heroísmo na memória dos homens. Completar o nóstos, em certo sentido, era retornar “a sua casa paterna, ao mundo e à própria canção épica. O regresso à casa pode indicar todos os significados de ‘retorno’, uma metáfora privilegiada que pode sugerir o retorno para si mesmo, o retorno para o que lhe é próprio e o retorno para a morte”.3 É precisamente pela necessidade de sobreviver que se questiona o porquê de Odisseu assumir alguns riscos claramente evitáveis que o aproximaram do fim de que tanto buscava se afastar.

Parte das dificuldades com o percurso se deram por situações alheias à vontade dos navegantes. Os fortes ventos, por exemplo, levaram ele e seus companheiros à terra dos Cícones (Odisseia 9.39-40), à dos Lotófagos (Odisseia 9.82-83) e mesmo à ilha de Eólia, pelo menos na segunda passagem, quando os sócios inadvertidamente abriram o odre dado pelo deus dos ventos e desencadearam terrível tempestade (Odisseia 10.47-49). Em alguns casos, simplesmente navegavam, e Homero não indica o sentido da navegação, ainda que se subentenda que o fim primeiro sempre foi retornar à Ítaca. É o caso da chegada à terra dos Cíclopes (Odisseia 9.105-106), à cidade de Lamo, terra dos Lestrigões (Odisseia 10.80-81) e à ilha de Eeia, onde vivia Circe (Odisseia 10.133-135). No caso da viagem ao Hades, o percurso foi feito seguindo uma rota sugerida pela deusa, cujo fim era encontrar o adivinho Tirésias que, por sua vez, indicaria precisamente o caminho, a distância e o meio de navegar para chegar à Ítaca (Odisseia 10.538-540). Em seguida, retornam à ilha de Circe e de lá partindo deram início à parte mais devastadora do périplo, passando pelas Sereias, Cila e Caribde, pela ilha de Calipso e, por fim, náufrago, vítima da fúria de Posêidon, atingindo a terra dos feácios, onde finalmente encontrou condições de discorrer sobre suas glórias pessoais e navegar com segurança para casa.

A narrativa, portanto, sugere pelo menos três elementos que condicionaram os caminhos de Odisseu: 1) a decisão divina, atribuída a Zeus e/ou Posêidon; 2) as intempéries e ventos, dissociados dos desejos dos deuses; 3) suas próprias decisões, no uso das perícias náuticas. As duas primeiras foram fatalidades que levaram os heróis a lugares inesperados através de rotas sobre as quais não tinham qualquer influxo. Na última, contudo, as trilhas percorridas não tinham fim outro a não ser completar o nóstos. Dito isso, é evidente que Odisseu não abandonou o objetivo inicial estabelecido desde sua saída de Tróia, e que a sobrevivência permanecia como necessidade primeira em seu horizonte de ação. No entanto, ainda que tenha visitado as paragens em que esteve no limite das necessidades ou pelo acaso das situações, algumas atitudes que assume exigem dos homeristas uma análise cuidadosa, não apenas por sugerir uma aparente contradição com a prudência que caracterizava o êthos do herói, mas por envolvê-lo num risco de morte que por princípio ressoa desnecessário e que poria por terra todos os esforços precedentes.

No caso de Polifemo, por exemplo, Odisseu sobrevive à fúria do monstro antropofágico através de um dos ardis mais famosos do épico. Quando o Cíclope pergunta seu nome, já antevendo o desenrolar dos fatos, declara se chamar Oûtis, “Ninguém” (Odisseia 9.366). Após ferir-lhe o olho, ver o monstro pedir ajuda aos irmãos inutilmente, conseguir escapar da caverna e alcançar seu navio, decidiu confrontar o algoz de muito de seus parceiros, apesar da advertência dos pares que junto a ele permaneceram. Inconformado de não ter sua façanha reconhecida pela vítima, e na expectativa de que o próprio Cíclope informasse aos demais que conseguiu superá-lo através do ardil, Odisseu grita a uma distância não muito segura:

Κύκλωψ, αἴ κέν τίς σε καταθνητῶν ἀνθρώπων

ὀφθαλμοῦ εἴρηται ἀεικελίην ἀλαωτύν,

φάσθαι Ὀδυσσῆα πτολιπόρθιον ἐξαλαῶσαι,

υἱὸν Λαέρτεω, Ἰθάκῃ ἔνι οἰκί᾽ ἔχοντα. (Odisseia 9.502-505)

Ó Ciclope, se algum homem mortal te perguntar

quem foi que vergonhosamente te cegou o olho,

diz que foi Ulisses, saqueador de cidades,

filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio.

Diante do escárnio do vencedor, a fúria do vencido se tornou ainda maior, e o Cíclope não apenas jogou contra o barco uma rocha gigantesca que quase acertou o leme (Odisseia 9.537-540), mas também rogou a Posêidon, de quem era filho, que se abatesse sobre Odisseu toda sorte de dificuldades que postergassem seu retorno ao lar (Odisseia 9.528-535), o que de fato ocorreu. Muitos autores caracterizaram esse discurso aparentemente desnecessário como sendo parte da hýbris de Odisseu,4 cujas consequências atentaram contra os objetivos inicialmente traçados. Situação semelhante também pode ser observada nas escolhas que faz quando de seu encontro com as Sereias.

2. Odisseu nas paragens das Sereias

A passagem pela ilha em que habitavam as duas Sereias marca a parte mais sofrida do périplo, pois envolve não apenas as intempéries provocadas pela força das ondas e violência dos ventos, mas pelo contato com seres monstruosos que ofereciam aos navegantes um novo elemento que poderia frustrar o próprio nóstos. Também fazem parte desta etapa da jornada os monstros Cila e Caribde que foram, nas palavras de Odisseu, “a coisa mais terrível que vi com os olhos, de tudo quanto padeci nos caminhos do mar” (Odisseia 12.258-259). Em termos históricos, é totalmente plausível reconhecer a narrativa desses perigos como “discursos estratégicos, comuns a diversas tradições e movimentos coloniais”,5 não apenas pela justificativa divina que sustentava o impulso de singrar o oceano para marcar presença em solo estrangeiro, mas para valorizar a coragem dos naûtai que enfrentavam perigos desconhecidos por aqueles que se mantinham sedentários em suas terras.

Odisseu toma conhecimento prévio das Sereias quando retorna à ilha de Circe após sua estadia no Hades. Segurando o herói pelas mãos, a deusa o leva para longe dos companheiros e pergunta sobre tudo que viu na terra dos mortos. Após descrever os fatos, o herói é informado de que a primeira etapa da continuidade do périplo será junto às Sereias, “que todos os homens enfeitiçam, que delas se aproximam” (Odisseia 12.39-40). A sedução se dá precisamente pela voz: “quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias, ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos estarão para se regozijarem com o seu regresso” (Odisseia 12.41-43). O cenário descrito evoca uma dualidade muito marcante no pensamento grego arcaico, que desconfia da aparência e sugere que a ruína pode estar oculta sob o manto da beleza, tal como a Pandora representada na teogonia hesiódica, dado que Zeus criou deliberadamente “belo o mal em vez de um bem”, kalòn kakòn ant'agathoîo (Teogonia 585). Pois é assim que Circe produz a imagem das Sereias através do contraste entre o límpido canto que entoam sentadas num prado tendo à sua volta “amontoadas ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes” (Odisseia 12.45-46).

De fato, o risco oferecido pelas Sereias era exclusivamente ligado ao encantamento, à sedução provocada por sua voz, e a solução óbvia para contorná-lo foi oferecida pela própria Circe: “prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros cera doce, para que nenhum deles as oiça” (Odisseia 12.47-48). A narrativa constrói dessa forma um cenário fatalista cuja profilaxia é tão simples quanto banal: para não morrer, basta evitar ser dominado pelos próprios sentidos. A deusa, no entanto, oferece ao herói –e tão somente a ele– uma solução alternativa. Disse Circe:

[...] ἀτὰρ αὐτὸς ἀκουέμεν αἴ κ᾽ ἐθέλῃσθα,

δησάντων σ᾽ ἐν νηὶ θοῇ χεῖράς τε πόδας τε

ὀρθὸν ἐν ἱστοπέδῃ, ἐκ δ᾽ αὐτοῦ πείρατ᾽ ἀνήφθω,

ὄφρα κε τερπόμενος ὄπ᾽ ἀκούσῃς Σειρήνοιιν.

εἰ δέ κε λίσσηαι ἑτάρους λῦσαί τε κελεύῃς,

οἱ δέ σ᾽ ἔτι πλεόνεσσι τότ᾽ ἐν δεσμοῖσι διδέντων. (Odisseia 12.49-54)

Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto,

deixa que tu, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés

enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam

atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz

das duas Sereias. E se a eles ordenares que te libertem,

então que te amarrem com mais cordas ainda.

O herói assimila a sugestão da deusa não como uma possibilidade, mas como uma necessidade. Odisseu transmite o comunicado de Circe alterando deliberadamente o discurso para transformar a escolha em um imperativo, seja para que seus companheiros não o questionassem, seja porque assim o assimilou no marco de suas próprias ambições:

Σειρήνων μὲν πρῶτον ἀνώγει θεσπεσιάων

φθόγγον ἀλεύασθαι καὶ λειμῶν᾽ ἀνθεμόεντα.

οἶον ἔμ᾽ ἠνώγει ὄπ᾽ ἀκουέμεν· ἀλλά με δεσμῷ

δήσατ᾽ ἐν ἀργαλέῳ, ὄφρ᾽ ἔμπεδον αὐτόθι μίμνω,

ὀρθὸν ἐν ἱστοπέδῃ, ἐκ δ᾽ αὐτοῦ πείρατ᾽ ἀνήφθω.

εἰ δέ κε λίσσωμαι ὑμέας λῦσαί τε κελεύω,

ὑμεῖς δὲ πλεόνεσσι τότ᾽ ἐν δεσμοῖσι πιέζειν. (Odisseia 12.158-164)

Primeiro foi o som das Sereias divinamente inspiradas

e seu prado florido que nos aconselhou a evitar.

Disse para ser só eu a ouvi-las: devereis amarrar-me

com ásperas cordas, para que fique onde estou,

de pé junto ao mastro; e que as cordas sejam atadas ao mastro.

E se eu implorar e vos ordenar que me liberteis,

devereis amarrar-me com mais cordas ainda.

O planejamento foi cumprido. A viagem seguiu após Odisseu cobrir os ouvidos dos sócios com cera e ter sido amarrado ao mastro por eles. Não tardaram a cruzar pelas paragens das Sereias, que imediatamente entoaram o límpido canto dirigindo-se particularmente ao protagonista:

δεῦρ᾽ ἄγ᾽ ἰών, πολύαιν᾽ Ὀδυσεῦ, μέγα κῦδος Ἀχαιῶν,

νῆα κατάστησον, ἵνα νωιτέρην ὄπ ἀκούσῃς.

οὐ γάρ πώ τις τῇδε παρήλασε νηὶ μελαίνῃ,

πρίν γ᾽ ἡμέων μελίγηρυν ἀπὸ στομάτων ὄπ᾽ ἀκοῦσαι,

ἀλλ᾽ ὅ γε τερψάμενος νεῖται καὶ πλείονα εἰδώς.

ἴδμεν γάρ τοι πάνθ᾽ ὅσ᾽ ἐνὶ Τροίῃ εὐρείῃ

Ἀργεῖοι Τρῶές τε θεῶν ἰότητι μόγησαν,

ἴδμεν δ᾽, ὅσσα γένηται ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ. (Odisseia 12.184-191)

Vem até nós, famoso Ulisses, glória maior dos Aqueus!

Pára a nau, para que nos possas ouvir! Pois nunca

por nós passou nenhum homem na sua escura nau

que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas;

depois de se deleitar, prossegue caminho, já mais sabedor.

Pois nós sabemos todas as coisas que na ampla Tróia

Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos deuses;

e sabemos todas as coisas que acontecerão na terra fértil.

Em certo sentido, “o canto das Sereias, na verdade, não se realiza. Os versos que relatam suas palavras em primeira pessoa descrevem apenas um convite ao canto”.6 Os monstros anunciam o objeto de seu canto (os sofrimentos de aqueus e troianos na guerra) sem adentrar na narração dos fatos. Também anunciam a capacidade de dizer o que se virá a acontecer, fato que reforça a leitura de que poetas e adivinhos compartilham um princípio similar de onisciência, ainda que o primeiro se vincule ao passado e o segundo ao futuro.7 Pode-se conjecturar também que o canto das Sereias não é desvelado exatamente por ser inacessível aos mortais, nos quais se incluem não apenas os personagens representados pelo épico, mas também os ouvintes e o próprio aedo. Com isso, produz-se um efeito de exterioridade que convida a audiência a se posicionar no mesmo plano discursivo da narrativa, irrompendo ou atenuando o hiato que separava o passado mítico da realidade imediata da vida social em que este era celebrado. Esse expediente produzia um efeito bastante curioso, pois como os ouvintes de “Homero” não tinham acesso ao discurso das Sereias, a estratégia discursiva acabava por reforçar o heroísmo do próprio Odisseu, que neste momento narrava o episódio à audiência feácia e que deliberadamente ocultou aquilo que ouviu dos monstros, convertendo o saber oriundo do canto em uma espécie de “capital simbólico” que ampliava sua distinção social.

O impulso irresistível se abateu sobre Odisseu e o alerta de Circe mostrou-se verdadeiro. Indicando com o sobrolho, pede a seus companheiros que o desatem do mastro para ouvi-las melhor. Eles, no entanto, “caíram sobre os remos com mais afinco” (Odisseia 12.194). Mais do que isso, respeitando o acordo, Euríloco e Perimedes se levantaram e ataram-no com mais cordas, ainda mais apertadas (Odisseia 12.195-196). Só após passarem pela ilha, quando as vozes não eram mais audíveis, retiraram a cera dos ouvidos e libertaram Odisseu. Dessa forma, do início ao fim do episódio, Homero contrapõe duas atitudes diferentes diante do canto da morte: os companheiros evitaram o mal que surge da beleza do canto dele se afastando, ocultando o sentido que levaria a mente a perder a gerência sobre o corpo; Odisseu, a seu turno, se expôs à beleza do canto e gerenciou o mal correspondente não com base na negação do sentido, mas com o controle do corpo que se tornou suscetível à estética do canto lético. Enquanto os demais, que representam os homens comuns, controlam os sentidos, Odisseu se permite dominar por eles. Os primeiros não ouviram o canto; o segundo foi o único mortal a ouvi-lo e ainda assim sobreviver.

3. O entendimento da escolha: heroísmo e experiência

Muito se discute sobre as características das Sereias homéricas. Da tradição que se formou francamente baseada nas hipóteses de Weicker (1902) e nas críticas de Buschor (1944), as Sereias se tornaram tema de inúmeras discussões e controvérsias, muitas vezes pautadas na difícil tarefa de identificá-las como pássaros-cantores, feiticeiras de outro mundo e mesmo como “almas da morte”. Sobre a questão, é digno de nota um artigo de Gresseth (1970) que busca entendê-las a partir das evidências literárias, especialmente em Homero, e um trabalho de Pucci (1997), que foi capaz de perceber que os poetas atribuíram às Sereias formulações típicas da Ilíada. No entanto, e a despeito do horizonte de possibilidades, a passagem das Sereias é emblemática não somente pelas personagens em si ou pela forma com que se relaciona com as ações ulteriores da narrativa, mas também como síntese da caracterização heroica do personagem principal da Odisseia.

Em termos narrativos, nota-se a óbvia opção por estabelecer uma diferença singular entre as ações de Odisseu e a dos demais companheiros de viagem, reforçando não apenas seu valor distintivo, mas as razões que o converteram em objeto de canto. Como vimos, sendo um herói obstinado pela sobrevivência, o que caracteriza o heroísmo do pai de Telêmaco é a forma com que consegue flertar com a morte e superá-la, sempre motivado pelo firme propósito de cumprir aquilo que anima sua jornada. Na verdade, após seu retorno do Hades, Circe chega a designá-lo δισθανής, “que morre duas vezes” (Odisseia 12.22), indicando essa particular proximidade do herói com os limites da vida. Portanto, arriscar-se não é apenas uma opção, e sim a forma de comprovar sua areté, dando a tom daquilo que ele é e busca representar.

Outra peculiaridade de Odisseu, diretamente relacionada a essa questão, é o fato de se caracterizar, como observou Jasper Griffin (2004: 161) e outros tantos autores,8 como um orador elegante e efetivo. De certa forma, uma posição cautelosa diante dos desafios não renderia o vasto e fantástico repertório de histórias que pode contar junto aos feácios e a todos aqueles que eventualmente se interessaram pelos dez anos que separam a saída de Tróia de seu retorno ao lar. O canto, obviamente, não atuava tão somente como meio de entreter, mas como o veículo próprio da celebração dos feitos na memória dos homens, tanto de sua geração quanto das gerações vindouras.

Mas, acima de tudo, Odisseu é um herói que dedica à experiência.9 Ainda que já fosse um guerreiro formado, cuja fama se irradiava no canto dos aedos graças aos feitos na Guerra de Tróia,10 há um investimento absolutamente novo em sua caracterização, dado que os eventos por que passou não apenas se distanciam das ações típicas da épica iliádica, mas também porque ele próprio torna-se um herói diferente, já que passou a enfrentar desventuras inéditas e que exigiam a assunção de novas posições.

Esse talvez seja o aspecto mais importante que distingue Odisseu dos demais poetas orais representados por Homero: enquanto estes contam aquilo que ouviram falar ou que as Musas inspiraram, aquele narra exclusivamente os fatos por que passou, aquilo que pensou e, principalmente, o tanto que sofreu. Diante da audiência feácia, o herói prepara seus ouvintes para o relato de suas “desgraças”, de seus “infortúnios” –stonóeis– e tantos foram que ele se questiona por qual deles deveria principiar (Odisseia 9.14). Nota-se, numa síntese, que a atitude que assumiu diante das Sereias é indicativa de um padrão de comportamento.

No caso mais renomado, o que envolve Polifemo, a postura de Odisseu revela um profundo acordo entre os eventos vividos e o pedido que os aedos fazem no introito da epopeia: ele queria ver (Odisseia 9.229). Odisseu e seus companheiros aportaram os navios em uma ilha próxima à do Cíclope, em tudo farta, apesar de inabitada. Lá, tinham à sua disposição tudo que um navegante à deriva precisava para se recuperar dos percalços e continuar a viagem. Apesar disso, o desejo de conhecer os habitantes da terra próxima fez o filho de Laertes dar as seguintes instruções:

ἄλλοι μὲν νῦν μίμνετ᾽, ἐμοὶ ἐρίηρες ἑταῖροι

αὐτὰρ ἐγὼ σὺν νηί τ᾽ ἐμῇ καὶ ἐμοῖς ἑτάροισιν

ἐλθὼν τῶνδ᾽ ἀνδρῶν πειρήσομαι, οἵ τινές εἰσιν,

ἤ ῥ᾽ οἵ γ᾽ ὑβρισταί τε καὶ ἄγριοι οὐδὲ δίκαιοι,

ἦε φιλόξεινοι, καί σφιν νόος ἐστὶ θεουδής. (Odisseia 9.172-176)

Agora, por aqui ficarão alguns de vós, leais companheiros,

enquanto que eu, com outros de vós, tomarei minha nau

com o fito de perscrutar quem desta terra são os homens:

se são insolentes e selvagens, ou se respeitam os costumes,

se eles são hospitaleiros e se são tementes aos deuses.

Odisseu não se conforma em observá-los à distância: é preciso ir lá, ter com eles, reconhecê-los. De todo modo, existia a ideia de que aquela ilha seria fonte de problemas, pois antes mesmo de ter contato com o Cíclope, Odisseu declarou que pressentira que encontraria um homem violento, um selvagem que ignorava os costumes (Odisseia 9.213-215), mas ainda assim desejou ir ter com ele, posto que experiências pregressas não redimem, para o herói, a necessidade de novas:11 elas são, na verdade, a oportunidade de tornar novos eventos em acontecimentos significativos.12

A passagem envolvendo os Lestrigões guarda muitas semelhanças com a de Polifemo, não somente por desconhecerem os costumes e praticarem a antropofagia, mas porque Odisseu faz questão de desvendar quem eram eles (Odisseia 10.100-101). Quando aportou na ilha de Circe, adotou procedimento semelhante: subiu até um ponto elevado para ver (eîdon) se lá existiam homens (Odisseia 10.147). Aliás, como notamos, é através de Circe que Odisseu é orientado a procurar o adivinho tebano Tirésias no Hades, viajando assim para um lugar onde nenhum homem jamais esteve (Odisseia 10.501-502).

A questão da visão retorna nas palavras de sua mãe. Surpresa ao vê-lo no espaço dos mortos, a mesma fala a respeito da dificuldade que teriam os vivos para ver aquilo que o Hades oferece à visão (Odisseia 11.156). E é o resultado desta visão que Anticléia recomenda ao filho que mantenha presente para que depois possa contá-la a Penélope (Odisseia 11.223-224). E ao longo de todo o relato que Odisseu faz aos feácios a respeito de sua viagem ao Hades, permanece insistente na questão do ver: ele viu Epicasta, Fedra, Clóris, Leda, Ifimedeia, Prócris, Ariadne, Agamêmnon, Aquiles, Ájax, Sísifo, Héracles e diversos personagens, alguns deles iliádicos, que o público da Odisseia sabia de antemão que se situavam em uma tradição oral que remetia a um período anterior às experiências de Odisseu. Porém, mais assustador que a visão dos mortos no Hades, foi a cena que presenciou diante de Cila, que devorou um companheiro do herói com cada uma de suas seis cabeças. Odisseu descreve esse acontecimento como “o mais lamentável que vi com meus olhos” (Odisseia 12.258). O fato de ter visto dá a tônica de todo o discurso.

Mas a experiência de Odisseu não se restringe apenas à visão, como sugere o episódio das Sereias. Disso depreende-se a importância dos sentidos como referentes para a experiência, e talvez repouse neste fato a veemência com que Odisseu insiste a respeito do risco de perder o tino. Em praticamente todos os lugares em que aportou ao longo de sua viagem, substâncias entorpecentes ou elementos sedutores são vistos como potencialmente perigosos. Na ilha dos Cíconos, por exemplo, Odisseu orientou seus companheiros a retornarem aos navios, mas eles eram “muito ingênuos” (Odisseia 9.44), e por lá permanecerem bebendo em demasia, foram alvo da fúria dos nativos. O caso dos Lotófagos é igualmente paradigmático, já que a flor de lotus destituiria aqueles que a comem do governo sobre os próprios sentidos e lá permaneceriam, privados do desejo do retorno (Odisseia 9.94-97). Polifemo também foi domado por sua aphrastýs, “irreflexão”, “loucura”, “estultícia” (Odisseia 9.362), pois desconhecia o vinho e foi vítima da própria embriaguez. No palácio de Circe, transcorre o evento envolvendo Elpenor, que “não era nem muito bravo na guerra, nem ajustado em seu entendimento” (Odisseia 10.553). Essa condição fê-lo vítima de uma morte terrível, posto que banal. Ele dormia sono profundo após ter bebido muito vinho, até que ouviu o barulho dos companheiros e levantou-se agitado. Esqueceu-se de descer pelas escadas e, caindo de cabeça do telhado, fraturou o pescoço e lá pereceu (Odisseia 10.555-560).

Esses episódios em muito se assemelham ao desvario e sedução provocados pelo canto das Sereias, que entorpece os sentidos e destitui o ouvinte do uso pleno da razão. Mais do que sugerir os riscos que tais elementos sedutores podem provocar, eles sugerem outro ponto que em muito dialoga com o fundamento que preside a crítica, já que a ilusão dos sentidos corresponde à negação de experiências.

Odisseu, a seu turno, se mantém absolutamente lúcido, controlando os riscos das muitas seduções que se ofereceram e que poderiam obliterar seu projeto de atingir Ítaca ao fim de tantos sofrimentos.

4. Conclusão

A possibilidade de reconhecer em Odisseu um herói da experiência implica não apenas analisar o tratamento que ele oferece aos acontecimentos vividos, mas seu particular impulso de busca por fatos significativos que possam gerar novas experiências. Em diversos momentos, o protagonista se vê diante de infortúnios que exigem tratamento cauteloso e soluções práticas que ajudam a reforçar seu êthos criativo, mas contra a passividade de viver apenas as situações disponíveis, Odisseu permanece atento a novas ações que ofereçam, apesar do risco, a chance de elaborar e celebrar histórias que ampliem o repertório de narrativas acerca de seus próprios feitos.

Não foram raras as situações em que o herói flertou com a morte. Além dos conflitos contra os troianos, que exigiram seu ímpeto guerreiro além do engenho para tramar ardis, esteve em seu nóstos diante de eventos que não apenas o aproximaram da morte, mas a uma série de possibilidades de morrer: além das tormentas frequentes que poderiam gerar uma morte inglória (posto que esquecida) no mar, enfrentou entes monstruosos e divindades que, quando não tentaram ceifar sua vida, buscaram privá-lo da própria humanidade, como Circe, na tentativa de bestializá-lo, e Calipso, que sugeriu sua divinização. Com as Sereias, um flerte inédito com a morte se colocou: a morte pelos sentidos, pelo desvario, pelo dispositivo encantatório da palavra e sua dimensão mágico-religiosa.

O heroísmo de Odisseu, portanto, repousa não apenas na vivência de fatos significativos e posterior uso narrativo dos mesmos, mas na busca de oportunidades que criam sentidos para glorificar a própria vida. A passagem pelas Sereias, longe de representar uma interpolação diante de um enredo mais amplo, é parte desse vasto nóstos que reforça uma lógica de disposição de enfrentamento junto ao desconhecido que marca as características de um herói protocolonizador como Odisseu.

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Notas

* Es Magíster en Historia Comparada del Programa de Posgrado de la Universidad Federal de Río de Janeiro, Doctor en Historia por la Universidad Federal Fluminense de Río de Janeiro. Es colaborador del Laboratorio de Historia Antigua de la Universidad Federal de Río de Janeiro y miembro del Consejo editorial de la Revista Gaîa. Ha publicado numerosos artículos en revistas especializadas y el libro O Ofício de Homero (2012, Río de Janeiro). Actualmente se desempeña como Profesor del Departamento de Historia y del Programa de Posgrado en Historia de la Universidad Federal Fluminense de Río de Janeiro y es Miembro del Núcleo de Estudios de Representaciones en Imágenes de la Antigüedad.

2 Conforme observou Mirto (2007: 100), “a visão odisseica de heroísmo não corresponde a uma mudança em relação à glória heroica [da Ilíada], mas sim a uma mudança de foco entre os dois heróis protagonistas que são diferentes entre si, de modo que há um equívoco de interpretação em ver nisso uma ruptura em relação à épica tradicional precedente. Ulisses já incorporava na Ilíada qualidades e valores muito diferentes dos de Aquiles e que certamente não estavam fora do universo heroico; fato é que o protagonista não está em desacordo com o poema anterior, quando ele indica como ideal de sucesso [...] uma velhice feliz em casa. Na realidade, os dois poemas se integram e promovem uma definição completa das circunstâncias em que se encontra o mundo heroico, durante e após a expedição a Tróia, na guerra e na dura experiência do retorno e reintegração dos veteranos em casa”.

4 Recorde-se, por exemplo, a célebre interpretação de Reinhardt (1948: 85-86), para quem Odisseu, ao se declarar agente da vingança de Zeus sem que este tivesse dado qualquer autorização para que agisse em seu nome, acaba incorrendo na hýbris, entendida como “a convicção de uma superioridade moral”. Das discussões subsequentes, atentas ao tema da hýbris muitas vezes referenciada a partir da ação de Odisseu, é possível citar os artigos de Robertson (1955), Brown (1966), Bradley (1968), Rainer Friedrich (1991), dentre outros.

7 Como observou Vernant (1990: 137) em seu célebre estudo, “entre a adivinhação e a poesia oral tal como ela se exerce [...] nas confrarias de aedos, de cantores e músicos, há afinidades e mesmo interferências, que foram assinaladas várias vezes. Aedo e adivinho têm em comum um mesmo dom de vidência. [...] O deus que os inspira mostra-lhes, em uma espécie de revelação, as realidades que escapam ao olhar humano”.

8 A quantidade de análises a esse respeito é absolutamente vertiginosa. Scodel (1988: 171) sinaliza a tendência dos homeristas minimizarem a diferença entre poetas tradicionais e outros personagens convidados a celebrar um canto particular, tratando Odisseu, por exemplo, como um poeta épico. Pizzocaro (1999: 16) estabelece uma relação entre o canto de Odisseu para os feácios e o de Fêmio para os pretendentes, defendendo que o “canto novo”, ou seja, o que celebra um passado próximo, também era objeto de atenção dos aedos. A longa narrativa de Odisseu também é objeto de reflexão de Beck (2005), em que discute a posição do herói como sendo própria à de um narrador, contador de histórias ou poeta. Mackie (1997: 77) aborda o tema considerando, dentre outras coisas, a importância do sofrimento humano para a construção de narrativas na Odisseia. A questão, portanto, é longamente examinada e tem sido alvo de inúmeras análises entre os homeristas, muitas vezes divergentes entre si.

9 Admitimos como experiência a capacidade de converter um dado evento em um acontecimento significativo capaz de assegurar uma espécie de saber oriundo de um movimento de atribuição de valor a esse mesmo evento. A experiência não é entendida apenas como vivência, e nem como a leitura subjetiva desta vivência: experiência é, na verdade, um fenômeno subjetivo (já que depende e se realiza no sujeito) formulado a partir das condições materiais. Em resumo, para analisar o mundo homérico, a experiência tem que ver com uma espécie de saber-viver.

10 E os poetas da Odisseia foram cautelosos em sugerir essa condição, particularmente através do canto de Demódoco (8.71-82).

11 Como se vê, por exemplo, no episódio de Circe, quando Eurímaco se opõe à ida ao palácio da ninfa dizendo que seria uma repetição do acontecimento envolvendo o Cíclope (Odisseia 10.435-437). Para Odisseu, a negação da experiência em função de experiências pregressas parece uma atitude absolutamente inconcebível.

12 Neste sentido, é emblemático o embate retórico que Odisseu e Polifemo estabelecem. Quando o Cíclope lança um discurso dissimulado para descobrir onde teriam sido fundeadas as naus dos viajantes, o protagonista consegue antecipar suas intenções e responder que as mesmas teriam sido destruídas por Posêidon, que supostamente as atirou contra as rochas nos arredores da ilha. Isso só foi possível graças à sua astúcia, à sua mêtis, à inteligência que antecipa os fatos. Como o próprio Odisseu declarou, ele “já muito sabia” para ser pego no ardil (Odisseia 9.281), e não seria esse saber por antecipação um produto da própria experiência?

13 Impossível não estabelecer aqui um paralelo conceitual com a crítica que Agamben (2008: 25) faz à toxicomania nas sociedades modernas. O filósofo reconhece uma distinção fundamental quanto ao consumo das drogas: “Pois o que diferencia os novos drogados dos intelectuais que descobriram a droga no século XIX é que estes últimos (ao menos os menos lúcidos entre eles) podiam ter ainda a ilusão de estarem realizando uma nova experiência, enquanto que para os primeiros se trata simplesmente, a este ponto, de desvencilhar-se de toda experiência”.

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