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Espacios en blanco. Serie indagaciones

versão impressa ISSN 1515-9485

Espac. blanco, Ser. indagaciones vol.21 no.2 Tandil jul./dez. 2011

 

ARTÍCULOS

Corporeidade e educagáo: o corpo e os novos paradigmas da complexidade

Embodiment and education: the body and the new paradigms of complexity

Corporeidad y educación: el cuerpo y los nuevos paradigmas de la complejidad

 

Alvori Ahlert*

* Mestre em Educacáo ñas Ciências, pela UNIJUÍ, RS, Doutor em Teología, Área Religiáo e Educacáo pelo IEPG/EST, RS, Professor da UNIOESTE, membro do GEPEFE e do Grupo de Pesquisa Cultura, Fronteira e Desenvolvimento Regional. E-mail: alvoriahlert@hotmail.com, alahlert@brturbo.com.br, alvoriahlert@yahooc.om.br.

 


Resumo

O presente texto discute a corporeidade e a educação no contexto da docência interdisciplinar entre professores de Educação Física e Ciências Naturais, apresentado em forma de Palestra no Encontro Nacional de Professores de Educação Física e Ciências Naturais da Rede Sinodal de Educação. Num primeiro momento são apresentados os conceitos de educação e corporeidade. A partir desses conceitos é discutido o tema da corporeidade no contexto dos paradigmas da complexidade e da ação comunicativa. A reflexão é concluída com a apresentação de desafios para um trabalho interdisciplinar entre professores de Educação Física e Ciências Naturais em torno da questão do corpo na escola.

Palavras-chave: Corporeidade; Educação; Ação comunicativa; Teoria da complexidade.

Resumen

Este artículo discute los temas de la corporeidad y la educación en el contexto de la enseñanza interdisciplinaria entre los profesores de Educación Física y Ciencias Naturales, presentada como una conferencia en el Encuentro Nacional de Profesores de Educación Física y Ciencias Naturales de la Red de Educación Sinodal. Al principio se presentan los conceptos de la educación y la corporalidad. En base a estos conceptos se discute el tema de la expresión, en el contexto de los paradigmas de la complejidad y la acción comunicativa. La discusión concluye con la presentación de los desafíos para el trabajo interdisciplinario entre los profesores de Educación Física y Ciencias Naturales en el tema de la corporalidad en la escuela.

Palabras clave: Corporeidad; Educación; Teoría de la acción comunicativa; Teoría de la complejidad.

Abstract

This paper discusses the issues of embodiment and education in the context of interdisciplinary teaching among teachers of Physical Education and Natural Sciences, presented in a lecture at the National Meeting of Teachers of Physical Education and Natural Science Education Network Synod. First, the concepts of education and embodiment are introduced. Based on these concepts, the issues of embodiment in the context of the paradigms of complexity and communicative action are addressed. The discussion concludes with the presentation of challenges for interdisciplinary work among teachers of Physical Education and Natural Sciences on the issue of corporality at school.

Key words: Embodiment; Education; Communicative action; Theory of complexity.


 

Introcluçáo

Primeiramente desejo registrar o que parece ser um absurdo: um evento de Professores e Professoras de Educação Física e de Ciências Naturais de uma sofisticada rede de escolas, sob o tema "Qualidade de Vida", ter na sua abertura uma fala de alguém da área de humanas. Mais absurdo ainda é esse alguém aceitar tal desafio. Entretanto, este diálogo se torna possível quando nos arriscamos a pensar e nos movimentar no campo dos novos paradigmas da complexidade.

Assim, desejo agradecer imensamente o convite para participar com vocês neste início do congresso, para refletirmos sobre possíveis contribuições do olhar das humanas sobre corpo e a educação no contexto da qualidade de vida.

Earl Shorris, filósofo, jornalista, crítico social, palestrante e escritor tem se destacado como um defensor, na mídia e na academia, da reabilitação das humanidades na formação humana. Ele é o criador do Curso Clemente em Ciências Humanas, um curso de nível universitário na área de humanas para as pessoas que vivem na pobreza. O curso nasceu de uma idéia desenvolvida por Robert Maynard Hutchins, para quem "a melhor educação para o melhor é a melhor educação para todos". Esta idéia foi levada por Shorris para o desenvolvimento de um programa de educação para a redução da pobreza. Shorris pesquisava a pobreza e escrevia sobre ela, até que numa de suas visitas a uma prisão de segurança máxima de Bedford Hills, Nova York, perguntou a uma prisioneira, Viniece Walker, porque ela achava que as pessoas eram pobres. Ela teria respondido que é porque os pobres não têm a vida moral da cidade. Questionada sobre o que queria dizer com a vida moral, ela teria afirmado que os pobres não têm arte, museus, concertos, história. Shorris então teria perguntado se ela se referia às Humanidades, Ciências Humanas, ao que ela teria respondido afirmativamente. A partir disso Shorris criou uma Clemente School para pobres e que tem modificado decisivamente a vida de que dela participa.

As humanidades são compreendidas como um conjunto de disciplinas acadêmicas conhecidas como ciências humanas e que incluem, mas não se limitam a elas, a história, a literatura, a filosofia e a ética, a teologia, as linguagens e culturas estrangeiras, lingüística; jurisprudência ou a filosofia do direito; arqueologia; a religião comparada, a história, teoria e crítica das artes e os aspectos das ciências sociais como a antropologia, a sociologia, a psicologia, a ciência política, governo e economia de uso histórico e interpretativo ao invés de métodos quantitativos. Além de nos enriquecer do ponto de vista humano, as Humanidades contribuem para a satisfação de necessidades vitais, como a capacidade de desenvolver o pensamento crítico e criativo sobre os problemas que nos confrontam como cidadãos e como seres humanos, a capacidade de construir argumentos e fundamentar nossa participação em debates sobre os valores fundamentais que estão em jogo nas diferentes políticas e práticas sociais que nos envolvem. Por isso precisamos de humanidades. Então, que bom que elas também têm seu lugar neste evento.

Mas, para nos entendermos melhor precisamos partir de algumas definições mínimas sobre o nosso diálogo. Num primeiro momento quero dizer o que penso sobre qualidade de vida. Em seguida definir minimamente educação e corporeidade. E, com base nessas idéias, discutir a questão do corpo nos paradigmas da complexidade na terceira parte.

Qualidade de vida

Sobre "Qualidade de Vida" me permito retomar parte de um texto que publiquei no final dos anos 90 (Ahlert, 2003:163-165), escrito em meio as pressões neoliberais daquele período, que tentaram arrebentar a qualidade de vida como seu projeto de qualidade total e que foi amplamente rechaçada pelos intelectuais comprometidos com a vida. Neste texto defendi a necessidade de contrapor o neoliberalismo excludente mediante o resgate e incorporação dos valores éticos de solidariedade, fraternidade, respeito às diferenças de crenças e raças, de culturas e conhecimentos, de respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos no processo educativo. Seria uma espécie de busca por qualidade de vida, quantificada e qualificada para todos. Todo o processo de construção de conhecimento, de ensino-aprendizagem, de educação formal e informal, de educação técnica e científica deveria incorporar a promoção e a inclusão de todos e de tudo, o que significa desconstruir o conceito sedutor de qualidade intrínseco ao mundo sistêmico desconectado do mundo da vida e construir um horizonte de qualidade total de vida.

O que seria essa "qualidade de vida"? Ora, a vida sempre foi um fenômeno difícil de descrever a partir da ótica das humanidades. Tomada em seu conjunto, ela inclui toda a forma de vida no planeta: animais e vegetais. Desse conjunto faz parte a vida do ser humano. Nesse sentido, a vida do ser humano tem uma profunda interrelação com tudo aquilo que lhe cerca. O ser humano não consegue viver em uma redoma, isolado do resto do mundo. Ele está inserido na vida maior, de amplitude interdependente. O ser humano é uma totalidade, isto é, corpo e espírito. Algo inseparável. Por isso não basta ao ser humano respirar para viver.

Assim qualidade de vida significa recuperar conceitos importantes como "reino das necessidades", "reino da liberdade", onde prevalecem a justiça, a paz, a alegria; onde o ser humano vence a fome, a doença, a ignorância, a servidão, a angústia, o medo. "Qualidade total de vida", diz Frigotto, "é uma dimensão fundamentalmente ligada às

necessidades fundamentáis. Na velha tradicáo marxista, e não dicotomicamente, a gente sempre pensa em "mundo da necessidade imperativa" e "mundo da liberdade", sendo que não há liberdade se não houver o mundo da necessidade. (...) É, fundamentalmente, que o homem, para pensar, tem que existir. (...) Não é o pensamento que cria o homem, mas o homem concreto que pensa" (Frigotto, 1996:86).

Para que a vida seja vida ela necessita, entre outras tantas coisas:

a) Espacp físico: moradia, pátio, áreas comuns de lazer, áreas verdes.

b) Vestimenta e casa compatível com o clima quente ou frió.

c) Alimentacáo com base em vitaminas, proteínas, calorias, livre de agrotóxicos.

d) Outras pessoas ao seu redor: família, vizinhos, amigos, colegas de trabalho e lazer.

e) Espado/lugar para amar, sorrir, brincar e chorar: Para externar tudo aquilo que está relacionado com a sua vida.

f)  Liberdade para produzir cultura, consumir cultura, produzir arte, consumir arte, direito de escolher o lugar de morar, trabalhar, estudar, aprender, formar e informar-se.

g) Saúde e protecáo.

E para que tudo isso seja concreto é preciso emprego cuja remuneracáo possibilite este desenvolvimento da vida. Por isso, quantificar a qualidade significa, multiplicar tudo aquilo que a minoria dos incluídos do mundo da economía neoliberal ou sistémico tem acesso, pois a busca pela qualidade não pode estar dissociada da quantidade. Da capacidade de alcanzar os excluídos do sistema.

E se a quantidade significa extensáo, "qualidade", diz Demo, "aponta para a dimensáo da intensidade. Tem a ver com profundidade, perfeicáo, principalmente com participac^áo e criac^áo. Está mais para o ser do que para o ter" (1994:11).

Educação

Parto da premissa de que educa^áo é um "que-fazer" humano, que não possui um fim em si mesmo, mas é instrumento que está a serviço, tanto para a manutencáo quanto para a transformado social. Mas antes disso, educação é a forma que os diferentes povos encontraram para significar o seu mundo, entendê-lo e adaptar-se a ele ou então transformá-lo.

Nestor Beck dá uma definição muito simples, porém, de extrema abrangência para educação. Segundo ele, "[...] educação é algo que a gente faz" (Beck, 1996:57). Significa que todos os seres humanos fazem educação. Um fazer que o referido autor identifica pelos verbos "educar, ensinar, instruir, formar" (ídem:58). Estes verbos, diz Beck, referem-se a processos mútuos entre humanos, que se educam, ensinam, instruem e formam mutuamente. Por isso essa ação se assenta sobre o diálogo, que através da comunicação permite partilhar conhecimentos e construir novos conhecimentos.

A educação, assim como a entendemos, fundamenta-se na socialização. É uma interação na qual os seres humanos se engajam para se fazerem, isto é, para fazerem-se humanos, coletiva como pessoalmente. [...] Como seres humanos nós projetamos e colocamos diante de nós a imagem do ser que desejamos ser e nos esforçamos para tornar-nos o ser pretendido, individual e coletivamente. Estamos inseridos, pois, em processo de humanização contínua.
A educação, assim como a socialização, é essencial ao processo de humanização. Promove a compreensão do que significa ser gente e promove o acesso ao conhecimento pelo qual nos tornamos humanos. Desafia-nos a nos produzirmos mediante ação conjunta e interação conosco próprios (ídem:65).

Através de um processo de interação entre educadores e educandos reproduz-se o modo de ser e a concepção de mundo que os povos foram construindo ao longo de sua história. Neste processo acontece a construção dos novos conhecimentos, técnicas e formas para a reprodução da vida. Por isso educação sempre foi e é criação e recriação de conhecimentos. Um processo que levou e leva para práticas cada vez diferentes, preparando novas gerações, criando novas sociedades, transmitindo culturas e formas de trabalho, socializando processos produtivos. Neste conceito, educação é práxis teórica, política, pedagógica, afetiva e tecnológica. E, sendo isso, educação é práxis ética, porque visa reproduzir e garantir essa vida em constante construção e reconstrumao, necessitando de pressupostos, de conceitos que fundamentam e orientam os seus caminhos. É urna forma de estabelecer fins, objetivos e metas para o processo educativo.

Além disso, como nos lembra José Eustáquio Romáo, a obra de Paulo Freiré mostra que não existe a educa^áo. Na verdade são muitas as formas de educar, portanto, "educacóes". "Para Paulo Freiré, não existe a educa^áo, mas educaçóes, ou seja, formas diferentes de os seres humanos partirem do que são para o que querem ser" (Romáo, 2010:133). Em seu verbete, Romáo afirma que as educacóes em Freiré se agrupam e resumem em duas educaçóes: "urna, que ele chamou de 'bancária', que torna as pessoas menos humanas, porque alienadas, dominadas e oprimidas; e outra, libertadora, que faz com que elas deixem de ser o que são, para serem mais conscientes, mais livres e mais humanas" (ibídem).

Em sua Pedagogia do Oprimido, Freiré contrapóe a educa^áo "bancária", que anestesia os educandos inibindo o seu poder criador, com a educa^áo libertadora, que tem como centralidade a problematizacáo. Essa educacáo problematizadora possui caráter reflexivo, que implica num constante desvelamento da realidade, buscando a emersáo das consciéncias e resultando numa insercáo crítica na realidade. Para Freiré essa "Educacáo como prática da liberdade implica a negacáo do homem abstrato, isolado, soltó, desligado do mundo, assim como também a negacáo do mundo como urna realidade ausente dos homens" (1987:70).

Nesta obra Freiré nos faz acreditar na força da educacáo. Sua concepcáo de educacáo problematizadora carrega o compromisso com a libertacáo, se empenhando na desmitifica^áo da realidade e colocando no diálogo toda a sua for^a cognoscente para desvelar a realidade. Trata-se de urna educacáo que parte do caráter histórico e da historicidade dos homens reconhecendo-os como seres que estáo sendo, inacabados, inconclusos. Urna educacáo que se refaz constantemente na práxis, reforjando a mudanza e não aceitando o presente e nem o futuro prédado. Portanto, urna educacáo revolucionária, profética e esperanzosa, construída numa relacáo mútua e respeitosa para tornar o ser humano mais ser humano. "A busca do ser mais não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires" (ídem:75).

Corporeidade

O termo corporeidade indica a essência ou a natureza do corpo. A etimologia do termo nos diz que corporeidade vem de corpo, que é relativo a tudo que preenche espaço e se movimenta, e que ao mesmo tempo, localiza o ser humano como um ser no mundo. É a maneira como o ser humano se diz de si mesmo e se relaciona com o mundo com seu corpo enquanto objetividade (matéria) e subjetividade (espírito, alma) num contexto de inseparabilidade.

Assim, a corporeidade constitui-se das dimensões: física (estrutura orgânica-biofísica-motora organizadora de todas as dimensões humanas), emocional-afetiva (instintopulsão-afeto), mental-espiritual (cognição, razão, pensamento, idéia, consciência) e a sócio-históricocultural (valores, hábitos, costumes, sentidos, significados, simbolismos). Todas essas dimensões estão indissociadas na totalidade do ser humano, constituindo sua corporeidade (João & Brito, 2004:266).

Para Hugo Assmann, a corporeidade é uma complexa dinâmica de auto-organização da corporalidade viva. "Estar vivo neste planeta consiste, essencialmente, na interação ativa de corpos, inteiramente em si mesmos e com seu mundo-ambiente. Ao empregar o conceito de corpo, é fundamental manter-se atento a tudo o que ele implica, ainda mais se pretendemos espraiar o conceito de Corporeidade como coextensivo à vida" (Assmann, 1994:67). Assim, a corporeidade é o conhecimento do e sobre o corpo filosófico desde um olhar da Filosofia, mas que parte de sua dimensão biológica. Neste contexto, o corpo já não se dissocia da mente, já que fazem parte de um conjunto que se interrelaciona contínuo e ininterruptamente.

Entretanto, pensar e refletir sobre o corpo enquanto corporeidade requer uma abertura para além dos modelos filosóficos hegemônicos dos paradigmas antigo e moderno. Estes paradigmas estavam sustentados sobre a concepção grega da dicotomia entre corpo e espírito.

Demanda, pois uma nova articulação do pensamento apoiado na complexidade do mundo, das coisas e da vida.

O pensamento complexo nos permite compreender que a corporeidade humana é uma emergência do processo de evolução que conduziu, como apontamos anteriormente, a physis., o bios. e a esfera antropossocial a sucessivos aumentos no grau de complexidade dos sistemas/organizações, a começar com a formação dos átomos, chegando, em nosso planeta, onde se dá a evolução das espécies, à emergência da espécie humana que é detentora de espírito (mente) e consciência. Podemos compreender que a corporeidade guarda a herança de todo este processo evolutivo (João & Brito, op. cit.:266).

O corpo no contexto dos novos paradigmas da complexidade

É largamente aceito entre os intelectuais a idéia do nascimento, desenvolvimento e desintegração do que chamamos de Modernidade. Ela representou um período da evolução humana ocidental onde as ciências passaram a se afirmar e dominar todas as áreas do conhecimento e de transformação da natureza em bens materiais, além de impactar as relações entre os seres humanos. Os séculos XVII, XVIII e XIX podem ser caracterizados por duas aspirações que romperam fronteiras geográficas, políticas e culturais. De um lado passou-se a produzir uma quantidade de bens materiais como nunca fora visto na história humana. Por outro lado desenvolveu-se uma capacidade de acumular, centralizar e privatizar essa produção e riqueza, concentrando nas mãos de poucos para gerar mais riqueza para pequenos grupos no planeta. E nenhum ou nenhuma professor/a seria ingênua de pensar que essa realidade protagonizada pelo conhecimento das ciências esteve inspirado por um rigoroso amor pela ciência. Antes pelo contrário, a racionalidade econômica invadiu todas as áreas mais preservadas da cultura e do espírito humano (Pozzoli, 2007).

Com a afirmação das ciências da natureza (física, química, biologia, matemática) e pela evolução da tecnologia, a razão humana passou a acreditar ter poderes ilimitados entendendo que poderia resolver todos os problemas do mundo. Pensava o humano ser capaz de construir seu próprio destino pelo domínio inteligente da natureza, livrar-se dos poderes da superstição (civis e militares), realizar a felicidade terrena aqui e agora. Esses foram os ideais e as promessas iluministas da Revolução Francesa do séc. XVIII (1789).

Mas, os resultados foram ambíguos. Por um lado, um crescimento econômico e tecnológico fantástico e, por outro lado, guerras, domínios, controles e operação da natureza e dos próprios seres humanos. Alijando as ciências humanas desse desenvolvimento, suprimiram-se as questões sociais, éticas, valores, normas, emoção e sentimentos humanos. A razão se tornou técnico-instrumental, voltada somente para o progresso econômico/capital.

Nessa lógica de entendimento, a primeira metade do século XX (até 1950) foi marcada por grandes destruições em nome dessa razão técnico-instrumental. Exemplos a história nos recorda tristemente: I e II Guerras Mundiais, reprodução da miséria no mundo e desconsideração do ser humano. Por isso o século XX também tornou-se o século da crítica da Modernidade, que apontou suas crises e razões desta crise. O progresso tecnológico da sociedade industrial deveria ser orientado para um interesse de desenvolvimento social com distribuição das riquezas. Filósofos contemporâneos da Teoria Crítica (Horkheimer e Adorno), analisando as conseqüências das guerras e o modelo econômico mundial, passaram a desacreditar da razão e proclamaram a morte do ideal iluminista de autonomia do ser humano alegando que a razão não emancipou o ser humano. Que ela foi transformada em instrumento para submeter a humanidade ao seu jogo. O poder econômico, impulsionado e legitimado pela ciência e pela técnica, passou a dominar todo o processo social. A reflexão crítica deu lugar à ideologização, transformando o homem num ser econômico unidimensional. Assim, o projeto iluminista, que previa a libertação do ser humano das escravidões, tornou-o escravo das forças que ele mesmo imprimiu ao processo histórico. O ser humano perdeu controle de sua razão e ela já não está a serviço de sua felicidade.

Outro filósofo contemporâneo dessa mesma corrente crítica, Jürguen Habermas, propõe resgatar o potencial de criticidade da razão através da elaboração de uma teoria ampla de racionalidade, ou seja, mudar nossa forma de pensar.

Retomando a crítica de Marx à ideologia capitalista de operação e à crise de autodissolução, Habermas propôs uma autocrítica da racionalidade instrumental que recalcou as regiões do sentido. A realidade atual, segundo ele, é produto da racionalidade técnico-científica que transformaram a ciência e a técnica em instrumento ideológico para encobrir e legitimar a dominação social. É uma ideologia que encobre a desumanização e a servidão impostas pelo progresso técnico e científico sobre os membros da sociedade.

Habermas entende que a teoria crítica da Escola de Frankfurt permaneceu presa ao paradigma da consciência, não lhe permitindo dar um passo para além dos três conceitos centrais: a razão, a verdade e a democracia. Além disso, acredita que é preciso superar a discussão entre o positivismo e a dialética e entre o marxismo e o racionalismo. Por isso propõe o abandono deste paradigma e a retomada do paradigma da linguagem, da razão comunicativa, que busca uma verdade consensual por meio do diálogo livre de coação. Sua Teoria da Modernidade é concebida a partir de um conceito de sociedade no qual associa a perspectiva subjetiva interna do "mundo vivido" com a perspectiva objetiva do externo ou sistêmico e do resgate de um conceito de uma racionalidade voltada para um diálogo construtor de consenso. Sem, no entanto, perder a criticidade teórica. Pois, segundo ele, faz-se necessário o questionamento do procedimento lógico-formal compreendido pela ciência como o único caminho para a verdade.

Com esta teoria busca explicar a origem e desenvolvimento da modernidade social da Europa Ocidental e diagnosticar suas patologias e o não cumprimento de suas promessas para propor a correção nestes desvios deste projeto. Ele dá uma amplitude maior à teoria evolucionista da modernidade e nisso valoriza o processo evolutivo das sociedades do passado e do presente. Num linguajar mais simples, daria para afirmar que não podemos jogar fora a longa história da luta humana que buscou o conhecimento, a liberdade e a emancipação. Acredita na capacidade de aprendizagem das sociedades atuais em alcançar novos princípios de organização através de descentrações capazes de levar ao planejamento de novos processos societários. As sociedades cada vez mais complexas exigem um processo de argumentação ("discursos") que possibilite a elaboração de novos princípios universais para a estruturação de sociedades futuras. E este processo só se realiza através de um aprendizado coletivo no qual se aprende o manuseio das novas formas de organização, na medida em que se desconstrói as formações opressoras mediante o diálogo argumentativo.

A Teoria da Modernidade de Habermas distingue dois processos na constituição da modernidade: a modernização e a modernidade cultural. A modernização é o processo que se sucedeu através da racionalização dos subsistemas econômico e político. E a modernidade cultural é a autonomização das esferas de valor: a ciência, a moral e a arte no âmbito do mundo da vida. Este mundo da vida se estrutura por meio de vivências comuns dos diferentes atores sociais que partilham entre si a língua, os costumes as tradições e a cultura. A continuidade deste mundo da vida dá-se por meio da dialética entre a vontade de continuação das certezas intuitivas e a necessidade da crítica a estas certezas (Cf. Freitag, 1993:25).

O complemento do mundo da vida é o sistema. Habermas cria este conceito para falar das estruturas que formam e reproduzem a sociedade no seu nível material e institucional. Estas estruturas se configuram em sub-sistemas: a Economia e o Estado. Na sua auto-regulação, estes dois sub-sistemas se realizam por meio do dinheiro e do poder. Assim, na sociedade capitalista o mercado constitui-se em um mecanismo sistêmico que passa a coordenar todas as ações dos atores dentro do sistema. Instala-se aqui uma lógica de caráter funcional que determina todas as ações, eliminando-se o agir comunicativo. Na prática, a Economia e o Estado foram racionalizados de tal forma que a razão tornou-se serva de seus interesses, tirando da racionalidade a capacidade comunicativa de crítica e "recrítica" deste sistema. Numa analogia poderíamos dizer que o novo paradigma categórico é: -"Você precisa se submeter ao mercado". Com isso essa racionalidade jamais permitiu um questionamento dos seus princípios de funcionamento.

Na Teoría da Modernidade Habemas elenca quatro processos transformadores pelos quais passaram as sociedades nos últimos períodos da modernidade: "os processos de diferenciacao (Ausdifferenzierung), de racionalizacáo (Rationalisierung), de autonomizacáo (Autonomisierung) e de dissocia^áo (Entkoppelung)" (Freitag, 1993:28). Diferenciacao é a superacáo do pensamento unificado na religiáo da idade média. Ela cria um processo de descentramento capaz de possibilitar a inclusáo de novas e diferentes formas de organizacáo social. Concretamente falando, ela se materialzou na divisáo económica e política, por exemplo, na divisáo do trabalho e na questáo do poder. A autonomizacáo é urna relativa separacáo de um dos subsistemas da esfera social que cria um funcionamento próprio a partir de princípios próprios aos seus interesses. Gomo exemplo, na libertacáo da ciência da tutela da religiáo. Já a racionalizacáo representa as transformacóes que se sucederam no sistema através da razáo instrumentalizada. Passou-se a privilegiar cálculos de eficácia e de resultados, fazendo com que os meios sejam concebidos ou ajustados segundo os fins definidos e perseguidos. A eficácia se tornou o próprio fim, isto é, um fim em si mesmo. Gom essa racionalizacáo a razáo comunicativa é alijada do processo constitutivo da sociedade. Os fins passam a ser impostas pelos detentares dos mecanismos de mercado, do dinheiro, e da política, do poder. A democracia perde sua realizacáo porque não há mais a possibilidade de urna discussáo aberta para a coletividade escolher os fins. E, por último, a dissociacáo é o processo de distanciamento entre o controle sobre a producáo de bens materiais e as necessidades sociais do cotidiano. Assim a economía e o poder constituem-se como verdades naturais que não podem ser mais questionadas e que se auto-regulam.

O Mundo Sistémico, constituído pela racionalidade económica, representada pelo dinheiro, e pela racionalidade administrativa, representada pelo poder, indadiu e colonizou o Mundo da Vida. Segundo Habermas,

O que conduz a urna racionalizagáo unilateral ou a urna coisificagáo da prática cominicativa cotidiana (...) é a penetragáo das formas de racionalidade económica e administrativa no ámbito da agáo que, por ser ámbitos de agóes especializadas na tradigáo cultural, na integragáo social e na educagáo e necessitar incondicionalmente do entendimento como mecanismo de coordenação da ação, resistem a permanecer assentados sobre os meios dinheiro e poder (Apud Prestes, 1996:87).

Consequentemente, a crise da Modernidade decorreu do "desengate" entre o mundo da vida e o sistema. Pois a dissociação faz com que os seres humanos sejam submetidos às leis do mercado capitalista e à burocracia do Estado. Este dois se constituem como forças gigantescas, criando a sensação de dependência total e exaurindo qualquer força de resistência por parte da sociedade. A sociedade torna-se apática, o que permite à minoria rica e seus burocratas ditarem as regras do jogo societário sobre a maioria. Assim, desemprego, fome, doença, analfabetismo, degradação ambiental são considerados como problemas naturais, como catástrofes ou destinos da natureza.

A racionalização, razão instrumentalizada, invadiu o mundo da vida, tornando-se a mais nova forma de colonização. O sistema impôs seu jogo dominador através da economia e da política. A razão comunicativa foi eliminada do processo, suprimindo a reserva de valores que permitiriam o questionamento e a discussão de princípios fundamentais como a verdade, a moralidade e a expressividade necessárias para a concepção de fins segundo o interesse da maioria (Cf. Freitag, 1993:28-29). Essa é a crítica de Habermas. Ele não deseja acabar com a razão, mas ataca o uso instrumentalizado da mesma e sua adesão ao sistema capitalista.

A crítica centra-se no modelo de dominação da sociedade avançada que submete a individualidade à totalidade social, restringindo o agir a tal ponto que não resta outra saída senão aderir a essa sociedade. A adaptação a esse modelo representa a segurança e a garantia de que nenhum mal poderá ameaçar a sobrevivência do eu individual. Esse pressuposto iluminista, porém, acaba gerando um pavor, reduzindo tudo à necessidade de auto-observação, pois qualquer tentativa de sair desse modelo significa cair na 'pré-história'. No fundo, a razão se torna auxiliar do aparato econômico que abrange o capital, por um lado, e a força de trabalho, por outro (Pizzi, 1994:27).

A dicotomia entre a teoria e a prática fez da teoria um instrumento de dominação científica. Acontece a coisificação da vida. A subjetividade individual se impõe de tal forma que o eu nega a existência do outro, impedindo a afluência de intersubjetividades. Processa-se uma interdependência entre ciência, técnica e administração estatal fazendo da ciência uma força a serviço da produção.

Diante disso, Habermas propõe uma teoria da racionalidade comunicativa que que amplie a capacidade da razão devolvendo-a ao mundo da vida. Esta racionalidade deve integrar três elementos fundamentais: o cognitivo-instrumental (conhecimento técnico), o prático-moral, ou seja, a construção de regras a partir da realidade para a organização da conduta humana e o estético-expressivo que estimule o uso e desenvolvimento da criatividade, da emoção e dos sentimentos.

Esta teoria remete para o estudo da linguagem comunicativa - as diversas linguagens - para uma teoria da ação comunicativa. Propõe um novo paradigma, uma nova lógica de pensar e entender, a da relação comunicativa, onde o consenso é alcançado através de um processo argumentativo entre diferentes opiniões, sem anular os conflitos. É a busca de entendimento entre os sujeitos sobre as coisas e fatos do mundo em todos os âmbitos (local, regional, mundial) em três contextos distintos e inter-relacionados: o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e o mundo subjetivo das vivências e emoções.

O conhecimento passa a ser o resultado de uma realização intersubjetiva, um fenômeno social resultante de uma transação entre sujeitos que buscam entendimento sobre algo no mundo. Acentua-se o caráter histórico de todo e qualquer conhecimento, não se abandona o passado, mas se faz uma releitura dos acontecimentos à luz dos novos desafios do presente, uma leitura interpretativa dos conceitos e teorias com que lidamos.

Paralelo e complementarmente ao novo paradigma da razão comunicativa de Habermas, Edgar Morin desenvolveu seu paradigma da complexidade. Sua teoria busca a articulação e a conectividade dos saberes (Morin, 2001). No contexto, por exemplo, do ensino por disciplinas, elas ajudam o avanço do conhecimento e são insubstituíveis. O que existe entre as disciplinas é invisível e as conexões entre elas também são invisíveis. Não é certo conhecer somente uma parte da realidade. É preciso ter uma visão capaz de situar o conjunto.

Para desenvolver sua teoria Morin construiu uma epistemologia da complexidade que, segundo ele, "[...] toma forma a partir do conhecimento, que compreende o conhecimento dos limites do conhecimento. Não há conhecimento 'espelho' do mundo objetivo. O conhecimento é sempre tradução e construção. Daí resulta que toda observação e toda concepção devem incluir o conhecimento do observador que concebe. Não há conhecimento sem autoconhecimento" (Morin, 2002:200-201).

Morin propõe a adoção de uma epistemologia construtivista que introduza a complexidade social em todas as áreas do conhecimento, articulando as ciências entre si para que se reconheça a dimensão vivencial e se restaure o pensamento dos grandes problemas antropossociais.

Por isso, um dos princípios para efetivar a teoria da complexidade é o diálogo. O diálogo entre todos os saberes. Objetiva-se com isso a constante aproximação entre pontos de vista antagônicos mediante a convicção de que todos os opostos são complementares. O que permite reconhecer que os antagônicos são indissociáveis e indispensáveis. Aqui reside a complexidade. Existe complexidade quando os elemntos e os saberes são reconhecidos como inseparáveis e que, assim, constituem o todo. São, portanto, constituintes de um tecido interdependente, interativo, e inter-retroativo na relação do conhecimento com a realidade contextual, realizando uma união entre unidades e multiplicidades (Morin, 2001).

O corpo nos novos paradigmas da complexidade

No contexto da Modernidade o corpo sempre foi visto e vivido na perspectiva da fragmentação, como uma disjunção entre matéria e espírito/ alma. Dentro da ordem capitalista desenvolveu-se um corpo-operário instrumento de força de trabalho e reprodução. Um corpo taylorizado, preso à lógica do rendimento produtivo que provocou sua individualização.

Na atual sociedade pós-industrial as representações do corpo estão cada vez mais multifacetadas e fragmentadas. Temos hoje o corpo-mídia em absoluta evidência, o corpo-transformação (homossexualismo), corpo-pele, corpo-estética, corpo-instrumento, corpo-mercadoria, corpo-produto, corpo-doença, corpo-manequim, corpo-nu, corpo-vestido, corpo-sarado, corpo-explorado. O corpo,

[...] na sociedade contemporânea, traz consigo toda a história do homem e da humanidade em seus diferentes momentos, seja na história, na filosofia, na antropologia com todos os seus atenuantes culturais e religiosos. O corpo carrega resquícios dos idealismos, dos dualismos, dos determinismos, dos cientismos, (COMBLIN, 1985). De uma forma ou de outra, é cada vez mais escravo do capital e a tudo o que a ele se relaciona, do trabalho, da tecnologia, da ciência, da globalização e da mídia que o marca e o rotula, sendo designado conforme sua utilização em corpomer-cadoria ou em corpo-objeto, a serviço ora de uns, ora de outros, em uma luta incessante para sobreviver, não libertando-o, mas submetendo-o no sentido de sua dependência. Nessa perspectiva, a alguns cabe o papel de dominar e a muitos o de dominados, sendo neste caso, nesta sociedade o dominador, aquele que aliena, que coisifica o homem, o protagonista da história e o dominado, o alienado o antagonista da história, o que vem a caracterizar, a grosso modo, essa inversão de valores que é "normal" e que banalizou-se na contemporaneidade (Bozza y Ahlert, 2009:10).

Superar essa realidade fragmentária de corpo herdada da Modernidade ainda se coloca como um desafio fundamental em todo o processo educativo. Por que uma educação emancipadora, realizadora da busca do ser mais ser humano, uma educação libertadora, desveladora da realidade de opressão e exclusão demanda uma outra compreensão de corpo, muito mais larga e inclusiva.

Segundo Paulo Freire,

[...] o corpo é o que eu faço, ou talvez melhor, o que eu faço faz o meu corpo. O que acho fantástico nisso tudo é que meu corpo consciente está sendo porque faço coisas, porque atuo, porque penso. A importância do corpo é indiscutível; o corpo move-se, age, memoriza a luta de sua libertação, o corpo afinal deseja, aponta, anuncia, protesta, se curva, se ergue, desenha e refaz o mundo. Nenhum de nós, nem tu, estamos aqui dizendo que a transformação se faz através de um corpo individual. Não, porque o corpo também se constrói socialmente (2006:92).

Freire aponta para a importância de resgatarmos a questão do corpo em nossas práticas pedagógicas. Não mais como uma questão de disciplinas estanques, mas um processo dinâmico que intercruza os mais diferentes saberes. E neste empreendimento as teorias da ação comunicativa e da complexidade podem nos conduzir para uma ação interdisciplinar.

O pensamento complexo nos permite compreender que a corporeidade humana é uma emergência do processo de evolução que conduziu, como apontamos anteriormente, a physis., o .bios. e a esfera antropossocial a sucessivos aumentos no grau de complexidade dos sistemas/organizações, a começar com a formação dos átomos, chegando, em nosso planeta, onde se dá a evolução das espécies, à emergência da espécie humana que é detentora de espírito (mente) e consciência. Podemos compreender que a corporeidade guarda a herança de todo este processo evolutivo.

Desta forma, a corporeidade, à luz do pensamento complexo, permite compreendermos o ser humano como ser complexo, estando todas as qualidades e dimensões pertencentes ao humano enraizadas em seu corpo. É através do corpo que podemos identificar a individualidade, a existência e o Ser, os quais remetem à organização (Joáo & Brito, 2004:266).

Com base na epistemología do pensamento complexo e da acáo comunicativa, professores de Educa^áo Física e Ciências Naturais podem desenvolver atividades complementares e interdisciplinares na construc^áo de um conhecimento sobre o corpo que possibilite o reencontró do ser humano consigo mesmo. Novas e empolgantes aventuras e descobertas científicas podem emergir de um trabalho integrado dessas duas áreas do conhecimento.

A modo de conclusáo, alguns desafos para os professores de Educagáo Física e Ciências Naturais

As novas geracóes precisam reencontrar o humano. Esse é o desafio da educa^áo no sáculo XXI. E para isso a educa^áo deve compreender esse ser humano em sua complexidade caracterizada no corpo. Identificar a individualidade e a coletividade que constituem este ser humano pós-industrial. Que remete para a idéia de um próprio "Pós-Humano", brilhante e sarcasticamente refletido numa crónica de Juremir Machado da Silva1 .

Este processo demanda o enfrentamento de alguns desafios para os profissionais da educa^áo de todas as áreas do conhecimento.

1. Um deles é sem dúvida a constru^áo de um diálogo sobre a questáo do corpo de forma interdisciplinar, sustentado numa nova racionalidade que se articule com base na ação comunicativa, qualificadora da argumentação, e com a teoria da complexidade, que permita entender o corpo em toda a sua complexidade enquanto construção de um ser que é ao mesmo tempo biológico e subjetivo (espírito-psíquico-emocional). Pois, conforme Ahlert, "Sin ninguna duda pasa por uma nueva racionalidad, por concepciones ideológicas claras, por planeamientos políticos y técnicos, por teorias de enseñanza y aprendizaje, por uma sinergia entre la Ciência de la Educación y lãs otras áreas del concimiento" (2008:72).

2. Outro desafio educacional é o desenvolvimento de uma convicção fundamental de que já não é mais possível lidar com saberes dissociados, incomunicáveis e fragmentados entre os vários campos de conhecimento. Contra o pensamento único - mito absolutista, buscar uma consensualidade para superar a verdade única, caracterizada objetividade simplista, ilusória do primado da razão sobre as razões.

3. Um terceiro desafio é construir a formação sustentada na docência-pesquisa, que pode ser realizado através de programas de formação permanente em forma de rede, como os Projetos de Aprendizagem e Interdisciplinaridade descritos por Galiazzi et al. (2007:201-224). Existe um vácuo histórico em nosso país relativo à formação docente em termos de pesquisa. E Demos lembra que, "Educar pela pesquisa tem como condição essencial primeira que o profissional da educação seja pesquisador, ou seja, maneje a pesquisa como princípio científico educativo e a tenha como atitude cotidiana" (Demo, 2005:2).

4. Construir uma convergência em torno do corpo em perspectivas mais socializadas, interativas e colaborativas. Isso se alcança com base em pilares epistemológicos que significam a unidade entre cognição e ação e teoria e prática. Uma epistemologia da práxis, de movimentos integrados e compreensivos para superar as posições antagônicas maniqueístas.

5. Eleger a corporeidade como um referencial teórico para uma prática pedagógica interdisciplinar, capaz de enraizar a condição humana para além do seu espaço imediato, ou seja, cósmica e planetária.

6. Estudar e vivenciar o corpo na consciência de que somos seres que apoiamos nossa aprendizagem em processos sensório-perceptivos, que recebemos estímulos através dos sentidos (João & Brito, 2004).

7. Trazer para a sala de aula situações problema que favoreçam o processo auto-reflexivo capaz de romper as fronteiras da aula para além da aula. O conhecimento e as experiências corporais vivenciadas na sala de aula devem alcançar o cotidiano dos alunos, da escola e das famílias.

8.  Desenvolver atividades lúdicas interdisciplinares relativas ao corpo como conhecimento para o exercício e vivência da à qualidade de vida. Atividades lúdicas são e se carregam de complexidade pedagógica e antropológica. Através delas aprendemos a sonhar o mundo, o futuro, e entramos no mundo das linguagens múltiplas, necessárias para apreendermos e entendermos os gestos próprios para relações humanas mais saudáveis e felizes.

9.  Desenvolver conteúdos interdisciplinares que respondam as questões da atualidade concernentes ao corpo, como os transtornos alimentares como bulimia, anorexia e obesidade, bullying, corpo e a mídia, corpo e adolescente, história do corpo, entre outros.

10. Desenvolver o ensino e a aprendizagem sustentados no movimento, para costurar os fios que unem sensibilidade e conhecimento movidos por desejos e intenções. Isso aciona a curiosidade, o pensamento, os sentimentos e a ação prospectiva.

Notas

1. Pós-Humano. "Não digam que não avisei. Essa história de pós-modernidade já era. A pós-modernidade morreu. Estamos é no pós-humano. Também isso não é invenção minha. Apenas relato. Comigo é sempre assim: sou isento, objetivo, imparcial. Não notaram? Descrevo, constato, aproprio-me. Simone Sá criou o termo netnografia. Gostei. É a crônica dos tempos virtuais. O pós-humano está inteirinho no belo livro de Paula Sibilia sobre o pós-orgânico. Mas já se encontrava no magistral 'Partículas elementares', de Michel Houellebecq, dedicado, no seu final, no ano 2009, ao homem. Ao homem que fora substituído pelo pós-humano. É Matrix com talento e ironia. O corpo humano deu o que tinha que dar. Maquininha vetusta, anacrônica, frágil. No pós-humano dá para turbinar a carcaça e usar as tecnologias como radicais extensões do corpo. Tem gente que, por necessidade, coloca um marca-passo. Isso é o grau zero do pós-humanidade. Seio de silicone é apenas a modalidade mais popular, embora a preços ainda elevados. Em seguida haverá transplante de cérebro para louras burras e de corpo inteiro para morenas complexadas. A racionalidade científica existe para satisfazer a irracionalidade do animal humano. Conheço um cara que fez uma operação de alongamento. Instalou mais 8 centímetros de canela. Ficou perfeito. Só que não consegue mais andar. No pós-humano, a infidelidade está com os dias contados. Chips instalados nas genitálias de homens e mulheres permitem o controle, por GPS, em tempo real, e localização do membro traiçoeiro. Quando o crime está prestes a acontecer, o troço emite um bip e a pessoa ameaçada reage acionando a distância um spray paralisante, cujo efeito devastador consiste em determinar uma seqüência de 37 broxadas consecutivas e implacáveis. É a tecnologia a serviço da moral e dos bons costumes. No pós-humano, a transparência é total. Quem ainda quiser ter contato com os últimos suspiros da humanidade, em retrospectiva, leia 'O próximo Amor', de Yves Simon, e 'O Bonde', de Claude Simon. Como o nome indica, 'O Bonde' é uma máquina do tempo que joga para o passado, época bizarra em que tudo era natural: seio, nariz, bunda e até a literatura. Depois, veio o homem transgênico e dessa época, como lembrança jurássica do pleistoceno superior, só restou a Hebe Camargo, o que não autoriza grande nostalgia. A maldição do pós-humano e terrível. Jean Baudrillard, quando esteve, recentemente, no Rio de Janeiro, para lançar 'Power Inferno', uma impiedosa ironia da nossa época, com direito a ridicularizar Matrix, pegou malária. O pós-humano inocula vírus do pré-humano em seus críticos. Os reincidentes são condenados a ler as obras completas do Jô Soares e a rir das charges do Chico Caruso. É mole? Os pós-humanos são punks, hards e não brincam em serviço. Conheci um que já instalou um pênis, geração Pentium 4, para uso exclusivo em raves. Graças ao desenvolvimento tecnológico e científico acelerado, poderemos liberar o máximo de nossos instintos. Mas é muito mais eficaz do que sugeriu Baudrillard. Não só vamos poder nos reproduzir com as amebas, por cissiparidade, a clonagem, como não suportaremos mais as melecas do sexo, as dores do parto, os grunhidos do orgasmo, as pieguices do prazer, as lágrimas da emoção e tudo mais que constitui a breguice da humanidade. Estou otimista. O pós-humano permitirá escolher filhos à la carte em supermercados da procriação. Em breve, teremos a entrega de genes por telefone, junto com a pizza ou o bauru do Trianon. Já existe um acordo entre a Pizza Hut e a Clonaid para uma fusão. Chegará o dia em que nossos netos terão de explicar aos filhos para que serviam as pernas dos humanos, que se transformarão em apêndices, tão inúteis e absurdos quanto o apêndice que temos hoje, cuja única finalidade é facilitar algumas maracutaias contra a previdência. Como não precisaremos mais andar, ficaremos livres dos engarrafamentos, trabalharemos em casa, não teremos de enfrentar a chatice dos outros e, por extensão, perderemos o uso das pernas. No pós-humano, era que já começou, andar só é chique em esteira e com ajuda de personal trainer. Houellebecq, com seu pessimismo contumaz, ofereceu seu livro ao homem. Eu, com meu otimismo contagioso, dedico esta crônica aos macacos. Espero que nunca inventem o silicone" (Silva, 2003:4).

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Recibido el 4 de mayo de 2010
Aceptado el 3 de junio de 2011

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