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Mundo agrario

On-line version ISSN 1515-5994

Mundo agrar. vol.13 no.26 La Plata June 2013

 

ARTICULOS

Autonomia e hierarquia em duas comunidades de escravos: os casos George (Alabama, Estados Unidos, 1847) e Lino (Vassouras, Brasil, 1871)

Fábio Pereira de Carvalho

Professor da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, mestre Universidade Federal Fluminense, Brasil
fabio_pcarvalho@yahoo.com.br

Autonomy and hierarchy in two slave communities: the cases of George (Alabama, United States, 1847) and Lino (Vassouras, Brazil, 1871)


Resumo

Este artigo procura argumentar que a busca de autonomia entre escravos necessariamente criou hierarquias dentro da comunidade onde estavam inseridos. Através de dois casos em comparação, de George nos EUA e de Lino no Brasil, procura-se investigar uma noção de comunidade de escrava construída pelos próprios atores sociais que dela fizeram parte.

Palavras-chave: Escravidão; Comunidade Escrava, Micro-história; Processo-crime. 

Abstract

This article seeks argue that the search for autonomy among slaves necessarily created hierarchies within the community where they were inserted. Through two cases compared, George in U.S. and Lino in Brazil, seeks to show that a notion of slave community was built by the social actors who were part of it.

Keywords: Slavery; Slave Community; Micro History; Criminal Proceeding.


1. Grato pela oportunidade de escrever-lhe: George Spikwith

Fazenda Hopewell, 8 de julho de 1847 (1) .
Senhor,
Eu escrevi para você no dia 15 de junho dando uma verdadeira declaração das culturas, cavalos, porcos e galinhas, mas lamento que terei de lhe escrever principalmente sobre outros assuntos. Eu tenho uma boa colheita na mão para você, ambas de algodão e milho. Isso você sabe não poderia ser feito sem trabalho duro. Eu tenho trabalhado o povo, mas não fora da razão, e eu não tenho chicoteado um sem causa. As pessoas que eu corrigi eu lhe direi seu nome e suas faltas.
Suky (2) que eu coloquei para plantar algum milho e depois dela ter estado lá tempo bastante para ter concluído, eu fui lá e ela mal tinha começado. Eu lhe dei quatro ou cinco chibatadas sobre sua roupa. Eu dei em Isham duas chicotadas para encobrir o algodão com o arado.
Coloquei Frank (4), Isham, Violly (5), Dinah (5), Jinny (7), Evelina (8) e Charlotte (9) duas vezes seguidas para colher o algodão, e num dia razoável de trabalho eles devem lavrar sete acres, e em meio dia eles não tinham feito mais do que um acre e meio e eu dei-lhes dez chicotadas sobre suas peles. Eu dei em Julyann oito ou dez chicotadas por ter esquecido a enxada. Foram estes todos os que eu castiguei do momento em que eu lancei a safra até nós começarmos a cultivar aveia. Eu coloquei Shadrack (10), Robert (11), Armstead (12), e Frank para cultivar. Eles começaram na sexta-feira, mas eles não fizeram mais do que colocar sal nos seus pães, mas na manhã seguinte eu saí de lá e esperei até o fim do café-da-manhã, e vi que a chicotada que eles tiveram, e eles estavam prestes a fazer um bom dia de trabalho. Eu os deixei então e fui até os que trabalhavam com a enxada, marcando os buracos que eles estavam fazendo enquanto eu estava lá. Quando eu voltei meio dia, eles tinham cavado dezenove buracos, e isso não levaria para eles mais do que dez minutos para cavar um. Como Shadrack era o líder entre eles, eu disse essas palavras para ele: vocês não pretendem cortar esta aveia até que eu chicoteie cada um de você. Shadrack não disse nada comigo, mas Robert disse que sabia quando eles trabalhavam. Eu lhe disse para calar a boca e se ele dissesse outra palavra eu chicotearia imediatamente, mas ele falou de novo que ele não tinha medo de ser castigado por nenhum homem. Eu fiz-lhe um corte com o chicote. Ele então ele lançou ao chão sua enxada, e fez um juramento e disse que tinha de bom grado morrer ou viver e disse que não pretendia ficar aqui. Então ele tentou tirar o chicote de minha mão, mas eu o peguei rápido pelo pescoço e o segurei. Eu então disse aos outros rapazes para açoitá-lo e eles fizeram isso. Eu castiguei-o até ele ficar bem impassível, mas eu estava enganado pois assim que eu o deixei e fui até os que estavam cavando, ele foi para a casa de nosso pastor (13) e de sua família porque ele sabia que eles o protegeriam e em sua malandragem, porque tinha ouvido que eles tinham dito que eles estavam trabalhando para a morte, e que eles teriam mais chances para viver se fossem cães ou porcos. O pastor não disse nada para mim sobre ter castigado Robert nem para o senhor John, mas foi para o local de trabalho e conversou durante horas com os negros. Eu não sei o que esta conversa foi para eles, mas ele perguntou ao Dr. Webb o que era bom para um negro que foi chicoteado quase até a morte, e ele tinha muito a dizer sobre isso. Dr Webb viu que esta conversa era calculada para encorajar o povo a se rebelar contra mim, e ele foi e conversou com senhor Jonh sobre o que ele tinha escutado e senhor John levou aqui para ver se ele foi punido no modo que ele tinha escutado, mas tão logo o doutor pôs a mão nele, ele disse a senhor John que não havia nada a se preocupar com ele. Mas John então mandou-o trabalhar e lhe disse que ele não teve o que seu crime merecia, e que em algum momento ele desejaria fazer isso e então saberia se comportar corretamente. Ele andava pela terra e viu o que eles tinham feito e ao invés de me corrigir ele disse que eu deveria ter dado em outros três a mesma coisa.

Eu não tenho espaço para escrever como eu gostaria. Vou informá-lo na próxima carta sobre as construções de cercas que tem sido feitas. Então você pode julgar para onde eu tinha tempo ou não. Eu tenho ainda muito a escrever que encheria outra carta. Temos os nossos cultos familiares toda a manhã. Acredite em mim como seu servo.

Antes de interpretar a carta acima de George Spikwith endereçada ao seu senhor no Alabama (EUA) em 1847, deve-se fazer algumas considerações a cerca da escravidão nos Estados Unidos, e em particular sobre o sul. Posteriormente, em comparação com o caso de Lino em Vassouras (Brasil) em 1871, o artigo se propõe a entender como os escravos organizaram suas vidas em comunidade.

A escravidão nos Estados Unidos, ou nas treze colônias britânicas da América do Norte, existiu desde tempos coloniais, antes da independência em 1776, e persistiu até o fim da Guerra Civil, em 1865. No começo do século XIX, a maioria dos senhores de escravos estavam no sul dos Estados Unidos, onde os escravos trabalhavam em grandes plantations, especialmente as dedicadas ao algodão, açúcar e arroz. Em 1860, a população escrava dos Estados Unidos estava estimada em 4 milhões de pessoas. O tráfico de escravos já havia sido abolido em 1808. A partir deste momento, o tráfico interno - possuía grandes mercados como New Orleans - de escravos contribuiu substancialmente para alimentar as grandes plantations. Os estados da Virgínia, Carolina do Sul e do Norte, são de longe que possuíam os maiores contingentes de escravos, sendo que a Carolina do Sul possuía 107 mil escravos em 1790 e em 1860, 400 mil escravos. No estado do Alabama, próximo á Carolina do Sul e Geórgia, a escravidão no período em questão alcançou mais de um terço da população, e em 1861, os seus 435 mil já se configuravam 45%.

Por conseguinte, a proibição da importação de escravos não significou fim da escravidão. Mesmo sem tráfico, a escravidão floresceu: em 1845 a escravidão já havia chegado a 15 estados, do sul ao oeste. A constituição federal não colocou obstáculos à escravidão, pois considerou a escravidão como instituição local, que deveria ser proibida ou protegida de acordo com os desejos dos estados individualmente (Stampp,1984, p. 25).

Em 1830, a agricultura sulista voltou a ter a vitalidade que desde o período colonial não tinha. Os escravos tornaram-se parte vital desta economia. De grande importância para o modo de vida sulista, a escravidão foi cristalizada por leis que a definiram mais precisamente. Nem só de escravos e senhores, entretanto, vivia o sul. Outro grupo era a dos yeoman, pequenos proprietários independentes que praticavam uma agricultura familiar e, na maior parte do tempo, voltada para a subsistência. Esta porção girava em torno de quase à metade da população do sul.

A dispersão geográfica dos grandes fazendeiros e dos escravos não era uniforme. Poucos escravos - provavelmente não mais do que dez por cento - viviam em cidades. Embora Virgínia tivesse mais escravos do que qualquer outro estado, a maioria - 2.312.000 - vivia em sete estados do Deep South (16). A proporção de escravos no total da população estadual variava de 57% na Carolina do Sul a 1,5% em Delaware (Stamp, 1984, p. 32). Até mesmo no Upper South havia localidades em que os escravos estavam em maior número que os livres.

O senhor de George Spikwtih, John Hartwell Cocke, era um desses senhores de escravos que possuíam muitas propriedades no sul dos Estados Unidos, principalmente no Deep South. Nascido na Virgínia, numa das famílias mais ricas do Estado, sua extravagância era visível em suas construções, nas escolas e capelas que mantinha em suas propriedades, que deveriam simbolizar seus valores de boa ordem e senso de nobreza. A principal contribuição de Cocke para a reforma da agricultura do sudeste dos EUA foi sua campanha contra o cultivo de tabaco, uma cultura que exauria o solo e necessitava de muitos escravos para se realizar (Miller, 1990, p. 25). Além disso, também encampou uma luta contra a bebida alcoólica. Como reformador conservador acreditava que a benevolência e a vida cristã garantiriam a ordem social republicana contra os excessos da democracia (Miller, 1990, p. 26). Para reformar o país transformando-o em uma nação protestante homogênea, os escravos eram o problema central. Para ele e seu grupo não era possível que as "duas raças", como se costumava dizer nos Estados Unidos do século XIX, continuassem juntas. Assim como Thomas Jefferson, defendia a tese da colonização negra americana na África. Através deste mecanismo, Cocke e seu grupo pretendiam livrar paulatinamente o sul dos Estados Unidos da escravidão, o que provocou a ira de outros proprietários de escravos.

Para Cocke, a emancipação escrava deveria ser precedida de uma educação, voltada principalmente para os preceitos cristãos. Em uma de suas plantações, no Alabama, ele selecionava aquele que poderia desempenhar um papel importante em seu projeto de colonização da Libéria, e a família de Skipwith foi uma destas. Foi, portanto, um dos que mais incentivara a diferenciação entre os escravos, já que na Libéria os escravos emancipados poderiam finalmente ter acesso às terras, como demonstram as cartas de Peyton Spikwith, irmão de George.

George Spikwith foi um excepcional escravo, não somente em virtude do seu status como um escravo-feitor. Ele e alguns outros escravos nesta fazenda no Alabama faziam parte de um grupo selecionado por John Cocke para ser preparados e enviados à Libéria, como livres. Mas muitos anos se passariam antes que isso acontecesse, o que possibilita que sejam observados dentro da escravidão (Owens, 1977).

A família Spikwith realmente viu nas oportunidades estimuladas pelo seu senhor uma forma de dar moldes a sua própria escravidão: Peyton foi para a Libéria e mandava cartas constantemente a seu ex-senhor; Lucy se casou com um homem livre branco - depois de ter filhos com escravos - e era professora de religião na fazenda Hopewell, um cargo que era central para o projeto de seu senhor John H. Cocke, e George foi o feitor de escravos da sua fazenda de 1847 a 1849, quando o álcool e a competição com o feitor branco Elam Tanner, finalmente o tiraram do cargo. Na Primavera de 1850, George Skipwith foi gravemente ferido em uma briga, depois de ter consumido álcool. Como havia sido proibido por seu senhor de se embriagar, foi afastado de qualquer papel de supervisão sobre a plantação e, em 1851, retirado da plantação para proteger aos escravos de Hopewell de sua "depravação radical." George Skipwith foi enviado com sua esposa, Mary, e seu jovem filho para uma plantação de Mississippi, onde viveu até depois da Guerra Civil (Miller, 1990).

Em seu livro, Das cores do silêncio, Hebe Mattos se posiciona em relação à comparação entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos.  Para ela o tráfico interno de escravos no Brasil teria modificado tanto a escravidão na segunda metade do século XIX que teria engendrado um modo particular de experiência escrava, marcada pela possibilidade de venda a qualquer hora(17). Ora, o que pretendo mostrar é que a comparação entre as fontes e a historiografia americana e brasileira pode sim ser relevante para o estudo da escravidão, aqui principalmente quanto ao problema da definição do que seria uma comunidade de escravos - contrariamente ao posicionamento de Mattos (18).  Assim como para Peter Kolchin, entendo que a perspectiva comparativa pode ajudar muito a colocar luz sobre a natureza da comunidade escrava e combater o mito de "uma comunidade escrava utópica" (Kolchin, 1983, p. 581), sem conflitos internos e homogenia.

Se formos olhar como um todo a carta do dia 8 de julho de 1847, toda a violência empregada pelo feitor George contra os escravos da fazenda, nos inclinaríamos a ver a escravidão como a historiografia norte-americana e brasileira o fez nos anos 1950 a 1970. Para Kenneth Stamp, Stanley Elkins e Franklin Frazier a injustiça de três séculos de escravidão teria causado distorções estruturais na vida do negro americano, transformando-os simples objetos da opressão senhorial. Para Frazier, em seu livro The negro family in the United States (1939), a camada urbana de negros pobres vivia em comunidades em que não havia qualquer instituição, nas quais a família tinha perdido sua coesão interna (Gutman, 1977, p. 20). A mesma interpretação do escravo vitimizado pelo chicote aparece entre os intelectuais formados por Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, que adotaram a mesma perspectiva de patologia para os escravos no Brasil. Não por acaso, as visões sobre a violência da escravidão estavam sendo discutidas no Brasil e nos Estados Unidos quase que simultaneamente, uma vez que as interpretações dos dois países acerca da escravidão estiveram em diálogo desde Frank Tannembaum (Slave and citzen, 1946) e Gilberto Freyre (Casa-grande & Senzala, 1933) (Viana, 2007).

Entretanto, não deixando de enfatizar o lado violento do conflito feitor e escravo, também podemos entrever que de forma alguma esses escravos se mostraram patológicos ou passivos diante dessa violência. Isto se torna visível quando Robert, um dos escravos castigados por George, não somente o enfrentou, tentando tirar o símbolo de seu status, o chicote, como foi buscar proteção entre um influente homem dentro da fazenda, o reverendo Isaac Taylor, contratado pelo senhor e que não gostava das atitudes de George. É dessa forma, mostrando que os escravos foram capazes de forçar uma negociação com senhores e feitores, mesmo sabendo que não eram iguais (a negociação não depende da igualdade entre as partes), e não raras vezes tiveram força para impor suas visões de mundo. É o que tem sido enfatizado pela historiografia brasileira e norte-americana, desde os anos 70 para esta e desde os anos 80 para aquela. Nos Estados Unidos, o modelo de "escravo-coisa" começou a ser revisto a partir dos anos 1970 e 1980. A partir de novos documentos, e principalmente novos olhares sobre velhos documentos - como folclore negro, autobiografias de ex-escravos, história oral, dados estatísticos e entrevistas feitas em 1930 pela Federal Writers' Project na administração de Franklin D. Roosevelt -, os historiadores passaram a se preocupar com a experiência dos escravos. Longe de vê-los como vítimas, autores como John Blassingame (The Slave Community), Eugene Genovese (Roll, Jordan, Roll), Leslie Howard Owens (This species of property), Hebert Gutman (The Black Family in Slavery and Freedom), Elizabeth Fox-Genovese (Within the Plantation Housewife), passaram a frisar a autonomia e as negociações dos escravos, mesmo em uma situação assimétrica de poder. Do mesmo modo no Brasil, a mesma interpretação passou a ser enfatizada com os trabalhos de Silvia Lara (Campos da Violência), João José Reis e Eduardo Silva (Negociação e conflito), Célia Maria M. Azevedo (Onda negra, medo branco), Sidney Chalhoub (Visões da liberdade), Hebe Mattos (Das cores do silêncio), Robert Slenes (Na senzala uma flor), Flávio dos Santos Gomes (Histórias de quilombolas), dentre outros.

O primeiro ponto a ser discutido com relação ao relato do feitor-escravo George Spikwith é a sua posição ambígua. Tal tipo de relação foi analisada por Hebe Mattos:

Espera-se do escravo feitor que sua solidariedade aos interesses senhoriais se sobreponha à possível identidade com seus parceiros. Conferem-se-lhes privilégios (até mesmo o porte de armas). E espera-se, ainda, que consiga, na sua condição, obter a colaboração e o respeito dos demais escravos. O que pressupõe que não apenas a vontade do senhor, mas também as diferenciações internas dentro dos plantéis atuaram na seleção destes cativos especiais. (...) Sobre uma comunidade cativa previamente construída e relativamente diferenciada, cria-se, de fora, uma hierarquia que busca atender aos interesses senhoriais. O resultado deste procedimento pode-se supor que, em geral, foi uma maior eficiência dos serviços. Do contrário, não se justificaria esta opção. Em seu potencial de conflito, entretanto, nem sempre o que prevaleceu foram as dissidências entre os cativos hierarquicamente separados. (Mattos, 1998, p. 132).

Partindo da mesma noção que esta autora enfatizou, de que a diferenciação interna das comunidades de escravos foi um fator essencial de sua constituição e que "qualquer identidade construída apenas com base na homogeneidade conferida pela condição cativa não ultrapassava a visão senhorial que lhes era imposta" (Mattos, 1998, p. 131), temos que o escravo-feitor simboliza bem os dilemas internos dessas comunidades: afinal eles estavam entre a comunidade na qual se inseriam e, ao mesmo tempo, ao buscarem se diferenciar dos outros, e conseguir privilégios, servia como um instrumento da política dos senhores para um melhor do controle sobre seus escravos (Owens, 1977).

Robert Slenes também chega a discutir a situação do escravo como feitor. Mas o via juntamente com "aqueles que mais trilhavam o caminho do favor", e por isso "internalizavam valores de dependência e aproximação aos senhores, distanciando-se de seus parceiros; e se estes olhavam para aqueles como traidores" (Slenes, 1999, p. 278). Esta visão, também levantada por toda uma historiografia norte-americana que discutiu a assimilação ou resistência remonta aos estudos de Sidney Mintz e Richard Price. Entretanto, a discussão se os escravos internalizaram ou não valores dos senhores, aqui não é o mais importante. Os escravos especializados ou qualificados, sendo o feitor-escravo é o exemplo mais nítido, necessitavam tanto de uma legitimidade dentro da comunidade escrava quanto dos senhores de escravos. Como sublinha o próprio Slenes: "se havia tensões na comunidade cativa, (...) a própria vivência no cativeiro - a insegurança de vida e a necessidade de escravos domésticos e qualificados sempre terem de mediar, como Jerônimo, os (des)encontros entre senhor e trabalhador - teria dificultado a abertura de um fosso intransponível entre subalternos favorecidos e não favorecidos" (Slenes, 1999, p. 282).

Entre a historiografia norte-americana, alguns autores também pensaram sobre este dilema. Para Carolyn Fick, em trabalho sobre a revolução haitiana, os feitores negros tiveram um papel de liderança durante o processo revolucionário. A relação entre eles e os escravos poderia ser harmônica, e se tornaram líderes dessas comunidades de escravos rurais. Segundo a autora: "na área de liderança, um fator constante durante toda a revolução foi o papel especial e essencial do feitor. Geralmente, os escravos seguiram suas decisões ou diretrizes para se rebelar" (Fick, 2004, p. 224).

Sem dúvida, entre os escravos rurais, aqueles que eram feitores possuíam mais privilégios. Obviamente, eles mantinham sua posição se conseguia extrair trabalho dos outros escravos. Entretanto, as respostas dos escravos aos feitores escravos dependiam do contato entre eles. Para ser um eficiente feitor, o cativo tinha que trilhar um caminho entre o senhor e os escravos, servindo ambos sempre que podia. Geralmente isto não era possível, levando a um confronto ou com os senhores ou com os escravos (Owens, 1977, p. 121).

Um sábio escravo-feitor entendia que ele ganhava a confiança ou a inimizade dos seus companheiros a partir de suas associações com eles na vida privada, tanto quanto nos campos. "Dentro da sombra da plantation uma variedade de acordos foram feitos para ajudar a aliviar as condições de escravidão" (Owens, 1977, p. 125), é o que afirmou Leslie Howard Owens, em This species of property, quando analisa os escravos-feitores, de grande importância para a comunidade escrava. Essas ligações entre os escravos-feitores e os próprios escravos eram possíveis, em grande medida, porque muitos senhores deixavam vários tipos de assuntos para os feitores resolverem. Aí entrava em cena a negociação que este poderia fazer entre os escravos. Esta negociação também não era horizontal, como não era em relação aos senhores, já que os escravos-feitores tinham um status elevado entre a comunidade e para os senhores. O que não quer dizer que sempre conseguiam impor suas vontades: ele vivia em uma situação delicada. Se abusasse do seu poder, poderia além de perder o cargo de feitor (como aconteceu com o próprio George), mas também poderia perder as alianças feitas dentro da senzala. De fato, alguns escravos que eram depostos do cargo de feitor, segundo Owens, tentaram o suicídio. Isso mostra como eles enxergavam a si próprios: como diferentes dos escravos do eito.

Outrossim, pode-se ressaltar da carta de George para seu senhor John H. Cocke é que seus conflitos com os escravos, principalmente com Robert, evidencia uma comunidade de escravos dividida em dois grupos de poder: um liderado pelo feitor escravo George, outro pelo reverendo Isaac Taylor. É nítido que o grupo de George, que incluía o Dr. Webb, estava perdendo espaço e legitimidade entre os escravos, enquanto o reverendo Taylor passava a ser uma referência para os escravos dentro da fazenda Hopewell. Vale enfatizar, que estes dois grupos opostos não se enfrentaram diretamente naquele dia, por mais que depois da reunião com os escravos do eito, Taylor tenha procurado Dr. Webb para perguntar "o que era bom para um negro que foi chicoteado quase até a morte, e ele tinha muito a dizer sobre isso".  Segundo George: "Dr Webb viu que esta conversa era calculada para encorajar o povo a se rebelar contra mim". O que não aconteceu já que a autoridade do escravo-feitor George Spikwith fora reabilitada pelo "senhor John", vizinho e parente distante do proprietário e administrador de Cocke durante muito tempo, que disse aos escravos que o castigo tinha sido merecido. Entretanto, sabemos que George foi "deposto" de seu cargo alguns anos depois - e quem sabe o grupo do reverendo não teria sido grande responsável por isso? - numa clara disputa entre ele e o feitor branco Tunner.

2. O caxambu da Baronesa

O dia 21 de março de 1872 parecia especial para os escravos da fazenda do Secretário, na época de propriedade da Baronesa de Campo Bello, viúva do Barão de Campo Bello, Comendador Laureano Corrêa e Castro. Haveria caxambu, autorizado pela baronesa dias antes, enquanto a notícia circulava entre os escravos das fazendas próximas. Provavelmente, foi numa dessas conversas que Lino descobriu que a festa teria lugar em outra fazenda de sua senhora. Imaginaria, por conseguinte, a lenha empilhada no terreiro de secagem, um casal de tambores - às vezes acompanhado de um terceiro tambor ou "chamador" - ocupando um lado da fogueira, e negros idosos de outro, africanos como ele, os macota ("pessoas da África, pessoas sábias"). Lembraria, com certeza de outros caxambus que havia participado, dos percussionistas no período de aquecimento dando o ritmo com a palma da mão, ensaiando com os tambores acompanhantes, enquanto os jongueiros cantarolavam os versos para si mesmos e para os percussionistas. E o rei e a rainha do caxambu, quem seriam? O boato ouvido por Lino provavelmente já lhe dava os nomes, ao mesmo tempo em que na sua cabeça imaginava acompanhamento do nguízu (nos pulsos e tornozelos) dos monarcas. Os participantes primeiro cumprimentariam o rei e beijariam sua mão. Em seguida o rei começaria o caxambu. Vestido com uma roupa de flanela vermelha e um chapéu com uma cruz, o rei entraria na roda e, aproximando-se dos tambores de maneira respeitosa, ajoelhar-se-ia com a cabeça inclinada e cumprimentá-los-ia (o maior era o caxambu, o menor candongueiro). De pé, cantaria as duas linhas enigmáticas do jongo, os tambores percutindo na batida enquanto outros escravos repetiriam o refrão, batendo palmas e entrando na roda(19).  Lino sabia de tudo isso, e parece não ter sido coincidência que justamente neste dia, 21 de março, teve que levar azeite de sua fazenda, a do Retiro, para a do Secretário. "Deixou-se ficar no brinquedo", como ele mesmo ressaltou(20).  Foi lá que encontrou Felix, horas antes de assassiná-lo no seu quarto na senzala.

Como afirmou João José Reis, as festas foram vividas pelos escravos de diversas formas e para diversos fins, desde rituais de identidade étnica, solidariedade até competição entre os próprios escravos e contra os livres. E para conseguirem festejar tiveram que negociar com os detentores de pequenos e grandes poderes (Reis, 2002). É bem nítida a denúncia do promotor público, contrário a divertimentos nas senzalas:

O Promotor Público da Comarca (...) denuncia perante V. S. o escravo Lino, pertencente à Baroneza do Campo Bello, o qual em conflicto com um parceiro de nome Felix na fazenda do Secretario às 11 horas, mais ou menos, da noite do dia 2 do corrente  produzio no mesmo os ferimentos constantes do auto de corpo de delito (...), em vistas  dos quaes ferimentos falleceo o offendido às 6 horas da tarde do dia 5 (...). As testemunhas afirmão a embriaguez do denunciado ou jugão que se acharia em tal estado em virtude de seo costume, e de ter havido na senzala o divertimento conhecido sob o nome de cachambú(21)

Assim, para o promotor, o caxambu é, ao lado da embriaguez do acusado, uma das causas do acontecido. Não seria somente o promotor público a discordar sobre a questão das festividades de escravos. Era um momento difícil para os senhores de escravos vassourenses - tão difícil que levou a uma reunião para se pensar a melhor forma de se governar os escravos em 1854 -, e a idéia de que era necessário promover divertimentos aos cativos para não causar "desordens" no mundo do trabalho, era corrente - embora não unânime. Certamente, a Baronesa de Campo Bello acreditava que seus escravos estariam mais satisfeitos se divertindo com o caxambu. Julgado pelo júri, todos os discursos apresentados, tanto pelas testemunhas - homens livres -, como pelo acusado levam a um mero conflito repentino causado pelo excesso de bebida. Se acreditarmos na versão apresentada pelo acusado e testemunhas esta será a única conclusão possível. Contudo, ao reafirmá-la, não estaríamos reforçando a imagem de que não haveria maiores conflitos entre os escravos? A Baronesa provavelmente tinha interesse de que tal acontecimento fosse julgado como um mero incidente, causado pela embriaguez. Ela já havia perdido um escravo, que morrera, provavelmente não gostaria de perder outro, preso. Ainda mais pelo fato de Lino não ser escravo do eito como Félix. Ele era "machinista do Vagão"(22), especializado e certamente gozava de um status mais elevado.

Entretanto, se acreditarmos que o crime de morte é um ato limite antecedido por várias manifestações de desagrado, podemos avançar em busca de outras conclusões. Tudo leva a crer que Lino cometeu o assassinato por ter bebido demais, a não ser por uma pequena declaração de José Fernandes Camello, morador da fazenda do Secretário, local do caxambu, português de 40 anos: "perguntado se conhecia o reo e se cumpria bem com suas obrigações - respondeo (sic.) que sim, costumando a beber de vez em quando. Quanto a Felix que era pacifico, costumava a fugir"(23).

Este dado não foi levado adiante. Passou despercebido no julgamento. Porém, para nossos propósitos, é revelador. Ele nos evidencia que havia na senzala, naquela noite, um conflito entre duas estratégias de sobrevivência. Lino, africano, escravo especializado, com status elevado, que não fora convidado para a festa, mas sim levava azeite de uma fazenda para a outra (já aqui se evidencia que o cativo tinha confiança de sua senhora e certa mobilidade dentro da cidade), certamente buscava melhores condições de vida através de caminhos dentro da própria escravidão. Félix, escravo que, nas palavras do português José Fernandes Camello, "costumava fugir", buscava melhores condições de vida tentando escapar da escravidão - a documentação não explicita o tipo de fuga que Félix costumava fazer, mas enfatiza que ele era muito diferente de Lino. Os dois escravos, como disseram as testemunhas, discutiram também pouco antes, por um lugar na hora de se deitarem(24), e não eram inimigos. Talvez não fossem inimigos, mas suas estratégias de sobrevivência no cotidiano escravista, naquele momento, tornaram-se tão antagônicas ao ponto de só haver espaço para uma delas. Em vários outros momentos, podem ter perfeitamente convivido sem que essas diferenças viessem à tona(25) .

O simbolismo aqui explicitado pelo lugar na hora de dormir não é banal. Muito pelo contrário, é revelador na medida em que Lino saiu de uma fazenda, participou do caxambu (será que houve algum entrevero entre eles em que o "rei" teve que agir? Será que a indisposição entre eles não se refletiu também na dança?), e dormiu em uma senzala que não era sua. Pior, no lugar de Félix. As senzalas dessa região eram tipo barracões de solteiros, trancadas à noite, utilizadas primordialmente para dormir (Slenes, 1999a). Dentro dela também havia lugar para disputas internas. "Deveis fazer (...) as senzalas dos pretos", afirmava o Barão de Pati de Alferes em sua Memória sobre a fundação de uma fazenda de 1847, "voltadas para o nascente ou o poente, e em uma só linha, se for possível, com quartos de 24 palmos [aproximadamente 5,3 metros] em quadro, e uma varanda, de oito [1,8 metros] de largo em todo o comprimento". Famílias conjugais, de acordo com o Barão, deveriam receber um tratamento diferenciado: "Cada quarto destes deve acomodar quatro pretos solteiros e se forem casados, marido e mulher com os filhos unicamente" (Slenes, 1999a, p.150). Lino, como buscava se diferenciar de Félix e outros escravos do eito, impôs sua superioridade na escala hierárquica ao desejar dormir onde quisesse.

Existem outros detalhes. Todos os homens livres, trabalhadores da fazenda do Secretário(26), ouvidos na justiça afirmavam conhecer Lino, escravo na fazenda do Retiro, mostrando como havia uma rede de ligações pessoais entre eles. O que nos leva a crer que as fronteiras entre escravos e trabalhadores livres não eram tão rígidas assim(27) .

A trajetória(28) do escravo Lino mostra uma grande diferença em relação ao escravo Félix. Primeiramente, era africano de "nação Moçambique"(29). Sua profissão mostra que era uma das mais especializadas que poderia alcançar no eito: o trabalho com o beneficiamento de café. A autonomia que alcançou é demonstrada por sua mobilidade: foi de uma fazenda a outra para levar azeite, provavelmente, como desculpa, para participar de uma festa para a qual não tinha sido convidado. Além de ir de uma fazenda a outra, e se "deixar ficar" como ele mesmo disse, Lino dormiu "fora", na senzala da fazenda do Secretário. Mesmo dormindo em outra senzala, se achou "maltratado com palavras". Como analisa Hebe Mattos, a proximidade entre livres e escravos, exercia influência na concepção de dos escravos, que buscavam a mobilidade como uma diferenciação. Portanto, a trajetória de Lino, mostra acima de tudo que ele teve êxito numa busca de diferenciação com o mundo dos escravos e uma aproximação ao mundo dos livres e libertos, colocando-o hierarquicamente dentro da comunidade.

O apogeu ou a idade de ouro do café (Stein, 1990, p. 55) em Vassouras se deu graças ao escravo. O fim do comércio transatlântico de escravos (c. 1850), que provocou rápido aumento de seus preços, possibilitou aos fazendeiros de café conseguir maiores empréstimos. Segundo os relatórios dos presidentes da província do Rio de Janeiro, a população vassourense, entre 1840 a 1878, quase dobrou, indo de 20.589 pessoas para 39.981. Em 1840, a população escrava era de 14.333, em 1850, passou para 19.210 e em 1878 era de 20.896 escravos (Salles, 2008). Portanto, o fim do comércio transatlântico de escravos não provocou uma diminuição da população escrava em Vassouras e, próximo à década de 1880, eram mais da metade da população que vivia na cidade.

O aumento do número de pessoas livres se deve, principalmente, à chegada de imigrantes portugueses em busca de terras, mas que poderiam começar uma trajetória como assalariados, feitores ou arrendatários de terras. Como não há números exatos para a imigração portuguesa entre 1850 e 1888, através das Justificações de Solteiros, documento requisitado para estrangeiros que imigravam e queriam se casar na Igreja Católica, foram encontrados 186 portugueses entre 1856 e 1874. Quanto à profissão, 58 portugueses declararam-se como "trabalhador", 24 "lavrador", 4 como fazendeiros, 1 proprietário, 1 feitor, 2   roceiros, 1 administrador e 1 trabalhador de enxada, entre outras consideradas típicas funções urbanas. Podemos apreender através destes números parciais que a maioria dos imigrantes portugueses trabalhava em proximidade aos escravos nas grandes fazendas (a designação "trabalhador" quer dizer ao trabalho assalariado na colheita de café; "lavrador", provavelmente, um arrendatário de terras da fazenda) (Martins, 2007).

Já o aumento do número de escravos se deve a dois fatores: o tráfico interno e aos nascimentos de escravos. Exatamente como nos Estados Unidos, os senhores de escravos em Vassouras buscaram através do crescimento vegetativo dos seus "rebanhos" uma alternativa ao fim do tráfico de escravos(30). A outra fonte de chegada de escravos era o tráfico interno, principalmente doméstico e de pequeno porte.

O tráfico de escravos em Vassouras se baseou no comércio doméstico, ou seja, escravos que já viviam em Vassouras, tendo o comércio intraprovincial (dentro da província do Rio de Janeiro) até 1872 maior importância, ultrapassado pelo interprovincial a partir de 1874. Ao total, 620 escravos foram computados, sendo 90 africanos (14,5%) e 530 crioulos (75,5%). Se no período de 1867-1872 a vinda de escravos do Norte foi insignificante, 7 escravos, para o período 1874-1879 uma enxurrada desceu das terras acima.

Os escravos do comércio interprovincial vieram principalmente da região que corresponde hoje ao nordeste brasileiro. Vinham de diferentes pontos desta região. Para Evaldo Cabral de Mello, o comércio inter-regional atingiu seu nível mais elevado nos anos setenta, em conformidade com os números apresentados acima. Para isto, contribuiu não só a crise da agricultura nortista (aniquilamento da lavoura algodoeira e redução dos preços do açúcar no mercado internacional, que a elevação da taxa cambial durante o ministério Rio Branco tornara ainda mais insuportável) como também a grande seca de 1877-1879. No Ceará, a província mais atingida, a exportação de escravos, que fora em média de 800 por ano durante o triênio 1874-1876, subia a cerca de 2.000 durante os três anos de estio. Por outro lado, verificava-se um incremento marcante das exportações de café com a expansão dos cafezais. Não surpreende, assim, que de 1877 a 1880, aumentem as pressões visando a proibição do tráfico interprovincial pelo Governo imperial (Mello, 1984, p. 39-40).

O pavor das revoltas pairava nas cabeças dos proprietários que se amedrontavam com os escravos vindos do Norte. Um deputado alertava na Assembleia Provincial, em 1874, sobre "(...) o vulcão que pode fazer erupção súbita e repentina (...)", incendiando as "(...) províncias de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo (...)", regiões concentradoras da lavoura de café e, também, de um elevado número de cativos "das províncias do Norte" (Machado, 1993, p. 82). E tinham razões acreditar nisso. Foi a insegurança em relação ao comportamento dos negros importados - e a perigosa influência de sua conduta sobre os escravos em geral - que acabou convencendo os deputados paulistas a votar um imposto de importação de cativos que estancou imediatamente o tráfico interprovincial. O volumoso tráfico interprovincial de escravos é uma mostra de vitalidade da escravidão cerca de uma década antes de seu final, só que os 'negros maus vindos do Norte' trouxeram com eles o sentimento de que direitos seus haviam sido ignorados, e ajudaram decididamente a cavar a sepultura da instituição (Chalhoub, 2003, p. 59).

Entretanto, vários outros temores também perturbavam o sono (e os sonhos) de muitos senhores de escravos neste tempo: boatos de insurreições nas regiões vizinhas, a lembrança da insurreição de Manoel Congo(31), o abolicionismo. Vivia-se um novo tempo. Na segunda metade do século XIX em Vassouras verifica-se a concentração acentuada de escravos nas mãos de poucos fazendeiros. Entretanto, havia certo espaço para pequenas e médias comunidades. A alforria se tornou mais difícil. As fugas se tornaram mais frequentes (Salles, 2008, p. 259). Ainda que não acreditando que fosse possível, por parte dos escravos, a organização de um grande levante, envolvendo cativos de toda uma região, como o vale do Paraíba, da província ou quiçá do Império, os fazendeiros admitiam que estavam sempre apreensivos diante da iminência de sublevações em suas fazendas e nas propriedades vizinhas. Ainda mais em Vassouras, região de grande lavoura cafeeira que comportava gigantescas fazendas com plantéis numerosos em meados do século XIX (Gomes, 2006, p. 235).

A nova situação criou uma grande discussão sobre o modo como tratar os escravos ou o "governo da Casa". Uma reunião foi feita em 1854, dez anos após a insurreição quilombola de Manuel Congo, entre os fazendeiros alarmados com os rumores de insurreições escravas nas cidades vizinhas, como Campos, Barra Mansa, Valença e Paraíba do Sul. Realizada em 05 de agosto, deliberou sobre a nomeação de uma "comissão permanente", que, formada por quatro fazendeiros locais e presidida pelo Comendador Laureano Corrêa e Castro(32) tinha como principal objetivo fazer com que os fazendeiros tomassem providências para deter insurreições futuras. As instruções constituíam-se em seis itens: emprego de colonos para cada grupo de escravos; ter armamento disponível correspondente ao número de pessoas livres; impedir comunicações entre escravos de várias fazendas; promoção de divertimentos aos cativos; incentivar o catolicismo entre os escravos; e o cultivo de roças próprias e a compra de seus produtos (Gomes e Mota, 2009, p. 104-110).

Os escravos não envolvidos diretamente com a eclosão de insurreições, perceberam tais medos e apreensões por parte dos proprietários e barganharam melhores condições de vida. Eles reajustaram o seu modo de vida renovando tradições antigas, reforçando e construindo novos laços de solidariedade e ajuda mútua para melhor fazer frente a esta situação. Entretanto, esses novos laços de solidariedade não podem ser vistos como algo estático. A solidariedade implicou também em conflitos entre a própria comunidade escrava, e atingiu também os trabalhadores livres desta região (Gomes e Mota, 2009, p. 101-102).

Os conflitos entre escravos, contudo, não causaram somente impactos dentro da comunidade cativa. Os escravos sabiam que era fundamental para os senhores manter uma boa imagem do seu governo da Casa, coibindo as desordens dentro do mundo do trabalho. Para a baronesa de Campo Bello era muito melhor que todos pensassem que o conflito entre os escravos Lino e Felix fora causado pela embriaguez do primeiro (e em todos os discursos das testemunhas, livres e moradores da fazenda do Secretário, reforça-se esta ideia), do que explicitar que havia algo errado em seu governo. Lino foi condenado à "pena de cem açoites na cadeia desta Cidade, e depois será entregue a seu senhor que obrigará a traselo com um ferro ao pescoço"(33). 

Entretanto, a falta de uma punição mais severa(34) a Lino para além de representar o prestígio e o poder que a Baronesa de Campo Bello possuía, deve ser vista como um esforço feito pela fazendeira para manter uma boa visão de seu governo para outros senhores. Não deve simplesmente ser visto como uma preocupação com a "degradação de um investimento feito em um escravo". Se "governar a Casa era exercer, em toda a sua latitude, o monopólio da violência no âmbito do que a historiografia de fundo liberal convencionou denominar de poder privado" (Mattos, 2004, p. 132), os senhores de escravos não ficavam satisfeitos quando o "poder público" intervinha em assuntos "domésticos". Os senhores de escravos, principalmente os do Vale do Paraíba, tinham a convicção de que suas propriedades faziam deles donos e senhores de um mundo que acreditavam ser feito para cumprir seus desejos e submeter-se a seu arbítrio. Acreditavam na inviolabilidade da vontade senhorial (Chalhoub, 2003). Assim, os conflitos no mundo do trabalho também servem, mesmo que nem sempre a priori, para barganhas dos próprios escravos.

Os escravos de Vassouras formaram uma comunidade política, baseada em relações pessoais e familiares, experiência comum e a luta pela liberdade. Os conflitos dentro desta comunidade estão ligados ao amplo movimento de se construírem e reconstruírem laços de sociabilidade e solidariedade. O conflito e a solidariedade se misturavam na realidade concreta, tornando difícil a construção de um modelo. A comunidade escrava, como a comunidade camponesa vista por Giovani Levi: "apresentam em seu interior um processo matizado e mutável de divisão e desarmonia: não podem ser descritas através da imagem idílica de uma sociedade solidária e sem conflitos" (Levi, 2000, p. 43).

Como demonstra o processo-crime apresentado acima, esta comunidade era hierarquizada. Essa divisão era não apenas a divisão estabelecida dentro das comunidades pelos senhores, diferenciando-os quanto ao tipo de trabalho realizado e a confiança que lhe era depositada, mas também a leitura dos próprios escravos desse processo de hierarquização, utilizando-o para se colocar em relação aos outros cativos. A quebra da hierarquia era extremamente complicada, como mostra o caso de Lino e Félix, em que o escravo especializado se coloca hierarquicamente superior ao escravo do eito quando, mesmo sendo de outra fazenda, impõe o lugar, o espaço, onde dormir.

3. Conclusão

Segundo Robert Slenes:

[...] a família cativa - nuclear, extensa, intergeracional - contribuiu decisivamente para a criação de uma 'comunidade' escrava, dividida até certo ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar se domínio na rotina cotidiana". Entretanto, "ela era apenas uma das instâncias culturais importantes que contribuíram, nas regiões de plantation do Sudeste, para a formação de uma identidade nas senzalas, conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por uma grande parte dos cativos (Slenes, 1999a, p. 49).

Importantíssima para se entender a comunidade de escravos, a família escrava, entretanto, é apenas uma das instâncias de uma comunidade. Os historiadores, que criticaram a teoria do "escravo-coisa" nos anos 1980 e 1990, foram essenciais para a reformulação da historiografia da escravidão, colocando o escravo como agente de sua própria vida. O conceito de comunidade de escravos, por não ter sido o principal objeto desta historiografia, passou por várias interpretações. Para Ana Maria Lugão Rios, a comunidade de escravos precisava de tempo e estabilidade para se desenvolver. Por isso, ela acredita que onde havia plantéis menores, a instabilidade não deixou que se formasse uma comunidade de escravos, ou seja, o parentesco, o instrumento de formação de uma comunidade organizada de pessoas unidas (Rios, 1990). A crítica à interpretação de Carlos Engerman da comunidade escrava é colocada por Sheila de Castro Faria:

Carlos Engermann, em artigo recente, tenta perceber a formação de comunidade escrava em fazendas do século XIX do Sudeste com grande número de escravos. Analisa, desta forma, o parentesco entre os escravos destas inchadas escravarias, convencido de que esta é a base da formação da comunidade. A formação de comunidade escrava, então, estaria somente acessível às grandes unidades escravistas. Só que, no Sudeste (como, de resto, em todo o Brasil), a maioria das unidades produtivas eram constituídas por pequeno número de escravos. Estes escravos, então, para o autor, não estariam em nenhuma comunidade. Engermann tenta resolver o problema, analisando as relações de compadrio e percebe que as havia freqüentes entre escravos de senhores diferentes. Mas, em momento algum indica que estes laços tenderiam a criar uma comunidade escrava mais ampla do que a das grandes unidades produtivas (Faria, 2007, p. 145).

A autora, partindo do pressuposto genérico do sociólogo B. E. Mercer (também utilizado antes por Ana Maria Lugão Rios) de que uma comunidade é "uma unidade local, numa época determinada, partilhada por pessoas com cultura comum e que apresentam uma identidade distinta como grupo", tenta definir no Brasil, lugares onde a comunidade foi mais forte ou mais fraca, num confuso exercício de meditação. Primeiramente, acredita que as irmandades podem ser consideradas formadoras de comunidades, ao mesmo tempo em que a observa também como um instrumento de segregação entre os próprios escravos. Posteriormente, acredita que as insurreições são momentos em que a comunidade poderia aparecer e seus laços serem reforçados, o que não valeria para a Bahia:

O certo é que, em tempos de paz e na vida cotidiana e comunitária, num ou noutro lugar, as hierarquias prevaleciam, segregando grupos, dependendo das variáveis do momento e do tempo de vida dos africanos nas propriedades (Faria, 2007, p. 146).

Se a autora parte de um conceito genérico de comunidade, ela consegue, entretanto, ver que a comunidade é histórica. Por outro lado, também é válida a sua argumentação de que as hierarquias prevaleciam na vida cotidiana, deixando de lado aquela ideia harmônica de comunidade.

O problema não ronda somente a historiografia brasileira. Tem sido alvo de debates nos Estados Unidos, quando os historiadores passaram a refutar a imagem de passividade e docilidade, e elevaram a comunidade escrava como uma agency que organizou a vida dos escravos, expressou suas mais profundas aspirações e preveniu a completa vitimização dos cativos. Peter Kolchin avalia esta situação:

[...] qualquer avaliação do problema sobre "comunidade" deve vir a defrontar com questões parcialmente distintas, mas interligadas: a de autonomia e a formação de uma comunidade. A primeira delas envolve o grau em que os escravos eram capazes de assegurar o controle de suas próprias vidas, enquanto o segundo envolve o grau em que, ao fazê-lo, eles agiram com base na reciprocidade e interesses coletivos. Resolver essa questão é difícil, já que os níveis de autonomia escrava e laços comunitários de modo algum eram sinônimos (autonomia significativa não implica, necessariamente, em fortes laços comunitários), porque tanto um como outro não foram constantes ao longo do tempo ou espaço, e também porque o comportamento, fortemente limitado por restrições físicas, esteve estreitamente ligado, mas nunca inteiramente em função, do pensamento. O historiador precisa distinguir entre o feixe fugidio de processos mentais que representava o caminho escravos pensaram - 'consciência', 'visão de mundo', 'ideologia', 'mentalidade' - e os padrões comportamentais que representavam a forma como eles agiram (Kolchin, 2003, p. 149).

Autonomia e o pertencimento a uma comunidade não eram sinônimos. Pelo menos nas duas comunidades analisadas, a autonomia criou condições para que alguns escravos se impusessem hierarquicamente, no momento preciso daqueles relatos.

Se a carta de George Spikwith nos mostra como foi criado uma "hierarquia de fora", como afirma Hebe Mattos, através do processo-crime dos escravos Lino e Félix pode-se ver como as hierarquias tinham aceitação entre os escravos, como eles as reinterpretaram-nas para se impuser" sobre outros escravos. Deixando uma fazenda para ir a uma festa em outra: a busca de autonomia. O desejo de dormir no lugar de Lino: como esta busca de autonomia criou hierarquias, que emerge na disputa do espaço - físico e simbólico -, dentro da própria comunidade. A hierarquia, por isso, também foi um movimento de "dentro".

A comunidade de escravos hierarquizada e dividida em grupos foi tanto uma criação dos senhores, através de políticas de incentivos, como dos próprios escravos, através da busca por maior autonomia e prestígio - tanto em relação ao senhor quanto à comunidade. A questão tão complexa da coesão entre os escravos dependia também da imposição de um grupo da comunidade de escravos sobre outros escravos. Como afirma Arendt: "poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente" (Arendt, 2010, p. 73-74).

Por isso, o estudo da comunidade escrava pelos processos criminais, e em comparação com outras regiões escravistas americanas, se torna uma importante fresta por onde podemos ver as expectativas e esperanças que os escravos tinham em relação a essa mesma comunidade. Através de momentos de violência - quando não haveria um consenso dentro dessa comunidade política - é que se pode compreender o que seria para os escravos viver em comunidade. E nessa busca o que deve ser mais importante de se levar em conta é a definição dos escravos do que seria viver em comum, em comunidade.

Notas

(1) Esta carta está publicada no livro Miller, Randall M. (ed.) Dear Master. Letters of a slave family. Georgia: University of Georgia Press, 1990, p. 156-160.

(2) Ann Sucky Faulcon (n. 1803), muitas vezes atormentados antigo feitor Elam Tanner por suas acusações e palhaçadas, mas ganhou a confiança Cocke, que a libertou em 1851.

(3) Isham Gault (n. 1810) era um trabalhador de campo em Hopewell que tinha trabalhado como um vaqueiro em Bremo (fazenda de Cocke na Virginia). Depois da guerra ele voltou para sua profissão original. Ele foi o pai de Hannah e irmão de Julyann e Mima.

(4) Frank Randall, filho de Primus, o feitor em Bremo (fazenda de Cocke na Virginia), trabalhou como pedreiro e trabalhador do eito. Em 1842 ele conduziu um namoro proibido fora da plantação, em 1844 ele enganou um branco numa venda, em 1846 ele deixou Hopewell sem um passe. Em 1853 foi para a cidade de Mobile no Alabama para ser vendido ou alugado por suas brigas repetidas com sua esposa Jinny.

(5) Violly era uma trabalhadora do campo.

(6) Dinah era uma trabalhadora do campo.

(7) Jinny Randall, mulher de Frank Randall, trabalhadora do campo. Com seu marido, ela foi vendida ou alugada na cidade de Mobile em 1853.

(8) Evelina Smith (n. 1821?) era uma trabalhadora do eito que deu aulas de religião em 1853.

(9) Charlotte (Morse) Lewis (n. 1834) era filha de Charles e Kessiah Morse e irmã de Albert, Cain, Carter, Charles Jr., Frederick e Mattew. Em 1844 se casou com Robert Lewis, e em 1857 eles foram viver na fazenda de New Hope (do mesmo senhor John Cocke).

(10) Shadrach Cocke era um líder de oração e exortador entre os escravos e o feitor depois da queda de George. Em 1842, ele escreveu ao seu senhor pedindo permissão para se casar com uma mulher de outra fazenda, mas Cocke recusou. Sadrach falou "muito mal" sobre a decisão do senhor e, ao invés de desistir da garota, ele pediu para ser vendido. Ele correu "louco por 2 dias" em decepção. Ele envolveu-se em outros arranhões nos próximos anos, mas em 1850, provavelmente como resultado de sua conversão, ele amadureceu e ganhou a confiança do Cocke. Ele morreu repentinamente em 1855 de uma "doença do coração".

(11) Robert Lewis, marido de Charlotte, em 1856 ele foi chicoteado por fingir doença, e em 1862 ele roubou carne suína da fazenda do capitão John Cocke. Ainda assim, John Hartwell Cocke considerou-o um provável candidato para a liberdade. Em 1857 ele se juntou ao New Hope [plantação Alabama] comunidade.

(12) Armistead Hewitt (n. 1814) era um trabalhador de campo e carpinteiro em Hopewell e o feitor em New Hope, após 1857. Em 1846 ele recebeu autorização para sair da plantação, e, mais tarde, ele teve inúmeros tropeços com bispos, particularmente JW Carter. Ele se casou com Lucy Skipwith, filha de George, na década de 1850 ou início de 1840. Não há registro positivo de mais de um filho com o casamento. As filhas mais velhas de Lucy, Maria e Betsey, eram filhas de homens brancos, e o pai de sua filha Dinah é desconhecido Lucy teve ligações com os homens brancos e sua ligação com Cocke pode ter sido a causa de suas relações infelizes com Armistead. Ela o deixou depois da guerra.

(13) Rev. Isaac Taylor (1802-1874?), um ministro metodista contratado por Cocke a viver em Hopewell e pregar para os escravos. Ele tinha uma opinião desfavorável dos valores morais dos escravos de Hopewell e, particularmente não gostava de influência de George.

(14) John Cocke de Green County, Alabama, era vizinho de Cocke e um parente distante. Ele era um fazendeiro de meios consideráveis, que também serviu administrador da fazenda de Cocke por muitos anos.

(15) Dr. William T. Webb (1815-1883) de Greensboro providenciava cuidados médicos para as plantações Cocke no Alabama. Ele tinha a reputação de um médico qualificado.

(16) Os termos Upper South e Upland South se referem à parte norte do sul dos EUA, enquanto Lower South e Deep South à parte mais ao sul. O Deep South antes da Guerra Civil produzia algodão e era escravista (Carolina do Sul, Georgia, Alabama, Mississipi e Lousiana).

(17) A lei n.º 2040 de 28.09.1871, conhecida como lei do ventre livre, previa em seu artigo 3°, parágrafo 7°, que "em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges e os filhos menores de doze anos do pai ou da mãe". Entretanto, percebe-se através da análise dos Registros de Escritura de Compra e Venda de Escravos, no Centro de Documentação da Universidade Severino Sombra, em Vassouras, que este dispositivo não era levado à risca. Por exemplo, no dia 15 de março de 1877, oito escravos foram vendidos, sendo um se encontrava casado sem sua esposa. Crianças, provavelmente, separadas de suas mães também foram vendidas. Foi o caso de Maria, de apenas 11, que chegou a Vassouras da cidade de Alagoinhas na Bahia. CDH-USS, documentos 109665815001, 109665815002 e 109665811001. A dificuldade de cumprir a determinação da lei pode ter sido causada porque muitos escravos optavam por uniões que não eram considerados "casamentos". "As exigências para que escravos se casassem não raro impediam essa possibilidade". In: Graham, Sandra Lauderdake. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 54. Portanto, muitos escravos estavam fora do requisito da lei de 28.09.1871. Para Stanley Stein, sublinha que "o modelo de união temporária era reforçado pela igualdade econômica entre homens e mulheres escravos, pela importância da mãe na sociedade polígina africana e pela desproporção entre escravos homens e mulheres em Vassouras até as últimas décadas de escravidão". In: Stein, Stanley. Vassouras. Um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 191.

(18) Para Hebe Mattos: "as discussões sobre os significados culturais das relações comunitárias entre os cativos no Brasil têm que seguir rumos diferentes [dos Estados Unidos]". Mattos, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 126.

(19) E Stanley Stein continua a sua descrição sobre o caxambu: "Os escravos homens vestiam calças brancas e possivelmente uma camisa listrada; as mulheres, blusas frouxas e saias rodadas, lenços no cabelo; dançavam uns em volta dos outros sem se tocarem. Os dançarinos moviam-se no sentido contrário do relógio. Quando se cansavam, dançavam em direção aos do mesmo sexo, convidando-os a substituí-los tocando-os com a palma da mão. Mesmo as crianças entravam na roda para imitar os movimentos dos mais velhos. Após o primeiro desafio, mas ainda sob o ritmo do tambor, o rei se retirava para o fundo, deixando a roda para outro jongueiro que tentaria decifrar o desafio com duas linhas a mais e introduzir sua resposta rimada ("um linha sobre a outra"). No entanto, se aparecesse algum problema entre os versejadores que se contestavam, o rei retornava imediatamente e silenciava os tambores colocando suas mãos sobre eles. 'Ele não desejava que houvesse qualquer distúrbio na roda', explicou o filho de um rei de caxambu". Stein, Stanley. Vassouras. Um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 246.

(20) CDH, processo n. 102663936007.

(21) CDH, processo n. 102663936007.

(22) Provavelmente Lino era responsável por umas das máquinas de beneficiamento de café da fazenda do Retiro, encontradas no inventário da Baronesa de Campo Bello em 1873. CDH, inventário n. 793, caixa 136. Stanley Stein descreve uma máquina de moagem, idêntica à encontrada no inventário da baronesa: "na década de 1850, a maquinaria de moagem mais moderna, na qual a casca externa e o pergaminho interno de grãos de café seco eram removidos, era o compacto engenho de pilões. Seu tamanho e custo de manufatura em termos de mão-de-obra especializada ainda dificultavam seu uso, a não ser por grandes fazendeiros". (Stein, op.cit., p.63. Grifos nossos).

(23) CDH, processo n. 102663936007, de 1872, página 40.

(24) Segundo Agostinho José de Medeiros, com 38 anos, feitor de terreiro, morador da fazenda do Secretário, "ouviu dizer pelos pretos que dormião na mesma senzalla, que havia certa indisposição entre elles por causa do lugar onde dormião, mas que antes disso não consta que tivessem desamisade". CDH, processo n. 102663936007, de 1872.

(25) Lino e Felix se assemelham assim como os irmãos escravos Patricio e Lorenzo, analisados por Carlos A. Mayo no Pampa argentino. "Patricio y Lorenzo encarnaban así las dos respuestas existenciales más extremas y claramente contrapuestas a la esclavitud: el 'buen esclavo' que busca superarse y construye una vida llena de sentido a partir de los intersticios que le deja el sistema esclavista y el que se resiste invertebrada, intermitente e individualmente a su condición servil, llegando a veces hasta el doloroso límite de su marginación social. A diferencia de Patricio, Lorenzo simplemente no se hallaba en Las Vacas ni en ninguna parte donde se le diera ordenes y lo obligaran a trabajar". Mayo, Carlos A. Estancia y sociedad en la pampa (1740-1820). Buenos Aires: Biblos, 2004, p. 192.

(26) A Fazenda do Secretário, em Vassouras, foi fundada no início do século XVIII e adquirida, posteriormente, por Laureano Corrêa e Castro, o barão de Campo Bello. Segundo Stanley Stein: "uma das famílias mais influentes, a Corrêa e Castro, que, de acordo com registros, mantinha vastas propriedades nas paróquias de Conceição e Ferreiros, originou-se de um grupo de obscuros lavradores localizados na Fazenda Pau Grande, no fim do século XVIII. Os meios pelos quais três irmãos Corrêa e Castro se tornaram proprietários de grandes fazendas na década de 1830 são obscuros" (Stein, 1990, p. 154). No inventário da Baronesa de Campo Bello, falecida em 1873, constam 335 escravos, 16 ingênuos e fazendas, entre elas, a do Secretário, do Retiro e do Pau Grande, além de inúmeras máquinas para beneficiamento do café e prataria. CDH, inventário n. 793, caixa 136.

(27) Isso tem sido enfatizado por novas dissertações que se debruçaram sobre os processos-crimes em que escravos são envolvidos. A saber: Machado, Maria H. P. T. Crime e escravidão. Trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987; Wissenbach, Maria C. C. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998; Silva, César M. Processos-Crime. Escravidão e violência em Botucatu, 1850-1888. São Paulo: Alameda, 2004; Santos, L. de L. dos. Crime e liberdade: o mundo que os escravos viviam. Araraquara, 2000. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista; Ferreira, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos. Cativeiro e criminalidade num ambiente rural (1830-1888). São Paulo: UNESP, 2005; Ferreira, Ricardo Alexandre. Crimes em comum. Escravidão e liberdade no extremo nordeste da Província de São Paulo (Franca, 1830-1888). 2006. (Tese de Doutorado) Faculdade de História, Direito e Serviço Social/UNESP, 2006.

(28) Trajetória aqui definida segundo Guarinello utiliza o conceito criado por Patterson, ou seja, "a escravização pode ser entendida como um processo de morte simbólica, na qual o escravizado perde sua identidade original, sua pessoa, para tornar-se quem seu senhor determinar. Mas não se transforma, nesse processo, numa coisa, a despeito de como o direito tente definir sua persona social. Pelo contrário, é ressocializado dentro da sociedade em que nasceu ou que o escravizou, seguindo trajetórias determinadas, tanto pelos desejos e necessidades de seu dono, como por suas próprias capacidades e oportunidades individuais". Guarinello, Norberto Luiz. Escravos sem senhores. Escravidão, trabalho e poder no Mundo Romano. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, 2006, p. 232.

(29) O fato de Lino ser africano e um escravo especializado, ou seja, que tenha buscado uma estratégia individualista na busca de maior autonomia, leva-nos a contestar os trabalhos que dizem que os "crioulos" eram os mais propensos a isso. A oposição africano versus crioulo deve ser vista como uma entre as possíveis. Para Michael Mullin: "in a long history of persistent but often ineffectual slave resistance, Africans as if instinctively cooperated when attempting to free themselves. By contrast, Creoles usually favored individual strategies of liberation". Mullin, Michael. Africa in America. Slave acculturation and resistance in the American South and the British Caribbean, 1736-1831. Chicago: University of Illinois Press, 1994, p. 2. No Brasil, a opinião de Luis Nicolau Parés, baseado principalmente em documentos de irmandades urbanas, reflete bem este tipo de visão. Segundo ele: "a fronteira africano-crioulo enquanto marca de origem e enquanto salto de geração implicava numa fronteira cultural e num posicionamento diferenciado na estratificação social". Parés, Luis Nicolau. "O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800)". In: Afro-Ásia, 33 (2005), p. 97.

(30) Segundo Ricardo Salles, Vassouras tinha se tornado no começo da segunda metade do século XIX uma sociedade escravista madura, "com uma clara tendência à auto-reprodução ampliada, não fossem os fatores 'exógenos', de natureza conjuntural que impuseram, por intermédio da Lei de 28 de setembro de 1871, um horizonte de transição longínqua e controlada para novas formas de trabalho". (SALLES, op. cit., p. 263).

(31) Segundo Flávio dos Santos Gomes, na cidade de Vassouras em 1838: "grande número de escravos - a maior parte pertencente ao mesmo fazendeiro - sublevou-se, realizando saques às propriedades, roubando mantimentos e ferramentas. Em seguida, refugiaram-se na floresta, visando - ao que se sabe - a formar um quilombo. Dias depois, viram, porém, suas expectativas sucumbirem em meio à retaliação imediata desencadeada pelas autoridades e grandes fazendeiros da região". Manuel Congo, um africano com o ofício de ferreiro foi denunciado como o principal "cabeça" da insurreição e condenado à morte. In: Gomes, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 144.

(32) Não por acaso, o caxambu em que Lino e Felix estavam foi em uma propriedade da baronesa de Campo Bello, viúva de Laureano Corrêa e Castro.

(33) CDH, processo n. 102663936007, de 1872.

(34) Segundo a análise de Elione Silva Guimarães, as penas de escravos nos crimes contra outros escravos, em Juiz de Fora, estão entre 50 açoites a 300 açoites, e em alguns casos os acusados foram condenados à prisão ou às galés perpétuas. Guimarães, Elione Silva. Violência entre parceiros de cativeiro. Juiz de Fora, segunda metade do século XIX. São Paulo: FAPEB/Annablume, 2006, p. 114.

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Fecha de recibido: 1 de enero de 2012
Fecha de aceptado: 14 de junio de 2012
Fecha de publicado: 07de junio de 2013

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