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La trama de la comunicación

versión impresa ISSN 1668-5628

Trama comun. vol.25  supl.1 Rosario jun. 2021

 

ARTÍCULOS

Vítimas do bisturi. Mídia, gênero e a ponta afiada da biopolítica

Victims of the doctor’s knife. Media, gender and the sharp edge of biopolitics

 

Por Júlia Cavalcanti Versiani dos Anjos

julianjos@gmail.com / Universidade Federal do Rio de Janeiro - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

Júlia Cavalcanti Versiani dos Anjos
Doctorado en curso en Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Brasil
y Maestría en la misma institución.
Beca de Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Áreas de interés: comunicación, género, violencia y ódio en los medios de comunicación.
Dirección postal: Av Pref Silvio Picanço, 555 bl 2 ap 504
Niterói (RJ) – Brasil. CEP: 24360-030
Dirección electrónica: julianjos@gmail.com
Teléfono: (+5521)99989-1951
Fecha: 31/05/2020
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9024-1267


Sumario:

Cirurgias plásticas são uma prática difundida mundialmente e, em especial, entre o público feminino brasileiro, o que levou o Brasil a liderar o ranking global de intervenções. A intensa afinidade entre mídia e conhecimento médico é um dos fatores que colaboram para a banalização destas práticas, obliterando os riscos existentes. Com o objetivo de investigar as consequências da articulação entre imprensa, biopolítica e gênero, o presente artigo analisa a cobertura midiática da morte de uma mulher após um procedimento estético. O caso de Lilian Quezia Calixto, que faleceu após intervenção feita pelo médico Denis Cesar Barros Furtado (conhecido como “Dr. Bumbum”), foi escolhido por ter despertado grande atenção da mídia e levantado a incômoda discussão o risco de morte deste tipo de procedimento. O exame destas notícias apontou para um processo de culpabilização das vítimas de intervenções corporais, como forma de diminuir a responsabilidade do campo médico perante tais casos. A discussão dos resultados propõe que este tipo de enunciado está imerso em uma cultura somática que normaliza a ação sobre o corpo, fortalece a ideia de individualização e constrói subjetividades – especialmente femininas – em torno do cumprimento às demandas de uma medicina midiatizada e mercantilizada.

Descriptores: Medicalização; Cirurgias plásticas; Mídia; Gênero

Summary:

Plastic surgery is a widespread practice worldwide and, especially, among brazilian women, which has led Brazil to lead the global ranking of interventions. The intense affinity between medical knowledge and the media is one of the factors that contribute to the trivialization of these practices, obliterating the existing risks. In order to investigate the consequences of the articulation between press, biopolitics and gender, this paper analyses the media coverage on the death of a woman after an aesthetic procedure. The case of Lilian Quezia Calixto was chosen because it attracted great media attention and raised the uncomfortable discussion about the risk of death presented by this type of procedure. The examination of this news pointed to a process of blaming the victims of bodily interventions, as a way of reducing the responsibility of the medical field in such cases. The discussion of the results proposes that this type of statement is immersed in a somatic culture that normalizes the action on the body, strengthens the idea of individualization and builds subjectivities - especially female - around the fulfillment of the demands of a mediatic and commercialized medicine.

Describers: Medicalization; Plastic surgery; Media; Gender


“Logicamente, cirurgia é bom”: mídia e banalização de procedimentos cirúrgicos em mulheres

“As brasileiras, como se sabe, são conhecidas por aquele temperinho a mais. Mas as curvas que tanto agradam os olhos de quem vê também alimentam a expectativa de quem busca o padrão de beleza ideal”. Assim se inicia uma reportagem de um conhecido programa de televisão da rede Record, segunda maior emissora do Brasil, sobre cirurgias plásticas1. O ano era 2015 e o Brasil havia alcançado, então, o primeiro lugar no ranking de cirurgias plásticas no mundo. Diante desta curiosa conquista, o matinal convidou um cirurgião plástico ao programa para detalhar quais são os cinco procedimentos mais realizados no país. Para cada um deles, o programa apresentava uma breve explicação e uma lista das celebridades adeptas. O médico, então, era convidado a riscar com caneta os corpos das modelos enfileiradas para demonstrar o quanto de pele seria retirado em cada caso e como ficaria a cicatriz. “Embora ela não tenha tanta pele assim, como um avental, ela já tem um excesso de pele, e esse excesso já daria, sim, para fazer uma abdominoplastia”, diz ele, apertando a região abdominal de uma das mulheres.
Apesar de dizer que “logicamente, cirurgia é bom, porque aumenta a autoestima”, o médico também procede a mencionar os riscos de tais procedimentos. Ao dar explicações sobre a lipoaspiração – o tipo de cirurgia mais feito naquele ano –, ele afirma que existe a chance de infecção, hematoma, necrose das áreas aspiradas e, o mais temido: o óbito. A possibilidade mórbida, porém, não pareceu impressionar os presentes, visto que, minutos depois, estavam discutindo alegremente o caso de uma mulher que gastou US$100.000 dólares em cirurgias plásticas. Diante de duas fotos da mulher, antes e depois das operações, um dos apresentadores perguntou “Melhorou?”, ao que sua colega prontamente responde: “Muito!” e, depois, completa “agora vai ter que arrumar um marido para pagar as contas, né!”.
Estas cenas do referido programa de televisão são uma amostra representativa de alguns fatores sociais que interessam à análise deste artigo, como a midiatização e banalização do discurso médico e o estímulo consumista ligados às intervenções cirúrgicas. Chama a atenção, também, o fato de que a cultura de intervenção corporal não atinge os sujeitos de maneira indiscriminada, mas sim age com especial força sobre as mulheres. Enquanto muitos parecem atribuir à natureza esta afinidade entre o feminino e as intervenções estéticas (“o que eu percebo, doutor, é que as mulheres nunca estão satisfeitas”, disse o apresentador do Hoje em dia), explorarei quais fatores históricos, sociais e políticos levam os sujeitos e, especificamente, as mulheres a aceitar e buscar a profunda intervenção cirúrgica sobre seus corpos em nome da adesão a padrões de beleza.
A reflexão teórica será associada à análise de um conjunto de 25 notícias em torno do caso, ocorrido em 2018, da morte de Lilian Quezia Calixto, após procedimento estético com o médico Denis Cesar Barros Furtado, conhecido como “Dr. Bumbum”. Lilian era uma bancária de 46 anos, mãe de dois filhos, que procurou o Dr. Denis para realizar um preenchimento dos glúteos. Após o procedimento, ela se sentiu mal e faleceu. Este caso foi escolhido para análise não apenas por ter despertado grande interesse midiático e tido uma profusa cobertura jornalística, mas principalmente por ter sido um momento em que tanto o campo médico quanto o midiático não puderam desviar-se do fato de que, em se tratando de cirurgias plásticas, existe o risco de morte. Assim, o objetivo deste artigo é examinar como se deu a relação entre mídia, medicina e gênero neste momento: a imprensa funcionou como uma instância de questionamento da banalização de cirurgias plásticas e cobrança de prestação de contas do âmbito médico quanto a isso? Houve um reconhecimento da questão de gênero aí presente, percebendo como a vida das mulheres é afetada de maneira mais aguda por esta questão? Ao final da análise, observou-se, a contrário senso, um movimento de aliança entre o veículo de imprensa analisado e o campo médico, direcionando a responsabilidade sobre os riscos das banalizadas intervenções estéticas inteiramente aos pacientes, e desconsiderando, em larga medida, as razões sociais e históricas que levam as mulheres, em especial, a se submeterem a tais procedimentos.
Para discussão destes resultados, este trabalho se dividirá em três partes. Primeiramente, serão abordados os fatores que colaboraram para normalizar a intervenção cirúrgica sobre o corpo com o objetivo de um melhoramento contínuo e como esta cultura somática em que vivemos cria um cenário de individualização de responsabilidades. Em seguida, a análise das reportagens em torno do caso de Lilian Calixto demonstrará como essa ideologia individualista se converte em uma culpabilização das vítimas de morte em procedimentos cirúrgicos, que desconsidera um contexto social que leva indivíduos, notadamente mulheres, a este destino. Por fim, discorrerei sobre quais imperativos seriam estes que atuam de maneira específica sobre as brasileiras de modo a construir sua subjetividade em torno do cumprimento às demandas dos padrões de beleza.

Tecnologias de otimização e a violência a ser sofrida individualmente

Como demonstra Michel Foucault (2011), os médicos têm, pelo menos desde o século XVIII, desempenhado funções que ultrapassam a cura de doentes. Se, inicialmente, o hospital se assemelhava a um claustro onde os indivíduos aguardavam a morte, paulatinamente ele se tornou um aparelho de medicalização coletiva e espaço de exercício de poder sobre os corpos. Além disso, os médicos passaram desempenhar o papel de autoridades que guardavam saber útil a diversos outros setores, como planejamento urbano, reformas sanitárias, regulação de gêneros alimentícios, justiça criminal, vida trabalhista e tecnologias. A medicina, assim, tem sido central para a arte de governar.
Conforme ganhava cada vez mais influência social, a medicina se transformou. Segundo Nikolas Rose (2013: 25), um dos principais fatores que levou a tal remodelação do campo médico foi sua intensa capitalização: “a prática da medicina na maioria dos países industrialmente adiantados tem sido colonizada e remodelada (...) por seu modo de lidar com a saúde e a doença como meramente outro campo para cálculos e lucro corporativo”. A medicina se converte em negócio e, paralelamente, a ideia de “risco”, tão cara aos estudiosos da economia de mercado, também é a palavra da vez importante na área médica. As tecnologias médicas contemporâneas, deste modo, funcionam como “tecnologias de otimização” (ibid.: 32): não buscam simplesmente revelar e curar doenças que se manifestam em pacientes, mas sim controlar processos vitais do corpo e da mente daqueles que podem pagar para, no presente, assegurar o melhor futuro possível.  
É importante lembrar que a vontade de desenvolver as próprias capacidades e trabalhar sobre o corpo não é algo novo na história da humanidade – a novidade surge no fato de que os receptores destas intervenções são consumidores, modelados não apenas por necessidade, mas pela cultura de mercado: a biopolítica tornou-se inextricavelmente entretecida à bioeconomia e, portanto, à autonomização e à responsabilização (Rose, 2013).
Nesta linha de pensamento, emerge a sensação de que todas as pessoas, embora aparentemente sadias, estejam virtualmente ou pré-sintomaticamente doentes. Isto ocorre porque, a partir desta remodelação do campo médico em direção à ideia de otimização, quase toda capacidade do corpo ou da alma seria um campo aberto à intervenção tecnológica no sentido de uma melhoria. Os limites para a força, a atenção, a inteligência e para a própria vida não mais seriam aqueles dados pelo nascimento ou pela natureza, mas sim os definidos pelas limitações das tecnologias existentes e, claro, pela quantia que o interessado possa desembolsar.
Este deslocamento do campo médico em direção à otimização está diretamente interligado a um outro fator de mudança, que Rose (2013) chama de subjetificação: a emergência de novos tipos de sujeitos, novas ideias sobre o que os seres humanos são, o que deveriam fazer e o que podem esperar. A maximização de seu potencial, de sua saúde, de sua qualidade de vida e de suas chances de sobrevivência se torna algo obrigatório, um dever e, também, um direito a ser requisitado: a biologia não será facilmente aceita como destino.
Além do direcionamento à otimização, estes sujeitos têm na saúde um de seus principais valores éticos, no sentido de um ideal que direciona a conduta de vida. Trata-se de uma “ética somática” (ibid.: 19), que atribui um lugar central à existência corporal, física. Assim, a reconstrução e o investimento pessoal ocorrem por meio da ação sobre o corpo. O corpo será o principal médium no qual se concentrarão os esforços para o melhoramento contínuo que é visado socialmente.
Diante deste cenário, Rose (2013: 46) defende que não adotemos uma posição de pessimismo, visto que, por mais que essa ingerência sobre o corpo em vistas de melhoria contínua possa gerar desespero, também gera um “etos de esperança”, uma economia moral na qual a ignorância, a resignação e a falta de esperança perante o futuro tem pouco lugar. Na opinião do autor, este cenário pode favorecer a emergência de cidadãos ativos e críticos.
A presente análise, porém, tem como base um caso – representativo de tantos outros – no qual a intervenção que visava ao incremento da potência corporal acabou por levar à sua aniquilação total. Tal ocorrência, portanto, direciona o olhar para a violência existente neste processo e desvela o fato de que as novas possibilidades da biomedicina funcionam a partir de um dilema: podem ser ou baluartes da liberdade ou ferramentas de intervenção brutal.
Em sentido semelhante, Sibilia (2004) enxerga um paradoxo na relação da contemporaneidade com o corpo: por um lado, há um acentuado enaltecimento deste, que passa a funcionar como um refúgio para a subjetividade, fundamental para definir a identidade de cada um; por outro lado, o corpo é desprezado com agressividade inédita. Longe de serem fruto de um acaso, estas tendências, aparentemente incoerentes, na verdade respondem às exigências de determinado projeto de poder.
A autora chama a atenção para o significado da palavra em inglês fitness, comumente utilizada para descrever a prática de regimes alimentares e exercícios físicos. O termo pode ser traduzido como “adequação” e se revela, portanto, como palavra de ordem que incita ao encaixe em um padrão hegemônico. Este movimento por adequação funciona de maneira tirânica, uma vez que é onipresente e dissemina não apenas as regras de adesão mas também “uma rejeição feroz diante de qualquer alternativa que se atreva a questioná-lo” (Sibilia, 2004: 69).
O corpo que não entra em acordo com esta norma se torna alvo de severas condenações morais, uma vez que seria responsabilidade do indivíduo atender a tais demandas. Como lembra Tucherman (2019), a cultura somática atua tanto no campo individual quanto no social, de modo que um funciona como um reforço do outro. O processo de artificialização da vida produz sujeitos permanentemente doentes ou vistos como faltantes de algo, que, por sua vez, alimentam a formação de uma sociedade compatível com o avanço de um mercado da vitalidade, e assim continua o ciclo.
Ainda segundo Tucherman (2019), tal cultura baseada na intervenção sobre o corpo é sintoma de uma verdadeira colonização do imaginário, a qual encontra na literatura de autoajuda outra poderosa ferramenta. O objetivo de lograr autoconhecimento, bem-estar, felicidade e autoestima, aparentemente tão louvável, acaba por se tornar um imperativo tirânico e, também, solitário: “se supõe que essa busca seja individual e intransferível; portanto, aquilo que nos fazia associar felicidade com as promessas das utopias coletivas ficou anacrônico” (Tucherman, 2019: 101).
Freire Filho (2011), em análise sobre a disseminação da retórica da autoestima, identifica que seu acelerado processo de difusão, na virada do século XX, ocorreu em um momento histórico em que proliferavam reformas de índole neoliberal e uma profunda inclinação a explicações individualistas tanto para a felicidade quanto para o sofrimento humano. Naquele contexto, emergia a crença em que o fim das amarras burocráticas e organizacionais, vistas como prejudiciais à criatividade e à autonomia, fortaleceria a iniciativa e a eficácia individual. 
Acompanhando esta tendência à privatização de problemas e soluções, a literatura de autoajuda consolida uma “imagem triunfalista do poder do psiquismo humano” que se baseia numa “concepção peculiar do self, descrito como repositório facilmente acessível e manipulável de sentimentos, disposições e habilidades criativas que nos fazem únicos e valiosos” (Freire Filho, 2011: 722). A autoestima desponta, então, como um dos principais nutrientes que poderiam alimentar a alma dos indivíduos, ajudando-os a maximizar sua performance, como deseja o manual de conduta do pensamento neoliberal.
É indispensável ressaltar que esta abordagem costuma ser defendida como neutra, sem ligação a qualquer sistema de crenças morais, visando tão somente a ajudar os indivíduos a alcançar seu melhor interesse. Este modelo de comportamento mentalmente saudável, porém, não é desprovido de um horizonte moral, na medida em que se alinha aos princípios consagrados pelo individualismo neoliberal. Assim, a insistência para que os leitores da autoajuda se preocupem apenas com seu bem-estar subjetivo, mesmo diante da oposição de outros atores e instituições sociais, funciona como uma forma de adaptação unilateral destes sujeitos a um modelo de vida que irá sobrecarregá-los de demandas, responsabilidades e urgências. Vendida como “a principal ferramenta com que o ser humano conta para enfrentar os desafios do cotidiano” (ibid.: 729), a autoestima se revela, de fato, como instrumento – mas que não necessariamente funcionará a favor do indivíduo. Sua principal utilidade passa a ser a de produzir um comportamento propício ao florescimento da economia de mercado.
Além da autoestima, mandamentos empresariais como “motivação” e “dedicação” se tornam o modelo não apenas para o trabalho, mas para a vida como um todo. Como destaca Tucherman (2019), a autoajuda inicia sua atuação prometendo alimentos para a alma mas possui natureza bastante pragmática. O indivíduo é levado a pensar seu sucesso e suas aspirações em termos de bens materiais de consumo, entre os quais se encontra, hoje, a saúde. Assim, motivado, entusiasmado e crendo que tudo é sua ideia e sua escolha, adentra em um projeto compatível com as formas neoliberais de biopoder, que “fazem viver” mas também “deixam morrer” as vidas consideradas pouco importantes.
O fenômeno da banalização das intervenções sobre o corpo constitui, deste modo, um novo vetor da biopolítica outrora estatal e, contemporaneamente, privatizada em larga medida. No primeiro volume de História da Sexualidade, Foucault (1988) define a biopolítica como o momento em que o biológico se insere no político. O fato de se viver não está mais entregue ao sabor do acaso ou à vontade divina, mas sim no campo do saber e do poder, regulado por cálculos específicos.
Em relação a este processo de racionalização dos problemas que se colocavam à prática governamental pelo fenômeno da população, Foucault (2008) relata que, a partir da introdução da racionalidade liberal, o princípio regulador da forma de governar os corpos será a economia, a concorrência de mercado. A partir desta nova governamentalidade, ocorre, no corpo social, a multiplicação da mentalidade do cálculo e das trocas: o guia para ações tanto estatais quanto individuais será o cálculo econômico de ganhos e perdas.
A teoria do sujeito de opções individuais que surgiu naquele momento configurou, segundo Foucault (2008), uma das transformações mais significativas da do pensamento ocidental. Para que ocorresse tal deslocamento, Taylor (1989) analisa que foram determinantes o desengajamento diante do mundo e a emergência da noção de que as propriedades dos objetos se encontram em seu interior (não no ambiente ou no cosmos, como foi a crença em outros momentos). Assim, é moldado o self moderno, baseado na ideia de independência individual: seus paradigmas serão encontrados dentro de si.
Posteriormente, a emergência do neoliberalismo no século XX corresponde a uma mudança em relação ao cenário configurado pelo liberalismo tradicional. O modelo de governamentabilidade a ser seguido não é mais simplesmente o homem do cálculo; agora, ele se torna um empresário de si mesmo, seu capital e sua própria fonte de renda. Assim, a vida das pessoas deverá ser planejada como os empresários arquitetam suas estratégias de negócios: avaliando riscos, calculando ganhos e perdas. A qualidade de vida é pensada como o lucro.
A questão problemática é que “a epopeia mesquinha da gestão de si é individualista, refratária aos coletivos e fortemente apolítica” (Sibilia, 2004: 72): com a crise do Estado benfeitor, cada um deve cuidar de si. O Estado irá, no máximo, ajudar àqueles considerados prudentes. Quando se julga que alguém não tomou cuidado o suficiente ou não fez os cálculos necessários, considera-se que são culpados pela sua tragédia. Este pano de fundo político colabora para intensificar o fenômeno de culpabilização de mulheres vítimas de violência.

“Que isso sirva de lição”: cultura somática e culpabilização da vítima

Na análise das matérias acerca do caso conhecido como “Dr. Bumbum”, percebe-se a culpabilização da vítima de modo discreto, porém persistente. Digo discreto porque o juízo de valor negativo sobre a vítima se dá em pequenos detalhes que, no entanto, comunicam ideias arraigadas no tecido social. Uma matéria do portal de notícias G12 após a prisão do médico em questão faz uma cronologia completa dos eventos, informa todos os envolvidos no caso e levanta a ficha criminal do acusado. O tema escolhido para abrir a matéria, entretanto, é a vítima – não suas qualidades morais ou o relato da dor de seus parentes, mas sim o fato de que ela conheceu o médico por intermédio de uma amiga, sem contar aos familiares sobre a decisão: “Ao marido e à família, a bancária disse apenas que faria uma viagem para o Rio de Janeiro. Só a amiga que recomendou o Dr. Bumbum sabia dos planos de Lilian”. Pode-se observar que, logo na abertura da matéria, a vítima é pintada como alguém que mentiu ou ao menos omitiu uma informação importante às pessoas relevantes em sua vida. Além disso, é interessante notar o destaque dado ao marido de Lilian na frase: não bastava dizer família, foi enfatizado pelos repórteres que Lilian tinha um marido e não contou a ele sobre uma importante intervenção que faria. Ao mesmo tempo em que a frase exime o esposo da vítima de qualquer responsabilidade sobre o fato, também direciona a culpa em direção à vítima. Ainda que os fatos sejam verdadeiros, é possível questionar: é realmente imprescindível que o público saiba desta particularidade da vida pessoal da vítima? A divulgação desta informação colabora, de alguma forma, para o debate sobre ocorrências como esta – ou colabora para reforçar crenças e estereótipos negativos?
Outra reportagem3 conta com a entrevista de uma ex-paciente do Dr. Denis que sobreviveu ao mesmo tipo de procedimento que causou a morte de Lilian. Além de contar informações úteis sobre o caso, como o fato de que o médico fazia avaliações das pacientes por WhatsApp, a mulher sente a necessidade de se explicar, de justificar seus atos, e afirmar que acredita ter cometido um erro: “Me sinto mal por ter aceitado da forma como foi. (...) Na hora, eu estava muito empolgada, muito envolvida, querendo muito, não analisei os prós e os contras”.
É importante observar que o foco da matéria era a atuação equivocada e irresponsável do médico; sua paciente, porém, ainda que não estivesse sob julgamento formal, se sentiu instada a mencionar o que acreditava serem falhas em seu próprio comportamento. Isto diz muito sobre o processo de culpabilização das vítimas que emerge associado ao ideal de responsabilização individual: se cada um deve estar constantemente avaliando os melhores passos a seguir para maximizar sua qualidade de vida, um momento de infortúnio não é meramente algo causado por outro agente ou por circunstâncias maiores, mas sim um erro de cálculo do indivíduo, que deveria ter sido capaz de prever aquele acontecimento. A entrevistada se sente culpada, porque imagina que ela, também, cometeu uma falha, não soube agir como homo oeconomicus – como ela mesma diz, “não analisei os prós e contras”. Isso se torna uma falta moral ao ponto de ela necessitar se justificar ao entrevistador. De modo semelhante ao caso anterior – em que o marido de Lilian foi eximido de culpa e, assim, se reforçou a ideia de que a vítima seria culpada –, a entrevistada, ao mencionar um erro em sua própria conduta, acaba por corroborar a noção de que a falha não ocorreu apenas por parte do médico, mas também da paciente.
Se, nos dois exemplos anteriores, a referência à culpabilização da vítima era sutil, na matéria a seguir4, se dá de forma bastante clara. Ao contar a história de uma mulher que realizou um procedimento com o Dr. Denis e sobreviveu, mas com complicações, a repórter introduz a fala da entrevistada da seguinte forma: “muitos pacientes, como essa mulher, querem resultados rápidos, sem ter que ir a um hospital”. A paciente, em seguida, conta seu drama, mas já está dado que o público terá pouca ou nenhuma compaixão para com ela, uma vez que ela está claramente sendo responsabilizada pelo fato.
Após o depoimento da mulher, um cirurgião plástico explica quais são os perigos dos procedimentos como aqueles feitos pelo “Dr. Bumbum” e clama: “não vá pela facilidade (...) não se arrisca por uma coisa que pode te causar danos permanentes”. Ele, no entanto, não desencoraja que os indivíduos realizem cirurgias plásticas, mas sim informa que eles devem buscar um “médico sério” e cumprir à risca todas as orientações deste. Ao final da reportagem, a apresentadora do telejornal arremata esta ideia: “resta a nós, como pacientes, ir atrás dessas informações”.
Estas frases servem como exemplo dos “novos peritos pastorais” de que fala Rose (2013: 20): profissões e subprofissões que exercem diversos tipos de poderes na administração de aspectos particulares de nossa existência somática, em torno da ideia de guiar e aconselhar. O que é interessante ressaltar em relação a estes novos poderes pastorais é que este “pastor” não direciona um rebanho confuso ou indeciso, mas sim se baseia nos princípios “do consentimento esclarecido, da autonomia, da ação voluntária e da escolha” (ibid.: 48). No caso aqui analisado, o cirurgião alerta que os pacientes devem seguir sem questionar todas as demandas do “bom médico”, mas fica a cargo de cada um escolher este “bom médico” autonomamente, e confiar nele por sua própria conta e risco. Existe, portanto, uma exigência contraditória: aos médicos é interessante que o paciente seja, como diz o nome, passivo mas, quando é conveniente, a ele também é exigido ser autônomo.
Seguindo na esteira da defesa de um paciente totalmente responsabilizado por seu destino, sobre o qual recai, com exclusividade, o fardo de evitar a própria morte nas mãos de um profissional da saúde, uma matéria do G15 ensina a seus leitores como contratar um médico com segurança. No caso do “Dr. Bumbum”, entretanto, encontra-se um pequeno obstáculo à tese de que esta identificação pode ser facilmente realizada, uma vez que o acusado era, de fato, formado em Medicina e possuía sua inscrição no Conselho Regional de Medicina (CRM) ativa. A solução da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), questionada sobre tal, foi chamar a atenção para o fato de que o profissional em questão não realizava os procedimentos em um hospital. Caberia aos pacientes, portanto, garantir que suas cirurgias sejam feitas em ambientes seguros.
A reportagem, por fim, também coloca na conta dos indivíduos a avaliação meticulosa das redes sociais dos médicos, enumerando diversos passos para que cada um possa identificar os profissionais que realizam propaganda abusiva, enganosa ou proibida pelo Código de Ética do Médico. Neste processo, uma tarefa que caberia aos órgãos e conselhos que regulam a atividade médica é repassada, com extrema naturalidade, ao público – o qual será, ainda por cima, considerado culpado caso não a realize corretamente, tudo sob o olhar incriminador daqueles que deveriam ser os responsáveis por este tipo de fiscalização. 
Uma das pacientes entrevistadas parece ter tentado fazer um contraponto à narrativa que se construía no sentido de que as pacientes do Dr. Denis seriam irresponsáveis e levianas e não teriam pesquisado o suficiente a fim de encontrar um “bom médico”. Ela afirmou: “eu busquei, eu pesquisei (...). Eu não fui desinformada. Achei que eu estava nas mãos de uma pessoa íntegra, de uma pessoa honesta, mas não foi isso o que aconteceu”6.
Outro ponto de vista que busca contrariar a ideia de culpabilização da vítima é o filho de Lilian, que é ouvido em algumas reportagens sobre o caso e fala da mãe como uma mulher responsável e ponderada: “Eu conheço a minha mãe. Ela sempre teve medo dessas coisas, sempre foi muito correta”7. Na medida em que qualidades morais positivas são relacionadas à mulher, abre-se o caminho para que o público possa ir além do julgamento apressado e não só perceba a crueldade que configura culpá-la pela própria morte, como também enxergue os fatores que foram realmente determinantes para que o resultado trágico ocorresse.
A voz do filho de Lilian também é a única a se referir a algum tipo de política pública ou atitude coletiva que possa emergir para evitar que casos como este ocorram. Ele afirma que pretende “iniciar uma luta” para que procedimentos estéticos possam ser realizados com maior rigor ético e que descumprimentos a estas regras sejam considerados crimes hediondos8. Ainda que com viés punitivista, seria uma iniciativa que valoriza a vida da mulher e propõe limites para a intervenção médica sobre o corpo. A discussão, porém, não recebe continuidade nesta ou em outra notícia sobre o tema, dentro do material analisado.
Uma reportagem do semanário Fantástico9 deu bastante ênfase à prisão do acusado, porém é possível questionar se a intenção do programa era puramente informativa, visto que o início da reportagem pendia para o caráter novelesco de algumas das outras atrações do mesmo canal. Ao som de uma melodia típica de filmes de ação, o programa mostra a perseguição de carros que aconteceu entre o médico e a polícia, que contou com fuga em marcha ré e culminou com o veículo do acusado quebrando a cancela que controlava a entrada e saída do local.
Além do tom de espetáculo que pautou os primeiros minutos da exibição, a reportagem também adotou um caráter moralista e incriminador ao expor o relato da amiga da vítima, que havia feito o mesmo procedimento com o Dr. Denis e era a única a saber que Lilian também passaria pelas mãos do médico. Ela termina sua fala afirmando: “Que isso sirva de lição para outras mulheres que chegam num lugar desse e agem por impulso como eu agi, pela vaidade”. Conclui-se que, mesmo responsabilizando o médico que conduzia o procedimento, as vítimas também deveriam “aprender uma lição” e ser responsabilizadas, visto que agiriam meramente por futilidade e sem raciocinar.
Uma única matéria10 da amostra analisada foi além de vieses como estes e apresentou foco na conscientização sobre as causas sociais de ocorrências como a morte de Lilian. A redação do Bem Estar entrou em contato com a filósofa britânica Heather Widdows, que pesquisa a relação dos indivíduos com o padrão de beleza, e fez questões sobre o caso do “Dr. Bumbum”. A pesquisadora alertou para os riscos de normalizarmos intervenções cirúrgicas em nome da beleza e ressaltou que isto deve fazer parte de uma discussão coletiva que leve em conta o quão dominante é o padrão de beleza, sendo improdutivo e inadequado culpar as pessoas individualmente.
Uma entrevista exibida no canal Globo News11 também abre a possibilidade de enxergar o fenômeno de maneira menos individual e mais coletiva, ao trazer a contribuição de uma psicóloga e pesquisadora sobre o tema de doenças da beleza. A despeito dos esforços da profissional para apresentar outro ponto de vista, porém, o tom do diálogo parece ter sido determinado desde o começo no sentido de uma responsabilização das vítimas e uma tentativa de fortalecimento da autoridade médica.
O apresentador Alexandre Garcia inicia a discussão com os seguintes questionamentos: “Como as pessoas se deixam levar por promoções que contrariam preceitos de saúde e da ética e se submetem a altos riscos de consequências danosas, sequelas ou até a morte? Podem as instituições de saúde fiscalizar e coibir isso?” e, em seguida, ele formula uma pergunta diretamente à psicóloga: “O que a psicologia explica que leva uma mulher bonita a se submeter a uma cirurgia em um local inapropriado?”. As expressões “se deixam levar” e “mulher bonita” deixam implícita a ideia de que os casos a serem abordados no programa tratavam de mulheres que fizeram cirurgias plásticas por impulso, sem reflexão cuidadosa, uma vez que, por serem bonitas, não necessitariam delas. É interessante notar que, neste raciocínio, aparentemente haveria mulheres cuja aparência justificaria uma intervenção, mas os critérios adotados para este julgamento permanecem nebulosos.
A psicóloga replica ao questionamento tentando situar estes casos em um contexto mais amplo, afirmando que não são ocorrências isoladas, mas sim sintoma social de um fenômeno de moralização da beleza, isto é, de associação da aparência a traços de caráter. Assim, as cirurgias estéticas passam a ser consideradas práticas de asseio, e não algo a ser realizado apenas em último caso.
O apresentador, então, pergunta ao Corregedor do Conselho Federal de Medicina como pode ocorrer a fiscalização para colaborar na mudança deste cenário. Ele responde com as mesmas informações já conferidas em outras notícias: instruindo a população a entrar em contato com o Conselho para buscar informações sobre o médico. O corregedor defende, ainda, que seria pertinente que os pacientes procurassem saber se os médicos que lhes atendem possuem, de fato, a especialidade correspondente ao procedimento em questão.
Neste momento, o Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica intervém e reforça este argumento, asseverando a importância de que a população reconheça que o cirurgião plástico é o profissional mais indicado para realizar intervenções estéticas. Ele também declara que a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica não concorda com a banalização de procedimentos estéticos que tem lugar na sociedade brasileira e defende que a essência da cirurgia plástica é o objetivo de reparação, pensando nos casos, por exemplo, de pacientes com queimaduras ou de sobreviventes do câncer.
Curiosamente, este mesmo profissional, em entrevistas anteriores a outros veículos, se mostrou bem mais receptivo à realização de altos números de cirurgias estéticas, mesmo entre adolescentes ou idosos. Em comunicado ao portal Estadão12, ele chamou a atenção para o aumento na procura de procedimentos estéticos por pacientes com mais de 65 anos e afirmou que procedimentos nas mamas, no rosto e no abdômen são os preferidos, feitos porque faltaria ao corpo dos idosos o mesmo “vigor” de sua mente. Em reportagem da revista Época13, o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica utilizou o já mencionado argumento do aumento de autoestima para justificar que adolescentes possam se submeter a cirurgias plásticas. Ele alegou que um procedimento estético é um “ato que vai recuperar algo que faz parte da identidade, da autoestima e da aceitação”. Como se vê, esta é uma opinião bastante distinta da que expressou no programa da Globonews ora analisado, no qual destacou a utilidade da cirurgia plástica para casos de pessoas física e gravemente doentes e se opôs à banalização destes procedimentos. Fato é que esta naturalização da intervenção no corpo por motivos estéticos é uma realidade no Brasil: segundo censo de 2017 feito pelo órgão presidido pelo entrevistado, de todas as cirurgias realizadas no país, 60% têm motivos estéticos, sendo o aumento de mama e a lipoaspiração as mais procuradas14.
Ao final da referida entrevista na Globonews, diante de depoimentos de pessoas interessadas em realizar cirurgias estéticas, o doutor também não manifestou contrariedade, apenas afirmou, com um sorriso: “cirurgia plástica é com cirurgião plástico”. Conforme o programa se encerrava, portanto, a questão preocupante não era mais a banalização de cirurgias plásticas e o que pode ser feito quanto a isto, mas sim a garantia da reserva deste mercado.
Esta entrevista, assim como os demais conteúdos analisados ao longo deste artigo, são um exemplo da íntima afinidade existente entre a mídia e o conhecimento médico. Van Djick (2005), referindo-se a reality shows como Extreme Makeover e séries de televisão como ER, lembra que as imagens médicas divulgadas propagam a figura de médicos como deuses e dos hospitais como instituições sagradas, obscurecendo os interesses financeiros do setor de saúde. As notícias aqui examinadas, apesar de se referirem a um caso de morte de uma paciente, jamais questionam, ainda que minimamente, a execução indiscriminada de cirurgias plásticas como um problema da classe médica como um todo, concentrando-se em criticar apenas o médico diretamente envolvido, bem como a mulher que perdeu a vida e outras que se submetem aos “maus médicos”. Assim, a mídia colabora para perpetuar o que Van Djick (2005) chama de mito da transparência total: o corpo totalmente visível aos olhos do médico. Este mito se baseia em duas ideias: primeiro, a noção de que, ao ter acesso total ao corpo do paciente, o médico poderá melhorá-lo e aproximá-lo da perfeição; segundo, a concepção de que esta é uma atividade inocente, que não tem consequências.
Este ponto de vista desconsidera os problemas que podem se originar mesmo a partir de intervenções feitas por profissionais qualificados e em espaços hospitalares. Outro problema da linha argumentativa que narra a morte de pacientes em mesas de cirurgia plástica como um erro dado por mera incompetência do profissional é que limita o problema a uma discussão de técnica médica. O próprio Dr. Denis se utilizou desta argumentação, em entrevista, numa tentativa de evitar ser responsabilizado pela morte de Lilian15. Após criar uma associação de vítimas de erro hospitalar, o médico repassou a acusação de negligência aos colegas de profissão que atenderam a vítima após as complicações de sua cirurgia: “me pergunto por que levei a paciente para lá. Talvez numa rede pública, mesmo com todos os problemas, os médicos teriam avaliado com atenção e conhecimento os exames”.
O “Dr. Bumbum” procurou, ainda, descontruir o argumento, comum na narrativa midiática, de que cirurgias plásticas devem ser feitas em hospitais por serem locais mais seguros: “Não é porque estamos em um hospital que estamos salvos e livres da doença ou de uma complicação por eventos adversos (...) Hospitais erram, médicos erram e precisa ter alguém que alerte para isso”. E ele seria, aparentemente, a pessoa mais indicada para fazer este alerta, visto que se posiciona como mais uma vítima de erro médico, no mesmo patamar de sua paciente que faleceu.
Este fato mostra que a discussão sobre casos como o de Lilian precisa ir além da ideia de erro médico. Como discuti na primeira sessão do artigo, a cultura somática em que vivemos produz sujeitos prontos a realizar qualquer tipo de intervenção sobre seus corpos com o objetivo de melhoria contínua e o desejo de sair-se bem em um mundo competitivo. Diante deste quadro, porém, é preciso destacar o gênero como categoria de análise, uma vez que a esmagadora maioria das pessoas que realizam cirurgias plásticas são mulheres. De acordo com dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps)16, mais de 85% das cirurgias plásticas no mundo tem como alvo as mulheres. O Brasil é o segundo país que mais realiza cirurgias plásticas, perdendo apenas para os Estados Unidos, e ganhando o título de campeão no que se refere a “cirurgias íntimas” – a realização de procedimentos como estreitamento do canal vaginal, diminuição dos grandes lábios e reconstituição do hímen aumentou de 39% em 2016. O que pode levar especificamente as mulheres brasileiras a se tornarem as maiores entusiastas da cultura somática no mundo?

“Mulheres vaidosas”: a questão de gênero na artificialização do corpo

Primeiramente, para analisar a relação entre mulheres e cirurgias plásticas, é importante lembrar que a naturalidade das intervenções invasivas no corpo feminino com fins estéticos é um fenômeno historicamente recente. Como ressalta Sant’Anna (2016b), mesmo no começo do século XX, a beleza física tendia a ser vista como uma dádiva divina, a qual cabia à mulher conservar com comedimento. Havia, portanto, forte oposição entre corpo natural e aparência artificial, sendo a segunda desvalorizada moralmente como característica de uma “mulher fácil”.
Na década de 1920, a indústria de cosméticos foi impulsionada pelo sucesso das estrelas de cinema, porém a beleza seguia bastante relacionada a atrativos como boa postura, graça nos movimentos e etiqueta refinada. Já os anos 1950 representam um marco na história da relação da mulher brasileira com a beleza. Nesta época, a população urbana superou aquela do meio rural e o apelo ao consumo típico do american way of life passou a penetrar o cotidiano brasileiro, tornando o conforto e o bem-estar valores essenciais para uma vida considerada urbana e moderna. Também neste contexto, o corpo começou a ser mais exibido nas praias, nas imagens publicitárias e nos filmes, e o embelezamento se transformou em um tema privilegiado na imprensa nacional, sob um tom bastante diferente do que era adotado anteriormente:
           
Ora, a partir da década de 1950, os conselhos de beleza e inúmeras publicidades declararam sem hesitação que ‘toda mulher tem o direito de se tornar bela e tão sedutora quanto suas artistas prediletas’. Tratava-se não apenas de uma promessa. Era um aviso, um alerta, algo que mudaria o modo de ser feminino. Menos do que um dom, glamour e beleza, mostrava a imprensa, são os resultados de uma conquista individual e de um trabalho que não tem hora para acabar. ‘Hoje é feia somente quem quer’ (SANT’ANNA, 2016b: 115)

Mas foi nas décadas de 1960 e 1970 que a cirurgia plástica ganhou destaque na imprensa. Conforme cirurgiões brasileiros se tornavam conhecidos mundialmente, as belezas construídas pelo bisturi foram adquirindo valores cada vez mais positivos. Sant’Anna (2016a) apresenta três tipos de imperativos que colaboram para explicar o sucesso que adquiriu esta indústria no país.
O primeiro imperativo se refere a uma ânsia por rejuvenescimento que, apesar de acometer nações ao redor do mundo, se intensifica em locais cuja população é majoritariamente formada por jovens. Além da desvalorização social da velhice de um modo geral, âmbitos como a moda, o mercado de trabalho e até mesmo as relações amorosas exercem pressão objetiva por uma aparência jovem. Como não se pode (ainda) parar a natureza, o bisturi se torna, muitas vezes, a principal salvação de um destino de exclusão social.
O segundo fator a se considerar é o da urgência: a necessidade de viver os prazeres aqui e agora, diante do receio de que o país não teria futuro. Segundo Sant’Anna (2016a), este sentimento favorece a retomada de um valor presente há bastante tempo na mentalidade brasileira: o milagre. O sonho de uma terra abençoada por Deus, repleta de belezas e dádivas naturalmente concedidas, povoa há tempos a mente humana, e o Brasil foi representado inúmeras vezes como sendo este local. Além disso, as mulheres brasileiras foram, historicamente, associadas às belezas naturais do país, como mais uma parte das paisagens, inclusive em propagandas turísticas feitas pela Embratur. Assim, experiências que oferecem soluções rápidas para garantir um corpo belo, como num passe de mágica, são bem vistas – o paciente tem a impressão de que conquistou um novo corpo maravilhoso, como uma benção.
O terceiro quesito relacionado à obsessão brasileira por cirurgias plásticas, ainda de acordo com Sant’Anna (2016a), é a utilização da aparência como ferramenta de distinção social e troféu que demonstraria uma vida bem-sucedida. Um corpo jovem, magro e belo é considerado um tíquete para garantir uma vida melhor, mais confortável e, por que não, de mais riquezas. Este novo corpo representaria, também, a vitória do indivíduo contra o tempo, e seu atestado de propriedade do próprio corpo, esculpido ao bel prazer de seu dono, que não mais seria um fardo, mas sim uma propulsão para seu sucesso e um antídoto contra sofrimentos.
A prevalência da vontade de domar o corpo, visto como incômodo, imperfeito e decadente, é um aspecto também ressaltado por Sibilia (2004). Segundo a autora, ainda que todas as culturas possuam um ideal de corpo belo a ser copiado e desejado, este modelo se impõe de forma mais opressiva na sociedade contemporânea. A força deste imperativo de beleza na época atual decorre do fato de que, hodiernamente, a subjetividade dos indivíduos não se estrutura mais apenas em relação a seu “eu interior”, mas sim depende, em grande medida, da exterioridade, do visível, das aparências: “hoje o caráter se torna externo. Cada um passa a ser aquilo que mostra de si (...). O corpo se torna uma imagem a ser exibida; e essa imagem deve ser jovem, bela e magra” (SIBILIA, 2004: 73).
A suposta liberdade praticamente sem limites para alterar as formas corporais vem acompanhada, entretanto, da exigência de uma mentalidade calculista e vigilante, que demanda esquadrinhamento constante de cada centímetro do corpo, considerando que todos os espaços interiores e exteriores da fisiologia humana estão abertos a melhoramento, numa empreitada sem fim. A relação com o corpo que poderia ser pautada por liberdade, esperança e prazer, se assemelha a um combate, no qual aliados podem se tornar inimigos rapidamente, diante de uma complicação cirúrgica. Nas palavras de Sant’Anna (2016b: 124): “Quem não for à luta, quem desertar desse campo fisiológico, expressa fraqueza, mostra a pior das covardias, merece, portanto, desprezo”. E, como foi possível observar neste trabalho, ao contrário do que é comum na guerra, aquelas que morrem neste combate não recebem homenagens de qualquer tipo, apenas julgamentos e desdém.

Observações finais

A adesão ao padrão esperado foi, em diversos momentos da história, uma questão muito importante especialmente para as mulheres, obviamente não por um pendor natural à submissão, mas porque as consequências do desafio às regras costumaram ser extremas – frequentemente, uma questão de vida ou morte. Ainda que recebesse a permissão de conservar sua vida, uma mulher que vivia à margem das regras sociais tinha como único destino possível a humilhação e a exclusão. Além disso, mulheres costumaram ser vistas como mais próximas ao corpo que à mente e tiveram, na aparência, uma das poucas ferramentas de barganha e ascensão social.
Na sociedade que maneja riscos e que enxerga no corpo, especialmente o feminino, um convite à intervenção, vidas femininas podem ser arriscadas em nome do bem maior, aparentemente entendido como um mundo livre das rugas, das gorduras, de tudo aquilo no corpo que for menos do que perfeito. Estas mulheres não são simplesmente autômatos irracionais e inconsequentes, mas sim sujeitos que procuraram seguir à risca as diretrizes do biopoder, como este se apresenta na sociedade contemporânea: incentivando a apaixonada adesão ao ideal de otimização a qualquer custo. Quando, porém, a violência do processo se revela nos corpos daquelas que ficam com sequelas ou mesmo perdem suas vidas, o apoio social à intervenção no corpo rapidamente se transforma em julgamento moral. A mídia acode o campo médico na tarefa de vender os casos destas mulheres como ocorrências isoladas e responsabilidades individuais, para que tantas outras possam seguir no caminho do melhoramento corporal sem fim.

Notas:

1 EM busca da perfeição: Brasil lidera o ranking mundial de cirurgias plásticas. R7, 24/02/2015. Disponível em https://recordtv.r7.com/hoje-em-dia/videos/em-busca-da-perfeicao-brasil-lidera-o-ranking-mundial-de-cirurgias-plasticas-14102018. Acesso em 07/01/2020.

2 MENDONÇA, Alba Valéria; PIERRE, Eduardo. O que se sabe do caso do Dr. Bumbum, preso nesta quinta-feira com a mãe. G1, 18/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/07/18/o-que-se-sabe-do-caso-do-dr-bumbum.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

3 PACIENTE. do 'Dr. Bumbum' conta que médico fazia avaliação pelo WhatsApp antes dos procedimentos. G1, 17/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/paciente-do-dr-bumbum-conta-que-medico-fazia-atendimentos-pelo-whatsapp-antes-dos-procedimentos.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

4 SOCIEDADE Brasileira de Cirurgia Plástica faz alerta sobre bioplastia. G1, 20/07/2018. Disponível em http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/v/sociedade-brasileira-de-cirurgia-plastica-faz-alerta-sobre-bioplastia/6886655/. Acesso em 07/01/2020.

5 DANTAS, Carolina. 'Dr. Bumbum' tinha diploma, mas não podia trabalhar como cirurgião plástico: saiba contratar um médico com segurança. G1, 17/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/noticia/dr-bumbum-tinha-diploma-mas-nao-podia-trabalhar-como-cirurgiao-saiba-contratar-uma-plastica-com-seguranca.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

6 PACIENTE de Dr. Bumbum, baiana relata problema após tentar corrigir afundamento nos glúteos: 'Achei que estava nas mãos de uma pessoa íntegra'. G1, 23/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/07/23/paciente-de-dr-bumbum-baiana-relata-problema-apos-tentar-corrigir-afundamento-nos-gluteos-achei-que-estava-nas-maos-de-uma-pessoa-integra.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

7 ANJOS, Lislaine dos. 'Médico fez a cabeça dela', diz filho de gerente de banco de MT que morreu após procedimento com Dr. Bumbum. G1, 18/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2018/07/18/medico-fez-a-cabeca-dela-diz-filho-de-gerente-de-banco-de-mt-que-morreu-apos-procedimento-com-dr-bumbum.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

8 SOUZA, André. Filho de vítima do Dr. Bumbum quer lei com nome da mãe: 'Punição mais rigorosa'. G1, 23/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2018/07/23/filho-de-vitima-do-dr-bumbum-quer-lei-com-nome-da-mae-punicao-mais-rigorosa.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

9 VEJA imagens da cobertura onde Dr. Bumbum realizava atendimentos. G1, 22/07/2018. Disponível em http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2018/07/veja-imagens-da-cobertura-onde-dr-bumbum-realizava-atendimentos.html. Acesso em 07/01/2020.

10 CASO de Dr. Bumbum mostra que beleza tem sido encarada como virtude moral, diz filósofa. G1, 28/07/2018. Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2018/07/28/caso-de-dr-bumbum-mostra-que-beleza-tem-sido-encarada-como-virtude-moral-diz-filosofa.ghtml. Acesso em 07/01/2020.

11 OS riscos da busca pela beleza. Globosat play, 25/07/2018. Disponível em https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6898618/. Acesso em 07/01/2020.

12 MARQUES, Júlia. Apesar da crise, número de cirurgias plásticas para estética cresce 25% em 2 anos. Estadão, 16/08/2019. Disponível em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,apesar-da-crise-numero-de-cirurgias-plasticas-para-estetica-cresce-25-em-2 anos,70002969693. Acesso em 07/01/2020.

13  BORGES, Helena. Brasil lidera o ranking de cirurgia plástica entre adolescentes. Época, 09/05/2019. Disponível em https://epoca.globo.com/brasil-lidera-ranking-de-cirurgia-plastica-entre-adolescentes-23651891. Acesso em 07/01/2020.

14  Dados disponíveis na reportagem do Estadão, ver nota 12.

15  OUCHANA, Giselle. Após sair da prisão, 'Doutor Bumbum' cria Associação de Vítimas de erro hospitalar. O Globo, 29/03/2019. Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/apos-sair-da-prisao-doutor-bumbum-cria-associacao-de-vitimas-de-erro-hospitalar-23560128. Acesso em 07/01/2020.

16 POR QUE as brasileiras estão obcecadas por cirurgias plásticas?. Terra, 27/11/2018. Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/dino/por-que-as-brasileiras-estao-obcecadas-por-cirurgias-plasticas,8360fa4f86b7799cfbac64856eac824ax6y9hoky.html. Acesso em 07/01/2020.

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Fecha de recepción: 02-06-2020.
Fecha de aceptación: 24-08-2020.

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