SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 suppl.1O design contemporâneo: as premissas epistemológicas acerca do agora: Um estudo do design que se faz em tempo realLawrence Grossberg: aportes al debate estructura / agencia índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


La trama de la comunicación

versión impresa ISSN 1668-5628

Trama comun. vol.25  supl.1 Rosario jun. 2021

 

ARTÍCULOS

Papeis sociais de gênero. Aencenação do parto na telenovela brasileira

Gender social roles. The staging of childbirth in the Brazilian soap opera

 

Por Renata Malta, Jonathan dos Santos y Wensley Andrade

renatamalta@academico.ufs.br / Universidade Federal de Sergipe, Brasil

jonathanbatista.jb@gmail.com / Universidade Federal de Sergipe, Brasil

loothlorien@gmail.com / Universidade Federal de Sergipe, Brasil

Renata Malta.
Brasilera.
Posdoctorado en la Universidad de Sevilla, España.
Doctora en Comunicación Social por la Universidade Metodista de São Paulo.
Máster en Comunicación Social por la Universidade Estadual Paulista.
Licenciada en Comunicación Social – Periodismo - Universidad Metodista de São Paulo.
Docente del departamento de Comunicación Social y del programa de Posgrado en Comunicación Social de la Universidade Federal de Sergipe, Brasil.
Afiliación Institucional: Universidade Federal de Sergipe, Brasil.
Área de especialida.
udios de Género y Medios.
e-mail: renatamalta@academico.ufs.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7414-9081
 
Jonathan dos Santos.
Brasilero.
Licenciado en Comunicación Social – Publicidad - Universidade Federal de Sergipe, Brasil.
Afiliación Institucional: Universidade Federal de Sergipe, Brasil.
Área de especialidad: Estudios de Género, Sexualidad y Medios.
E-mail: jonathanbatista.jb@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2864-9763
 
Wesley Andrade.
Brasilero.
Licenciado en Comunicación Social – Publicidad - Universidade Federal de Sergipe, Brasil.
Afiliación Institucional: Universidade Federal de Sergipe, Brasil.
Área de especialidad: Estudios de Género, Sexualidad y Medios.
E-mail: loothlorien@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6399-2196


Sumario:

Este artículo se propone a analizar escenas de parto exhibidas en telenovelas brasileras a lo largo de cuatro décadas, criteriosamente seleccionadas, con el objetivo de identificar las relaciones de género en ellas inscriptas, explicitas o veladas. Para eso, optamos por dos métodos complementarios, el Análisis de Contenido y el Análisis de la Imagen en Movimiento. Para la discusión, hemos considerado especialmente autores de los Estudios de Género y del campo de la Comunicación Social centrados en la teledramaturgia, así como aquellos que se dedican al objeto de esta investigación, el parto como evento social y su representación ficcional. Como resultado, identificamos tres ejes centrales que, al convergieren, encarcelan la parturiente y la convierte en un cuerpo biológicamente necesario y destituido de su derecho/poder de dar a luz. La falta de problematización sobre las desigualdades de género que circundan el parto en la ficción, de forma sintomática, contribuye para su naturalización.

Descriptores: Telenovela; Parto; Representación; Relaciones de género; Análisis de Contenido/Análisis de la Imagen en Movimiento

Summary:

This article proposes to analyze scenes of childbirth broadcasted by Brazilian soap operas broadcasted along four decades, carefully selected, aiming to identify the gender relations there inscribed, explicit or vailed. Therefore, we have opted by two complementary methods, the Content Analysis and the Analysis of Moving Images. For the discussion, we have considered especially authors belonged to the fields of Gender Studies and Social Communication centered on teledramaturgy, as well as the ones who study the childbirth as a social event and its fictional representation.As a result, we have identified three central axes, when converged, imprison the parturient and convert her into a biologically needed body, without her right/power to give birth. The lack of problematization regarding gender inequality in fictional childbirth, symptomatically, contributes for its naturalization.

Describers: Soap opera; Childbirth; Representation; Gender relations; Content Analysis/Analysis of Moving Images


Introdução

Este artigo parte da premissa de que as relações de gênero são centrais e estruturam a sociedade, posicionando a mulher como o “outro”, a partir de uma perspectiva binária. Esse processo de classificação, por não ser natural, mas sim cultural, resulta de jogos de poder. 

“Dizer que não pode existir sociedade sem uma relação de poder não quer dizer que aquelas que são dadas sejam necessárias, nem que de qualquer modo o “Poder” constitua uma fatalidade incontornável; mas que a análise, a elaboração, a retomada da questão das relações de poder e intransitividade da liberdade, são uma tarefa política incessante, e que é exatamente essa a tarefa política inerente a toda existência social” (Foucault, 2013: 291). 

Justamente por acreditarmos que o poder é transitório e que as opressões que atuam sobre as mulheres das mais variadas formas não são uma “fatalidade incontornável”, como bem afirma Foucault, somos instigados a realizar esta pesquisa. Entendemos que por mais enraizado que o patriarcado possa parecer, suas raízes são suscetíveis a brechas que se afrouxam por meio da luta política.
Historicamente a serviço da manutenção do sistema hegemônico – conceituado aqui a partir de lentes culturalistas1-, os espaços midiáticos se mostram importantes arenas onde disputas de poder ganham materialidade e suas representações se tornam relevantes para a consolidação do imaginário coletivo, em um processo de identificação e reconhecimento do que é aceito e recomendado socialmente. Nesse interim, as produções televisivas ficcionais – no caso do Brasil, particularmente a telenovela - exercem influência na vida cultural, política e comportamental da sociedade. Há décadas essas produções estão continuamente presentes no cotidiano das brasileiras e brasileiros e suas narrativas são supostamente produzidas com base neste cotidiano. “Essa representação, ainda que estruturalmente melodramática e sujeita à variedade de interpretações, é aceita como verossímil, vista e apropriada como legítima e objeto de credibilidade” (Lopes, 2009: 31).Ademais, a pertinência desse produto cultural no cenário brasileiro é notória, pois “nessa dimensão territorial tão desigual essa é, muitas vezes, a única forma de lazer possível a milhões de brasileiros” (Malcher, 2010: 87).
Dentre as variadas representações que se constroem em personagens e situações da teledramaturgia, nosso olhar se direciona ao parto, um tema pouco estudado pelo campo da comunicação social e transversal à vida de grande parte das mulheres. Consideramos, também, que o imaginário coletivo acerca do nascimento se molda primordialmente através das representações ficcionais e que relações de gênero dão suporte a elas. Assim, propomos uma pesquisa com a finalidade de analisar de que forma o parto é representado no corpus, composto por cenas exibidas em telenovelas veiculadas pela Rede Globo, criteriosamente selecionadas. Por meio desse movimento empírico e para este artigo especificamente, objetivamos verificar, a partir de resultados quantitativos e qualitativos, como as relações de gênero se expressam no corpus, fixando ou flexibilizando os papéis designados a homens e mulheres em torno deste evento que, embora supostamente natural, “como qualquer ação humana, o parto é também uma construçãosocial” (Tornquist, 2002: 489).
Uma bibliometria foi realizada para a seleção de obras com potencial de contribuir para a pesquisa, delimitando o estado da arte. Identificamos somente uma pesquisa com proposta similar -de metodologia distinta ecorpus menos abrangente -, ainda que aspectos de gênero não tenham sido centrais dentre os resultados, focados nas expressões de dor da parturiente em partos normais e cesarianas. Trata-se do estudo coordenado por Claire Stanton, o qual analisou 33 cenas de parto de telenovelas brasileiras exibidas entre 1990 e 2014 (Futema, 2015).
Outras obras consideradas relevantes para este estudo tratavam especificamente de representação do parto em programas de reality show, pontuando a pertinência das experiências reais para gestantes (Morris;Mcinerney, 2010;SILVA, 2017), ou expressavam depoimentos de entrevistadas mencionando produções ficcionais midiáticas como influenciadoras de sua percepção sobre o parto (Pereira; Franco;Baldin, 2011;Robotham, 2001).
Parece-nos relevante evidenciar um artigo intitulado “Is it realistic?” the portrayal of pregnancy and childbirth in the media(Luceet al., 2016), o qual se propõe a compreender a representação da gravidez e do parto na mídia a partir de uma bibliometria acurada. Como resultado, três grandes temas emergiram: a medicalização na assistência ao parto; a mídia como fonte de conhecimento acerca do parto e o parto como um evento comum em sociedade. O estudo concluiu que a mídia exerce influência sobre a percepção das mulheres acerca do parto e que a sua representação dramática tende a perpetuar a medicalização. Os resultados sugerem que profissionais como parteiras precisam se engajar na produção midiática para que haja uma transformação significativa no que concerne à representação do parto. Aspectos alicerçados nas relações de gênero, especialmente concernentes ao protagonismo da parturiente e à sujeição de seus corpos permearam estas pesquisas.

Metodologia

Para a pesquisa empírica, primeiramente, explicitamos que o corpus é composto por cenas que representam o parto, presentes em telenovelas produzidas pela Rede Globo de televisão, historicamente líder de audiência no país e internacionalmente reconhecida por suas produções da teledramaturgia. Para a seleção das produções – exibidas a partir da década de 802 -, realizamos uma análise prévia de suas sinopses. Para acessá-las, recorremos ao site “Teledramaturgia”, criado pelo pesquisador Nilson Xavier em 2000. Este espaço contém um completo banco de dados sobre as telenovelas exibidas no Brasil. Nilson Xavier é pesquisador de teledramaturgia brasileira e autor do livro “Almanaque da Telenovela Brasileira” (Xavier, 2007). Todas as sinopses que constavam o nascimento de um bebê, ou especificamente um parto, foram consultadas e, quando disponíveis, as cenas selecionadas para análise. Totalizamos 60 cenas de partos ao longo de quase quatro décadas – dos anos 80 aos 2010, finalizando em 2017, quando as análises se iniciaram. Podemos afirmar que se trata de um corpus representativo e não intencional, cuja única característica comum é o parto.
Como métodos, primeiramente, optamos pela Análise de Conteúdo do corpus proposta por Laurence Bardin (2009). Ao aplicá-la, objetivamos identificar características do conteúdo descrito em elementos variáveis, previamente codificadas. De acordo com Bardin (2009: 38), “a análise de conteúdo aparece como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens”. Apesar de apresentar uma descrição qualitativa dos resultados, o método também nos permitiu quantificar a frequência de aparição das categorias.
Em uma segunda fase, utilizamos como método a “Análise de Imagens em Movimento”, proposta por Diana Rose (2002), criada e aplicada para analisar as representações da doença mental na TV Britânica nos programas ficcionais. Aqui nos apropriamos da mesma para aplicá-la ao objeto de análise, já anteriormente pontuado. A análise é aqui dividida em fases, a saber: seleção, transcrição, codificação e tabulação, a partir de duas dimensões: a verbal/sonora e a visual, proporcionando um entendimento mais aprofundado e qualitativo da representação do parto no corpus.
Por se tratar de uma pesquisa de grande porte, várias dimensões acerca do parto foram analisadas – local do parto, violência obstétrica, representação da dor, partos normal x cesariana, aspectos de religiosidade no parto, protagonismo da parturiente, assistência ao parto, perfil da parturiente concernente a classe e raça, além de características das produções ficcionais analisadas. Ao longo da primeira etapa, codificamos categorias que sistematizaram nossos achados em espécies de “gavetas”, enquadrando o conteúdo em palavras-chave e breves descrições. Na segunda etapa, evidenciamos elementos estilísticos relevantes para as temáticas propostas e transcrevemos todos os diálogos das cenas analisadas. Posteriormente, este material foi devidamente interpretado e fundamentado.
Evidenciamos que para este texto focaremos nossas atenções especificamente nos aspectos do conteúdo centrados nas relações de gênero em cena, os quais se estruturaram em três grandes eixos.No próximo tópico, discutiremos os resultados quantitativos e qualitativos desta pesquisa, considerando que os quadros e tabelas resultantes da fase de análise compõem um material extenso e inviável para os limites propostos para um artigo.

Corpos enfermos: o não protagonismo da parturiente

O primeiro eixo que estrutura os resultados propostos para este artigoconcerne ao nível de protagonismo das parturientes em cena. Como critério, partimos do princípio de que o protagonismo total seria representado se as recomendações da OMS contidas no guia de assistência ao parto normal (OMS, 1996/ WHO, 2018) fossem seguidas, especialmente aquelas que garantem a autonomia da parturiente. Dentre elas, a escolha do acompanhante, a decisão pelas posições ao longo do trabalho de parto, abolindo a litotomia3 compulsória, o mínimo de intervenções médicas possível e o consentimento daquelas consideradas necessárias, sendo a cesariana realizada apenas em casos de risco para o bem estar da mãe e do bebê,iniciativas que se alinham à categoria polissêmica de ‘humanização’.
Nesse ponto, deparamo-nos com as exceções. Foram raríssimas as cenas analisadas que expuseram a parturiente como real protagonista do parto. Para ilustrar,Luciana, em “Viver a vida” (2009), passou por uma cesariana por ser tetraplégica e dar à luz a gêmeos. O marido e pai dos bebês era médico e acompanhou o parto. A parturiente teve seu plano de parto respeitado, todos os procedimentos foram pacientemente e carinhosamente explicados e consentidos. Provavelmente a única ressalva tenha sido o fato dos bebês terem sido examinados antes de levados ao colo da mãe, possivelmente explicado considerando que eram gêmeos e pré-maturos. Luciana esteve ativa durante todo o procedimento cirúrgico.
O parto de Arlete de “Porto dos Milagres” (2001), dentro de um prostíbulo e auxiliado pela cafetina do estabelecimento, também é um dos poucos exemplos de total protagonismo da parturiente presente no corpus desta pesquisa. Apesar da aparente situação indesejada, Arlete demonstra familiaridade com o local do parto e é sempre respeitada por Dona Faló (cafetina) ao longo da cena. Arlete busca uma posição de maior conforto, virando de lado e segurando as pernas com as mãos. Dona Falónão interfere no curso natural do parto, apenas segura o bebê quando ele nasce e não sai do seu lado, incentivando-a a fazer força quando seu corpo avise. Arlete demonstra sentir dor e a expressa de forma livre, porém, como reflexo social, não há exageros que posicionem o parto normal como situação de dor extrema, como ocorre em outras cenas do corpus. Aspectos associados à fé estão presentes, na imagem de Iemanjá ao lado de Arlete, que pede forças e agradece com um sorriso sereno. Toda a cena é centrada na mulher que dá à luz, como se tudo a sua volta estivesse ali para servi-la.
As cenas aqui descritas são, como bem afirmamos, um hiato que interrompe o discurso em voga na telenovela brasileira acerca do papel da parturiente, tendo o corpus como base. Podemos mencionar o conceito de “enunciado” proposto por Foucault (2012: 147) como “coisas que se transmitem e se conservam”, das quais nos apropriamos, repetimos e reproduzimos. Não se tratam de representações ou imagens soltas, mas aquilo que as precede e que garante que sejam perpetuadas e consideradas verdades dentro de um saber. Alicerçados neste conceito, o enunciado do não protagonismo impera e se materializa em tela, fixando a parturiente em uma posição de silenciamento, negação e sujeição, mesmo que muitas vezes o cenário de contentamento construído corrobore para que esse fenômeno seja velado.
Ao partirmos para os dados quantitativos, deparamo-nos com 25% dos partos que compõem o corpus reveladores de situações que transformaram as parturientes em verdadeiros “corpos arregimentados” (Ribeiro &Pierangelo, 2015), desprovidas de qualquer nível de autonomia. Algumas, como Fátima (Novela “Vale Tudo”, 1988) e Joyce (“Histórias de amor”, 1995) são sedadas sem consentimento e sequer acompanham o nascimento de seus bebês. Ambas questionam e são ignoradas. Joice: “Que injeção é essa? Enfermeira: “Pra você relaxar”. Joyce:“Ai eu não quero dormir”. Ela dorme e na trama ninguém se lembra de problematizar a violência sofrida, já que mãe e bebê “passam bem”.
Outras são retratadas como enfermas, incapazes, violentadas das mais diversas formas. São muitos nomes de mulheres que perpassam das telas para a vida real. Para ilustrar, Tati (Novela “Quatro por quatro”, 1994) é uma verdadeira marionete nas mãos de Bruno (médico e pai do bebê) e seu amigo “Pedrão”. Empurram sua barriga com uma mão (a chamada Manobra de Kristeller4) e a cabeça com a outra enquanto pedem para que ela faça força. A fala de Bruno direcionada a Pedrão beira a jocosidade: “Aperta, em cima, força, bote o braço! Isso, faz força, aí. Faz força pra empurrar pra frente”. Em “Terra Nostra” (1999), Maria do Socorro sente muitas dores e o parto acontece no meio de uma estrada, próximo a um rio. Uma das mulheres que auxilia o parto chega a sentar-se na barriga da gestante que, completamente passiva, assemelha-se a uma enferma convalescente no chão de terra. Na novela “O profeta” (2006), todo o protagonismo é dado ao pai da criança, que “faz o parto” antes da chegada do médico. Quando adentra a residência, o “doutor” examina a mãe e o bebê e parabeniza Marcos pelo “parto perfeito”. À Sônia não lhe coube sequer uma fala na cena para além dos gemidos de dor. De forma uníssona, nestes partos, parece que a única função/direito da parturienteé a de fazer força e sentir dor.
Como discute Lopes (2009: 27), as telenovelas promovem “a fusão dos domínios do público e do privado”, sugerindo que “dramas pessoais e pontuais podem vir a ter significado amplo”. Assim, não apenas a falta de protagonismo das parturientes, mas principalmente a ausência de problematização deste fenômeno em cena possui efeito sintomático, constrangendo o direito reprodutivo das mulheres e sujeitando seus corpos às mais variadas formas de violência de gênero.
Como bem aponta Foucault (1987), a relação “corpo-poder” se estabelece de forma intrínseca, já que o corpo se encontra em um campo político, relacionando-se invariavelmente com outros corpos. O corpo individual representa, assim, um micro poder. Das relações entre micro poderes resulta a criação de normas, contratos, acordos. No que tange ao parto, tanto na ficção quanto na vida real, institucionaliza-se a fragilidade dos corpos femininos, que outrora eram “naturalmente preparados” para parir. A “experiência de parto” se transformou não despropositadamente em “dor de parto”, abrindo as portas para um modelo tecnocrático. O parto se torna um evento patológico, e não mais existencial e social, vinculado à sexualidade da mulher, sendo necessária uma série de recursos e procedimentos não-naturais(ou mesmo anti-naturais) que afastariam tanto a mulher quanto o bebê de sua suposta ‘natureza’. Certamenteé preciso ponderar as armadilhas que emergem da associação da mulher à natureza.

“De um lado essas noções dão positividade ao corpo e à experiência feminina de dar à luz (a qual supõe certas condições biológicas óbvias), contrapondo-se a toda tradição ocidental de uma obstetrícia fundada em representações negativas e faltosas do corpo das mulheres. De outro, ao apontar para um instinto e uma natureza (poderosa, positiva) das mulheres, sugerem uma essência feminina universal, liberada da dimensão simbólica, e, ainda, uma equivalência entre feminilidade e maternidade” (Tornquist, 2002: 490).

Essas noções ganham ainda mais relevância quando compreendemos os espaços que os homens ocupam no imaginário associado ao parto, o lugar da ciência, do conhecimento, o qual lhes garante poder em relação ao corpo da parturiente. Esse imaginário se compõe a partir de variados elementos e, dentre eles, as representações ficcionais da teledramaturgia ecoam de forma estrondosa.

Homens médicos, Mulheres parteiras e amadoras

O segundo eixo que alicerça nossos achados concerne à compreensão dos papeis de homens e mulheres que desempenham a função de assistentes nos partos que compõem o corpus deste estudo. Antes de partirmos para os números, convém trazer para discussão os questionamentos propostos por Martín, Arjonilla y Sedeño (2017: 146), considerando décadas de estudos com enfoque em “Ciência, Tecnologia e Gênero”: “¿Qué papel desempeñanenlatarea científica loscuerpos de lasmujeres? ¿Cómoaparecen sus cuerpos marcados por estas ciencias biomédicas?” De início, as atoras afirmam que a partir das mais diferentes perspectivas feministas, questiona-se com ênfase a forma tradicional de se fazer ciência, pois em muitas ocasiões a ciência foi utilizada para subjugar as mulheres (Martín; Arjonilla; Sedeño, 2017: 136). Essa premissa se materializa de diversas formas ao longo de nossa trajetória empírica. O gráfico que segue nos auxilia a descortinar este fenômeno.

Gráfico Nº1: Frequência dos personagens que auxiliaram a parturiente no corpus.
Fonte: Elaboração própria.

“La teoría del conocimiento tradicionalmente se ha fundamentado en la posibilidad de un sujeto cognoscente individual, genérico y autosuficiente, es decir, “aislado” de condicionamientos externos (su cuerpo y sus relaciones biológicas y socioculturales con los otros) para quedarse en pura consciencia abstracta. Este agente epistémico ideal (el sujeto cartesiano), entendido como un individuo genérico o “sujeto universal”, implica que todos los sujetos son intercambiables, por lo que quién sea el sujeto pasa a ser irrelevante para el resultado del conocimiento. Ese sujeto incondicionado no sólo es un ideal inexistente sino también engañoso y peligroso en lo que a sus consecuencias prácticas se refiere. Lo que se ha tomado por incondicionado y universal, en el fondo, ha incorporado rasgos epistémicos de ciertos sujetos y ocultado o marginado los de otros, lo que ha supuesto ciertas consecuencias materiales y de distribución de poder. La pretendida imparcialidad esconde, en último término, una parcialidad que ha dado primacía a los intereses, objetivos y valores de cierto/s grupo/s sobre los de otros” (Martín,Arjonilla; Sedeño, 2017: 137-138).

Ao analisarmos o gráfico, nada mais certo do que a afirmação das autoras ao enfatizarem a relevância do sujeito para o resultado do conhecimento, questionando o “indivíduo genérico”.  Isoladas, as cenas buscam exatamente representar o sujeito universal, o detentor de “conhecimento” apto a auxiliar a mulher que se encontra em trabalho de parto. Juntas, visualizamos a parcialidade, a figura hegemônica do homem (branco) que se apresenta neste papel, delineando de forma inquestionável o androcentrismo e o sexismo que agenciam as produções da teledramaturgia brasileira. Aqui, faz-se necessário uma análise mais detalhada de como estes números se constroem.
Quase metade das parturientes em tela (45%) foram auxiliadas por obstetras do sexo masculino e apenas 3,3 % por obstetras do sexo feminino. Estes dados estatísticos por si só já revelam a divisão sexual do trabalho que impera na mídia. Porém, vemo-nos instigados a ir além da simples constatação e buscar aprofundamento. De fato, a realidade médica brasileira é bastante dissonante da ficção, de acordo com a pesquisa “Demografia Médica no Brasil”, realizada pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo (Scheffer, 2018), 51,5% dos médicos obstetras brasileiros são mulheres. Mas por que elas não estão representadas na telenovela brasileira?
Hirata e Kergoat(2007) nos dão uma pista para se chegar a esta resposta, segundo as autoras, as desigualdades de gênero nas relações de trabalho são sistemáticas e hierarquizantes e possuem dois princípios organizadores: O princípio de separação – existem trabalhos “de homens” e trabalhos “de mulheres”; e o princípio hierárquico - o trabalho desempenhado por um homem tem maior valor social do que o realizado por uma mulher. “Esses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço”, embora sejam extremamente mutáveis e plásticos (Hirata &Kergoat, 2007: 599). Se a medicina, e mais especificamente a obstetrícia, já não é mais um trabalho “de homem”, como já foi outrora, entendemos que o princípio hierárquico molda essas representações, posicionando homens médicos como mais valorizados e, portanto, detentores dos espaços midiáticos, como é o caso da telenovela.
Retomando os resultados das análises do corpus, traremos para a discussão considerações e percepções identificadas ao longo do estudo, com a finalidade de destrinçar os outros dados do gráfico anteriormente apresentado. Observamos que a maioria dos partos normais não ocorreu em hospitais e, parte considerável, em locais inapropriados, o que revela situações não esperadas e, por vezes, extremas para a realização dos mesmos. Exceto nas “novelas de época” (pouco mais de 20% do corpus), onde partos hospitalares não retratariam a realidade do período social em questão, os partos domiciliares ocorreram em condições precárias, motivados ou por falta de recursos ou em situações extremas, como impossibilidade de deslocamento, sequestros, entre outras. Salvo nas “novelas de época”, em nenhum dos casos ter o bebê em casa foi uma situação planejada pela parturiente, com assistência apropriada. Ademais, ambientes naturais, como caverna e beira de rio, foram cenários frequentes para o nascimento de bebês (11% dos partos normais). Outros espaços, como ônibus, carros, banheiros públicos, estiveram presentes em parte considerável do corpus (17% dos partos normais).
Nestes casos “imprevistos” e por vezes “trágicos”, quase sempre mulheres auxiliaram a parturiente. Além das parteiras (cerca de 18% do corpus), que atuaram especialmente nas “novelas de época”, e daquelas que possuíam vínculo afetivo com a gestante, essas mulheres eram cafetina e prostitutas (“De corpo e alma”, 1992); escravas (“Sinhá moça”, 2006) passageira de ônibus (“Da cor do pecado”, 2004);frequentadora de um bar (“Amor à vida”, 2013); policial em meio ao tiroteio (“A força do querer”, 2017). A exceção a este modelo de narrativa foi Tonico em “Bebê a bordo” (1988), taxista surpreendido pela gestante durante um assalto, a auxilia no parto, com a ajuda de transeuntes. Todos os outros homens – aqui descritos como amadores – eram pais dos bebês e assumiram a função de ajudar ou protagonizar o parto.
Para problematizar o papel dessas mulheres nas tramas e seus desdobramentos sociais, recorremos ao estudo de Araújo (2018), sobre gênero e reciprocidade, além dos conceitos propostos por Hirata e Kergoat (2007) acerca das esferas produtiva e reprodutiva que estruturam a divisão sexual do trabalho. Segundo as autoras, foi a tomada de consciência – de forma coletiva – de que uma enorme massa de trabalho era – e ainda é – realizada gratuitamente pelas mulheres em prol da sociedade que se deu início o movimento de mulheres. Assim, historicamente, o trabalho reprodutivo (que assegura a continuidade da espécie e da vida), invisível e não remunerado, é função das mulheres, e o produtivo dos homens. Neste jogo desigual, atua o ideal de reciprocidade e solidariedade que “opera como mecanismo mantenedor de subordinações” (Araujo, 2018: 3), em nome da natureza e do dever materno.
Ao construir personagens femininos sempre dispostos a ajudar em situações extremas que envolvem o parto inesperado, mesmo que estas mulheres não tenham qualquer experiência ou conhecimento acerca de como proceder, a ficção reforça estes papeis sociais. Para corroborar com esse discurso, em uma série de tramas que compõem o corpus observamos homens expulsos da cena do parto por mulheres parteiras ou amadoras que assumem a responsabilidade de auxiliar a parturiente, assim como pais desmaiarem ou se mostrarem extremamente nervosos, necessitando, por vezes, apoio de outras pessoas para se acalmarem. Essas últimas são, geralmente, regadas de um tom de humor desconcertante, mas que, de fato, contribuem para aculturar o suposto despreparo emocional do homem para atuar na esfera da solidariedade.
É preciso, ainda, refletir sobre o papel das parteiras na ficção e traçar um paralelo com a realidade brasileira. Especialmente nas novelas de época e em algumas situações específicas - de pobreza e falta de acesso -, essas mulheres apareceram em cena e tiveram seu trabalho valorizado. Certamente a relação que aqui se estabelece também se enquadra na esfera da solidariedade e reciprocidade, alicerçada no dever moral e nas normas de feminilidade que orientam o cuidado do outro. Mais além, são mulheres com o “dom” natural – e sobrenatural – de ajudar a nascer.
Para ilustrar, na novela “Cabocla” (2004) inicia-se uma discussão sobre quem a parturiente, Emerenciana, deveria requisitar e a resposta foi categórica, “cumade Generosa, quase todas as crianças dessa região nasceu tudo nas mão da dona Generosa. Não tem parteira melhor por essas bandas!”. Em Velho Chico (2016), a cena do parto de Olívia começa com a parteira se preparando, são mostradas imagens em primeiríssimo plano que refletem um pouco da crença da parteira.  “Nossa Senhora do Bom Parto me dê forças e proteja essa menina”. Depois do nascimento dos gêmeos, ela faz o batismo simbólico das crianças com base nas suas crenças indígenas. Porém nenhum parto do corpus deu tanta ênfase aos dons sobrenaturais da parteira quanto o da novela “Chocolate com Pimenta” (2003). Na iminência da morte de Graça, a parteira afirma que o anjo veio buscar uma alma e que a parturiente escolheu a dela, salvando o bebê.
Em um paralelo com a vida real, as parteiras

São mães, esposas, avós, comadres, madrinhas e tias, que aprenderam com suas antepassadas a desempenhar afazeres tanto no mundo natural, executando as mais diversificadas formas de trabalho, como no plano sobrenatural, benzendo, recitando rezas e invocando encantarias, para obter ajuda na hora do parto e curar os males do seu povo. Ainda hoje, a presença dessas mulheres nos povoados rurais é indispensável (Pinto, 2002: 441).

Assim, suas figuras emergem como a de mulheres fortes e destemidas, trabalhadoras incansáveis. “Se recebem um chamado qualquer, é preciso ir atender. É uma questão de solidariedade, e só aquelas que receberam essa espécie de dom armazenam força e energia suficiente para cumprir a missão de ajudar” (Pinto, 2002:  443). É evidente como se materializa nas telas e na vida o sacrifício das mulheres como ícone cultural da reciprocidade. Da cumade Generosa, que já tem evocado a partir do próprio nome qualidades de cuidadora, aos depoimentos de parteiras que ainda atuam em povoados rurais e ribeirinhos (Pinto, 2002). E das tensões entre a esfera da reciprocidade (exclusivamente feminina) e a esfera de mercado (que insere mulheres, mas em condições desiguais em relação aos homens) percebemos como, por um lado, o trabalho realizado historicamente pelas mulheres passa para as mãos masculinas e, ademais, aspectos não materiais passaram a ser questionados e desconsiderados pelo saber científico. São relevantes os depoimentos de parteiras em Pinto (2002: 444-445) sobre os preconceitos sofridos por profissionais da saúde. “Nos últimos séculos as parteiras vêm sendo alijadas do processo de cura, exclusão que precisa ser repensada dentro da própria academia (...), bem como o reconhecimento e a remuneração aos trabalhos das parteiras tradicionais”.
Essa é uma discussão que demanda fôlego e foco. Não pretendemos realizá-la para este artigo, porém não podemos desconsiderar a medicalização do parto como fenômeno e suas representações na teledramaturgia, com efeito sintomático. Não por acaso, Maria Marta, em “Império” (2014), diz ao filho que disponibilizou o melhor obstetra (homem) para a nora e que “os médicos optam por cesariana porque é mais seguro para a mãe e para os filhos (...)”, ou em “Coração de estudante” (2002) Amelinha é impedida pela forte chuva de chegar ao hospital e afirma,“você sabe que eu queria ter filho com cesariana (...), a última coisa que eu queria era sentir dor meu pai”. Esses dois exemplos ilustram a apologia explícita à cesariana, presente em 13,3% do corpus. No Brasil, “o parto deixou de ser assunto de mulheres e passou para o campo médico”. Movimento que“encarcera o indivíduo numa campânula medicamentosa”, ensinando-nos que a maior parte dos corpos femininos brasileiros é incapaz de fazer nascer sem “a série de comandos entoada pelo discurso clínico” (Ribeiro;Pierangelo, 2015: 137).

Meninos, bem vindos ao mundo da ficção!

Finalmente, chegamos ao último eixo que dá suporte aos resultados empíricos aqui propostos, o qual está centrado na “preferência por meninos” nos partos da teledramaturgia. Pontuamos que durante a etapa de codificação das categorias de análise não nos atentamos para os dados que serão aqui expostos. Porém, ao longo do processo de interpretação, observamos discursos presentes no corpus que apontavam de forma mais ou menos explícita que o nascimento de meninos era mais bem vindo do que o de meninas nas tramas. Instigados por estes discursos, reiniciamos o processo de análise com a finalidade de contabilizar a frequência de nascimento de meninos e meninas no material analisado. O gráfico abaixo sintetiza este resultado.

Gráfico Nº 2: Frequência de nascimento de meninas e meninos no corpus.
Fonte: Elaboração própria.

Assim, se as telenovelas formassem uma sociedade, nela nasceriam apenas 36% de meninas. Como medida de comparação, em 2017 nasceu no Brasil aproximadamente 51,2% de meninos e atualmente a população brasileira é constituída por cerca de 51,7% de mulheres (IBGE, 2018). Essa diferença na ficção só se tornou visível quando agrupamos todas as produções, desse modo, ela normalmente passa despercebida e não é passível de problematização. Não pretendemos, aqui, realizar uma pesquisa que analise as condições de produção, pormenorizando quem foram os autores e roteiristas destes produtos midiáticos, ainda que consideremos que este movimento certamente trouxesse muitas respostas para o fenômeno aqui apresentado. Portanto, focaremos no conteúdo analisado e seus potenciais desdobramentos sociais.
“Que seja homem é natural” (Beauvoir, 1970) é uma das primeiras afirmações de Simone de Beauvoir em sua obra “O Segundo Sexo”. A autora ressalta aqui a categoria naturalizante e universal na qual o homem se posiciona, situando a mulher em uma posição secundária, subordinada, quase como ser não nomeado, construída através da constituição do outro. Beauvoir (1970) investigou os limites das categorizações de gênero, concentrada em esclarecer sobre quais circunstâncias essa composição se sustenta ao longo da história. A categoria de “fêmea” é seu ponto inicial, termo essencialista advindo da biologia que confina o ser mulher ao sexo, reafirma constantemente a fêmea como o ser frágil, maternal e servil e o macho como viril, forte e voraz.

“Uma sociedade não é uma espécie: nela, a espécie realiza-se como existência; transcende-se para o mundo e para o futuro; seus costumes não se deduzem da biologia; os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza; obedecem a essa segunda natureza que é o costume e na qual se refletem os desejos e os temores que traduzem sua atitude ontológica. Não é enquanto corpo é enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores” (Beauvoir, 1970: 56).

Munidos das teorizações de Beauvoir (1970), voltamos às interpretações de nossas análises. Ali, escutamos em alto e bom tom a parturiente Serena (“Corpo Dourado”, 1998) dizer: “é um machinho”; a parteira (“Porto dos Milagres”, 2001) enaltecer “é macho!”; o pai do bebê (“Cabocla”, 2004) gritar “é macho, menino macho”; um familiar (“Joia rara”, 2013) entoar “e o cabra era macho mesmo”. Não observamos ninguém dizer que era fêmea. Como afirma Foucault (2012), o “dito” e “não dito”são interligados por uma espécie de rede heterogênea moldada por relações de poder definindo as ideias que devem ser enunciadas e as que precisam ser caladas. Silenciamento e expressão controlam, assim, os sentidos, os saberes, as verdades. 
Neste ponto, vale enfatizar o quanto a sexualidade é um campo amplo de disputas de poder, e de como o próprio argumento biológico (“é macho!!”) pode corroborar para a manutenção de privilégios e posicionar papeis específicos de gênero, em uma perspectiva binária. Voltando aos números, Em 23% dos partos que compõem o corpus houve uma manifestação explícita pela preferência por menino, ora demonstrada pela felicidade quando a vontade se concretizava, ora pela rejeição ou decepção quando nascia uma menina. Se em alguma medida a ficção reconta a realidade, espera-se dela ao menos uma problematização de valores sociais em voga os quais ditam estes discursos. Muitos destes valores institucionalizados na Escola, na Igreja, no núcleo familiar. Mesmo considerando o contexto de algumas novelas de época, entendemos que o “passado não é mais o que explica o presente, mas este que comanda uma ou várias leituras do passado” (Figueiredo, 2010: 89). Em outras palavras, em um período de políticas afirmativas, também no que concerne às relações gênero, cabe ao presente instituir uma revisão do passado, problematizando-o, propondo, assim, renovadas leituras sobre ele, especialmente em obras ficcionais de influência social.

Considerações finais

Esta pesquisa se delineia com base em duas premissas iniciais. Primeiramente, estabelecemos que as relações de gênero estruturam a sociedade e são resultantes de históricas disputas, de característica desigual, tornando a tarefa política incessante. Mais além, que as representações que habitam os espaços midiáticos são instrumentos a serviço deste jogo de poder, dramatizando problemas sociais do cotidiano. Compreendermos, assim, que a mídia ocupa esse lugar institucionalizado e que os discursos que ali circulam contribuem para a aculturação de modelos de comportamentos desejáveis socialmente.
Nosso interesse particular se direcionou a um fenômeno ou evento social, o parto. Fomos instigados a investigar como o nascimento é, há décadas, encenado nas obras ficcionais da teledramaturgia brasileira e descortinar as relações de gênero ali inscritas. Seguindo procedimentos metodológicos com rigor científico e de características quantitativa e qualitativa, chegamos a relevantes resultados para os campos da Comunicação Social e dos Estudos de Gênero.
Três eixos centrais alicerçaram nossos achados. Ao confluírem, tendem a posicionar a mulher parturiente em um entremeio que aprisiona seus corpos.Para além de alguns hiatos que interrompem o discurso predominante, essa mulher é destituída de seu direito/poder de parir. Vimos como o conhecimento acerca do parto é concentrado na figura do homem médico e, salvo em “novelas de épocas”, é sob a regência deste ator que a maior parte das parturientes parem ou desejam parir. A presença de mulheres parteiras ganhou os holofotes quando se representou tempos passados ou lugares de pouco acesso, e mesmo que seu trabalho tenha sido valorizado, como significado sintomático, não se pode dizer que sua representação seja elevada ao modelo ideal de atenção ao parto.
Para além de médicos homens e parteiras mulheres, deparamo-nos com partos considerados imprevistos e trágicos, e ali entraram em cena mulheres amadoras, despreparadas, mas dispostas a ajudar. Ao representar de forma quase uníssona mulheres neste papel, a ficção contribui para reforçar o ideal de reciprocidade e solidariedade como socialmente femininos, funcionando como mecanismo mantenedor de desigualdades de gênero. Ademais, considerarmos que essas histórias, tão frequentemente encenadas, para além de garantir emoção à trama, contribuem para uma interpretação negativa e completamente distorcida acerca do parto normal, potencialmente lido como arriscado e incontrolável.
Por fim, quase que despropositadamente, emergiu das análises uma maioria de nascimento de meninos em detrimento de meninas em uma proporção assustadora. Estes números, aliados ao frequente discurso que reforça a preferência explícita por meninos e a sua total ausência de problematização, revelam que o androcentrismo e osexismo agenciam as produções ficcionais brasileiras.
Assim, o entremeio onde se posiciona a parturiente na ficção mantém a figura do homem em uma das pontas, como detentor do saber médico, e meninos na outra, seja porque o “machinho” tão desejado se concretizou ou porque a “natureza” não concedeu esta “graça”. Neste lugar, a mulher se torna um corpo biologicamente necessário, subjetivado como um bem masculino.
O protagonismo masculino – nas telas e na sociedade – constitui um enunciado que se expressa de diversas formas e se institucionaliza. Seus discursos são armazenados em nossa memória, constantemente “reatualizados”, evocando o que Gregolin (1997) denomina “movência de sentidos”. Frente ao atual cenário político de conservadorismo, esta “reatualização” dos discursos do patriarcado se tornou a palavra de ordem proferida pelo Estado, da “Fraquejada”de Bolsonaro, ao se referir ao nascimento de sua única filha mulher, durante a pré-campanha à presidência (Forum, 2017), às inúmeras declarações sexistas da Ministra Damares Alves (Souza, 2019), da pasta “Mulheres,Família e Direitos Humanos”, que defendem a obediência e subserviência da mulher em relação ao homem no casamento, culminando com a recente extinção do Comitê de Gênero do Ministério (Amado, 2019).
Particularmente sobre o parto, em 2019, o Ministério da Saúde decidiu abolir o uso da expressão “violência obstétrica”, alegando que o termo tem “conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”5. A expressão, que foi criada para dar visibilidade aos maus tratos, às negligências e abusos sofridos por mulheres ao dar à luz é, portanto, negada pelo Estado. Um mês depois, o Ministério Publico Federal recomendou o reconhecimento da legitimidade do termo, no entanto, está mantida a decisão de não utilizá-lo em normas e políticas públicas6. Nessa sociedade disciplinar, sustentada pelos discursos do patriarcado, se somos “convidadas” à sujeição, a resistência é a única opção possível.


Notas:

1 Para Williams (1979), o hegemônico é dominante e se mantém de forma horizontal e aculturada, constituindo um modo de vida ou visão de mundo, formalizando um processo marcado por intensas disputas de poder. Nas relações de gênero, historicamente o homem se mantém neste lugar de privilégio. 

2 O recorte temporal do corpus abrange o período de crescimento das cesarianas no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 1981 pelo IBGE, a taxa de cesarianas nesse período era de 30,9%, comparados com os 14,1% registrados em 1970, um crescimento de mais de 100% em uma década (IBGE, 1982).

3 Litotomia: a mulher é obrigada a ficar deitada e imobilizada, com as pernas abertas posicionadas em estribos. Esta posição, além de multiplicar a dor do parto, ao comprimir veias importantes, tende a dificultar a saída do feto. Seu uso é justificado por tornar mais confortável a posição do médico ao visualizar o canal de parto, além de colocar literalmente a posição da mulher mais submissa às práticas médicas (Burgo, 2001).

4 Trata-se de exercer pressão no fundo do útero da parturiente para agilizar a expulsão. O protocolo intitulado “Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal”, publicado em 2016 pelo Ministério da Saúde, possui um tópico específico sobre a Manobra de Kristeller: 120. “A manobra de Kristeller não deve ser realizada no segundo período do trabalho de parto” (Ministério da Saúde, 2016, p.42). A recomendação está baseada em evidências científicas dos riscos que a manobra representa para a parturiente e para o bebê, com relatos de graves problemas cerebrais ocasionados em recém-nascidos.

5 Citação extraída do despacho publicado pelo Ministério da Saúde que abole o termo “violência obstétrica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019).

6 A recomendação foi interpretada como um recuo da pasta, no entanto, em entrevista à Folha de S. Paulo, Harzheim, que assina o documento enviado ao MPF, afirma que o termo “violência obstétrica” continua abolido pelo governo em suas ações de políticas públicas (CANCIAN, 2019).

Bibliografía:

1. Amado, G. Damares extingue Comitê de Gênero e Diversidade e Inclusão, en:Epocaonline, 19 de agosto de 2019, disponible en: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/damares-extingue-comite-de-genero-diversidade-inclusao-23886791         [ Links ]

2. Araujo, A.B. (2018). Gênero, Reciprocidade e Mercado no Cuidado de Idosos, en:Revista Estudos Feministas, Nº 1,Vol. 27, 1-13, doi: 10.1590/1806-9584-2019v27n145553.         [ Links ]

3. Bardin, L. (2009). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

4. Beauvoir, S. (1970). O Segundo Sexo 1. Fatos e mitos. São Paulo: Divisão Europeia do Livro.         [ Links ]

5. Burgo, C. (2001). Litotomia en el parto: una práctica cuestionable, en: Revista Obstare, Nº 03, 3-6.         [ Links ]

6. Cancian, N. Ministério da Saúde mantém decisão de não usar termo violência obstétrica, diz secretário, en: Folha de S.Paulo online, Cotidiano, 10 de Junho de 2019, disponible en: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/06/ministerio-diz-reconhecer-termo-violencia-obstetrica-mas-que-continuara-a-nao-usa-lo.shtml.         [ Links ]

7. Figueiredo, V. L. (2010). Encenação da realidade: fim ou apogeu da ficção, en: V. Figueiredo. (Ed.) Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema, 83-99, Rio de Janeiro: Ed. PUCRio: 7 letras.         [ Links ]

8. Forum. Bolsonaro: “Eu tenho 5 filhos. Foram 4 homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”, 5 de abril de 2017, disponible en: https://revistaforum.com.br/noticias/bolsonaro-eu-tenho-5-filhos-foram-4-homens-a-quinta-eu-dei-uma-fraquejada-e-veio-uma-mulher-3/

9. Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

10. Foucault, M. (2012). A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

11. Foucault, M. (2013). O sujeito e o poder, en: H. Dreyfus & P. Rabinow (Eds.). Michel Foucaultuma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica, 272-295, Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

12. Futema, F. Parto normal é experiência dolorosa e primitiva em novelas, diz pesquisadora, en:Folha de S. Paulo online, 2 de Fevereiro de 2015, disponible en: https://maternar.blogfolha.uol.com.br/2015/02/12/parto-normal-e-experiencia-dolorosa-e-primitiva-em-novelas-diz-pesquisadora/.         [ Links ]

13. Gregolin, M. R.(1997). Discurso e memória: movimentos na bruma da História, en: Cadernos da Faculdade de Filosofia e Ciências, 45-58, Marília: UNESP.         [ Links ]

14. Hirata, H. &Kergoat, D. (2007). Novas Configurações da Divisão Sexual do Trabalho, en: Cadernos de Pesquisa, Nº 37, Vol.132, 595-609, doi: 10.1590/S0100-15742007000300005.         [ Links ]

15. IBGE. (1982). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), disponible en: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/59/pnad_1982_v6_t8_ba.pdf         [ Links ]

16. IBGE. (2018). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD),disponible en: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html         [ Links ]

17. Lopes, M. I. V. (2009). Telenovela como recurso comunicativo, en:MATRIZes,Vol.1, Nº 3, 21-47, disponible en: https://bdpi.usp.br/bitstream/handle/BDPI/32406/art_LOPES_Telenovela_2009.pdf?sequence=2         [ Links ]

18. Luce, A. et al. (2016). “Is it realistic?” the portrayal of pregnancy and childbirth in the media, en:BMC Pregnancy and Childbirth, Vol.1, Nº 16, disponible en: https://bmcpregnancychildbirth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12884-016-0827-x

19. Malcher, M. A. (2010). Teledramaturgia: agente estratégico na construção da TV aberta brasileira. São Paulo: Intercom.         [ Links ]

20. Martín, R.; Arjonilla, E.; Sedeño, E. (2017). Cuerpos y prácticas: una década de estudios ctg, en: Cadernos Pagu, Nº 49,133-191, doi: 10.1590/18094449201700490006.         [ Links ]

21. Ministério da Saúde. (2016). Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal, en: CONITEC. Disponible en: http://conitec.gov.br/images/Consultas/2016/Relatorio_DiretrizPartoNormal_CP.pdf.         [ Links ]

22. Ministério da Saúde Ofício nº 017/19 – JUR/SEC, 3 de maio de 2019, disponible en: https://www.sogirgs.org.br/pdfs/SEIMS-9087621-Despacho.pdf.

23. Morris, T.;Mcinerney, K. (2010). Media representations of pregnancy and childbirth: An analysis of reality television programs in the United States, en: Birth, Vol. 2, Nº37, 134–140, doi: 10.1111/j.1523-536X.2010.00393.x.

24. OMS. (1996). Assistência ao Parto Normal: Um Guia Prático, disponible en: http://abenfo.redesindical.com.br/arqs/materia/56_a.pdf.         [ Links ]

25. Pereira, R.; Franco, S.;Baldin, N. (2011). Representações Sociais e Decisões das Gestantes sobre a Parturição: Protagonismo das Mulheres, en Saúde e Sociedade, Vol.3, Nº 20, 579-589, doi: 10.1590/S0104-12902011000300005.         [ Links ]

26. Pinto, B.C.M. (2002). Vivências Cotidianas de Parteiras e ‘Experientes’ do Tocantins, en:Revista Estudos Feministas, Vol.2. Nº 10, 441-448, doi: 10.1590/S0104-026X2002000200013.

27. Ribeiro, M. &Pierangelo, T. (2015). O corpo arregimentado: via de nascimento e discurso médico, en:Revista Communicare, Vol.2, Nº 15, 134-141, disponible en: https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2016/08/O-corpo-arregimentado-via-de-nascimento-e-discurso-medico.pdf         [ Links ]

28. Robotham, M. (2001). We must stop the distorted vision of birth in the media, en:Midwifery, Vol.5, Nº 9, 276-288, doi: 10.12968/bjom.2001.9.5.7985.         [ Links ]

29. Rose. D. (2002). Análise de Imagens em Movimento, en: M. Bauer & G. Gaskell (Eds.).Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: manual prático,343-364. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

30. Scheffer, M. et al. (2018). Demografia Médica no Brasil 2018. São Paulo: FMUSP, CFM, Cremesp, disponible en: http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/files/DemografiaMedica2018%20(3).pdf         [ Links ]

31. Silva, F. (2017). Histórias de maternidade vividas na TV: o papel do testemunho num reality show brasileiro, en:Comunicação, mídia e consumo, Vol.39, Nº14, 111-130, doi:10.18568/cmc.v14i39.1177.         [ Links ]

32. Souza, A. Damares repete que, 'no casamento, mulher é submissa ao homem', en:O Globo online, Caderno Sociedade, 16 de abril de 2019, disponible en: https://oglobo.globo.com/sociedade/damares-repete-que-no-casamento-mulher-submissa-ao-homem-23603765         [ Links ]

33. Tornquist, C.S. (2002). Armadilhas da Nova Era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto, en:Revista Estudos Feministas, Vol.2, Nº 10, 483-492, doi: 10.1590/S0104-026X2002000200016.         [ Links ]

34. WHO. (2018).Recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience, disponible en: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf?sequence=1.         [ Links ]

35. Williams, R. (1979).  Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.         [ Links ]

36. Xavier, N. (2007). Almanaque da Telenovela Brasileira. São Paulo: Panda Books.         [ Links ]

37. Xavier, N. Teledramaturgia, disponibleen: www.teledramaturgia.com.br.         [ Links ]

Fecha de recepción: 17-04-2020.
Fecha de aceptación: 10-09-2020.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons