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Espacios en blanco. Serie indagaciones

versão impressa ISSN 1515-9485versão On-line ISSN 2313-9927

Espac. blanco, Ser. indagaciones vol.27 no.2 Tandil dez. 2017

 

ARTÍCULOS

Bachelard e a negacáo á pedagogia das aparéncias: proposicoes para a construcáo de urna pedagogia científica

Bachelard and the denial of appearances pedagogy: Propositions for the construction of a scientific pedagogy

 

Altair Alberto Fávero* Evandro Consaltér**

*PhD (Bolsista Capes) pela Universidad Autónoma del Estado de México (UAEMéx), Doutor em Educação (UFRGS), Professor Titular III da Universidade de Passo Fundo (UPF) E-mail: altairfavero@gmail.com
**Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo/RS/Brasil. (Bolsista Capes). E-mail: evandroconsalter@gmail.com


Resumen

Analisamos neste trabalho alguns pressupostos da pedagogia das aparências e da pedagogia científica a partir de obras de Bachelard (1996; 2001) e de alguns comentadores (Pêpe, 1985; Costa, 2012; Fonseca, 2008). Nossa intençãoé abstrair de tal estudo teórico-bibliográfico algumas categorias que possam servir de referencial para a discussão de perspectivas quanto às políticas educacionais e as práticas educativas. Ao analisarmos a pedagogia das aparências e a pedagogia científica na perspectiva bachelardiana, acreditamos que seja possível abstrair elementos produtivos para os estudos epistemológicos das políticas educacionais. Dessa forma, compreendemos que a pedagogia científica de Bachelard coloca-se como suporte para que tais políticas sejam produzidas e compreendidas com maior clareza e dessa forma abrir novas perspectivas de discussão para discutir a docência em sua complexidade.

Palabras Clave: Pedagogia bachelardiana; epistemología; política educacional

Abstract

We analyzed in this paper some of the presuppositions of the pedagogy of appearances and the scientific pedagogy from works of Bachelard (1996; 2001) and some commentators (Pêpe, 1985; Costa, 2012; Fonseca, 2008). Our intention is to abstract such theoretical and bibliographical study some categories that can serve as reference to discuss perspectives on the educational policies and     the educational practices. When analyzing the pedagogy of appearances and the scientific pedagogy in Bachelard's perspective, we believe that it is possible to abstract productive elements to the epistemological studies of educational policies. Thus,    we    understand    that    the    scientific pedagogy Bachelard is placed as a support for such policies to be produced and understood more clearly and thus open up new perspectives for discussion to discuss teaching in its complexity

Key words: Bachelardian pedagogy; epistemology; educational politics


 

Introdução

O campo da educacao é constantemente permeado por receituários que ratificam a presença do senso comum na conducao da atividade docente. É muito comum ouvirmos algo como “o problema da educação é a indisciplina” ou “o problema da educação é a falta de tecnologias”. Concordamos que tanto a disciplina como a presença das tecnologías ñas escolas poderiam contribuir, de alguma forma, para a qualificacao do processo educativo. Porém, escolas com alunos disciplinados e modernos laboratórios de informática não seriam o suficiente para dar conta de resolver todos os problemas da educacao.

Em contraponto a esses problemas comuns, por vezes oriundos de um realismo ingênuo1, encontramos na obra de Gastón Bachelard urna postura investigativa arraigada em urna filosofía pluralista das nocoes científicas. Como o próprio Bachelard (1996) esclarece, ensinar não é urna funcao monótona, que induz alunos e professores a aderirem às conviccoes rápidas, estáticas, cómodas e até engañadoras. Ensinar exige a adocáo de urna pedagogía científica, problematizadora e esclarecedora.

A partir dessa compreensáo, propomonos, neste trabalho, ancorados ñas obras de Bachelard e alguns comentadores (Pêpe, 1985; Costa, 2012; Fonseca, 2008), a analisar as possibilidades de constituir uma “pedagogia científica” em detrimento de uma “ciência do senso comum” ou “pedagogia das aparências”. Nosso estudo orientar-se á na perspectiva de abstrair da oposicáo entre essas duas categorías elementos que possam abrir perspectivas de discussáo e, com isso, contribuir para os estudos teórico epistemológicos da política educativa das práticas docentes.

Entendemos que a escolha do pensamento bachelardiano para amparar essa discussáo é oportuna, pois o autor desenvolve urna reflexáo muito diversificada sobre a ciência, que extrapola a forma como esta é tratada nos manuais de história e filosofía da ciência. Bachelard (1996) posiciona-se criticamente frente ás concepcoes continuístas da história das ciências, pois, para ele, o desenvolvimento da ciência e o progresso científico não se dá de forma linear e sim por rupturas, ou seja, por um permanente processo de retificacáo dos conhecimentos anteriores. Dessa forma, compreende-se que a ciência não é, pois, um conhecimento absoluto, rígido, pré-formatado, portador de certezas; o acontecer da ciência se faz por um processo cada vez mais aproximado do sentido profundo da natureza.

O fazer científico, portante, se dá num processo e a ciência tem possibilidade de progredir por meio de rupturas, essa talvez seja urna das principáis ideias de Bachelard (1996). O conceito de “ruptura” implica afastar do processo investigativo a influência do senso comum, que conduz a urna compreensão ingênua, tanto quanto de práticas científicas centradas nos enfoques estritamente racionalistas positivistas. Assim, Bachelard propõe urna pedagogía do pensamento complexo, reafirmando a necessidade de sempre reler o simples sob o múltiplo e a partir de urna visão de complexidade.

Nesse sentido, na construcao de objetos de pesquisa, há de se considerar que eles sempre se apresentam como um complexo tecido de relacoes e para apreendé-lo, tanto o pensamento quanto os métodos, necessitam exercitar processos dialéticos de aproximacao. Para Bachelard (1996), o fazer científico apoia-se essencialmente na retificacao do saber e ñas categorías históricas críticas, apreendendo o mundo social e os objetos do conhecimento ñas suas múltiplas relacoes, interacoes e complexidades.

Dessa forma, conduziremos nosso estudo tentando elucidar a oposicao entre essas duas categorías identificadas na obra de Bachelard e, a partir desse confrontamento, abrir perspectivas para discutir tanto a pesquisa no ámbito das políticas educacional quanto às práticas educativas. Acreditamos que os fundamentos epistemológicos centrados nos pressupostos da pedagogía científica inovam o fazer científico e o pensamento pedagógico, cooperando, dessa forma, para a construção de um novo espírito científico e para a negação à “pedagogia das aparências”.

A pedagogia das aparências

O trabalho dos professores, como bem descreve Giroux (2001), enquanto trabalho intelectual, deve desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente construída e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social. Além disso, deve proporcionar urna leitura de análises e possibilidades transformadoras, implícitas no contexto social das aulas e do ensino. Deve estar contextualizado social e históricamente.

Um discurso ¡solado de sua contextualizacao tende a transformar-se em um discurso de opinião. Um discurso de opinião, por sua vez, não passará de um discurso superficial. Bachelard (2001) é pontual em relacao a essa postura pedagógica. Para ele, a opinião pensa mal, pois se atem a um “olhar de superfície”. Ao designar os objetos pela sua utilidade, coíbe-se de os conhecer. Dessa forma, a opinião coloca-se diante do professor/pesquisador como o primeiro obstáculo a ser superado, pois conduz á construcao de um conhecimento falso, alicerçado em respostas e não em perguntas.

Sobre esse aspecto Bachelard (2001) apresenta a seguinte considerado:

Chega urna altura em que o espírito gosta mais daquilo que confirma o seu saber do que daquilo que o contradiz, prefere as respostas às perguntas. [...] É esse o risco de o professor ensinar sempre as respostas certas. Na pedagogía científica, o erro se instruí a partir de urna dinámica pedagógica que coloque o conhecimento em permanente estado de crise, criando sempre a necessidade de retificar-se (p.167).

A afirmacáo é sustentada pelo fato de que a atividade intelectual se dá em ambiente de dúvida e inquietacao. Sendo assim, todas as práticas científicas e pedagógicas devem estar lastreadas por essas características, pois, para ele, “o dogmatismo desconstrói toda criatividade e gera uma paralisia mental” (p.167). Dessa forma, o professor em sua prática pedagógica deve assumir o papel de alguém que menos ensina e mais desperta, estimula, provoca, questiona e, por sua vez, também se deixa questionar. Somente adotando essa postura, seria possível avançar na construcao de um conhecimento científico.

Bachelard (1996) nos ajuda compreender que o processo de ruptura com as aparéncias não é feito de urna única vez, como um salto que nos permitisse passar do conhecimento comum ao conhecimento científico. O conhecimento comum, en-tendido como um primeiro obstáculo epistemológico, nunca será superado por completo. Por isso, faz-se necessária urna constante vigilância epistemológica? em contraponto às falsas “ideias claras” do realismo ingênuo do senso comum.

Podemos dizer que a indicacao de Bachelard para que se faga presente a vigilância epistemológica frente ao conhecimento do senso comum e dos conhecimentos históricamente produzidos pela própria ciência, poderia estar associada á necessidade da presença da teoría no processo de análise dos estudos epistemológicos em política educacional. Sobre este aspecto, Fávero e Tonieto (2015), em um ensaio intitulado “O lugar da teoría ñas pesquisas em política educacional”, indicaram os riscos e a fragilizacao das concepcoes de conhecimento decorrentes do recuo da teoría nos processos de formacao de professores e pesquisadores em políticas educacional. Na mesma direcao, Shiroma (2003) ressalta que o recuo da teoría produz um visível fenómeno “da penetracao do gerencialismo na educacao”, urna “desintelectualizacáo do professor” e urna “despolitizacáo de sua formacao” (p.71).

A atitude de “vigilância epistemológica” também defendida por Bachelard (1996), a denúncia do “recuo da teoría” feita por Moraes (2003) e “o lugar da teoría na pesquisa em política educacional” feita por Fávero e Tonieto (2015) justificam a constante necessidade da rejeicao de certezas e de saberes já estabelecidos, inclusive aqueles que de tão instituídos já se tornaram irrecusáveis. Ao mesmo tempo, tais atitudes implicam o constante interrogar, o “direito á surpresa” em relacáo ao dado, de modo que a evidência empírica não seja suficiente para fixar postulados, tecer receituários e justificar os problemas da educacao.

Para corroborar com a proposta bachelardiana de negacáo às aparéncias, consideramos importante destacar os estudos de Trevisan (2011), também em relacáo ao tencionamento entre a teoría e a prática. Para o autor, apesar de estarmos inseridos na complexidade de urna sociedade que escolheu viver a partir da modernidade, sob o primado da prática, a formacao do professor não pode ficar refém de urna “pretensa teoría”. Menos aínda, atenta Trevisan, do lado da simples prática, o que seria apenas urna forma de tencionar o problema sem oferecer-lhe urna solucáo.

Isso não significa que devemos negar ou afastar a prática do processo investigativo, mas sim contextualiza-la, problematizando os resultados com suporte na teoria. Mais uma vez se faz necessário o conceito de vigilância epistemológica, ou seja, a necessidade de permanecer em estado constante de reflexão crítica sobre os obstáculos epistemológicos para não correr o risco de manter-se refém de crenças, ideologias, opiniões e seduzido por certezas superficiais.

Bachelard (1996) deixa claro sua preocupação com essas “seduções da facilidade”.

Há de fato um perigoso prazer intelectual na generalização apressada e fácil. A psicanálise do conhecimento objetivo deve examinar com cuidado todas as seduções da facilidade. Só com essa condição pode-se chegar a uma teoria da abstração científica verdadeiramente sadia e dinámica (p. 69).

A generalização apressada e fácil, conforme descreve o autor, coloca-se num plano associada a três distintos interesses, que sistematicamente agregam valor semân-tico à expressão pedagogia das aparências. O primeiro deles chamará de alma pueril ou mundana. Essa contempla os interesses pela curiosidade ingênua, “cheia de assombro diante do mínimo fenômeno instrumen-tado, brincando com a física para se distrair e conseguir um pretexto para uma atitude séria”. Bachelard considera essa postura passiva até na “felicidade de pensar”. Em relação ao segundo interesse, tem-se a alma professoral.

Coisa de seu dogmatismo, imóvel na sua primeira abstração, fixada para sempre nos êxitos escolares da juventude, repetindo ano após ano o seu saber, impondo suas demonstrações, voltada para o interesse dedutivo, sustentáculo tão cômodo da autoridade, ensinando seu empregado como fazia Descartes, ou dando aula a qualquer burguês como faz o professor concursado (p.12).

Não menos importante está o terceiro interesse registrado por Bachelard, o que classifica como a alma com dificuldade de abstrair e de chegar à quintessência ou também como um conhecimento pré-científico. Sobre esse interesse, entre outras atribuições, vai chamar de “consciência científica dolorosa”.

Consciência científica dolorosa, entregue aos interesses dedutivos sempre imperfeitos, no ariscado jogo do pensamento sem suporte experimental estável; perturbada a todo momento pelas objecoes da razão, pondo sempre em dúvida o direto particular da abstracao, mas absolutamente segura de que a abstracao é um dever, o dever científico, a posse enfim purificada do pensamento do mundo (p.13).

Dessa forma, o desafio que se coloca frente á filosofía científica é o de psicanalisar o interesse, derrubar qualquer utilitarismo por mais disfarçado que se constitua, por mais elevado que se julgue e por mais aceito que o seja. É preciso “voltar o espírito do real para o artificial, do natural para o humano, da representação para a abstração” (p.13).

Análogo a muitas dessas categorías do pensamento bachelardiano, Becker (1993) considera que pela ausência de reflexão epistemológica, o professor acaba assumindo as nocoes do senso comum. Sendo assim, o conhecimento acaba sendo concebido como um ajuste ou urna adaptacao. Essa concepcao, conforme o autor, é oriunda de urna vivência ou de urna experiência de vida.

Além disso, também ao encontró da alma professoral descrita por Bachelard, Becker considera que não é possível chegar até o aluno e intervir positivamente na sua capacidade de aprender, a partir de simples treinamentos, modificando téc-nicas ou propondo "macetes". A exemplo de Bachelard (1996), o autor atenta para a necessidade de se produzir um ampio processo de reflexão epistemológica no qual os "formadores" se deem conta de que nada de significativo acontecerá enquanto não romperem com as concepcoes imediatistas de conhecimento e de aprendizagem que vigoram em nossas escolas.

A crítica de Bachelard a essas concepcoes imediatistas de formacáo do conhecimento é táo grande e claramente estampada em sua obra. Ao longo de A formacáo do espírito científico, por exemplo, usa duras palavras para tecer sua crítica às “aparências científicas”. Muitas delas já resgatadas por Costa (2012), as quais também compartilhamos: “aspecto mundano da ciência”, “implantacáo de uma era da facilidade”, “preguiça intelectual”, “‘ciência fácil”, “afastada dos cálculos e dos teoremas”, “contradições empíricas”, “espetáculo de curiosidades”, “causar assombro”, “folclore”, “pitoresco”, “público frívolo”, “ficções científicas”, “regre-ssões infantis”, “imagens tão simplistas”, “falsos centros de interesse”, “raciona-lizacoes apressadas” (Bachelard, 1996: 36-52).

Ao introduzir o terceiro capítulo de A formação do espírito científico, Bachelard deixa clara a preocupação em combater a pedagogia das aparências.

Nada prejudicou tanto o progresso do conhecimento científico quanto a falsa doutrina do geral, que dominou de Aristóteles a Bacon, inclusive, e que continua sendo, para muitos, uma doutrina fundamental do saber. [...] Vamos tentar mostrar que a ciência do geral sempre é uma suspenção da experiência, um fracasso do empirismo inventivo. Conhecer o fenômeno geral, valer-se dele para tudo compreender, não será, semelhante à outra decadência, ‘gozar, como a multidão, do mito inerente a toda banalidade’? Há de fato um perigoso prazer intelectual na generalização apressada e fácil (P. 69).

A partir do pensamento bachelardiano a respeito da ciência e da pedagogia, pode-se atestar que um dos principais objetivos da pedagogia seria o de opor-se ao pensamento que se satisfaz com o “simples acordo verbal das definições”. Ou seja, o pensamento que se alimenta das concepções imediatistas sobre ciência e conhecimento. Um pensamento que nos dizeres de Boaventura de Souza Santos (2000), é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita. Dessa forma, em “sociedade de classes” como é em geral a sociedade conformada pela ciência moderna, tal vocação acaba por assumir um viés conservador e preconceituoso. Por sua vez, esse viés constitui-se como elemento reconciliador da consciência com a injustiça. Mais que isso, naturaliza as desigualdades e mistifica o desejo de transformação.

Para Bachelard (1996) não custa à Pedagogia mostrar que todos os fatos gerais isolados revelam-se inconsistentes. É nesse mesmo sentido que Freire (2011) tece sua crítica ao crescente distanciamento entre a prática educativa e o exercício da curiosidade epistemológica. Para o autor, a curiosidade alcançada por uma prática educativa reduzida à pura técnica corre o grande risco de ser uma curiosidade castrada, que não é capaz de alcançar uma posição crítica diante do mundo.

Assim, a pedagogia das aparências coloca-se como obstáculo a ser superado para consolidação da pedagogia científica. Isso não significa que devemos negá-la, mas sim contextualizá-la, integrá-la ao processo investigativo de modo que se possa elucidar o novo conhecimento. Etimologicamente, a palavra elucidar vem do latim lucere, cujo significado é trazer luz. Dessa forma, entende-se que conhecer significa trazer luz à realidade. De acordo com Luckesi (2011), somente com a construção do conhecimento é possível desvendar a verdade presente na realidade, tornando-a inteligível, transparente, clara, cristalina.

A pedagogia científica

Ao abordar a pedagogia científica, Bachelard (1996) faz uma primeira reflexão sobre a filosofia da ciência e apresenta uma concepção de conhecimento científico como um processo contínuo de retificação movido pela superação dos obstáculos epistemológicos. No estado de pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento objetivo, considera a ciência como a estética da inteligência e à pedagogia, portanto, cabe a tarefa de instruir a prática e a cultura científica para a aquisição de uma forma de conhecimento e de pensamento que se traduza numa reforma de espírito.

Nesse sentido, a pedagogia científica de Bachelard (1996) pode ser considerada como uma pedagogia criativa, pois permite a constituição de novos saberes a partir de rupturas com os saberes estabelecidos, com o senso comum e com a epistemologia cartesiana. A pedagogia científica permite pensar numa pedagogia dialética no sentido mais amplo. De acordo com Fonseca (2008), pode ser considerada como uma pedagogia capaz de orientar os passos de educadores para se livrarem das visões estreitas e de todo o pragmatismo ingênuo.

Quando Bachelard (1996) propõe que ciência se transforme em uma grande pedagogia científica, defende a tese de que ela precisa ser esclarecedora e entendível. Para tal, considera que em primeiro lugar é preciso saber formular problemas, pois na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. E se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico, pois na ciência nada é evidente, nada é gratuito e sim, tudo é construído.

Dessa forma, Bachelard acredita que o professor deva assumir o caráter de epistemólogo. Essa postura consiste no esforço de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já amontoados pela vida cotidiana, de propiciar rupturas com o senso comum, com um saber que se institui da opinião e com a “tradicáo empiricista das impressões primeiras”. Essa mesma postura é defendida por Fonseca (2008) quando afirma que “a transformacáo da prática docente implica em mudança de concepcao do próprio trabalho pedagógico” (p.363). A seu entendimento, esse trabalho, muitas vezes, reveste-se de relacoes autoritárias e conservadoras, na reproducao e manutencao do conhecimento acrítico e deslocado da realidade.

No pensamento bachelardiano, a pedagogía científica se fortalece na medida em que a cultura científica se colocar diante de urna catarse intelectual e afetiva. Para Bachelard (1996), a tarefa mais difícil para se consolidar essa transformacáo é a de colocar a cultura científica em estado de mobilizacao permanente. A partir dessa postura, seria possível avançar o conhecimento científico de modo que se possa superar o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinámico. Além disso, seria possível encontrar as condicoes necessárias para dialetizar todas as variáveis experimentáis e, assim, ñas palavras do autor, “oferecer á razáo razões para evoluir” (p. 24).

Essa marca dialética da pedagogía científica de Bachelard é elucidada nos estudos de Kuiava e Régnier (2012) com o enfoque na docência. Os autores se preocupam em contextúa I ¡zar a postura docente a partir desse viés defendido por Bachelard.

“cabe ao professor adotar urna postura de diálogo permanente com seus alunos e questionar constantemente o conhecimento já adquirido, como forma de superacao dos obstáculos existentes. A ruptura com o já cristalizado se faz necessária para a construcao de um conhecimento novo. Educar-se não consiste na aquisicao de conhecimentos novos, num processo de acúmulo, mas de um saber sempre novo, com um olhar crítico, dinámico e reflexivo. O sujeto cognoscente não é um receptáculo do conhecimento já produzido e que é requentado na sala de aula” (p. 7).

A construcao do conhecimento científico, desse modo, deve obedecer a urna ordem dialética, a qual na visáo de Fonseca (2008) implica urna relacáo pedagógica de interacoes humanas e psicológicas, de confiança e de respeito intelectual. Assim, reafirmando o que já foi dito, entende-se que o professor, na prática pedagógico-científica, pode ser não somente alguém que ensina e mais alguém que desperta, estimula, provoca, questiona e se deixa questionar.

A pedagogía científica de matriz bachelardiana também poderla se somar ao postulado por Freiré (2011) quando trata do papel do professor como protagonista da construcao de um conhecimento científico e como promotor do desenvolvimento da curiosidade epistemológica. Freiré considera que o papel do professor é o de propor aos seus alunos, por meio de contradicoes básicas decorrentes de suas situacoes existenciais e concretas, o incentivo de enfrentar o desafio para buscar respostas, não apenas no ámbito intelectual, mas principalmente no nível de urna acáo transformadora.

Assim como Fonseca (2008), Freiré (2011) tece duras críticas ás práticas educativas que se reduzem únicamente a um ato mecánico de memorizacáo de conteúdos narrados pelo professor, onde os alunos são transformados em recipientes a serem enchidos. O professor, quanto mais conseguir encher seus recipientes com seus depósitos, melhor educador será. Já os alunos, quanto mais se deixarem encher, melhores alunos seráo.

Na pedagogía científica de Bachelard (1996), o aluno não pode ficar inerte ao processo educativo. A neutralidade discente reduz a educacáo a um ato mecánico e sistemático, desprovido de qualquer intencáo humanizadora e transformadora da realidade social em que os alunos estão inseridos. A escola, portante, deixa de ser um espago de cooperacáo, de interacáo e criacáo, passando a ser apenas local de reproducáo, onde o conhecimento científico e a curiosidade epistemológica não perpassam á materialidade das salas de aula.

A postura docente, de acordó com a pedagogía científica de Bachelard, deve orientar-se em urna dialética professor-aluno, sendo responsabilidade do professor levar o aluno á racionalidade científica, apresentando-se como “negador das aparéncias”, como freio a “conviccoes rápidas”. Essa postura permitiría estabelecer relacoes pedagógicas colaborativas, abertas e construtivas. Pêpe (1985) considera que as teses racionalistas de Bachelard preveem um ensino fecundo a partir de urna filosofía pluralista das nocoes científicas, pois o ensino científico tem, para ele, como urna de suas funcoes, a de suscitar dialéticas. Nessa perspectiva, a prática pedagógica deve colocar-se numa posicáo que possibilite refletir a prática científica e vice-versa.

Ñas palavras de Fonseca (2008) “tornar o científico mais pedagógico e este mais científico” (p. 368) significa utilizar formas de pedagogía que situem os alunos como sujeitos críticos, que problematizem o conhecimento, que lancem novas questões, gerando novos desafios e novas questões-problema/solucoes, “retificando”, permanentemente, a ciência e os métodos científicos. A pedagogía científica compreende o conhecimento como algo não estático e invariante. O conhecimento, lançado desse olhar, assume um caráter cambiante.

Para Bachelard (1996), a condicao existencial do espírito científico é ao mesmo tempo dever formar-se enquanto se reforma. Assim, reforça a nocao de que o conhecimento científico se constituí a partir de constantes retificacoes. Além disso, defende a razão aberta e evolutiva em oposicao á razão sedimentada. Esse camin-ho apontado por Bachelard á construcao do conhecimento científico, no entender de Pêpe (1985), vai sempre do racional para o real e não em sentido contrário. Trata-se, portante, de um racionalismo que procura contemplar-se e dialetizar-se com as formas atuais do espírito científico, ou seja, um conhecimento em que sua atividade racional e técnica se dá a partir da reflexão entre a dialética do racional e o do experimental.

O conceito de formacao presente na pedagogía científica de Bachelard comprende professor e aluno como eternos aprendizes. A formacao é, portante, um processo contínuo que se faz e refaz com um espírito lúcido e ¡novador. O contexto histórico é sempre um pretexto para ser superado, um obstáculo epistemológico á formacao do conhecimento. Nesse sentido, a epistemología de Bachelard, explica Fonseca (2008), tem, pois, urna consequéncia na forma de produzir ciência e na construcao epistemológica centrada na ideia do conhecimento construído históricamente e reconstruído a partir de retificacoes permanentes.

De acordó com Fonseca, “todas essas questões constituem um suporte para as discussões metodológicas e para urna prática científica aberta, crítica e reflexiva no campo da pedagogia e da formação docente” (p. 369). No mesmo sentido, Kuiava e Régnier (2012) consideram que, a pedagogía científica de Bachelard “deve proporcionar ao educando uma crítica de sua postura no mundo, de seus preconceitos e opiniões, assim como os saberes que estão constituindo a sua vida” (p.08). Do mesmo modo, os autores entendem que a formacao do professor deve auxiliá-lo a tomar consciéncia dos pressupostos epistemológicos que fundamentam a sua acao.

Dessa forma, compreende-se que a pedagogía científica de Bachelard colocase como suporte para que a prática docente seja exercida com clareza, com lucidez e com o devido amparo teórico-científico. Que o docente possa desenvolver sua visão de mundo, de ser humano, dos processos de ensino-aprendizagem de modo integrado e integrador e, assim, aumentar as possibilidades de atingir urna educacao verdaderamente transformadora.

Considerares fináis

Após a análise das duas categorías presentes na obra de Bachelard, a pedagogía das aparéncias e a pedagogía científica, podemos tecer algumas considerares provisórias. Concordamos com Fonseca (2008) quando afirma que a transformacao da prática docente implica em mudança de concepcao do próprio trabalho pedagógico, o qual, segundo a autora, é muitas vezes “conservador, centrado em relacoes autoritárias, na reproducao e manutencao do conhecimento acrítico e deslocado da realidade e em métodos positivistas-racionalistas” (p. 363). Ñas palavras do próprio Bachelard (1996) “o educador não tem o senso do fracasso justamente porque se acha um mestre” (p. 24).

Em oposicao a esse pensamento característico da pedagogía das aparéncias, Bachelard (2001) apela por urna razão aberta; por urna nova comunicacao pedagógica; por urna escola que deve ser contínua ao longo da vida; por urna educacao permanente; e por urna pedagogía do descontínuo e da incerteza. Na prática educativa, o pensamento bachelardiano chama a atencáo para dois aspectos pedagógicos, os quais são retomados por Fonseca (2008): O primeiro diz respeito ao mestre que, “em um processo contínuo de aprender, se converte em estudante, pois permanecer estudante deve ser o anseio secreto de todo mestre”. O segundo aspecto pedagógico reporta-se ao fato de que “aquele que aprende deve ensinar” (p. 369), consubstanciando, dessa forma, uma interpsicologia do ensino.

A apropriação do pensamento bachelardiano tem como prisma a constituição de uma ciência que constrói seus objetos articulando dados empíricos e teoria de modo a transpor obstáculos epistemológicos, evitando assim a integração das generalizações e das “ideias claras” do realismo ingênuo do senso comum. É nesse plano que a pedagogia científica de Bachelard coloca-se, como já mencionamos, como uma pedagogia criativa, pois permite a constituição de novos saberes a partir de rupturas com saberes estabelecidos, com o senso comum e com a epistemologia cartesiana.

No que tange à atividade docente, ela coloca-se como um caminho para que educadores livrem-se das visões estreitas e de todo o pragmatismo ingênuo da pedagogia das aparências. Além disso, consideramos a pedagogia científica de Bachelard como uma prática horizontal, em que alunos e professores podem dialetizar suas experiências, examinar seus constructos empíricos à luz da teoria e, assim, “trazer luz à realidade”. No dizer de Luckesi (2011) “desvendar a verdade presente na realidade” (137). O esforço do professor, por sua vez, “consiste em fazer com que os alunos se afastem da cultura científica adquirida e da percepção apreendida na vida cotidiana pelo senso comum” (Fonseca, 2008: 365).

As constantes rupturas com o conhecimento usual e a superação dos obstáculos epistemológicos que se colocam à produção do conhecimento são condições para a prática da pedagogia científica. Nesse sentido, Bachelard (1996) considera que o primeiro obstáculo que deve ser superado é o da experiência primeira, a experiência colocada antes e acima da crítica. A experiência arraigada em um dogmatismo que desconstrói toda criatividade, e como o próprio autor atesta, gera uma “paralisa mental”. Para Bachelard (1996), a pedagogia científica tem em sua essência a crítica como elemento integrante e necessário a toda produção de conhecimento. Tal crítica somente terá consistência se estiver ancorada em profundos e consistentes estudos epistemológicos.

 

Recibido: 15/08/2016
Aceptado: 21/09/2016

Notas

1 O conceito de realismo ingênuo, em sua definição utilizada neste estudo, pode ser aprofundado com a leitura do texto “O lugar da teoria na pesquisa em política educacional”, de autoria de Fávero e Tonieto (2015), citado nas referências bibliográficas.

2 Embora presente na obra de Bachelard, o conceito de “vigilância epistemológica” é um constructo de Bourdieu, que debate de forma mais aprofundada esse conceito em sua obra “Oficio de Sociólogo”.

 

Bibliografía

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