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Trabajo y sociedad

versión On-line ISSN 1514-6871

Trab. soc.  no.33 Santiago del Estero dic. 2019

 

OFICIOS, PROFESIONES Y MODOS DE VIDA

Policía, Democratizado e Proximidade em Portugal. Ensaio Etnográfico1

La Policía, la Democratización y Proximidad en Portugal. Un ensayo etnográfico

Police, Democratization and Proximity in Portugal: Ethnographic Essay

Susana DURÁO2

2Professora Permanente da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP (Sao Paulo, Brasil). Instituto de Filosofía e Ciencias Humanas, Departamento de Antropología. ssbdurao@gmail.com

RESUMO

A partir de uma abordagem etnográfica multi-nível, este texto propSe uma leitura que evidencia as tensSes contemporáneas num modelo de policiamento que é centralizado e monopolista, pela agao de um Estado nacional, o portugués, e simultaneamente se pulveriza no territorio, com base numa dinámica operacional situada em esquadras de polícia de pequena dimensao. Embora a transigao democrática recente tenha levado a polícia urbana a adotar uma filosofía de policiamento de proximidade, a mudanza institucional tem várias hesitares que apontam comoas esquadras de polícia, o policiamento local e os seus agentes trabalham frequentemente sem um plano claro do que é a sua atividade e com vários resíduos de um passado autoritário nao muito distante.

Palavras-chave: policiamento; proximidade; democracia; modelo de polícia; Portugal

RESUMEN

Desde un enfoque etnográfico multinivel, este articulo propone una lectura que refleja las tensiones contemporáneas en un modelo de policía que está centralizado y monopolista, por la acción de un estado nacional, el portugués, y al mismo tiempo la pulverización del territorio, sobre la base de una dinámica operativa situada en comisarías de policía de pequeña dimensión. Aunque la transición democrática reciente ha llevado a la policía urbana a adoptar una filosofía de vigilancia policial de proximidad, el cambio institucional tiene varias vacilaciones que apuntan como las comisarías, la policía local y sus agentes trabajan a menudo sin un plan claro de lo que es la políticade su actividad y con varios residuos de un pasado autoritario no muy lejano.

Palabras clave: vigilancia; proximidad; democracia; modelo de policía; Portugal

ABSTRACT

Based on a multi-level ethnographic approach, this article proposes a reading that shows the contemporary tensions in a policing model that is centralized and monopolistic by the action of a thePortuguesenational State, and simultaneously pulverizes itself in the territorysupportedbyan operational dynamic located in small police stations. Although the recent democratic transition has led the urban police to adopt a philosophy of proximity policing institutional change has several hesitations that point out how police stations,local policing and officersoften work without a clear plan of what is its activity,mantainingresidues of a not so distantauthoritarian past.

Keywords: policing; proximity; democracy; policemodel; Portugal

SUMARIO

Introdujo. 1. Arquitetura da Polícia de Seguranza Pública. 2. Esquadras de bairro e linhas do policiamento. 3. O que fazem hoje os polícias? ConclusSes. Biblografía

INTRODUJO

O objetivo deste texto é fornecer uma análise sucinta de como se ergue a polícia urbana em Portugal, focando os anos da reconstituido democrática no país (após 1974)e que chegaria á instituido no final dos anos 1980. Veremos como a opqao pelo policiamento de proximidade tem sido combinada com a manutenqao de pequenas unidades organizacionais, as chamadas esquadras genéricas, situadas nos bairros das principais cidades do país. Tanto questSes organizacionais quanto as práticas do policiamento nos quotidianos de esquadras urbanas evocam ambiguidades e complexidades sociais que os métodos etnográficos ajudam a descrever e analisar. Este texto oferece uma revisao e atualizaqao de dados obtidos em pesquisas anteriores, nomeadamente desenvolvidos em dois livros que publiquei sobre o tema, Patrulha e Proximidade. Uma etnografía da polícia em Lisboa (Durao, 2008a) e esquadra de Polícia (Durao, 2016).

A literatura sobre instituiqSes policiais e dinámicas do policiamento é hoje muito vasta, situando-se em ramos disciplinares como a criminologia, o direito, as ciencias sociais e a história. A perspetiva etnográfica sobre os mundos policiais, entendida de modo plural por diversos autores que nem sempre estao de acordo sobre o que a caracteriza, tem atravessado várias disciplinas. Nesta literatura destaca-se a necessidade de entender modelos e padrees do policiamento (Bayley, 1990), variaqSes da atividade e aqao nas ruas (Manning & Van Maanen, 1978), o circuito das tecnologias de controlo (Manning, 2011a) e a distribuido, mais ou menos democrática, da justiqa (Manning, 2011b) - o que inevitavelmente evidencia a forqa policial como sendo genericamente ambivalente (Niederhoffer & Blumberg, 1973). É de salientar a redescoberta etnográfica recente do policiamento pela mao de antropólogos. Várias monografías documentam como as atividades de exercício da aplicado da lei traduzem ordens sociais e morais num mundo global marcado pela penalizado e criminalizado dos mais pobres, migrantes e racialmente diferenciados (Ericson, 1982; Moskos, 2008s Fassin, 2013).

Os estudos comparativos sobre policiamento no mundo estiveram frequentemente presentes no vasto espectro das ciencias sociais, com dados empíricos inovadores dos diferentes lugares onde nasceram e se desenrolaram (cf. Waddington, 1999). Mas hoje pode dizer-se que uma outra questao se impSe, a de saber que contributo podem os estudos do policiamento oferecer á teoria social e antropológica. Recuperando os grandes temas fraturantes sobre estado, poder e violencia policial, os textos da coletánea Policing and Contemporary Governance. The Anthropology of Police in Practice (Garriot, 2013) sugerem uma reinvenqao do campo de estudos do policiamento a partir de linhas reflexivas clássicas que, isoladamente, já nao servem para pensar todas as dimensSes destas grandes burocracias complexas de estados (tao nacionais quanto transnacionais), suas tentacularidades e alargamentos a outros sectores e áreas privadas, comerciáis e pró-militares nem sempre legitimamente reconhecidos mas vigorosamente operantes. Assim, em muitos lugares do mundo, do sul global ao norte, num contexto de crises do capitalismo avanzado, parece ocorrer cada vez mais uma convergencia e sobreposiqao (e nao uma oposiqao) entre a instrumentalidade política da polícia apontada por Karl Marx, a autonomia discricionária burocrática analisada por Max Weber e a crítica do Estado como violencia, de Walter Benjamin. Nesta linha, vários autores tem levantado problemas cruciais sobre polícia, poder e violencia na contemporaneidade. Forneqo apenas duas ilustrares do tipo de questionamentos em que se desdobram. Por um lado, pode acontecer que a partir de formas plurais e mais amplas de policiamento, nao apenas institucionais, que populares marginais e periféricas nas cidades reivindiquem a presenta do estado e da seguranza através da prática de linchamentos, por exemplo. Goldstein tem estudado esta dimensao menos canónica do policiamento na Bolívia (2004, 2010). Por outro lado, como definir violencia policial quando aqueles que cometem atos violentos, os próprios polícias, sao alvo preferencial e frequente de agressao, como acontece na India (Jaureguy, 2013). Em suma, a antropologia permite ao mesmo tempo contextualizar empiricamente os policiamentos nas suas dinámicas precisas e, com isso, permite-se lanqar para o debate teórico grandes problemas que afetam toda e qualquer vida humana.

Neste texto proponho-me analisar algumas das tensoes contemporáneas expressivas num modelo de policiamento que é centralizado e monopolista, pela anao de um Estado nacional, o portugués, e simultaneamente se pulveriza no território, com base numa dinámica operacional situada em esquadras de pequena dimensao. A necessidade do controlo burocrático da atividade policial e a tendencia para o incremento de um policiamento orientado para os cidadaos sao fatores que surgem com a transiqao para um regime democrático no país, na segunda metade da década de 1970, o que tem vindo a reforjar uma certa arquitetura policial. A descriqao desta arquitetura ocupará a primeira seqao do texto. Como se perceberá, ao longo da descriqao dinámica que se segue nas demais secnoes do capítulo, a mudanza institucional anunciada tropera em várias hesitares que apontam como, em última instáncia, as esquadras, o policiamento local e os seus agentes trabalham frequentemente sem um plano claro do que é a sua atividade e com vários resíduos de um passado autoritário nao muito distante.

As questoes de fundo aqui tratadas emergiram de uma investigando etnográfica de 12 meses de permanencia com observanao e participado continuada numa esquadra de Lisboa (mantida anónima), entre 2004 e 2005, tendo-se seguido a esta, ao longo de vários anos e até 2012, várias experiencias de pesquisa de campo mais curtas, conduzidas no ámbito de vários projetos.3

Arquitetura da Polícia de Seguranza Pública [PSP]

Partindo de uma perspetiva socio-antropológica, permito-me analisar os aspetos que tem vindo a transformar a Polícia de Seguranza Pública no sentido de voltar a sua atenqao para a vigiláncia territorial, a patrulha e o atendimento local a cidadaos. O objetivo desta parte do texto nao é, portanto, fornecer uma reconstituido histórica precisa. A história da polícia durante o período da ditadura em Portugal (1926-1974) é ainda hoje muito mal conhecida. A polícia política e a institucionalizado massiva da censura tem merecido muito maior atenqao do que o policiamento efetuado por agentes na rua, responsável pela ordem pública no tránsito, na contenqao de manifestantes, na resolunao de rixas e conflitos entre cidadaos (Pimentel, 2007; Ribeiro, 1995).

Os dilemas nos anos de passagem do regime autoritário de Marcelo Caetano para a democracia foram vividos com certa suspensao por parte das polícias em Portugal. Durante cerca de dez anos (1975-1985) foi preciso amadurecer instituinoes, canais legislativos e determinanoes do executivo para perceber de que forma as polícias da ordem, que conservaram até tarde múltiplas definieses do Estado Novo, poderiam sobreviver em democracia (Palacios Ceresales, 2008, 2010). Sabemos também muito pouco sobre esses anos, mas possuímos alguma informado sobre a viragem que ocorreu na década que se seguiu, dos anos 1990 até ao presente.

Mudanzas comenaram a ocorrer com a reformulaqao da Lei orgánica da polícia em 1985, mas foi sobretudo no final da década de 1990 que chegaram as consequencias mais vivas do policiamento que hoje conhecemos quando olhamos mais de perto as suas atividades em áreas urbanas. Uma das medidas que mais afetou a PSP foi a sua remodelando organizacional, expressa na Lei n° 5/99 de 27 de Janeiro. Com esta é sublinhado o cariz civilista da forna, sendo formalizadas as alteranoes que estariam previstas desde os anos 80.

Em 1999 formalizava-se assim a Direqao Nacional [DN] da PSP, sediada em Lisboa, e responsável pela emanando de políticas e normas para todas as suas unidades e suborganizanoes do policiamento de carácter urbano distribuidas pelo territorio nacional. O mais alto plano de decisdo na PSP surge a substituir o antigo Comando Geral, uma estrutura considerada pró- militar. Foram mantidos comandos metropolitanos e regionais, todos eles submetidos á administrando da DN, situada em Lisboa.4 A criando desta instáncia administrativa e de controlo da atividade policial figura ao centro do processo de reforjo da autonomia administrativa face ao Ministério da Administrando Interna [MAI] que se encarrega da sua tutela, afirmando das elites executivas da PSP ao lado de um renovado branding institucional ao servino da emancipando de uma polícia moderna (como sinónimo de “democrática”) através de relanoes frequentes e diplomáticas com os mass media. Neste sentido, o gabinete de comunicando e relanoes públicas ganhou progressiva importancia organizacional, tendo vindo a crescer em tamanho e recursos humanos desde 2001. O gabinete comenou por se centrar num oficial de polícia, a trabalhar numa pequena sala, e é hoje um open space, com mais de 15 funcionários, situado numa das maiores e mais nobres salas á entrada da DN.

Já em 1984 havia sido criada a Escola Superior de Polícia, atual Instituto Superior de Ciencias Policiais e Seguranna Interna (ISCPSI). Nos anos 1990 este estabelecimento de ensino, ao servino da PSP e estreitamente vinculado ao Ministério da Administrando Interna, transformou-se numa instituido de referencia para a formando avannada de oficiais e de produndo mais geral de conhecimento sobre administrando policial. Ali se produzem saberes técnicos e especializados em direito policial e constitucional, técnicas de administrando e operacionalidade, ciencias humanas, cultura portuguesa, direitos humanos e outras matérias. Numa das áreas mais centrais da cidade, durante cinco anos, cadetes e aspirantes comenaram a ser diplomados, em número limitado mas com regularidade anual. Nos últimos anos, com o apoio e investimento dos sucessivos governos determinados em estimular a formando académica na forna policial, cada curso (por ano) tem vindo a crescer, contendo duas turmas, em média com 25 alunos cada.

As consequencias políticas da criando desta academia de formando avannada de oficiais de polícia estdo hoje á vista. Os polícias-académicos ganharam um protagonismo em vários domínios da organizando e do policiamento. Primeiro, eles viriam a substituir,ao longo dos anos, os polícias da carreira de chefes nos comandos de esquadra. Fazia-se assim descer ao nível do plano operacional novos oficiais mais bem preparados em matérias policiais e direito penal. Além disso, almejava-se, com o tempo das carreiras longas nestas instituinoes, a preparando de quadros de oficialato mais prestigiados para ocupar os lugares, anteriormente destinados a militares, nos quadros superiores e cargos de alto comando, direndo e de ligando diplomática da PSP. Ou seja, esteve sempre em vista uma formando mais académica e administrativa de quadros superiores que, apesar de serem um grupo minoritario -- com pouco mais de 2,8% em um imenso corpo nacional de polícias com 20.890 efetivos (Cf. Balando Social 2017) - tem vindo a obter um protagonismo central na organizando e na sociedade.

Em Janeiro de 2012 seria nomeado pelo MAI para Diretor Nacional da PSP o primeiro ex aluno do ISCPSI, Paulo Valente Gomes, sucedendo a um ex-oficial do exército, porventura o último da geraqao das forqas armadas a ocupar um tal cargo. Gomes nao se coibiria de afirmar publicamente: “Farei tudo aquilo que estiver ao meu alcance para conseguir que a PSP mantenha um elevado padrao de desempenho e de afirmando da sua missao, que é servir o cidadao, combater o crime, estar mais próximo do cidadao e melhorar o seu sentimento de seguranna”. A linha do policiamento-como-servino-cidadao seria afirmada e reafirmada pelos sucessivos diretores nacionais, independentemente da cor da confianna política que carregavam. Tal nao implica, evidentemente, que outras tendencias genéricas e transnacionais de certa amplificando de poderes do policiamento e demonstranoes pró-militaristas, sobretudo em áreas periféricas e socialmente menos vigiadas das cidades, nao se fanam igualmente sentir (Durao, 2008a). Certo é que nao foram estas demonstranoes de forna que mobilizaram os anseios de mudanna organizacional que chegaram á polícia no final do século XX.

Assim se foi moldando a polícia urbana em Portugal, afastando-a das carreiras e referencias militares herdadas do anterior regime e aproximando-a de outras estruturas da administranao pública. É de salientar que, no entanto, agentes e chefes desde sempre foram recrutados entre a populanao “civil”, ainda que com o servino militar obrigatório cumprido. Nesse plano, manteve- se uma diferencianao entre os operacionais de primeira linha. Agentes e chefes entrariam na PSP por um outro canal de entrada que os levava a uma formanao mais sumária na Escola Prática de Polícia. Cursos para agente ou a promonao a chefes sao desde os anos 1980 formados em menos tempo (entre 6 a 12 meses), em grande número (podendo chegar a coletivos de 500 a 1000 pessoas), em cursos abertos por determinanao governamental e em anos intermitentes num estabelecimento já longe do centro da grande Lisboa, nas antigas Instalanoes do Regimento de Cavalaria em Torres Novas.

O processo de distribuinao de competencias policiais entre a PSP e a Guarda Nacional Republicana (GNR), a forna policial militarizada que tem a seu cargo áreas rurais do país, é político e obedece a negocianoes constantes que redefinem ciclicamente as incumbencias de cada corporanao no território nacional. É preciso entender que, contrariamente á PSP, a GNR manteve no essencial as características de lideranna e carreira militar que a orientaram desde 1935, aquando da sua crianao. A distribuinao geográfica e sociopolítica do policiamento entre PSP e GNR remonta aos anos da construnao do regime autoritário que viram nascer essa outra forna com o caráter de se erguer na defesa do regime (Gonnalves, 2008, 2012a, 2012b; Palacios Ceresales, 2008). Diferentes configuranoes históricas, modelos de corpo policial e identidades profissionais tem dificultado a execunao de medidas de fusao das corporanoes policiais, aspeto que tem sido amplamente debatido por vários governos de estado desde os anos 1990. Até ao presente Portugal nao se atreveu a seguir o movimento de unificanao de polícias que foi recentemente testado em países europeus igualmente de pequena dimensao, como é o caso da Escócia ou da Bélgica.

Pelo contrário, os chamados órgaos de polícia criminal em Portugal sao muito numerosos, hoje estimados em mais de cinquenta unidades, vinculados ao Ministério Público no contexto estrito da execunao do inquérito (Valente, 2004). Ainda assim, pode afirmar-se que as seis corporanoes, apresentadas no quadro abaixo, se fazem representar como as principais fornas e servinos de seguranna no país, tanto em dimensao quanto em visibilidade pública.

Quadro 1 : Principáis Órgaos de Polícia Criminal [OPC] em Portugal 

Forjas e servidos de seguranza Datas fundadoras importantes Tutela governamental Estatuto militar/civil Abrangencia territorial N° total de efetivos em 2008 Percentagem feminina em 2008
Guarda Nacional Republicana (GNR) 1801 Guarda Real da Polícia de Lisboa Ministério da Administragao Interna Forga militarizada Unidades, subunidades e postos em zonas rurais e pequenas cidades do país 25.704 5,8%
Polícia de Seguranga Pública (PSP) 1867 Corpo de Polícia Civil Ministério da Administragao Interna Forga de polícia civil Unidades e esquadras de polícia em zonas urbanas e grandes metrópoles 21.228 7,1%
Polícia Judiciária (PJ) 1893 Polícia de Investigagao Judiciária e Preventiva Ministério da Justiga Servigo civil Diretorias e unidades de investigagao em várias cidades do país 2532 33,9%
Servigo de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) 1974 Diregao de Servigo de Estrangeiros Ministério da Administragao Interna Servigo civil Diregoes, delegagoes regionais e postos de fronteira 1.478 46,7%
Autoridade de Seguranga Alimentar e Económica (ASAE) 2005 criagao ASAE Ministério da Economia e da Inovagao Servigo civil Diregoes regionais pelo país 510 48,4%
Polícia Marítima 1995 criagao Ministério Forga militarizada Capitanias 517 5.4%

Fontes: “Balangos sociais” disponibilizados diretamente pelas organizagoes (PSP, GNR, SEF, ASAE) ou obtidos por contacto direto (PJ, PM). Apenas se conseguiram dados comparativos para o ano de 2008.

Embora as grandes linhas do policiamento estejam delineadas nos códigos penais, existem regióes da agao onde surgem problemas de delimitagao e separagao das competencias entre os corpos de polícia. PSP e GNR sao consideradas polícias genéricas, de carácter preventivo e atuantes no dominio da ordem pública -- “a PSP nao pode dirimir conflitos de natureza privada, devendo limitar a sua agao, ainda que requisitada, á manutengao da ordem pública” (Cf. Art° 5a da Lei n° 5/99). Todavia, desde que foi criada a Lei de organizagao da investigagao criminal (n.° 21/2000 de 10 de Agosto) os maiores corpos de polícia viram as suas competencias de atuagao serem ampliadas, comegando ambas a trabalhar em domínios anteriormente de exercício exclusivo da Polícia Judiciária, por sua vez tutelada pelo Ministério da Justiga. Em simultaneo, cresceria um plano de policiamento que ganharia popularidade e adesao - o policiamento de proximidade, associado ás atividades de esquadra, aspetos que irei detalhar nas próximas segóes do texto.

Esquadras de bairro e linhas do policiamento

De um modo geral, sao tres os principais modelos de polícia existentes nas sociedades ditas ocidentais: a polícia de Estado hipercentralizada como a francesa, as polícias municipais autónomas de tradigao norte-americana e as polícias regionais do modelo británico (cf. Monjardet, 1996). Nao se trata de esquemas organizacionais puros e fechados, mas digamos que cada um deles cultiva diferentes formas de relacionamento dos estados com os cidadaos.

O modelo policial portugués encontra as suas raízes na configurando francesa, sendo por isso muito centralizado e, também, sujeito a opn5es e planos de governo de estado. Como evidenciei, GNR e PSP sao consideradas as duas maiores polícias da ordem e da seguranza portuguesas, de ámbito nacional. Nesse sentido, os recrutamentos de polícias fazem-se sempre para todos os cidadaos de nacionalidade portuguesa, estando previsto na constituinao portuguesa este direito. Ambas sao portanto polícias associadas aos governos de soberania nacional e de administrando central. E, no entanto, ambas tém um dispositivo que distribui o seu efetivo de forma reticular pelo territorio nacional em pequenas unidades organizacionais: as chamadas esquadras e os postos de polícia.

Ou seja, a coexisténcia entre um modelo administrativo e de recrutamento muito centralizado (de inspirando francófona) e um policiamento operacional, distribuído territorialmente de modo descentralizado em unidades micro (de inspirando anglo-americana), e claramente inspirado na heranna de governos civis hoje extintos (Gonnalves, 2012a), confere particular ambiguidade ao mandato policial em Portugal. A refornar esta ambiguidade surge a complexificanao das funn5es das fornas de seguranna desde a década de 1980, aspeto que tem uma escala mais global e nao se reduz apenas a tendéncias nacionais. A complexificanao e exigéncias do mandato, que na prática muitas vezes oscilam em polos opostos, quando nao se contradizem, estao diretamente relacionadas com o estreitamento da ideia de seguranna. A semántica deste conceito tem sido cada vez mais isolada da relanao que mantém com outros sentidos. Esta tem vindo a afastar-se progressivamente do vasto conjunto de aspetos da vida social em que o termo seguranna surge positivamente conotado com outras ideias, relativas a estabilidade, previsibilidade, protenao, e, por contraposinao áquelas, de sentido negativo, de vulnerabilidade e precariedade (Cunha & Durao, 2011). Quando se evoca a nonao de seguranna hoje dominante - que insiste sobre a seguranna soberana, de bens e de pessoas -- o “social” tende a ser perspetivado como um domínio sobre o qual se deve agir policial e legalmente. No entanto, nao raras vezes, os polícias que convivem com o idioma securitário contemporáneo sao os mesmos que, nas práticas quotidianas, asseguram algum tipo de suporte burocrático e social de rua, tal como numa linha de anao complementar surgem os enfermeiros e médicos de urgéncia, os bombeiros ou os profissionais da protenao civil (cf. Cumming, 1973).

Associada ás dificuldades descritas do mandato policial em Portugal surge a experiéncia subjetiva enraízada na mobilidade regional e em carreiras profissionais dos polícias que se distribuem na geografía do país. Uma forna nacional como a PSP é obrigada a lidar com uma comunidade “migrante” de agentes e chefes onde a maioria, á primeira oportunidade, abandona o policiamento nas maiores cidades para se fixar junto á família em pequenas cidades, vilas ou aldeias mais remotas de onde é originária. Nos últimos anos a organizanao policial comenou a figurar entre as oportunidades de trabalho menos precário para pessoas que nasceram e cresceram nos centros metropolitanos. Mas é observável a tendéncia que tradicionalmente sempre caracterizou a burocracia do estado pelo apelo que constituía para determinados segmentos de jovens masculinos de regi5es rurais ou pequenas cidades afastadas dos centros produtivos e de emprego. Jovens do mundo rural portugués voltaram-se para a PSP ao verem as suas oportunidades malogradas no exército, na pequena indústria ou na agricultura. Noutro lugar é demonstrado como, em boa medida, foi com base numa boa dose de desidentificanao sociológica e moral dos agentes de polícia em relanao aos habitantes das periferias metropolitanas que se expandiram enormemente desde os anos 1980, que a PSP cresceu, em lugares eles mesmos marcados pela precariedade social (Durao, 2011).

É preciso sublinhar que as mudannas que ocorreram na PSP nos últimos anos nao alteraram no essencial a estrutura de poderes e de progressao na organizanao. Esta tem por base a heranna do modelo piramidal de comando militar: um líder (Diretor Nacional), chefias superiores, quer administrativas (em cargos na direnao Nacional) quer operacionais (nos grandes comandos metropolitanos e regionais); comandos intermédios operacionais (em comandos pequenos, divis5es administrativas e esquadras de polícia) e esse corpo alargado de operacionais maioritariamente constituído por agentes e chefes. Logo a abrir, a Lei n° 5/99 diz que a “PSP está organizada hierarquicamente em todos os níveis da sua estrutura com respeito pela diferencianao entre funn5es policiais e funn5es gerais de gestao e administranao públicas obedecendo, quanto ás primeiras, á hierarquia de comando e, quanto ás segundas, ás regras

gerais de hierarquia da fungao pública” (Cf. Art° 1° da de 27 de Janeiro). A PSP é assim considerada uma forga de natureza hierarquizada.

Lembro ainda que essa grande burocracia que é a PSP é constituida maioritariamente por pessoas das carreiras técnico-policiais, representando 95% de todo o pessoal contratado pela instituigao. Entre estes, 85% sao agentes, ou seja, profissionais que estao na base da hierarquia policial. Embora com a reconfiguragao democrática da policia o seu papel socioprofissional tenha sido menos salientado na instituigao do que o de oficiais, sao eles quem na prática tem nas maos diariamente a incumbencia de aplicar as leis.

Um dos aspetos mais celebrados na instituigao policial, e o que se dá a ver dela publicamente, é a proposta de um novo estilo de policiamento de proximidade para as esquadras, que chegou á instituigao primeiro como normativa do MAI, emanada em simultaneo para a PSP e a GNR. Os programas de policiamento de proximidade foram inicialmente desenhados no relatório de legislatura de 1995 a 1999 do referido ministério. Após alguns anos de avaliagao, entre 2006 e 2007, surgiria uma espécie de segunda geragao do PIPP, agora pela mao das liderangas da PSP, o Programa Integrado de Policiamento de Proximidade (PIPP). Tal conduziu a uma concentrado das atividades de equipas de agentes de esquadra em “equipas de apoio ás vítimas” e “equipas escola segura” (as EPAV e as EPE), o segundo considerado desde sempre o programa de maior sucesso deste movimento de reforma. Aspirou-se a uma maior difusao destas microequipas pelo país, que em 2008 estariam presentes em 112 das cerca de 300 esquadras da PSP.5

Nao se pode dizer que o policiamento de esquadra seja uma novidade da democracia. Ele remonta á emergencia da policia “moderna” em Portugal, entre 1867 e 1935 (Gongalves, 2012a), num movimento de institucionalizado do policiamento que se alargava em toda a Europa. Estas unidades foram desde sempre integradas no tecido urbano existente, nos pisos térreos de prédios de habitado, raramente atingindo as condigSes materiais desejáveis do ponto de vista operacional. Os melhoramentos foram sendo feitos, mas até anos recentes muito raramente surgiram edificios criados de raiz para albergar os policias. Existem exemplos de descrides que apontam as fracas condigSes logisticas e de higiene das unidades policiais. Numa rara e rica monografía sobre as esquadras de Lisboa pode ler-se, num trecho referente a 1932: “As instalades da Esquadra da Rua dos Capelistas eram no seu todo apenas um pequeno e único compartimento, mesquinhamente dividido por um sórdido tabique de madeira, e onde uma afamada e destemida legiao de vorazes ratazanas campeava impune, fazendo verdadeiras sortidas a todas as pequenas dependencias, indiferentes em absoluto á presenta do pessoal e procurando afoitamente qualquer resto de comida” (Ribeiro, 1935: 34).

A associado politica e operacional entre a proximidade policial, voltada para os cidadaos, e a reafirmado da unidade de esquadra como espago físico organizacional de eleigao da PSP, foi reforjada no inicio do século XXI. Num livro de revisao do mandato politico, um dos ex ministros da Administrado Interna responsáveis por esta ideia definiría “proximidade” como “orientado de policiamento que privilegia o conhecimento e a insergao na vida das comunidades, adotada em oposigao á anterior estratégia de retragao e concentrado em superesquadras” (Costa 2002, 91).6

Porém, apesar da retoma histórica e tradicional das mais pequenas unidades de policia, a proximidade nao representa, até hoje, uma estratégia de policiamento hegemónica. Desde logo, nas esquadras onde estao implementadas (que nao chega, como antes apontei, a metade do número total), as equipas representam entre 5% a 10% do efetivo total de cada unidade (Durao, 2008a). Além disso, nos anos de maior investimento nesta nova abordagem policial, orientada para atender diretamente os cidadaos, cresceriam também os policiamentos designados “especiais”, marcadamente associados a uma certa expansao do receio de ataques terroristas que se globalizou no pós 9/11 -- o corpo de intervengo, o grupo de operaqSes especiais, o centro de inativaqao de engenhos explosivos e seguranza em subsolo e, no plano da patrulha, as reativas brigadas anticrime ou de intervengo rápida - subcorpos de polícia que em geral escapam mais fácilmente ao escrutinio público pela sua natureza excecional (cf. Fassin, 2013).

Nem mesmo o modelo organizacional de esquadra está imune á mudanza e ao revés histórico. Ainda hoje se mantém formalmente em vigor, embora com práticas reatualizadas, o Regulamento para o Servigo das Esquadras, Postos e Subpostos (aprovado por despacho do ministro do Interior, de 7 de dezembro de 1961). A resistencia administrativa á revisao de um tal documento de base, passados quase quarenta anos de democracia, pode ser lida á luz da negado da descentralizado de competencias que seriam fundamentais para a autonomia de decisao e criado de políticas de policiamentos locais de proximidade. Nos últimos anos foi reaberta uma discussao no seio da PSP em torno do projeto de uma nova lei orgánica. É possível que a necessidade de racionalizado de gastos provocada pelo aumento da divida externa e crise económica portuguesas, o imperativo em encontrar lugares dignos para o contingente de oficiais formados hoje no ISCPSI, combinadas com a perceqao de que o policiamento de esquadra é difícil decontrolar, seja motor de mudanzas futuras que certamente terao impacto nessas pequenas unidades do policiamento.

O que fazem hoje os policías?

Embora a PSP reconhecidamente comporte uma área de investigado criminal, eu nao mentiria se dissesse que ainda hoje uma imensa percentagem do trabalho policial nas maiores cidades nao assume uma definido legal, aspeto discutido pelos especialistas desde o final dos anos 1960 como consequencia das críticas dos movimentos civis nos EUA (Baton, 1964; Bittner, 1970; Manning, 1978). Durante o período mais extenso que passei nas esquadras foi muito raro observar os agentes consultarem os seus códigos penais e processuais penais para ajuda no trabalho. O apoio das chefias e dos comandantes, mais bem preparados em matéria legal, era geralmente suficiente para resolver os seus casos. Como há meio século atrás, os patrulheiros ocupam a maior parte do seu tempo em tarefas de vigiláncia simples e aleatória, a pé ou em carros-patrulha, embora seja partilhado um idioma da gestao que acredita que os polícias devem “trabalhar por objetivos”, vulgata popularizada a partir dos textos do norte americano Goldstein (1977, 1990). Ou seja, a forqa da rotina e da tradiqao local da vigiláncia social impera nas esquadras. Os objetivos de policiamento nas esquadras resumem-se frequentemente á criado de mais regularidade nas operaqSes stop no tránsito, em rusgas inusitadas e em aqSes que mais do que consequentes seguem uma lógica de somatório de casos (Cunha & Durao, 2011).

Como referi, os planos administrativos ditaram a implementaqao de pequenas equipas de policiamento de proximidade. Ao contrario da maioria dos patrulheiros nas suas rotinas aleatórias, nos quotidianos dos agentes da proximidade a iniciativa de contacto com pessoas para o estabelecimento de uma rede local interpessoal e interinstitucional de relaqSes é um eixo fundamental. Este reorienta os quotidianos de trabalho e é marcado por saberes relacionais e em rede, mesmo quando nao existe um projeto claro do que com eles é visado. Na experiencia social local, os cidadaos sabem distinguir um agente de proximidade de um patrulheiro a pé, pela disponibilidade do primeiro e um certo distanciamento físico prudente do segundo. Nao que existam distinqSes materiais visíveis nos uniformes (ao contrario do que acontece com as brigadas anticrime, por exemplo). O interconhecimento e a forqa da palavra informal - as narrativas e os rumores da cidade criam esse saber partilhado por todos, como diria o urbanista Roncayolo (2003: 62). Por sua vez, a maior parte do trabalho policial de patrulha, quer a pé quer de viatura, envolve muito pouco contacto físico direto, comunicado, interpelado, e reduz ao mínimo as interaqSes entre polícias e cidadaos. Aqui sao cultivados saberes de tendencia atuante e fomentada mais a aplicado da lei do que a resoluqao de conflitos (Durao, 2008b, 2010). Assim, a implementaqao local do trabalho policial a partir da orgánica de esquadra nao redunda necessariamente em um trabalho permanente e sistemático dos agentes, chefes e comandantes junto das populares, mesmo se existem casos pontuais onde o trabalho de aproximando e de comunicando é o eixo mais fundamental (Durdo, 2012; Oliveira, 2006).

A uniformizando dos registos policiais, criando de bases de dados, canais de registo de informando e de denúncias em computador chegou as esquadras portuguesas, em forna, a partir de 2000. Com estas inovanoes rotinizou-se nos agentes a obrigando de registo e participando por escrito num sistema estratégico de informando (SEI), de gestdo e controlo operacional da PSP, que seria efetivamente implementado em 2004. O objetivo foi permitir o controlo e gestdo de toda a atividade operacional diária desta forna policial, incluindo registos de ocorrencias (como furtos, roubos de viaturas e denúncias de todo o tipo de crimes) em que a PSP é chamada a intervir. O reforno da administrando burocrática adquiriu grande peso no quotidiano das esquadras e teve efeitos na contenndo da violencia policial, a ponto dos agentes referirem, em tom irónico: “Hoje a nossa melhor arma é a caneta!” É de notar que a restrindo no uso da arma e toda a inquirindo que se segue a uma operando letal oferece aos agentes portugueses um quadro de constrangimento face ao uso dos seus revólveres. Isso ndo significa necessariamente menos demonstrando de hostilidade face a cidaddos em bairros precários, onde se situa, um pouco por toda a Europa, o nó górdio dos abusos policiais (Fassin, 2013).

Os agentes e chefes registam as ocorrencias por imposindo burocrática, por demanda dos cidaddos que a eles recorrem ou quando testemunham algum crime, ilicitude ou contraordenando. Porém, verifiquei nas minhas pesquisas que uma boa fatia dos autos policiais sdo participanoes simples, muitas quase destituidas de interesse policial. Tentando perceber porque acontecería, os agentes justificaram que esta seria uma forma de se defenderem contra eventuais queixas dirigidas a sua ando por parte dos cidaddos. Ou seja, a burocracia serve para criar casos judiciais, com a aplicando da lei, e serve também para subtrair responsabilidades, empoderando os agentes ou, pelo menos, servindo-lhes de escudo protetor. Este é um dado que, com a devida variando na sua gravidade, podemos encontrar em todas as policias do mundo. Em muitos casos os autos escondem verdadeiros atentados aos direitos humanos.

O que se verifica, após a análise detalhada dos autos policiais de uma esquadra em Lisboa, é que a incisdo se coloca nas formas de narrar, mesmo se os formulários administrativos e informáticos condicionam e enquadram cada vez mais as narrativas policiais da rua. É grande a margem dos agentes para determinar nas suas participanoes focagens mais ou menos abreviadas e instrumentalistas; incriminatórias ou penalizadoras; cognitivas ou explicativas (cf. Durdo, 2008a, capitulo 3).

A organizando é atravessada por um entendimento hierárquico que alimenta o funcionamento do policiamento na prática. Pode dizer-se que toda a intervenndo policial segue uma ordem e hierarquia morais que distinguem entre si as diferentes situanoes nas quais os agentes em algum momento do trabalho vdo ser levados a intervir. Estas oscilam entre a mera desconsiderando e os “bons servinos”. As ocorrencias “sem grande importancia” sdo aquelas com as quais os agentes dizem perder mais tempo do que gostariam, como por exemplo a chamada a uma unidade comercial para registar um furto, o desvio de um toxicodependente da entrada de um prédio ou a guarda de um cadáver. No caso portugués, as situanoes de apoio e assistenciais estdo no centro da atividade policial e ndo vi resistencia em considerá-las como parte integrante do trabalho das esquadras. Entre agentes, o dilema ao lidar com mulheres visivelmente agredidas e seus agressores, com o despejo de familias ou a intervenndo junto de idosos em risco surge muito associado ao lamento do fraco investimento em melhores articulanoes institucionais. A nondo de que a ando policial junto de certas pessoas mais vulneráveis é pouco consequente e até poderá vir a prejudicá-las na sua situando de vitimizando, reflete-se no recuo dos agentes (Durdo, 2013a), o que em boa parte traduz efetivas hesitanoes formais nos canais de um certo tipo de justina (Durdo & Darck, 2013).

Talvez pelo alto nivel de ambiguidade de anoes também elas vinculadas a politicas de governos e de justina hesitantes, os agentes prefiram muitas vezes olhar para dentro, para os que lhes estdo mais próximos -- o que está longe de passar pela produndo de identidades coletivas essencialistas e coerentes, como acreditam os intérpretes do culturalismo policial (Waddington, 2005). Ndo é de estranhar que as ocorrencias consideradas “verdadeiramente operacionais” envolvam o socorro a colegas. Correr atrás de um delinquente ou o controlo físico e orquestrado de um homem alcoolizado e considerado violento, oferece aos agentes o aumento da adrenalina que afasta das suas mentes, momentaneamente, o tédio que lhes invade os dias e as noites de trabalho na patrulha. A obrigaqao de circular, rondar, percorrer as ruas, olhar em volta e escrutinar quem passa é o que se impSe e ocupa as 6 horas de cada turno.

Por fim, os “bons servidos” sao aqueles que conjugam o uso de algum tipo de competencias e a ilusao de que o simples patrulheiro pode almejar chegar perto de uma investigado criminal. Talvez por isso, e por influencia dos heróis policiais mediatizados no cinema e na TV, determinadas detenqSes, sobretudo as mais difíceis de obter, continuam a figurar no topo da valorizado do trabalho policial nas esquadras. A tal nao é alheia a “pressao dos números”, como dizem, na avaliaqao estatística do trabalho que chegou, com o SEI, as unidades e alimenta a competido entre comandantes. Com as mudanzas recentes e maior apelo dos policiamentos voltados para o apoio a cidadaos, esta hierarquia moral das ocorrencias, que continua a tonificar o status quo, pode ser desafiada e reorganizada em alguns momentos por diferentes polícias. É todavia frequente que quanto menos frequentes e mais espetacularizadas sao as intervendes policiais, mais elas tendem a ser valorizadas, sobretudo entre os agentes mais jovens.

O que fazem entao os polícias? Eles e elas classificam. Agentes da investigado criminal e forense categorizam com recurso a parámetros técnicos, também eles nao alheios a subjetividades pessoais. Agentes da patrulha tem, por um lado, a letra da lei e, por outro, uma espécie de moralidade da vida mundana que lhes permite irem criando olhares escrutinadores que partilham nas histórias e anedotas que contam entre si durante o tempo longo que passam juntos sem fazer nada.

Nao é estranho observar que um jovem agente de pouco mais de 20 anos, no comeqo da carreira em esquadras de Lisboa, por onde a maioria se aventura na profissao, consiga circular com alguma facilidade em bairros desfavorecidos e desenvolva todo um interesse e curiosidade por pequenos delinquentes. Há todo um imaginário em volta do pequeno traficante de rua, do pequeno larápio de supermercado ou do burlao de bairro de olho fixo nos vulneráveis idosos. Os nomes destes habitantes das ruas, e os seus hábitos, sao familiares aos agentes que se demoram mais anos numa mesma unidade de esquadra. Nao é igualmente estranho que o mesmo agente se veja invadido por um imenso stress ao ter de abordar e autuar um condutor num carro de luxo, mesmo que o mesmo cometa graves infraqSes no tránsito que justificam e legitimam inteiramente a interpelado policial. As “pessoas com poder”, que ousam desafiar a autoridade policial, podem significar o terror dos polícias. Uma denúncia formalmente aberta dirigida a um agente pode significar vários anos de interrupqao da sua progressao. Conheci alguns agentes nessa situado. Muitos tem histórias para contar de jornalistas, advogados, juízes que os desconsideraram em algum momento. Isto é, a autoridade e o poder sao negociaqSes situacionais que extravasam a propriedade e o monopólio da lei e que nas retóricas sociais e nas experiencias vividas pelos indivíduos e grupos habitam o Estado Nado, como diria Herzfeld (1997).

Uma grande categoría de pessoas, olhada como inocente aos olhos dos agentes, pode figurar entre “aqueles que é preciso apoiar”. Sao sobretudo os idosos e as crianzas e, de um modo marcado pela impotencia, as mulheres vítimas de violencia conjugal ou doméstica (Durao, 2013b). Aliada a crescente popularidade dos programas de policiamento de proximidade locais surge uma nodo, difusa mas muito presente no universo das esquadras, de que a sociedade está em progressiva fragmentado e que os polícias podem figurar entre os últimos bons samaritanos. Muitas campanhas de promodo institucional promovem esta mesma ideia, procurando conquistar a simpatia do “público”, isto é, de uma boa parte da populado, desviando a atenqao face a abusos de autoridade ou mesmo violencia indevida (cf. Fassin, 2013).

Por tudo o que foi dito, compreende-se melhor agora porque afirmo que os agentes nas esquadras nao sao um corpo profissional unitário, mas sim um subgrupo profissional plural e diverso. O mesmo nao significa dizer que as biografías sociológicas nao tem uma certa padronizaqao. As esquadras chegam os chamados “maqaricos”, os novatos. Em alguns anos eles “conquistam” o difícil e atordoante trabalho das ruas. Passam a ser agentes experientes quando comeqam a destacar-se dos mais jovens recrutados e a ter um papel na integrado destes. Por fim, em dez ou quinze anos muitos evidenciam já a fadiga e esgotamento moral, em grande medida provocados pela situaqao de deslocamento regional e da familia em que trabalham. Nao é assim de estranhar que a PSP reserve nas suas secretarias e unidades administrativas funqSes para agentes e chefes que cedo acusam o “cansado das ruas”.

Sao os agentes mais experientes, mesmo que minoritários nas esquadras das grandes cidades, com grande rotatividade de pessoal, que marcam o compasso e o ritmo das unidades. Sao também, em grande medida, responsáveis pelas classificaqSes que circulam sobre os estilos de agentes. Vejamos, por fim, algumas destas categorías emic que me foram sendo relatadas por vários agentes. Os“polícias-operacionais” (ou verdadeiros operacionais) conhecem em geral os limites do mandato, mas exploram as extensSes do seu trabalho. Podem ser mais dados a usar a forqa mas em geral conjugam-na com dotes de negociaqao. Os “polícias-malucos” sao os que agem no calor dos acontecimentos e podem representar um risco para os comandantes e colegas, mas sao difíceis de controlar. Diz-se que procuram “combater-o-crime” a todo o custo, por vezes o da própria vida. Os “polícias-duros” sao, ao contrário dos malucos, figuras algo ridicularizadas nas esquadras. Sao considerados inadaptados á vida de agente por falta de flexibilidade e poder de negociaqao da autoridade, condimento básico do famoso e reconhecido “bom senso policial”. Os “polícias-baldas” sao os que se diz evitarem trabalhar sempre que podem e, como tal, o seu estilo é desvalorizado. Podem também ser denominados cabides, portadores de uma farda que nao honram. Os “polícias-certinhos” sao aqueles que, nos últimos anos, comeqaram também a povoar o universo das esquadras. Muitos passaram por cursos académicos mas viram as suas ambiqSes profissionais frustradas pelo estreitamento do mercado de trabalho. Estes desenvolvem uma visao mais humanitária da sua atividade, mas nao escondem o receio em avanzar nas situaqSes que requerem o exercício inequívoco da autoridade e da forqa. O termo “certinho” pode ser usado num sentido positivo, determinando estilos dos que seguem mais de perto os limites da lei. Mas estes podem identificar-se como pessoas que “nao gostam de bater” e, ao serem considerados demasiado “pacíficos”, sao também desconsiderados pelos agentes que promovem um ethos masculino na profissao.

Conclusoes

Porque defender combinares do método etnográfico e análise documental para o entendimento dos meios policiais e, mais particularmente, no policiamento emanado a partir de unidades organizacionais próximas dos cidadaos? Através de detalhadas, densas e demoradas etnografías em esquadras da PSP, e nas ruas das cidades, é possível descrever dimensSes da vida social que se escondem ao olhar de outros estudiosos. Este texto procurou evidenciar como as negociares quotidianas, os dilemas organizacionais vividos por polícias e a ambiguidade característica do mandato policial tem hoje expressSes práticas e moralidades dominantes. Sao os agentes e chefes, homens e mulheres, quem na linha da frente medeia entre a lei e a rua, de resto com uma considerável latitude e discricionariedade. Mas, além disso, e mais vezes do que seria desejável, estes profissionais podem sentir-se tentados a reproduzir, na aplicaqao da lei, a aleatoriedade característica e dominante da patrulha tradicional de vigilancia simples, vigente hoje um pouco por todo o mundo. O policiamento de proximidade, embora com dinámicas locais inovadoras e revolucionárias, enquanto projeto transformador da organizaqao policial e das rela^Ses com os cidadaos, tende a ser constantemente adiado para um futuro sempre distante (Durao, 2012).

Foram relatados aspetos centrais da constituyo e coerencia arquitetural da instituyo policial em Portugal. Todavia, quando atravessada pela dinámica, a sua solidez é posta á prova. O exemplo da sobrevivencia de um regulamento do período histórico autoritário do Estado Novo e seu regime autoritário numa prática que se pretende democrática é um dado evidente das contradiqSes que atravessam hoje a Polícia de Seguranza Pública. Para reavivar apenas um entre muitos exemplos possíveis das ambiguidades vividas pelos agentes, embora idealmente se reclame do policiamento de esquadra um servido orientado para os cidadaos, os mesmos agentes que ali trabalham sao frequentemente destacados e incluídos em operaqSes de controlo de multidSes ou guarda de complexos desportivos. Na prática, o trabalho policial tem de ser realizado por um grande contingente de pessoas administrado como um coletivo de funcionários subalternos que acaba por nao ter um treino e especializa^ orientada e qualificada para o servido público de atendimento ao cidadao. Nao é assim de estranhar que muitas das configurares da atividade girem em torno da ideia de um certo domínio das ruas como um espaqo de liberdade de expressao, de liberdade profissional, e muitas vezes coerciva, dos agentes, mantendo-se esses mesmos agentes muito contidos e constrangidos no plano da estreita divisao organizacional de poderes. As tensóes descritas entre os planos da atividade e organizado policiais nao sao fruto de uma contradigo. Estas sao antes o resultado de uma transido demorada e hesitante dos modelos de policiamento, nomeadamente de proximidade, nos anos de instaurado da democracia.

As ambiguidades do mandato policial expressas na prática profissional e, também, no desenho institucional histórico, estendem-se a outras forqas de seguranza, como é o caso da GNR e, até certo ponto, os guardas prisionais (Cunha, 1994, Roseira, 2014). Ao mesmo tempo, sao essas mesmas ambiguidades que permitem entender resistencias e hesitaqóes de chefias das polícias face ao avanqo de programas securitários, como a videovigiláncia e outros, que possam por hipótese colocar em causa o seu monopólio da seguranza nos estados nacionais (Fróis, 2011).

A etnografía fornece dados para a ampliado do entendimento, no seio do quadro das ciencias sociais, de práticas de profissionais que orientam a sua aqao na aplicado ou no recuo da aplicado da lei num contexto mais amplo de estilos de policiamento em mudanza. Para fornecer apenas uma ilustrado final, para um comandante torna-se evidente a dificuldade em convencer um agente colocado numa esquadra onde nao se sente acolhido, ali deslocado da sua regiao de origem, a intervir numa situado de rixa entre jovens negros do sexo masculino, procurando mediar conflitos entre cidadaos a viver em bairros de migrantes na periferia de Lisboa. Esse agente vai ser invadido, no mínimo, por sentimentos de indiferenqa, quando nao de resistencia ou raiva, seguidos do ímpeto de reagir com uma medida coerciva, e por vezes letal, dirigida a jovens que considera impetuosos, insolentes e sem direitos (Durao, 2011; Fassin, 2013). Entender toda a dimensao da ambiguidade eminente na intervendo policial hoje nao significa desculpá-la e evitar uma discussao ética sobre as consequencias do uso da forqa ou recuo em nome do estado em sociedades plurais. Todavia, um tal caminho fica facilitado após a defesa de um método de investigado aberto, com objetivos descritivos claros e uma hermenéutica científica consistente e bem documentada que o apoie.

BIBLOGRAFÍA

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Bittner, Egon (1970). The Functions of the Pólice in Modern Society. Washington DC: National Institute of Menthal Health. [ Links ]

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Cunha, Manuela Ivone (1994)Malhas que a Reclusao Tece. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários. [ Links ]

Cunha, Manuela Ivone e Susana Durao (2011).“Os Sentidos da seguranza: Ambiguidades e redudes”, En: Etnográfica. Revista do CRIA, dossier temático: Ambiguidades contemporáneas da seguranza. Para um olhar de perto, Vol. 15 (1), pp: 53-66. [ Links ]

1 Para escrever este e outros textos, contei com o apoio da Fundagao para a Ciencia e a Tecnologia em Portugal que gentilmente financiou projetos que coordenei durante o período de 2001 a 2013.

3Destaco aqui os vários apoios da Fundanao para a Ciencia e a Tecnología ás pesquisas que tenho conduzido e coordenado sob a forma de projetos coletivos, destacando-se o mais recente, em curso: COPP-LAB, Circulanoes de Polícias em Portugal, África Lusófona e Brasil (PTDC /IVC - ANT/5314/2012).

4A DN integra vários órgdos superiores de consulta (conselho superior de polícia, conselho superior de deontologia e disciplina, comissdo de explosivos). Hoje esta instancia de decisdo possui gabinetes que estdo diretamente dependentes do diretor nacional (entre eles a inspendo-geral, estudos e planeamento, consultoria jurídica, deontologia e disciplina, informática, comunicando e relanoes públicas, relanoes exteriores e cooperando, assistencia religiosa). A DN possui ainda diversos departamentos organizados para superintender áreas específicas como as operanoes e seguranna (operanoes, informanoes policiais, armas e explosivos, comunicanoes), os recursos humanos (formando, saúde e assistencia na doenna, apoio geral), a logística e finannas (equipamento e fardamento, obras e infraestruturas, material e transportes, gestdo financeira e patrimonial).

5Informagoes sobre o PIPP estao disponiveis em: http://www.psp.pt/Pages/programasespeciais/ pipp.aspx?menu=1 (última consulta em 6 de Janeiro de 2015).

6Este refere-se a um modelo que ficou oficialmente conhecido por “divisoes concentradas”. Na primeira metade dos anos 1990, pela mao de um governo social-democrata, foi experimentada uma gestao do policiamento inspirada por modelos de resposta operacional á inglesa que comegaram a ter lugar na era Thatchter (1979-1990). O novo modelo de policiamento mais orientado para o cidadao, desde Costa, teria arquivado na história o modelo organizacional das referidas superesquadras. Hoje, em Portugal, modernidade confunde-se com proximidade e proximidade confunde-se com policiamento de esquadra de bairro.

2rofessora Permanente da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP (Sao Paulo, Brasil). Instituto de Filosofía e Ciencias Humanas, Departamento de Antropología. ssbdurao@gmail.com

Recebido: 12 de Janeiro de 2019; Aceito: 10 de Junho de 2019

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