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Espacios en blanco. Serie indagaciones

versão impressa ISSN 1515-9485

Espac. blanco, Ser. indagaciones vol.23 no.2 Tandil dez. 2013

 

ARTICULOS

Políticas sociais como sistemas simbólicos: regulacóes no campo das disputas sociais

Social policies as symbolic systems: regulations in the social disputes field

 

Idalice Ribeiro Silva Lima*
Maria Vieira Silva**
Úrsula Adelaide de Lélis***

*Professora da Universidade Estadual de Montes Claros. Email: ursulalelis@ig.com.br
**Professora do Programa de Pós-Graduacao em Educacao da Universidade Federal de Uberlándia - Minas Gerais, Brasil. Email: mvs@ufu.br
***Professora da Universidade Federal do Triángulo Mineiro - Uberaba -Minas Gerais, Brasil. Email: idalice@yahoo.com

 


Resumo

As políticas sociais congregam o antagonismo de se apresentarem como consequência e como balizadoras das mazelas produzidas pelos contextos capitalistas neoliberais. Apoiando-se nas contribuiçôes bourdiesianas, este texto defende que essas políticas se materializam na pràtica cotidiana alicerçadas em sistemas simbólicos para a dissimulaçâo, manutençâo e legitimaçâo das hierarquias sociais, culturais e económicas. Assim, grande parte das políticas sociais oriundas da esfera governamental apresenta mecanismos de controle e dispositivos que visam processos de classificaçâo, hierarquizaçâo e distribuiçâo dos bens produzi-dos na sociedade, apresentando as diferenças de poder como diferenças de competência, capacidade, mérito, sorte e conhecimento. Essa trama se processa de forma complexa, mediante mecanismos paradoxais de aceitaçâo, nega-çâo, incorporaçâo e legitimaçâo do status quo. Neste movimento, produzem-se múltiplos mecanismos que estruturam percepçôes e adequam as açôes dos individuos aos interesses da classe detentora do poder em suas diferentes manifestaçôes.

Palavras-chave: Políticas sociais; Sistema simbólico; Campo.

Abstract

Social policies assemble the antagonism of presenting itself as a result and ointment to wounds produced by capitalist neoliberal contexts. Relying on bourdieusian contributions, this text argues that these policies are materialized in everyday practice grounded in symbolic systems for concealment, maintenance, and legitimation of social, cultural, and economic hierarchies. Thus, much of the social policies derived from government have control mechanisms and devices aimed at processes of classification, hierarchy, and distribution of goods produced in society, presenting the power differences as differences in competence, ability, merit, skill and luck. This plot takes place in a complex manner, through mechanisms of paradoxical acceptance, denial, incorporation, and legitimation of the status quo. In this movement, multiple mechanisms that shape perceptions and actions of individuals are produced suited to the interests of the holders of power in its various manifestations.

Keywords: Social policy; Symbolic system; Field.


 

 

Políticas sociais como sistemas simbólicos: Regulaçôes no campo das disputas sociais

O Estado brasileiro, especialmente a partir dos anos 1980, vem empreendendo políticas reformatórias para a adequaçâo do seu formato às políticas neoliberais que modelam o desenho do seu modo de produçâo capitalista em voga. Com esse fim, as reformas têm implementado açôes orientadas para a regulaçâo da sociedade, produzindo um movimento de disputa de forças e interesses, no interior do espaço social.

Dentre as açôes desenvolvidas, ganham relevo as que se localizam no ámbito das políticas sociais, dada a sua capacidade funcional de ajustar a socie-dade aos modelos pensados para a adequaçâo societària. Políticas, que na perspectiva boudieusiana, têm como objeto "todas as misérias do mundo", o que as insere visceralmente aos contextos económicos, sociais, políticos e culturais de onde nascem e se instauram.

Apresentadas como possibilidades de minimizar as "misérias sociais", as políticas sociais carregam na sua essência contradiçôes, jà que tais misérias sâo fruto do mesmo ideàrio que pensa, organiza e oferta tais políticas. Para sustentar esses argumentos, este texto retoma os conceitos bourdeusianos de sistema simbólico e campo, tece algumas conjecturas e apresenta anàlises sobre como as políticas sociais se configuram como tal.

Temos como pressuposto que as políticas sociais se materializam na pràtica cotidiana alicerçadas em sistemas simbólicos para a dissimulaçâo, manutençâo e legitimaçâo das hierarquias sociais, culturais e económicas. Assim, grande parte das políticas sociais oriundas da esfera governamental apresenta mecanismos de controle e dispositivos que visam processos de classificaçâo, hierarquizaçâo e distribuiçâo dos bens produzidos na sociedade, apresentando as diferenças de poder como diferenças de competência, capacidade, mérito, sorte e conhecimen-to. Essa trama se processa de forma complexa, mediante mecanismos paradoxais de aceitaçâo, negaçâo, incorporaçâo e legitimaçâo do status quo. Neste movimento, produzem-se múltiplos mecanismos que estruturam percepçôes e adequam as acoes dos individuos aos interesses da classe detentora do poder em suas diferentes manifestacoes.

Bourdieu construiu um sistema teórico denso e vasto, ladeado de temas diversos, que vào desde a análise das relacoes gerais de dominacào que se processami na sociedade mais ampla até temas com foco mais especifico, tais como religiào, midia, alta costura, escola, dentre outros. Ele é considerado um dos teóricos mais originais do século XX e o cientista social mais citado do mundo. O trabalho desenvolvido por Bourdieu inaugurou um sólido intercambio com diferentes campos disciplinares, quais sejam: Sociologia, Antropologia, Filosofia, Lingüistica, História, entre outros. Ao elaborar um sistema teórico de leitura das relacoes sociais, sua obra proporcionou expressivas contribuyes à reflexào critica das sociedades e dos diferentes espacos de dominacào, cujos mecanismos estào dissimulados, trazendo à superficie tácitas estruturas de poder como tam-bém problematizou estruturas cristalizadas historicamente, desvendando suas formas de funcionamento.

Bourdieu assevera que a organizacào societal constitui campos de poder que tém um sentido ideológico e um sentido pràtico, e, nesses campos, há uma constante luta pelo poder. A nocào de campo é um dos baluartes de sua obra, entendida como uma arquitetura social eivada de dominacào e conflitos. Conforme veremos no decorrer deste texto, cada campo tem certa autonomia e possui estrutura e funcionamento próprios no quadro da hierarquia social. Compreender a lógica das novas paisagens sociais, sob a perspectiva de Bourdieu, possibilitará elucidar as configuracoes do campo das politicas públicas, apreendendo suas limitacoes, tensoes e fissuras no ambito da sociedade contemporanea.

Sistemas simbólicos e campo sob a ótica bourdieusiana

Bourdieu constrói o seu conceito sobre os sistemas simbólicos a partir da análise dos estudos empreendidos por Durkheim, Lévi-Strauss e Marx. Para aquele autor (1989; 2007b), os sistemas simbólicos sào instrumentos de conhecimento e de comunicacào, que exercem um poder estruturante porque sào, em esséncia, estruturados. Eles sào criados e mantidos com o objetivo de organizar as percepcoes e as acoes dos individuos, reproduzindo as diferenciacoes hierárquicas de poder e dominacào social (Nogueira; Nogueira, 2009).

As funcoes desenvolvidas pelos sistemas simbólicos, na perspectiva bour-dieusiana, estào para além do sentido meramente ideológico - "ilusào idealista"— constituindo-se como sistemas de percepcào, pensamento e comunicacào, e as suas produgoes "[...] participam da reprodugào das estruturas de dominacào social, porém, fazem-no de uma forma indireta e, à primeira vista, irreconhecivel" (Nogueira; Nogueira, 2009: 31).

É importante salientar que, ao posicionar as funcoes dos sistemas simbólicos para além da funcào ideológica, Bourdieu (1989) nào nega tal funcào aos mesmos — a qual designa de funcào politica — apenas atribui-lhes também os sentidos da percepcào, do pensamento e da comunicacào, onde a ideologia en-contra campo fértil para se reproduzir e materializar.

Bourdieu (1989) afirma que:

"o poder simbólico é um poder de construgào da realidade que tende a es-tabelecer uma ordem gnosológica. o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supoe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, "uma concepgào homogénea do tempo, do espaco, do número, da causa, que torna possivel a concordancia entre as inteli-géncias" (grifos do autor). (p. 9)

Aliás, nesse posicionamento bourdesiano, o conhecimento, a comunicacào e a ideologia estabelecem uma relagào de complementariedade por tornarem "[...] possivel o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodugào da ordem social: a integragào 'lógica' é a condigào da integragào 'moral'" (Bourdieu, 1989: 10). Essa relacào, para esse autor (1989), tem como propósito a naturalizacào e a universalizacào do que é particular e produzido culturalmente.

"As ideologias, [...], servem [a] interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integracào real da classe dominante (assegu-rando uma comunicacào imediata entre todos os seus membros e distin-guindo-os das outras classes); para a integracào ficticia da sociedade no seu conjunto, portante à desmobilizagào (falsa consciéncia) das classes dominadas; para a legitimagào da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distingòes (hierarquias) e para a legitimagào dessas distin-gòes. Esse efeito ideológico produ-lo a cultura dominante dissimulando a funcào de divisào na funcào de comunicacào: a cultura que une (intermedi-ário de comunicacào) é também a cultura que separa (instrumento de dis-tincào) e que legitima as distincoes compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distancia em relacào à cultura dominante" (Bourdieu, 1989: 10-11, grifos nossos).

Nesse caso, todas as relacoes de comunicacào, muitas vezes forjadas pelo designio de interacionistas, sào relacoes de poder (Bourdieu, 1989; 2007b). Possuem um caráter subjetivo e objetivo, isto é, praxiológico (Nogueira; Nogueira, 2009).

Ao ampliar as funcoes dos sistemas simbólicos com os sentidos da percep-cào, do pensamento e da comunicacào, Bourdieu fomenta o caráter ideologizante e fundamental dos mesmos, no processo de reproducào e legitimacào das hierar-quias sociais, quando esses sistemas se apresentam como estruturas estruturan-tes, e desempenham uma funcào politica. Aqui, a cultura dominante exerce, segundo esse autor (1971 apud Miceli, 2007), sua funcào lógica e gnosiológica de ordenacào do mundo e de fixacào de um consenso a seu respeito, legitimando uma ordem arbitrária.

"em termos mais precisos é porque enquanto uma estrutura estruturada ela [a cultura] reproduz de forma transfigurada, e, portanto, irreconhecível, a estrutura das relaçôes socioeconómicas prevalecentes que, enquanto uma estrutura estruturante (como uma problemàtica), a cultura produz uma re-presentaçâo do mundo social imediatamente ajustada à estrutura das rela-çôes socioeconómicas que doravante passam a ser percebidas como naturais e, destarte, passam a contribuir para a conservaçâo simbólica das rela-çôes de força vigentes (Bourdieu, 1971 apud Miceli, 2007: 12).

Miceli (2007) analisa que toda relaçâo de sentido é referida e determinada por um sistema de relaçâo, e que, na sua obra, Bourdieu busca aliar a organizaçâo interna do campo simbólico - "[...] possibilidade de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representaçôes que nâo passam de alegorias que simulam a estrutura real de relaçôes sociais [...]", - à sua funçâo ideológica e política que legitimam "[...] uma ordem arbitrària em que se funda o sistema de dominaçâo vigente" (p.14).

Se, para Marx, a consciência é produzida pelas condiçôes objetivas de e-xistência - intrinsecamente ligadas à forma como o homem produz essa existência - para Bourdieu, tais condiçôes encontram-se determinadas pela açâo dos sistemas simbólicos, a partir das funçôes comunicativas e ideológicas.

Esse processo de produçâo simbólica implica violência simbólica pelo seu "[...] poder de impor - e mesmo de inculcar - instrumentos de conhecimento e de expressâo (taxionomias) arbitràrios - embora ignorados como tal - da realidade social" (Bourdieu, 1989: 12). Assim, os sistemas simbólicos sâo formas arbitràrias de percepçâo e representaçâo da realidade (Nogueira; Nogueira, 2009).

Arbitràrias porque, produzidas, particularizadas e impostas por uma classe, grupo ou campo, apresentam-se como naturais e universais, legitimando a hierarquia da dominaçâo que define o mundo social: o que é vàlido e o que nao é; o que é legítimo e o que nao é; a quem cabe cada papel e cada funçao social. A arbitrariedade de um sistema reside no fato de o mesmo nao ser reconhecido como tal, apresentar-se aos outros como natural, legítimo, ignorado como arbitràrio.

O poder simbólico é irreconhecível, dissimulado, eufemizado. "O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou a de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produçâo nâo é da competência das palavras" (Bourdieu 1989: 15), mas sim do próprio sistema que as gerou. O poder simbólico transubstancia as "[...] relaçôes de força fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispèndio aparente de energia" (Bourdieu, 1989: 15).

Miceli (2007) nos lembra que a noçao de arbitrariedade dos sistemas simbólicos, em Bourdieu, nao

"deve ser confundida com a ideia de gratuidade, uma vez que um determinado sistema simbólico é sociologicamente necessàrio porque deriva sua e-xistência das condiçôes sociais de que é o produto, e sua inteligibilidade da coerência e das funçôes da estrutura das relaçôes significantes que o constitui" (p.26)

A imposiçâo simbólica derivada de tal processo, ocasionada pelo "[...] poder quase màgico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força [...]" (Bourdieu, 1989:14), traduz-se em violência simbólica "[...] imposiçâo da cultura (arbitràrio cultural) de um grupo como a verdadeira ou a única forma cultural existente" (Nogueira; Nogueira, 2009: 33). Através desse processo, os dominados tendem a apresentar dois tipos de comportamento: reconhecem a superioridade da cultura dominante e buscam se aproximar ou se converter a ela, ou se contrapôem à hierarquia cultural dominante, objetivando reverter a posiçao ocupada por esta cultura, açao esta impossível, segundo Bourdieu (Nogueira; Nogueira, 2009), mas que, por vezes, vem se materializado na realidade.

As crenças encarnam a violência simbólica, radicadas no desconhecimen-to, superadas apenas pelo desenvolvimento do pensamento crítico e pela consci-entizaçao dos sujeitos do caràter arbitràrio das mesmas. Aliàs, a arbitrariedade é a essência constitutiva das crenças.

A violência simbólica envolve

"o desconhecimento da dominaçâo como tal [...]. Os dominados jamais en-tenderiam as origens e a condiçao de sua dominaçao. Apenas os intelectu-ais (ou pelo menos alguns deles) teriam acesso aos segredos escondidos da sociedade e da dominaçao sobre a qual ela jaz; ao passo que os indivíduos submetidos estariam cegos e surdos por sua submissâo" (Burawoy, 2010: 16).

Esse processo jamais poderia se dà por uso da força física, "[...] da manipulaçâo autoritària ou populista que é uma pràtica inútil e perigosa [...]" (Burawoy, 2010: 16). Ele se instaura pela sutileza da inculcaçao ideológica, que é dissimulada, mistificada, apresentada como natural e nao produzida, e, portanto, nao reco-nhecida como tal.

Burawoy (2010) nos esclarece que:

"o poder simbólico de um produto cultural reside justamente na autonomia usufruída por seus campos de produçao - autonomia necessària para que a distinçao conferida por seu consumo seja vista como algo naturalizado e desconectado das precondiçôes económicas e dos fundamentos de classes social" (p.36).

A hierarquizagao do mundo social - nascente de disputas - concede aos bens culturáis distintivos que denotam poder e prestigio. Ao possuírem os bens de prestigio - aqueles que traduzem transfiguradamente o universo dos dominantes - os sujeitos passam a ter a posse de capitais, o que Ihes confere poder, vanta-gens e posicionamento social. A posigao social do individuo é determinada pelo seu volume e variedade de recursos (do bergo à trajetória social) (Nogueira; Nogueira, 2009). Ou seja, é a posse de capitais que determina a posigao do sujei-to no campo.

Nessa perspectiva, "o capital [...] é mais uma relagào entre capitalistas do que uma relagao entre capitalistas e trabalhadores" (Burawoy, 2010: 37), dado que esses nao tém consciéncia da sua dominagao. Na perspectiva bourdieusiana, as classes dominadas nao tém condigoes de aspirar a uma mudanga de classe, porque nao tém a dimensao da sua condigao de dominados, o que os impede de terem disposigoes e aspiragoes revolucionárias, como pregam os marxistas (Burawoy, 2010).

Os sistemas simbólicos encontram-se fundados no campo - conceito primordial em Bourdieu, que congrega aspectos sociais e económicos - entendido como espago das relagoes sociais, onde se dao a produgao, o consumo e a classi-ficagao dos bens. Bourdieu (2008) também compartilha da ideia de que consumos diferenciados expressam distingao entre classes sociais. Para este autor (2008), é possivel mapear o espago social através do gosto alegado pelos individuos, porque à hierarquia socialmente reconhecida das artes e, no interior delas, dos géneros, estilos e épocas, corresponde a hierarquia social dos consumidores. Por isso, o gosto e estilo sao marcadores privilegiados de classe e desempenham a fungao social de legitimagao das diferengas sociais. Uma contraposigao de tomadas de posigao estéticas revela diferengas sociais (Sá, 2011; 2012).

Destarle, no àmbito do campo, grupos ou especialistas produzem e se a-propriam dos sistemas simbólicos de acordo com interesses particularistas de classes. Neste sentido, as ideologias sao sempre multi-determinadas: pelos interesses de classes ou das fragoes de classes que representam, pelos interesses de quem as produz, e pela lógica do campo de produgao (Bourdieu, 1989). Essa perspectiva, para Bourdieu, evita a unilateralizagao empirista ou idealista sobre as mesmas.

O campo é permeado pelas disputas de poder entre os que ocupam posi-goes dominantes e posigoes inferiores. Aliás, "[...] a estrutura social se define em fungao do modo como se distribuem, em dada sociedade, diferentes formas de poder, ou seja, diferentes tipos de capital" (Nogueira; Nogueira, 2009: 41).

Para Bourdieu (2007b: 36), em todo campo se estabelecem polarizagoes entre "[...] instituigoes ou agentes que ocupam posigoes opostas na estrutura da distribuigao do capital específico". Daí o mesmo considerar o campo como espago de disputas pela posse e concentragao de capitais.

Em um campo, trava-se principalmente uma "[...] batalha ideológica, ex-pressào da luta de classes e do processo prevalecente de dominagào" (Miceli, 2007: 25), e cada campo é composto por um tipo especifico de capital: o económico, o cultural, o politico etc, passiveis de se converterem uns nos outros (Bourdieu, 2007a). Esses capitais, e todo o seu processo distributivo, afetam a estrutu-ra do campo, o que nos leva a supor que a estrutura de um campo depende da concentragao e do tipo de capital que os seus sujeitos possuem.

Referenciando-se em aspectos do sistema teórico de Bourdieu, sobretudo nos conceitos de sistemas simbólicos e campo, abordaremos, na segao que se segue, a ambivaléncia das politicas sociais contemporàneas.

Políticas sociais e poder: a regulacào social

Na interpretagao do conceito de regulagao, Barroso (2003: 728) afirma que esta é constitutiva de "[...] qualquer sistema e tem por principal fungao assegurar o equilibrio, a coerència, mas também a transformagào desse mesmo sistema". Assim, orientaria o "[...] funcionamento do sistema, mas também o (re)ajustamento da diversidade de agoes dos atores em fungao dessas mesmas regras" (Barroso, 2003: 731). O amálgama da pluralidade de fontes, finalidades e modalidades de regulagao decorreria da diversidade de posigoes, interesses, e estratégias dos atores sociais envolvidos. Portanto, a regulagao é constitutiva de "[...] qualquer sistema e tem por principal fungao assegurar o equilibrio, a coerància, mas também a transformacäo desse mesmo sistema" (Barroso, 2003: 733).

"A diversidade de fontes e modos de regulagao faz com que a coordenagao, equilibrio ou transformacao do funcionamento do sistema educativo resul-tem mais da interaccao dos vários dispositivos reguladores do que da apli-cacao linear de normas, regras e orientacoes oriundas do poder politico. Por isso, mais do que falar de regulagao seria melhor falar de "multi-regulagao", já que as accoes que garantem o funcionamento do sistema [...] sao determinadas por um feixe de dispositivos reguladores que muitas vezes se anulam entre si, ou pelo menos, relativizam a relacao causal entre principios, objetivos, processos e resultados. Os ajustamentos e reajustamentos a que estes processos de regulacao dao lugar nao resultam de um qualquer imperativo (politico, ideológico, ético) definido a priori, mas sim dos interesses, estratégias e lógicas de acao de diferentes grupos de actores, por meio de processos de confrontacao, negociacao e recomposicao de objetivos e poderes" (p. 734).

Da perspectiva do autor (2003), seria possivel fazer a sintese ou superar os con-flitos entre os processos de regulacao existentes. Isto porque os diferentes atores sociais seriam os "nós da rede" na tessitura da regulagao do sistema (e seus resultados), urdida com os fios da complexidade e da imprevisibilidade, as quais dificultam alguma determinacao - ou "um mínimo de seguranga e de certeza" -na "diregao que ele vai tomar" e "tornam bastante improvável o sucesso de qualquer estratégia de transformacao baseada num processo normativo de mudanca, como sao as reformas" (Barroso, 2003: 735). Trata-se de um problema que tam-bém envolve a própria regulacao das politicas sociais.

Desigualdade, injustica social, precarizacao de recursos e pobreza consti-tuem as bases que justificam a elaboracao das politicas sociais, destinadas ao atendimento de parcelas da sociedade que nao tém acesso a determinados bens e servicos, isto é, encontram-se alijadas das condicoes necessárias á participacao na vida social. Temos como pressuposto que as politicas sociais, elaboradas e implementadas sob a égide das relacoes capitalistas, sao constituintes e constituidoras de sistemas que vinculam e fomentam a lógica da desigualdade mediante a violéncia simbólica. Á primeira vista, tal assertiva poderá produzir algumas perplexidades uma vez que, historicamente, as politicas sociais sao tidas como elementos fundamentais para a garantia da propalada cidadania. No entanto, um olhar mais atento nos conduz a indagaçôes sobre os dispositivos que alimentam e fomentam as relaçôes de poder presentes nos principios e práticas das políticas sociais.

Pressupomos as políticas sociais como açôes de cunho estatal ou nâo, com características públicas, que visam amparar sujeitos alijados dos bens essen-ciais à sobrevivência, a fim de manter a força de trabalho necessària ao desenvolvimiento do capital. Assim, tais açôes congregam-se como modelo de resposta às intempéries do capitalismo (que exclui diversas categorias do usufruto dos bens e serviços básicos à sobrevivência), ao mesmo tempo que fomentam tal modelo por propagar as desigualdades necessárias à reproduçâo do sistema de produçâo e acumulaçâo do capital.

Entendidas sob essa ótica, as políticas sociais desenvolvem açôes próprias dos sistemas simbólicos, constituindo-se como base de poder, com propósitos de dissimulaçâo de hierarquias sociais em simbólicas e legitimaçâo dessas mesmas hierarquias. Exercem, portanto, funçôes de conhecimento, comunicaçâo e ideologia.

Um sistema simbólico é necessàrio porque produzido pelas condiçôes sociais. No caso das políticas sociais, ao se apresentarem como instrumentos para a igualdade social, melhoria do bem-estar e igualdade de oportunidades (Faleiros, 2009), tais políticas atendem, sagazmente, à coerência e à estrutura das relaçôes sociais que as produziram. Dessa forma, elas sâo sempre funcionais à estrutura social de onde nascem, atendendo-a pronta e plenamente.

Dessa forma, apresentam o poder de estruturar pensamentos e compor-tamentos sociais, imprimindo nos sujeitos, através de suas estratégias mínimas de distribuiçâo de bens e serviços, a dependência permanente por tal procedimento. Assim, mantém esses sujeitos sob sua guarda e gestâo.

Tal fato se dá porque, no contexto do capitalismo de orientaçâo neoliberal, as políticas sociais ganham um cunho assistencialista, cumprem o papel de reproduzir as diferenças sociais e legitimá-las, sem, contudo, deixar transparecer tal funçâo. Apresentadas como políticas para o resgate da dignidade humana, elas mantèm os sujeitos alijados do controle dos processos de produgao e usufru-to de bens e servigos na posigao de dominados.

Behring (2007: 24) analisa que, realizadas por esse viés, tais politicas sao inférteis do ponto de vista da realizagào social, dado que "é irrealizável todo conjunto de 'solugoes' para a questào da desigualdade, que remetam apenas às esferas da distribuigao e do consumo, diga-se da circulagao, quando a chave do problema está na produgào".

As politicas sociais vao para além da perspectiva redistributiva - caráter assistencialista de distribuigao de bens e servigos minimos - porque produzem mecanismos de controle e estruturagao do pensamento e das agoes, revelando o potencial simbólico das mesmas, o que as possibilita incidir diretamente sobre a construgao do sentido de mundo, de sociedade, legitimando crengas e colaborando sobre a reprodugao das hierarquias sociais.

Revestidas de tal poder, as politicas sociais atendem às fungoes de conhe-cimento, comunicagao e ideologia por engendrarem naturezas constitutivas de ordem social, econòmica e politica que as sustentam e lhes atribuem sentidos.

Ao produzirem agoes de controle e estruturagao do pensamento, tais politicas afirmam como natural a hierarquizagao da sociedade, e distinguem o que cabe a um e outro nessa classificagao. Sustentando-se no discurso da igualdade e do bem comum, legitimam a ordem produzida que determina que a alguns cabe o acesso irrestrito aos bens e servigos construidos socialmente. A outros, a dependencia à oferta parcial a tais bens, nao porque resultado da disputa entre os sujeitos, mas sim por ordem natural da sociedade.

Bourdieu (1989) enfatiza que a definigao dominante do que cabe a um ou a outro, na sociedade, é um dos mecanismos ideológicos que mistifica o que seria próprio a cada sujeito na ordem social, através da inculcagao ideológica, realizada imperceptivelmente pelos sistemas simbólicos.

Estabelece-se, assim, a ordem social, negando que o discurso da igualda-de e do acesso universal a bens e servigos - propalado pelas politicas sociais - na realidade, apresenta-se extremamente parcial e focalizado, dado que tais politicas se fundamentam em critérios de exclusao, pobreza, desigualdade, incapacidade de gerar renda e sustento por si pròprio, enfim, sobre critérios de negatividade da cidadania.

A fungao ideològica ensejada pelas politicas sociais é extremamente eficaz sob a lògica segregadora do capital, posto que apresentam as diferengas de poder e distribuigao do poder que permeiam o campo societário como diferengas de capacidade, mérito, sorte, conhecimento. E o que se apresenta como defesa e possibilidade de constituir-se como condigao para uma vida digna serve para legitimar a hierarquia social construida.

Assim, desenvolvendo-se de forma parcial e focalizada - simulando um atendimento assistencial, de caráter temporário, mas que na verdade caracterizase como assistencialista -, as politicas sociais tendem a perpetuar o status quo dos sujeitos sob o seu jugo, reproduzindo as hierarquias sociais. Destarle, tais hierarquias apresentam-se perante a sociedade de maneira eufemizada como simbòlicas, legitimando e justificando as diferengas sociais.

No campo das politicas sociais, as disputas organizam-se em torno da consubstanciagao dos direitos, ou melhor, em torno da remediagao dos direitos nao garantidos pelas ordens social, econòmica, educacional e politica. Envoltos pela mistica da dominagao simbòlica, tais direitos transformam-se em beneficios, colocando os sujeitos em situagao de dependencia dos atos benevolentes da doagao, da ajuda, e do auxilio parciais.

O caráter simbòlico das politicas sociais, acomodadoras da situagao de ex-clusao e pobreza, impede que os sujeitos percebam que tal situagao lhes é imposta pela pròpria estrutura social, e que grande parcela dessas politicas menos-preza estratégias de desenvolvimento local, geragao de renda, educagao, melho-ria dos servigos públicos, que poderiam realmente reverter essa situagao.

Bourdieu (2007b: 38) defende que essa é uma relagao ingenua que se es-tabelece entre o sujeito e o capital simbòlico, que somente poderia ser revertida se esse sujeito conseguisse "[...] apreender como tal a estrutura objetiva que comanda essas disposigòes", fato que ele desconsidera que possa acontecer, já que o senso comum é sempre o mau senso no mau sentido.

A surdez e a cegueira às quais estâo submetidos os dominados - resultantes da dominaçâo simbólica - conforme nos esclarece Burawoy (2010), impedem-nos de perceber que as promessas, desígnios, intençôes e objetivos elencados nos textos das políticas sociais nâo sâo fomentadores de inclusâo social, que muito mais do que assistência ou assistencialismo, exige inserçâo laboral e supremacia da cidadania.

As políticas sociais nascem no contexto anunciado da defesa da cidadania para dizimar as desigualdades geradas pelo desenho societário resultante das orientaçôes neoliberais para as sociedades capitalistas. Empreendendo açôes que, em tese, deveriam (re)conduzir os sujeitos sob sua tutela à vida social plena, grande parte das políticas sociais, nesse ámbito, apresenta-se como mecanismos de controle e regulaçâo do processo social.

Para cumprirem tal intento, elas desempenham papéis de comunicaçâo, conhecimento e ideologia, reproduzindo as desigualdades sociais e organizando as percepçôes que os sujeitos têm da realidade. Tal empreendimento só lhes é possível graças ao poder simbólico que emanam e lhes capacita para incidirem sobre a construçâo da sociedade e sobre o sentido de mundo.

Ao exercerem poder simbólico, as políticas sociais desempenham funçôes de censura e arbítrio e determinam papéis nas regras do jogo social. Com efeito, as políticas sociais, sob o prisma do poder simbólico, tendem a se efetivar en-quanto instrumentos por excelência da integraçâo social da "massa sobrante", por meio do consenso e contribuindo fundamentalmente para a reproduçâo da ordem social de forma tácita e imperceptível. Com efeito, tendo como referência a dinámica do poder simbólico, as políticas sociais podem contribuir para corroborar a lógica da integraçâo fictícia da sociedade daqueles que estâo em situaçâo de pauperismo. De forma "quase mágica", o poder simbólico permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física ou económica, intensificando os mecanismos coercitivos por meio do estabelecimento da desmobilizaçâo, uma vez que tal estratégia de poder se constitui pelo poder de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visâo do mundo, impondo-se como legítimo.

O desvendamento de questoes e problemas vividos pelo individuo comum na sociedade é uma das importantes contribuigoes das politicas sociais para a sociedade no sentido do que podem e devem influenciar. Assegurar essa prerrogativa é empreender esforgos conjuntos com vistas ao estabelecimento de novos cenários, objetivando-se a superagao das irracionalidades que se fazem sentir nesse modo de pensar e implementar as politicas sociais.

Consideracoes Fináis

As politicas sociais nascem no contexto anunciado da defesa da cidadania para dizimar as desigualdades geradas pelo desenho societário resultante das orienta-goes neoliberais para as sociedades capitalistas.

Empreendendo agoes que, em tese, deveriam (re)conduzir os sujeitos sob sua tutela à vida social plena, grande parte das politicas sociais, nesse àmbito, apresenta-se como mecanismos de controle e dispositivos que visam processos de classificagao, hierarquizagao e distribuigao dos bens produzidos, na sociedade, apresentando as diferengas de poder como diferengas de competencia, capacida-de, mérito, sorte e conhecimento.

Para cumprirem tal intento, elas desempenham papéis de comunicagao, conhecimento e ideologia, reproduzindo as desigualdades sociais e organizando as percepgoes que os sujeitos tem da realidade. Tal empreendimento sò lhes é possivel gragas ao poder simbòlico que emanam e lhes capacita para incidirem sobre a construgao da sociedade e sobre o sentido de mundo.

Ao exercerem poder simbòlico, as politicas sociais desempenham papéis de censura, de arbitrio, ao determinar o que cabe a cada um na estrutura social, discriminada e imperceptivelmente.

 

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Recibido: 11/11/2012 Aceptado: 27/02/2013

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