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La trama de la comunicación

versión impresa ISSN 1668-5628

Trama comun. vol.23 no.1 Rosario jun. 2019

 

ARTÍCULOS

Injusticia ambiental en el periodismo: análisis de reportajes sobre contaminación por pesticidas

 

Por Ilza Maria Tourinho Girardi - Débora Gallas Steigleder - Jamille Almeida da Silva - Eloisa Beling Loose

ilza.girardi@ufrgs.br / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil

deboragallas@gmail.com / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil

jamille.almeida@ufrgs.br / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil

eloisa.beling@gmail.com / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil

Ilza Maria Tourinho Girardi
Brasileira.
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Jornalismo Gráfico e Audiovisual pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de Comunicação e Cidadania, Comunicação e Educação Ambiental, e Jornalismo Ambiental. Líder do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental. Afiliação institucional: Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Área de especialização: Comunicação, cidadania e jornalismo e meio ambiente.
E-mail: ilza.girardi@ufrgs.br

Débora Gallas Steigleder
Brasileira.
Mestra em Comunicação e Informação, e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharel em Comunicação Social – habilitação Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Afiliação institucional: Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Área de especialização: Jornalismo e meio ambiente.
E-mail: deboragallas@gmail.com

Jamille Almeida da Silva
Brasileira.
Mestranda em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharel em Comunicação Social - habilitação Relações Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Afiliação institucional: Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Área de especialização: Jornalismo e meio ambiente, comunicação e educação.
E-mail: jamille.almeida@ufrgs.br

Eloisa Beling Loose
Brasileira.
Pós-doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Comunicação Social - habilitação Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria e mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental.
Afiliação institucional: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Área de especialização: Comunicação e meio ambiente, jornalismo e mudanças climáticas.
E-mail: eloisa.beling@gmail.com


Sumario:

El objetivo de este trabajo es discutir el abordaje del periodismo sobre el uso de agrotóxicos como situación generadora de injusticia ambiental. Para realizar tal reflexión, nos basamos enl a serie de reportajes de Zero Hora publicados em diciembre de 2016 sobre la contaminación de productos de Ceasa, en Porto Alegre, por pesticidas prohibidos en Rio Grande do Sul (Brasil) o utilizados por encima del límite previsto por ley. Partimos de la concepción de Acselrad (2010) sobre justicia ambiental. Se trata de una noción que remite a las dinámicas sociopolíticas, pues compreende conflitos originarios de la violación de derechos de las comunidades humanas por el uso insostenible del ambiente. Para evaluar la repercusión de las injusticias en los medios, recurrimos a los presupuestos del Periodismo Ambiental, perspectiva que defiende la función movilizadora del periodismo a partir de una mirada compleja sobre los fenómenos (Girardi et al., 2012) a partir de un análisis descriptivo y cualitativo (Martins, 2001). Entre los resultados se señala que la serie no incorpora una visión sistémica del problema, ignorando los impactos de los agrotóxicos en toda la cadena productiva y en los ecosistemas.

Descriptores: Periodismo ambiental; Justicia ambiental; Cobertura periodística; Plaguicidas; Zero Hora

Summary:

The objective of this article is to discuss the approach of journalism on the use of pesticides as a situation generating environmental injustice. In order to carry out such reflection, we are based on the series of Zero Hora reports published in December 2016 on contamination of Ceasa products in Porto Alegre by pesticides banned in Rio Grande do Sul (Brazil) or used above the limit established by law. We start from the concept of Acselrad (2010) on environmental justice. It is a notion that refers to sociopolitical dynamics, since it involves conflicts originating from the violation of the rights of human communities through the unsustainable use of the environment. In order to evaluate the repercussion of the injustices in the media, we have recourse to the assumptions of Environmental Journalism, a perspective that defends the mobilizing function of journalism from a complex view on the phenomena (Girardi et al., 2012) from a descriptive and qualitative analysis (Martins, 2001). Among the results, it is pointed out that the series does not incorporate a systemic view of the problem, ignoring the impacts of agrochemicals throughout the production chain and ecosystems.

Describers: Environmental journalism; Environmental justice; Newscoverage; Pesticides; Zero Hora


1. Introdução

Em dezembro de 2016, o Grupo de Investigação da RBS1 publicou no jornal brasileiro Zero Hora (ZH), o principal título impresso do grupo de comunicação, uma série de reportagens sobre a venda de hortifrutigranjeiros contaminados com níveis alarmantes de agrotóxicos na Companhia Estadual de Abastecimento (Ceasa), em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul (RS), intitulada Perigo no Prato. Uma análise de laboratório encomendada pelo Grupo RBS averiguou, ainda, a presença de substâncias inadequadas para as culturas em que foram utilizadas e até mesmo proibidas no RS e no Brasil. Uma grave violação de direitos, portanto, já que a Ceasa é a principal distribuidora de alimentos do estado.
É a partir deste material que buscamos debater a cobertura jornalística sobre o uso de agrotóxicos levantando aspectos relacionados ao jornalismo ambiental e à (in)justiça ambiental. O olhar da justiça ambiental objetiva analisar quais são as contribuições trazidas pela série de reportagens de ZH a respeito dos agrotóxicos em razão do caráter sistêmico dos riscos que envolvem seu uso na produção de alimentos. Sabemos que pode haver contaminação dos consumidores, mas a exposição dos trabalhadores que aplicam venenos nas plantações é ainda mais perigosa (INCA, 2015). São igualmente preocupantes os problemas que essas substâncias trazem para os ecossistemas.
É intrínseca ao conceito de justiça ambiental a crítica ao desenvolvimentismo e à modernização ecológica2, pois os autores postulam que a desigualdade ambiental alimenta o capitalismo. Conforme Acselrad (2010: 109), a introdução desse preceito teórico no Brasil ocorre a partir dos anos 1990, quando a “desigualdade distributiva” dos conflitos ambientais é evidenciada diante de grandes neoliberais e da consequente flexibilização regulatória para que as grandes corporações possam acessar livremente os bens naturais de territórios explorados.
Neste sentido, a perspectiva do Jornalismo Ambiental faz-se necessária para confrontar essa posição hegemônica. Ele pressupõe, de acordo com Girardi et al. (2012), pluralidade de vozes – e de visões de mundo – a fim de abarcar a complexidade e as conexões entre saberes. O Jornalismo Ambiental refuta a neutralidade historicamente atribuída ao jornalismo, pois assume a defesa do planeta e luta pela existência – ou sobrevivência, em casos mais extremos – de suas comunidades. Parte-se desse olhar para discutir o material publicado em ZH.
Assim, discute-se neste texto o uso dos agrotóxicos, a ideia de justiça ambiental e o papel do jornalismo comprometido com o meio ambiente, para, posteriormente, apresentar a análise de caráter descritivo (Martins, 2001), com perspectiva qualitativa (Gil, 2008), que foi realizada na série de reportagens já citadas. Por fim, tecem-se as considerações finais a partir dos resultados obtidos.

2. Contextualização acerca do uso de agrotóxicos

Em 2008, o Brasil assumiu o posto de maior consumidor mundial de agrotóxicos. Conforme pesquisas divulgadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Observatório da Indústria dos Agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná apresentadas em 2012, “enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, o mercado brasileiro cresceu 190%” (Carneiro et al., 2015: 51).
Com isso, houve um incremento na contaminação ambiental e no surgimento de doenças comprovadas pelos estudos que relacionam enfermidades, como o câncer, por exemplo, à exposição a esses produtos químicos. Para entendermos como chegamos a esse patamar, é importante recordarmos os fatos que levaram o país a optar pela denominada modernização da agricultura, que exige a adoção de tecnologias agrícolas atreladas ao que Lutzenberger (1981) denomina de paradigma “NPK + veneno”3.
Após a II Guerra Mundial, o mundo foi dividido em duas partes. Uma, reconstruída pelo Plano Marshall (Europa e Japão), teve grande investimento na industrialização. A outra (América Latina, Ásia e África) foi destinada à produção de alimentos. É importante ressaltar que essa indústria recuperada pelo Plano Marshall era em grande parte a indústria bélica que, nesse novo momento, fica obsoleta, passando então a produzir os insumos e as máquinas para a agricultura do dito terceiro mundo.
Desta forma, o Brasil assumiu a modernização da agricultura para resolver o problema da produção de alimentos e para, mais adiante, evitar os possíveis conflitos agrários. A opção pela modernização conservadora justificou-se para que o processo resultasse na transformação da base técnica de produção, sem grandes alterações na estrutura fundiária (Girardi, 1988). Assim, o país, em vez de optar pela reforma agrária para aumentar a produção de alimentos, associa-se a esse movimento mundial sob a liderança dos Estados Unidos, que passa a impor sua política exercendo a hegemonia em todas as decisões econômicas brasileiras. Logo, torna-se um importador de insumos e máquinas agrícolas para produzir especialmente aqueles alimentos que interessavam ao chamado primeiro mundo, ficando totalmente dependente dos conglomerados da indústria agroquímica. Esse processo, denominado de Revolução Verde,

[...] foi um programa que tinha como objetivo explícito contribuir para o aumento da produção e da produtividade agrícola no mundo, através do desenvolvimento de experiências no campo da genética vegetal para a criação e multiplicação de sementes adequadas às condições dos diferentes solos e climas e resistentes às doenças e pragas, bem como da descoberta e aplicação de técnicas agrícolas ou tratos culturais mais modernos e eficientes. (Brum, 1985: 59)

Para Pinheiro (1985), a Revolução Verde foi uma contra operação implementada para destruir o que havia restado das agriculturas mais equilibradas no final dos anos 1960. Foi uma das estratégias mais arrojadas do processo de modernização da agricultura que aumentou a produção agrícola com grandes custos socioambientais. Passados tantos anos,
Os impactos na saúde pública são amplos, atingem vastos territórios e envolvem diferentes grupos populacionais, como trabalhadores em diversos ramos de atividades, moradores do entorno de fábricas e fazendas, além de todos nós, que consumimos alimentos contaminados. Tais impactos estão associados ao nosso atual modelo de desenvolvimento, voltado prioritariamente para a produção de bens primários para exportação. (Facchini; Souza, 2015: 39)
Conforme o dossiê apresentado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) em 2015, foram plantados na safra de 2011 no Brasil 71 milhões de hectares de lavoura temporária (soja, cana, algodão, milho) e permanente (café, cítricos, frutas, eucaliptos). Isso corresponde a aproximadamente 853 milhões de litros de agrotóxicos pulverizados nessas lavouras, em especial herbicidas, fungicidas e inseticidas, o que representa uma média de 12 litros por hectare e “[...] exposição média ambiental/ocupacional/alimentar de 4,5 litros de agrotóxicos por habitante”. (Carneiro et al., 2015: 52). O estudo também aponta que “[...] as maiores concentrações de utilização de agrotóxicos coincidem com as regiões de maior intensidade de monoculturas de soja, milho, cana, cítricos, algodão e arroz”, e o RS é o quarto maior consumidor de agrotóxicos, representando 10,8% do total (Carneiro et al, 2015: 55). No entanto, segundo o dossiê, as culturas de hortaliças chegam a receber de 8 a 16 vezes mais agrotóxicos por hectare do que a cultura da soja.
Assim, um terço dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros está contaminado com agrotóxicos. Alguns ingredientes ativos são classificados como medianamente ou pouco tóxicos. No entanto, o uso por meses, anos e até décadas podem acarretar efeitos crônicos, manifestando-se em várias doenças como cânceres, más-formações congênitas, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais (Carneiro et al., 2015: 60). Além de afetar a saúde humana, a utilização de tais produtos contamina a água, o solo, o ar e os ecossistemas. O dossiê da ABRASCO ressalta ainda que a lei que regula o uso dos agrotóxicos não contempla riscos na aplicação e no consumo, e não há estímulo para a realização de pesquisas sobre as interações dos agrotóxicos.
A gravidade da situação é intensificada com a “[...] chantagem global que impõe seu uso” (Carneiro et al., 2015: 80). O velho fantasma da fome no mundo é acionado para lembrar que é urgente alimentar africanos, asiáticos e latino-americanos subnutridos. No entanto, esconde-se que o alimento é para engordar o gado europeu e estadunidense, enquanto “[...] as externalidades ambientais e sociais sofridas são pagas por esses povos, sem que seus problemas de direitos humanos de acesso à terra, entre outros, estejam resolvidos” (Carneiro et al., 2015: 80).
Mas como identificar as doenças se os serviços e profissionais da saúde não estão devidamente capacitados para fazer tais diagnósticos? Na verdade, os danos são ocultados por uma rede de interesses que percorre a pesquisa agrícola, ruralistas, indústria e suas ramificações no governo e no Congresso Nacional. Assistimos, então, a manobras para tornar a lei dos agrotóxicos mais flexível e os discursos dos representantes do povo tentando convencer os cidadãos que os agrotóxicos são importantes para poder produzir alimentos mais baratos para os pobres do Brasil.
Em 2013, por exemplo, a senadora Kátia Abreu (PMDB) exigiu do presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, a liberação dos também chamados defensivos agrícolas, pois a falta desses encareceria o mercado e prejudicaria a produção (CNA, 2013). Já em 2015, o deputado federal Luis Antônio Covatti (PP) apresentou o projeto de lei da Câmara dos Deputados nº 3200/2015, que institui a Política Nacional de Defensivos Fitossanitários e de Produtos de Controle Ambiental, que, dentre suas propostas, pretende alterar a nomenclatura de “agrotóxicos” para “produtos defensivos fitossanitários” (Romano, 2016). Tais manifestações fazem parte de um rol de tentativas de descaracterizar a periculosidade do agrotóxico através da construção de discursos que abrandam o verdadeiro significado do veneno, que é um produto que surgiu para matar.
A estratégia de justificar a necessidade dos agrotóxicos é exercida por meio da imposição da racionalidade tecnocrática sobre a opinião pública. Esse artifício se baseia na ideia implícita de que toda técnica destinada a solucionar o desafio alimentar no mundo é moralmente justificável e, portanto, deve ser aplicada. Valendo-se de argumentações mecanicistas nunca demonstradas, o imperativo tecnocrático apresenta como objetivamente necessário aquilo que é econômica e ideologicamente oportuno. Ao legitimar o sistema dominante por meio de mistificações e teorias de veracidade não comprovada, a tecnocracia exerce um poder análogo ao desempenhado pela Igreja na Idade Média, nesse caso consagrando os efeitos negativos dos agrotóxicos como uma necessidade social inevitável. (Petersen, 2015: 30)
As contradições do modelo agrícola impulsionaram o surgimento de várias campanhas, movimentos sociais e filmes denunciando o uso dos agrotóxicos, adubos solúveis e transgênicos, que acabam exigindo mais agrotóxicos. A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida foi lançada em 2011 com o objetivo de sensibilizar os brasileiros para os riscos que os agrotóxicos representam e tomar medidas para acabar com seu uso no país. Congregam a campanha movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a instituições pesquisas como a Universidade Federal da Fronteira Sul.
 Os longas-metragens O veneno está na mesa I e II, do cineasta Silvio Tendler, lançados respectivamente nos anos de 2011 e 2014, são exemplos de produções que denunciam os problemas e as injustiças sociais decorrentes desse contexto. Tais injustiças também tiveram visibilidade com o samba-enredo Xingu, o clamor que vem da floresta, da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, do Rio de Janeiro (RJ), no carnaval de 2017. A repercussão foi grande e gerou protestos dos ruralistas e dos seus representantes no Congresso brasileiro. Os interesses econômicos envolvendo os agrotóxicos e transgênicos são tão gigantescos e complexos que a própria Rede Globo passou a exibir no horário nobre, a partir de 2016, uma campanha intitulada Agro é Pop, que conta com diversos patrocinadores ligados ao agronegócio.
Se por um lado persistem as artimanhas para garantir o consumo cada vez maior de agrotóxicos, existe um movimento que surgiu nos anos 1970 para mostrar justamente o contrário: é possível produzir sem o uso das tecnologias ditas modernas. A agricultura orgânica – que também conta com uma diversidade de outras denominações – iniciou na Europa e foi se espalhando pelo mundo. Nos anos 1990 surge a perspectiva da agroecologia, que inclui no movimento, além do olhar ecológico, os aspectos econômicos e sociais (HISTÓRIA..., s/d).
Em 2015 existiam 11.084 produtores registrados no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos, gerenciado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A liderança está com o Rio Grande do Sul (1.554), seguido por São Paulo (1.438), Paraná (1.414) e Santa Catarina (999), de acordo com informação do Portal Brasil (2015), que também indica que a área de cultivo de orgânicos no país já é de 950 mil hectares. É uma boa notícia, pois se por um lado o uso dos agrotóxicos gera injustiça ambiental, a agroecologia cresce, apesar da crise política e econômica, sinalizando como o caminho da justiça ambiental pode ser construído.

3. Injustiça ambiental

O conceito de justiça ambiental articula-se ao processo de vulnerabilização da saúde, da qualidade de vida e do acesso aos bens naturais de comunidades diretamente impactadas por empreendimentos que causam a contaminação da água, do ar ou solo. Essa perspectiva refuta o argumento da razão utilitarista hegemônica de que a poluição é democrática porque o meio ambiente é único (Acselrad, 2010) e afirma que a distribuição desigual dos riscos ambientais causa mais impacto em populações tradicionais e etnias específicas – como negros, indígenas e ribeirinhos –, cujos territórios são alvo dos grandes projetos de desenvolvimento (Herculano, 2008). Neste artigo, interessa-nos observar a aplicação desse conceito à referência, no corpus, aos trabalhadores do campo, que estão em contato direto com os agrotóxicos.
Diante desse contexto de ameaças, surge a importância de “repolitizar” as questões ambientais (Acselrad, 2010), considerando-se os componentes socioculturais do meio ambiente e incorporando a luta por justiça social. Desta forma, busca-se combater o papel subalterno e o silenciamento histórico imputado às comunidades atingidas por desigualdades. Para Acselrad (2010), a justiça ambiental está atrelada à percepção sobre os conflitos ambientais. Ou seja, essa perspectiva considera as disputas entre diferentes visões sobre o ambiente que se esbarram nas esferas decisórias. Tais disputas, frequentemente, são vencidas por grupos alinhados aos interesses do capital internacional.
No caso dos agrotóxicos, os dados de utilização apresentados anteriormente evidenciam o risco de contaminação em regiões onde há produção em larga escala. No Brasil, os custos sociais e ambientais dessa atividade são enormes, uma vez que o país é consumidor interno e exportador de itens produzidos com aplicação de agrotóxicos. Em 2015, publicação do Instituto Nacional de Câncer (INCA) alertou para o risco de câncer envolvido no consumo de agrotóxicos no Brasil, com o intuito de: “[...]fortalecer iniciativas de regulação e controle destas substâncias, além de incentivar alternativas agroecológicas aqui apontadas como solução ao modelo agrícola dominante”. (INCA, 2015, online).
A partir de Acselrad (2010), temos que a emergência da luta por justiça ambiental se dá no e pelo presente, ao contrário da preocupação até então vigente com um conflito intergeracional, em que cenários hipotéticos de escassez, devastação ou aniquilação do ambiente natural são aparentemente distantes. Portanto, ao observarmos a urgência das reivindicações por justiça ambiental diante de dados alarmantes no uso dos agrotóxicos no Rio Grande do Sul, esperamos do jornalismo uma abordagem comprometida com o direito das comunidades no acesso democrático aos bens comuns.

4. O olhar do Jornalismo Ambiental

Ao tratarmos da cobertura jornalística sobre meio ambiente, o Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS)4, a partir de diferentes análises sobre o tratamento jornalístico dado ao tema ao longo dos últimos 10 anos, adotou a diferenciação de uma prática comprometida com a sustentabilidade do planeta de outra que busca ser neutra, tratando as questões ambientais de forma mais burocrática. A primeira forma de trabalhar as pautas ambientais está associada ao conceito de Jornalismo Ambiental, que é o nosso ponto de partida para mergulharmos nas reportagens que tratam da contaminação dos hortifrutigranjeiros por agrotóxicos. A outra perspectiva é descrita como Jornalismo de/sobre Meio Ambiente e não traz em seu fazer uma visão ampla e complexa das questões, preocupada de forma equilibrada com os aspectos científicos, sociais, ambientais, econômicos, políticos, culturais e éticos de cada problemática5.
Como o Jornalismo deve se aproximar desse tema que afeta a vida de todos? Assumir a luta pela justiça ambiental é um bom começo para que a prática profissional se processe de forma não isenta, procurando enxergar as pessoas e outros seres envolvidos com suas histórias, que registram as injustiças e o desrespeito aos direitos humanos e aos outros seres da natureza. Esta é uma das características do Jornalismo Ambiental. Como forma de conhecimento, esse entendimento respeita os preceitos do jornalismo e vai além, aceitando o desafio de incorporar a visão sistêmica para mostrar a interconexão dos elementos que envolvem uma cobertura ambiental. Nesse sentido, esse olhar do jornalismo também deve
[...] reconhecer a complexidade dos eventos ambientais, que não podem ser reduzidos a formatos simplistas; contemplar a diversidade de saberes e não ficar refém de fontes oficiais (que não são as únicas, apesar de sua importância); defender a biodiversidade e a vida em sua plenitude, o que significa deixar de ser imparcial; e assumir seu papel educativo, cidadão e transformador. (Girardi et al., 2015: 377).
Uma das principais questões desse modo de fazer jornalismo está direcionada para o saber ambiental, “[...] que não se confunde ou é privilégio de instâncias especializadas e que, na verdade, é resultado da articulação de múltiplos saberes, com forte e benéfica influência dos saberes, experiências e conhecimentos tradicionais” (Bueno, 2008: 110). O Jornalismo Ambiental não é propriedade dos que detém o monopólio da fala, pois deve estar conectado com o pluralismo e a diversidade de fontes.
A proposta deste jornalismo visa despertar a reflexão e, quiçá, a ação dos cidadãos para os assuntos ambientais, por meio de informações bem contextualizadas. Bueno (2007:28) ressalta que "[...] é preciso que os comunicadores ou jornalistas ambientais estejam conscientes de que esta é uma atividade que requer militância, compromisso, capacitação, ética e profissionalismo".
O Jornalismo Ambiental engloba uma atitude crítica em defesa da sustentabilidade da vida, alinhada com a proposta da justiça ambiental. Bacchetta (2000: 18, tradução nossa) destaca este papel: “É um jornalismo que procura desenvolver a capacidade das pessoas para participar e decidir sobre sua forma de vida na Terra, para assumir de forma definitiva sua cidadania planetária". É conectado com a cidadania, logo procura envolver a população frente aos problemas ambientais, desenvolvendo sua capacidade de participar e decidir sobre questões que envolvem sua existência. Isso significa que a prática deste jornalismo deve enxergar o outro e deixá-lo falar para apreender a realidade e construir narrativas comprometidas com a busca pela justiça ambiental.

5. Análise

Para empreendermos esta análise, adotamos uma abordagem qualitativa, que busca interpretar as interações dos dados de maneira profunda, possibilitando uma compreensão maior do objeto pesquisado (Gil, 2002). Em relação aos procedimentos técnicos, utilizamos a pesquisa documental, pois nosso objeto de análise é a série Perigo no Prato, composta por cinco reportagens, veiculadas em ZH de 5 a 9 de dezembro de 2016 (de segunda a sexta-feira). O material analisado possui acesso restrito aos assinantes6.
Pelo objetivo delimitado, associamos essa pesquisa à análise descritiva (Martins, 2001). Segundo Gil (2008), este tipo de pesquisa tem como principal objetivo a descrição das características de dado fenômeno. Dessa forma, observamos de forma sistemática o corpus e os analisamos a partir de registros descritivos, tomando como parâmetro os critérios do jornalismo ambiental, à luz dos aportes da justiça ambiental.
A primeira reportagem, intitulada Mal Invisível, introduz o problema e mostra a cadeia de irresponsabilidades, do produtor de hortifrutigranjeiros ao vendedor, que coloca na mesa dos gaúchos alimentos com produtos químicos, segundo informações do jornal. A segunda reportagem chama-se Sua Saúde sob Risco e apresenta informações de como o agrotóxico afeta a saúde dos consumidores. Já a terceira reportagem aborda o contrabando de agrotóxicos no Estado. Na quinta-feira, a reportagem foca no acordo realizado no estado de Pernambuco, como inspiração para o RS. A última reportagem realiza o fechamento da investigação e informa que providências começam a ser encaminhadas pelos atores envolvidos na denúncia.
A série investigativa de ZH aqui estudada é baseada nas legislações e acordos judiciais a respeito dos agrotóxicos no RS, e foca-se, sobretudo, no descumprimento desses compromissos e na falta de fiscalização das autoridades. A reportagem faz uso da Lei de Acesso à Informação para obter resultados dos testes do Laboratório Central do Estado (Lacen), que, de acordo com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2012 entre Ministério Público e Ceasa, deveria realizar até 20 análises mensalmente sobre produtos oferecidos para venda.
O conjunto de reportagens apresenta infográficos para mostrar a quantidade de agrotóxicos em cada amostra examinada. Também utiliza sequência de fotos para explicar o processo de análise em laboratório. Outros recursos gráficos presentes são ilustrações, mapas – que exibem as rotas do contrabando – e boxes para destaque dos principais números, frases e respostas das autoridades.
Através da análise encomendada à Universidade Federal de Santa Maria, a reportagem identifica, de início, quatro situações preocupantes sobre os agrotóxicos no estado: registros acima do limite permitido pela Anvisa; proibidos para o alimento em análise; com uso proibido no Brasil; e sem registro no país.
Nos textos há uso recorrente do termo “agrotóxicos”, o que representa olhar mais crítico do jornalismo em relação aos anos 1980, por exemplo, quando esta palavra era quase proibida nas redações (Grupo de Investigação RBS, 2016)7. Porém, em algumas passagens, as palavras “defensivos” e “agroquímicos” são utilizadas como sinônimo, o que evidencia ainda haver ausência do olhar do Jornalismo Ambiental: ora, se o uso de um produto venenoso é uma violação ao ambiente e à vida, uma denominação que abrande essa responsabilidade acaba não sendo capaz de descrever a complexidade dos malefícios causados por sua aplicação e consumo.
As vozes ouvidas na construção da reportagem concentram-se nas fontes oficiais (representantes do governo e órgãos judiciais), nos especialistas (professores de universidades e profissionais técnicos) e no setor privado (representantes de empresas) (Grupo de Investigação RBS, 2016)8. Muitas pessoas contribuem com a discussão impulsionada pela investigação, mas ficam restritas a essas categorias. Destacamos que nenhum agricultor ou produtor rural foi ouvido, assim como representantes do movimento ecológico ou de organizações ambientalistas. Todas essas pessoas apresentam, em suas especificidades, ligação direta com os agrotóxicos, por utilizá-los ou por historicamente combatê-los. Ainda, são expostos apenas dados de contaminação pelo uso e consumo de agrotóxicos ocorridos no exterior (Grupo de Investigação RBS, 2016)9. Acreditamos que seria mais relevante abordar dados regionais, pois o contexto em discussão é o Brasil e, em específico, o RS.
Como define Gelós, “o Jornalismo Ambiental considera um espectro mais amplo de fontes e visões, que incluem desde os saberes tradicionais até o conhecimento gerado pela ciência e pela técnica” (2008:70-71, tradução nossa). Compreendemos, nesta análise, que a diversidade de fontes não garante a diversidade de vozes. Pela perspectiva do Jornalismo Ambiental, a reportagem deveria ter apresentado outros olhares e saberes, que ficaram silenciados, sobre a realidade do consumo de agrotóxicos pelo cidadão gaúcho. Observamos que a série de reportagens não considerou a possibilidade de apresentar outras maneiras (técnicas) de se produzir alimentos, ou seja, não abordou a agricultura ecológica, que não utiliza agrotóxicos e fertilizantes em sua cultura.
Os jornalistas não trouxeram uma visão global sobre o problema ambiental, social e de saúde pública que é causado pelo uso de agrotóxicos na produção de alimento, mesmo a equipe afirmando ter ido atrás de “alternativas para reduzir o perigo dos agrotóxicos nas lavouras” (Grupo de Investigação RBS, 5 de dezembro: 6)10. Nas brechas das entrevistas, detectamos apenas uma fonte que apresentou uma visão crítica sobre os agrotóxicos e outras possibilidades de cultivo. Cabe destacar que o espaço ocupado por essa informação é um pequeno parágrafo no fim da página, localizado no lado direito. Identificamos na fala do professor da Universidade Federal do Paraná, Victor Pelaez, o seguinte alerta:
O “risco da fome” ainda é muito presente no discurso de justificativa do uso predominante de agrotóxicos. A consolidação de qualquer alternativa menos danosa à saúde – seja a produção orgânica ou o controle biológico de pragas – dependerá de investimentos e políticas públicas de longo prazo11.(grifo nosso) (Grupo de Investigação, RBS, 2016, 5 de dezembro: 13)
Seguindo o movimento de análise, encontramos em diferentes momentos da narrativa das reportagens uma intenção de justificar todas as irregularidades identificadas pelo grupo de investigação sobre os agrotóxicos pela ótica da falta de fiscalização do governo do Rio Grande do Sul, principalmente na última reportagem (Grupo de Investigação RBS, 9 de dezembro). Um dos trechos que nos permite ilustrar essa posição está no editorial da edição que veiculou a última reportagem da série, intitulado Insegurança Alimentar. Nele o jornal afirma que o propósito da investigação dos repórteres – “alertar para os riscos e para a fragilidade da atuação dos serviços públicos”12 – foi cumprido. Nas cinco reportagens, os jornalistas tendem a culpar o governo estadual pelo atual contexto que se encontram os alimentos fornecidos pela Ceasa – por não dar andamento ao TAC, por não ter uma estrutura adequada para realização das análises e por não cumprir a legislação.
Em resposta a esse cenário descrito, os jornalistas do Grupo de Investigação RBS (2016, 8 de dezembro: 24) apresentam na quarta reportagem como o TAC conseguiu estabelecer ações de combate ao uso irregular de agrotóxicos no estado de Pernambuco, Brasil. Eles seguem tecendo as mesmas críticas ao estado do Rio Grande do Sul e tentam demonstrar como o caso de Pernambuco deveria servir de exemplo. No entanto, precisamos observar que a Ceasa pernambucana terceirizou as suas análises e cobra dos compradores para poder fazer isso. Entendemos que essa comparação realizada pela reportagem não condiz com a realidade de cada estado e situação. No Rio Grande do Sul o objetivo é seguir com o Lacen e não incentivar o desmonte das instituições públicas. 
No entanto, observamos que a série de reportagens não realiza essa mesma cobrança com o setor privado. As empresas que fabricam e vendem esses produtos também possuem responsabilidades sobre o produtor agrícola que utiliza o agrotóxico posto no mercado. Dessa forma, ressaltamos que, sim, o estado deve ser cobrado por sua atuação nessa fiscalização e controle, mas a indústria também deve ser acionada nessa discussão. Na primeira reportagem, a diretora de segurança e produto da Bayer na América Latina, empresa que fabrica agrotóxicos, sementes, fertilizantes e remédios para humanos e animais, foi ouvida pelos jornalistas:
As pragas sempre vão existir em todos os lugares. O que acontece é que elas desenvolvem maiores resistências e surgem em abundância por causa do clima tropical. A questão não é acabar com o defensivo, mas continuar desenvolvendo novos porque as resistências estão aí. O ponto é fazer o uso responsável e correto13. (Grupo de Investigação RBS, 2016, 5 de dezembro: 13)
Essa polarização dos problemas para o setor público evidencia a inexistência de uma visão sistêmica na cobertura, pois não traz para debate outras questões essenciais para (re)pensar a produção desses hortifrutigranjeiros. Pela ótica do Jornalismo Ambiental, as reportagens precisam também reconhecer que a complexidade dos eventos ambientais não pode ser reduzida a formatos simplistas (Girardi et al., 2013). Além disso, é possível observar que os jornalistas conduziram a série com um “[...] tom alarmista, com pouca divulgação dos dados científicos concretos e altas doses de oportunismo quando a cobertura toca em ações para combater o problema”, conforme a descrição de Girardi e Schwaab (2008: 16) para reportagens pouco aprofundadas. Dessa forma, por não haver problematização sobre as consequências dos danos ambientais para a população em contato direto com as substâncias tóxicas, o princípio da justiça ambiental conforme exposto por Acselrad (2010) e Herculano (2008) não se faz presente na série de reportagens.
Também foi priorizada a cobrança de que os alimentos deveriam estar dentro dos padrões estabelecidos pela Anvisa, mas, ao mesmo tempo, foi dedicada uma das reportagens ao perigo que o ser humano sofre ao se alimentar com produtos que foram expostos aos agrotóxicos (Grupo de Investigação RBS, 6 de dezembro). Dessa forma, os jornalistas não apresentaram outros modelos de produção e alternativas de cultivo, perpetuando a lógica desgastada de que é preciso utilizar venenos para se produzir alimentos. Primavesi (2004) contribui com essa discussão ao lembrar que:
A agricultura moderna tornou-se ferramenta para ganhar dinheiro com produtos gerados, que até podem ser utilizados como alimentos, eventualmente, mas com a total responsabilidade de risco do consumidor. A saúde do consumidor é apenas um detalhe não tão importante para os que desenvolvem esses produtos com o objetivo único de ganhar dinheiro. (Primavesi, 2004: 198)
Por essa afirmação, conseguimos elucidar os dados apresentados na segunda reportagem (Grupo de Investigação RBS, 2016, 6 de dezembro). Ao abordarem os problemas que afetam a saúde dos cidadãos, os jornalistas explicitam informações econômicas sobre o modelo agrícola do país – como se fosse uma justificativa para o uso de agrotóxico: o Brasil é o maior importador mundial de agrotóxicos e também o maior consumidor, ultrapassando os Estados Unidos nos últimos anos. Em 2015, segundo dados do MAPA, o país importou 662.743,43 toneladas de agrotóxicos. Em contrapartida, a venda de agrotóxicos no Brasil, no mesmo ano, movimentou US$ 9,6 bilhões, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal. Cabe destacar que as indústrias de agrotóxicos usufruem de incentivos fiscais, instrumentos econômicos para impulsionar determinados setores da economia, como redução de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), isenção de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). O setor de agrotóxico apresenta impostos menores que o setor de medicamentos. Essa política é justificada pelo fato de que os alimentos irão chegar com um valor menor ao consumidor.
O Brasil hoje está entre os maiores exportadores mundiais de alimentos. A reportagem apresenta um panorama dessa realidade com números (Grupo de Investigação RBS, 2016, 6 de dezembro). Informa que, entre 2007 e 2013, o aumento do consumo de agrotóxicos no Brasil foi de 90,5%, enquanto a área plantada cresceu apenas 19,5%. Já no RS, para o mesmo período, a alta no uso de agrotóxicos foi de 70%, enquanto a área plantada aumentou apenas 10,1%. Com esses dados, precisamos questionar: para onde está indo todo esse veneno, se esses valores são inversamente proporcionais?
Ainda segundo a reportagem, identificamos que o Brasil, entre os anos 2000 e 2013, apresentou um crescimento de 700% nas importações de agrotóxicos e ainda que 1,5 mil agrotóxicos aguardam registro na Anvisa. Primavesi (2004: 196) possibilita entender esses dados, ao destacar que essa quantidade enorme de venenos lançados no ambiente, “[...] talvez dez a vinte vezes mais do que realmente o necessário, agrava não só a saúde do ambiente, eliminando inimigos naturais e insetos polinizadores, sem os quais muitas vezes não há produção, mas também a qualidade já inferior dos alimentos”. Estamos consumindo alimentos com deficiências nutricionais e envenenados, mas essa crítica sobre a qualidade nutricional dos alimentos não é encontrada nas reportagens. Os jornalistas falam em segurança alimentar, mas focam apenas no uso em excesso de agrotóxicos.
Na terceira reportagem, os jornalistas detalham a facilidade de se adquirir agrotóxicos não autorizados para uso no Brasil por meio de contrabando. Eles informam que os produtos podem ser comprados no Paraguai e no Uruguai, passando pela fronteira sem dificuldades. (Grupo de Investigação RBS, 7 de dezembro). Para verificar essas possibilidades, o repórter do jornal Zero Hora foi até a Cidade Del Este, que faz fronteira com Foz do Iguaçu, para simular uma compra de agrotóxicos para entrega em Porto Alegre. Essa realidade apresentada pelo Grupo de Investigação RBS (2016, 7 de dezembro:25) explica os dados informados na reportagem, como a “apreensão pelas autoridades brasileiras de 549 toneladas de agrotóxicos contrabandeados desde 2001”. Essas informações também contribuem para entender como foram encontrados dois tipos de agrotóxicos não permitidos no Brasil nos hortifrutigranjeiros analisados pela reportagem.
Por fim, observamos que a investigação Perigo no Prato, na reportagem Sua Saúde em Risco, não considerou a saúde de quem aplica o agrotóxico na lavoura, apenas de quem consome esse alimento (Grupo de Investigação RBS, 6 de dezembro). Os trabalhadores do campo, cujos corpos são diretamente impactados pelos venenos ao lidarem com o alimento que chega às mesas dos gaúchos, são invisibilizados pela reportagem. Essas pessoas também sofrem diretamente essa injustiça ambiental, pois sua existência caminha com as agressões geradas pelos agrotóxicos a sua saúde.

6. Considerações

A série de reportagens de ZH nos provocou a observar como o jornalismo aborda o uso e o consumo de agrotóxicos no Brasil, buscando compreender o lugar da justiça ambiental nesse processo. Dessa forma, a justiça ambiental é um fio condutor do nosso Jornalismo Ambiental: engajado, comprometido com a cidadania, que atenta para a complexidade dos fatos e envolve uma diversidade de saberes.
Apesar da intenção de abordar os riscos à saúde humana, o trabalho de ZH desconsidera os impactos dos agrotóxicos em toda a cadeia produtiva e nos ecossistemas, para além do consumidor final. Identificamos que o modelo agrícola desenvolvido e perpetuado no Brasil, que utiliza excessivamente agrotóxicos no cultivo dos alimentos, guiado pela concepção do mito da fome, como verificado pelas reportagens analisadas, não gera autonomia, soberania e segurança alimentar. Esta última, especificamente, constitui-se em artifício para impedir que haja convulsões sociais, ou seja, para que o cidadão que tem acesso ao alimento permaneça “controlado”, independente da qualidade do que come. Através da ideia de segurança alimentar, pressupõe-se haver uma “margem de segurança” para consumo, embora não haja argumentos além da referência à lei para comprovar tal ideia. A visão do jornal, expressa em um dos textos da série de reportagens, é de que os agrotóxicos são imprescindíveis para a produção em larga escala.
A série investigativa Perigo no Prato demonstrou nas reportagens uma posição legalista, cobrando do Estado providências e soluções, deixando de envolver outros atores nesse processo de fiscalização dos agrotóxicos. As questões ambientais, por serem complexas, demandam um olhar interdisciplinar e ações conjuntas que reúnam estratégias e esforços de diferentes setores.
Frente a tais constatações, emerge a perspectiva da soberania alimentar, plenamente associada à agroecologia. O Jornalismo Ambiental, por sua vez, identifica-se com esse pensamento porque contempla o respeito a saberes diversos, que vão além da tecnologia mecanicista responsável por homogeneizar sociedade e natureza, e submeter todas as relações de produção ao mercado internacional. Também preza pela diversidade de vozes e pela abordagem complexa da realidade e, se esse olhar permeasse a série de reportagens, certamente complementaria a investigação ao assinalar que as responsabilidades sobre a qualidade de vida humana e, por consequência, sobre a justiça ambiental – na medida em que esta garante a igualdade no direito de acesso, no presente, ao ambiente sadio –, não pertencem somente ao poder público.

Notas:

1 A equipe do Grupo RBS (Rede Brasil Sul de Comunicação) que assina as reportagens é formada pelos repórteres Carlos Rollsing, Fábio Almeida, Humberto Trezzi, Jeniffer Gularte e José Luis Costa.

2 A modernização ecológica está baseada na confiança no desenvolvimento científico e tecnológico para resolução dos problemas.

3 Lutzenberger (1981) assim denomina o paradigma da agricultura moderna porque a produtividade das plantas é dependente do nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K), que são macronutrientes solúveis em água devido ao processo industrial de acidificação. São utilizados para nutrir a planta e não o solo, devendo ser aplicados em cada safra.

4 Grupo de Pesquisa do qual fazem parte as autoras do texto e que tem contribuído para as discussões sobre a qualificação da área no Brasil. Para mais informações acessar: https://jornalismoemeioambiente.com/.

5 O desenvolvimento do debate sobre as especificidades do Jornalismo Ambiental pode ser encontrado em diferentes artigos de membros do Grupo de Pesquisa (por exemplo, Loose e Girardi, 2017; Girardi et al, 2012) e em publicações de autores como Bueno (2008), Frome (2008), Gelós (2008) e Garcia (2006).

6 Embora as reportagens só possam ser acessadas por assinantes, a série foi divulgada pelo jornal Zero Hora aqui: https://gauchazh.clicrbs.com.br/grupo-de-investigacao/noticia/2016/12/ceasa-vende-alimentos-com-agrotoxico-proibido-inadequado-ou-acima-do-permitido-8614068.html.

7 Essas informações são encontradas nas cinco reportagens analisadas.

8 Essas informações são encontradas nas cinco reportagens analisadas.

9 Informação disponível na página 11 da segunda reportagem intitulada Sua saúde sob risco.

10 Informação disponível na página 6 da primeira reportagem da série intitulada Mal invisível.

11 Informação disponível na página 13 da primeira reportagem intitulada Mal invisível.

12 Informação disponível na página 36 do jornal Zero Hora em 9 de dezembro de 2016.

13 Informação disponível na página 13 da primeira reportagem intitulada Mal invisível.

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Fecha de recepción: 05-02-2018.
Fecha de aceptación: 13-06-2018.

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