SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 issue2Letters from Mexico to the world: the discourse of tourism promotion: A theoretical methodological approachProduction and recognition of Senses on Problematic Substance Use: Analysis of Advertising after the National Mental Health Law author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

  • Have no cited articlesCited by SciELO

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


La trama de la comunicación

Print version ISSN 1668-5628

Trama comun. vol.25 no.2 Rosario Dec. 2021

 

ARTÍCULOS

Solidão e cultura digital: estrutura do sentimento e tecnologias em comunicação

Loneliness and digital culture: structure of feeling and communication technologies

 

Por Rodolfo Rorato Londero y Gina Viviane Mardones Loncomilla

rodolfolondero@hotmail.com / Universidade Estadual de Londrina (Brasil)

gina.mardones@gmail.com / Universidade Estadual de Londrina / Universidade Norte do Paraná (Brasil)

Rodolfo Rorato Londero.
Brasileiro.
Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Afiliação Institucional: Universidade Estadual de Londrina.
Área de especialidade: Comunicação e literatura.
e-mail: rodolfolondero@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4358-2114

Gina Viviane Mardones Loncomilla.
Brasileira.
Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Bauru). Docente do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Norte do Paraná (Unopar/Arapongas).
Afiliação Institucional: Universidade Estadual de Londrina / Universidade Norte do Paraná.
Área de especialidade: Comunicação e imagem.
e-mail: gina.mardones@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5203-2843


Sumario:

Este artículo trata de la correlación entre la formación del sentimiento de soledad y el proceso histórico de los medios de comunicación y cómo resultó en la construcción del sujeto moderno. Para entender estas transformaciones, la revisión de la literatura se basa en el proceso socio-histórico de formación de la sociedad occidental, tomando la Revolución Francesa como un hito. Al mismo tiempo, identifica cómo las tensiones psíquicas, especialmente la experiencia de la soledad, se vinculan gradualmente a los medios de comunicación. El enfoque principal son las concepciones teórico-metodológicas desarrolladas en los estudios culturales de Raymond Williams sobre la estructura del sentimiento, la cultura y los medios de comunicación. El objetivo es entender cómo el sentimiento de soledad está asociado con la llamada cultura digital de hoy en día.

Descriptores: Soledad; Cultura digital; Estructura del sentimiento

Summary:

This paper deals with the correlation between the formation of the feeling of loneliness and the historical process of the media and how it resulted in the construction of the modern subject. To understand this transformations, the literatura review is based on the socio-historical process of formation of western society, taking the French Revolution as a milestone. At the same time, it identifies how psychic tensions, especially the experience of loneliness, gradually links to the media. The main approach is the theoretical-methodological conceptions developed in Raymond Williams’ cultural studies on the structure of feeling, culture and the media. The aim is to understand how the feeling of loneliness is associated with the so-called digital culture of today.

Describers: Loneliness; Digital Culture; Structure of feeling


1. Introdução       

A partir da década de 1990, com a internet e a confluência dos meios de comunicação, diversas reflexões buscam compreender a atual sociedade com base nos efeitos daquilo que convencionamos chamar de novas tecnologias. No entanto, para lembrar as palavras de Turkle (2012), a internet e seus correlatos tecnológicos seriam “mais do que um velho vinho envasado em garrafa nova” (Turkle, 2011: 156), uma vez que o que conhecemos por cultura digital representaria o mais recente estágio de um processo histórico e cultural da sociedade ocidental, dentro do qual se insere o desenvolvimento dos meios de comunicação. Para Lemos (2009), a cultura digital já se fazia presente desde a década de 1970, e ela ganha contornos não apenas técnicos e materiais com a presença dos computadores, mas também políticos e culturais a partir da apropriação desses dispositivos por parte da sociedade. 
 Assim, de teorias fatídicas – como as que alegam o poder de influência e manipulação dos meios técnicos sobre os modos de vida do sujeito – às teorias fáusticas – segundo as quais a confluência digital representaria a nova ágora da democracia e das redes de conexões –, as discussões a respeito da presença desses aparatos se encaminham para uma posição que tangencia o determinismo tecnológico. Contudo, postulando um viés distinto a fim de compreender as relações entre sujeito e aparato tecnológico, este trabalho propõe explorar as ideias do materialismo cultural como alternativa a uma explicação menos tecnicista, apostando, para isso, no debate interseccional entre marxismo e cultura, como propõem os estudos culturais de Raymond Williams. O desafio encontra-se em inscrever os meios de comunicação em uma dinâmica histórica e cultural que se estabelece a partir da relação com o sujeito sócio-histórico, sem recair, portanto, na visão monolítica de poder modelador das tecnologias sobre as experiências subjetivas.
A partir dessa leitura, o que se propõe é inscrever a experiência da solidão em um complexo de práticas culturais organizadas a partir de um sistema habitualmente hegemônico, porém que nunca é estático e muito menos determinista. É a partir das concepções de hegemonia (Gramsci) e totalidade (Luckács) que Williams formula o conceito de estrutura do sentimento. Desta forma, a solidão é abordada neste artigo como uma experiência subjetiva estruturada a partir de uma dinâmica sócio-histórica e que se intensifica enquanto sentimento a partir da modernidade, tendo como marco a Revolução Francesa, os ideais iluministas de progresso técnico, bem como o processo de secularização e urbanização que transformam a cidade em um sistema de aculturação racional fundamentado na valorização do signo e da midiatização.
Falar da solidão, portanto, e de sua intensificação na vida do homem moderno, é falar da emergência de uma manifestação sócio-cultural citadina configurada dentro da valorização de um pensamento racionalista e tecnicista. O Século das Luzes e sua máxima da liberdade como direito natural do homem trouxeram à tona um homem livre da égide do antigo regime, para assim deparar-se sozinho, somente consigo mesmo. A autonomia do homem moderno vem acompanhada do paradoxo da solidão: se por um lado o homem é finalmente livre para decidir seu próprio destino, por outro se submete a uma espécie de solidão funcional, primordial para a construção da autoimagem e da autopromoção. Assim, cerceado pelas convenções sociais, o indivíduo passa a projetar uma imagem mental sobre si, revelando os primeiros sintomas de sofrimento psíquico na medida em que a autoafirmação vem acompanhada de um sucesso pessoal medido pela aparência. Daí o paradoxo: “Livre na teoria, sozinho na realidade” (Minois, 2013: 367).
Este trabalho busca afinal responder ao seguinte questionamento: de que maneira a experiência da solidão correlaciona-se com a chamada cultural digital? Partindo do pressuposto de que essa experiência subjetiva se relaciona ao desenvolvimento histórico-cultural da sociedade ocidental, tendo como mote o progresso dos meios técnicos de comunicação, essa discussão passa por estudos no campo da cultura, cultura digital, comunicação e solidão, a partir da visão de autores e obras como Raymond Williams, Sherry Turkle, George Minois e A História da Vida Privada, os quais fundamentam as reflexões teóricas.
 Desta forma, as considerações caminham de encontro às propostas dos estudos culturais de Williams, compreendendo a experiência subjetiva da solidão a partir da inter-relação das práticas sociais com os meios de comunicação. Afinal, como afirma Cevasco, “experiência para Williams é sempre social e material, e portanto histórica” (Cevasco, 2001: 157).

2. Contribuições do materialismo cultural: a estrutura do sentimento e a dialética dos meios de comunicação

Williams jamais pensou a cultura como uma esfera superior à economia e à política. O materialismo cultural é, na verdade, uma reavaliação do modelo base-superestrutura, incisivamente abordado de forma dualista nas obras marxistas. Trata-se assim de uma abordagem que propõe uma concepção dinâmica ao aproximar teoria e prática, de modo a evitar os idealismos que separam os conceitos da vida prática. 
A partir dos estudos culturais, a palavra “cultura” deixa de lado uma conotação “estetizante”, de mero produto social, e adquire com Williams dois novos sentidos: “para designar um modo de vida – os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado – os processos especiais de descoberta e esforço criativo” (Williams, 1989: 4). Cevasco avalia que a cultura enquanto modo de vida permite ver as inter-relações como “práticas de significação que articulam e organizam a vida social” (Cevasco, 2011: 165). A cultura também se manifesta enquanto consciência, existindo não apenas “como instituições, obras e sistema, mas necessariamente como práticas e pensamentos” (Williams apudCevasco, 2001: 166). O fundamental, portanto, é entender como os estudos culturais relacionam os diversos elementos sociais para formar um todo. 
As abordagens marxistas levaram a um certo radicalismo a proposição dualista de base determinante e superestrutura determinada. Boa parte dessas interpretações teóricas parte da assertiva de Marx em seu prefácio de Contribuição à crítica da economia política, de 1859, onde se lê que não é a consciência que determina o indivíduo, mas “o ser social é quem determina a consciência” (Marx apud Williams, 2011a: 43). O problema dessas abordagens está na prevalência de uma configuração mutuamente excludente, na qual base e superestrutura permanecem como elementos separados, fixos e definidos, sendo, portanto, a existência da segunda condicionada à primeira. Assim, tudo o que o sujeito manifesta enquanto elemento de uma superestrutura (ideias, hábitos sociais, políticos, culturais, religiosos, educacionais...) é prefigurado e controlado pelos meios de produção, por uma economia preexistente. No entanto, para Williams, o sujeito da imaginação não é passivo, ele é um sujeito histórico, na medida em que é formado dentro de uma dinâmica de organizações e tensões cotidianas (Williams, 1979: 130).
É justamente nessa dicotomia reducionista que muitas teorias marxistas tentaram se consolidar. Primeiro com a noção de “reflexo”, em que as manifestações culturais e ideológicas alocadas dentro da superestrutura não seriam nada além de um reflexo da base material. Depois com a noção de “mediação”, defendida sobretudo pela Escola de Frankfurt, em que “as ideias e as condições materiais” são mediadas pela linguagem (Londero, 2011: 123). Ao contrário dessas teorias, o que Williams propõe é pensar “a noção de determinação como a de fixar limites e exercer pressões” (Williams, 2011a: 44). Em outras palavras, é preciso pensar tanto nas relações de produção quanto nas relações sociais como uma totalidade movida por experiências humanas reais.
Boa parte das proposições de Williams que fundamentam o materialismo cultural e dão origem à estrutura do sentimento baseia-se em reflexões sobre os conceitos de totalidade (Lukács) e hegemonia (Gramsci). Em História e consciência de classe, Lukács (2003) também se refere ao “marxismo vulgar” como aquele cujas concepções permanecem puramente no campo teórico cientificista, restringindo-se aos fenômenos em si, sem propor interconexões entre eles. Em outras palavras, “se a intenção era chegar a uma decisão essencialmente fundamentada, nunca se poderia permanecer na reflexão dos fatos imediatos; antes, seria preciso esforçar-se sempre para descobrir aquelas mediações que conduziram a tal situação” (Lukács, 2003: 11). O cerne dessa relação conjunta (teoria e práxis) é, assim, uma das formas de se apreender a realidade em sua totalidade. Por sua vez, essa relação conjunta permite reconhecer uma consciência objetiva que se manifesta nas práticas sociais: “Ao se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade, torna-se possível reconhecer os pensamentos e sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situação da sua vida” (Lukács, 2003: 141).
Contudo, ainda que a teoria de Lukács lance novos olhares sobre a interpretação base-superestrutura, ela ainda se revela incompleta, visto que, para Williams (1979), ela apresenta dois níveis de deficiência: primeiro, ao designar as atividades humanas dentro de uma totalidade, Lukács abstrai qualquer possibilidade de reação, excluindo qualquer noção de intencionalidade; segundo, ao deter-se nas relações sociais e culturais como formas reflexivas de um todo, Lukács reproduz a velha noção de reflexo, reconhecida por ele próprio como tributária ao pensamento platônico (Lukács, 1968: 28). Logo, para evitar essas deficiências, Williams revisita a totalidade circunscrevendo-a na teoria de hegemonia de Gramsci, para quem a hegemonia é primordialmente “o resultado de uma luta entre sociedade civil e a sociedade política de um determinado período histórico, com certo equilíbrio instável entre as classes” (Gramsci, 2011: 292).
A teoria de Gramsci evita cair no idealismo segundo o qual as relações sociais são meramente reflexos ou imitações da base produtiva. Além disso, o sentido de totalidade oriundo do conceito de hegemonia pressupõe uma espécie de saturação do que é vivido em sociedade a partir de uma força limitadora, “de maneira que corresponde à realidade da experiência social muito mais nitidamente do que qualquer noção derivada da fórmula de base superestrutura” (Williams, 2011a: 52). É preciso, portanto, falar em uma hegemonia que admita a realidade da dominação, da pressão, bem como permita às formações sociais uma mudança real e constante a partir de suas experiências. Sendo assim, Williams entende a hegemonia como uma realidade constituída e vivida, reconhecida dentro de um processo de totalidade que exerce limites e pressões em um complexo de práticas sociais por ela englobada. “É um sistema vivido de significado e valores – constitutivo e constituidor” (Williams, 1979: 113).   
Essas experiências constituídas em processo dialético resultam, por sua vez, na estruturação dos sentimentos e suas manifestações dentro de uma cultura. Desta forma, continua Williams, a hegemonia “é, no sentido mais forte, uma ‘cultura’, mas uma cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos de determinadas classes” (Williams, 1979: 113). Assim, o conceito de estrutura do sentimento correlaciona-se com a ideia de uma cultura hegemônica que, resultante de contradições, possibilita a vivência de uma realidade por meio da práxis. Para Cevasco, a estrutura do sentimento é, portanto, 

uma resposta a mudanças determinadas na organização social, é a articulação do emergente, do que escapa à força acachapante da hegemonia, que certamente trabalha sobre o emergente nos processos de incorporação, através dos quais transforma muitas de suas articulações para manter a centralidade de sua dominação (Cevasco, 2001: 158).

Portanto, o entendimento sobre a solidão passa por uma estrutura do sentimento configurada culturalmente. Durante o Século das Luzes, por exemplo, a solidão era aceita até o limite da expansão da autonomia pessoal. Para além disso, o isolamento deliberado poderia colocar em risco o funcionamento de um sistema baseado nas relações sociais enquanto relações contratuais. Assim, a solidão configura-se em um sistema hegemônico, dentro do qual diversas práticas sócio-históricas contribuem para seu processo de formação. 
Por isso, as premissas de Williams a respeito da estrutura do sentimento são importantes para compreender a sociedade contemporânea. Se a estrutura do sentimento é, como afirma Cevasco, “a articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social” (Cevasco, 2001: 153), então a solidão configura-se como essa prática social e mental dentro de um processo histórico mais amplo em que estão em curso a intensificação da vida urbana, o desenvolvimento dos meios de comunicação e as mudanças no cenário político-econômico.
Neste sentido, uma das contribuições de Williams é compreender o desenvolvimento dos meios de comunicação dentro de uma relação dialética. Para o autor, eles não são essencialmente determinantes para as novas formas de relações sociais, bem como também não são determinados pelas relações de produção do sistema. 
               
O determinismo tecnológico é uma noção insustentável, porque substitui as intenções econômicas, sociais e políticas pela autonomia aleatória da invenção ou por uma essência humana abstrata. Mas a noção de uma tecnologia determinada é também, de forma semelhante, uma versão apenas parcial ou de uma face do processo humano. Determinação é um processo social real, mas nunca um conjunto de causas completamente controladoras e definidoras (Williams, 2016: 139).

Para Williams (2011a), é preciso compreender os meios de comunicação como meios de produção dentro de um complexo de forças sócio-produtivas gerais, formulando uma posição teórica a partir de um processo histórico dos meios de comunicação, das diversas fases de suas atividades, inclusive o atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade. Por isso, quando o autor reconhece as tecnologias de produção e comunicação inseridas em uma transformação social geral (Williams, 2016: 31), ele a realoca enquanto forma cultural e não enquanto um fenômeno a parte das transformações materiais-históricas. 
Foi Williams, a partir do estudo da televisão, na década de 1970, quem trouxe a discussão para um debate ampliado, implicando os meios de comunicação em questões mais genéricas, muito além da “manipulação” ou “degradação cultural”. Uma das maiores contribuições da teoria cultural de Williams está no fato de compreendê-la menos como uma abordagem metodológica e mais como uma consciência do processo, em que os efeitos só podem ser estudados a partir de propósitos reais e não simplesmente das formas aparentes. É preciso reconhecer, portanto, a existência de um sistema social central, controlador de operações, que exerce uma projeção sobre a sociedade, afinal, a tecnologia não opera por si mesma.
Os estudos de Williams a respeito da televisão são fontes visionárias passíveis de releitura para os dias atuais. Muito embora o autor não tenha mencionado ou previsto a convergência das mídias como conhecemos hoje, os aportes teóricos dos estudos culturais permitem entrever que, assim como a televisão é um processo de intenções conjuntas (militares, administrativas, comerciais e científicas), operacionalizado dentro de formas reais, assim também o são a internet e os aparatos tecnológicos de comunicação do século XXI. Veremos adiante que o conceito de privatização móvel, cunhado por Williams, nasce em meio a uma sociedade dilacerada no pós-guerra e que se isola cada vez mais por detrás da então novidade da época: a televisão. Isto anuncia uma característica latente, uma nova estrutura de sentimento que se evidencia nas décadas seguintes com o que conhecemos como cibercultura: o desejo por conexão humana e a necessidade de autopreservação.

3. Aspectos da solidão: a premissa do individualismo, a sociedade das aparências e a mídia de massa

O termo solitudo,de raiz latina, é comumente traduzido por vias literais em “deserto” ou “lugar de isolamento”. Por isso, até hoje o termo “solidão” estaria associado apenas a um estado de afastamento social, como era o caso dos monges e eremitas na Idade Média. O problema, como afirma Minois (2013), é que o ser humano é um ser pensante para quem a solidão também se internaliza em um sentimento. “Viver sozinho e sentir-se sozinho são duas coisas diferentes que o uso comum não distingue, transformando-se, portanto, numa fonte ambígua” (Minois, 2013: 10). 
No intuito de compreender como esse sentimento se estruturou no processo de formação da sociedade ocidental, tomaremos como ponto de partida o processo de desmonte da sociedade feudal, passando pela configuração das cidades e o processo de subjetivação desse espaço. Em seguida abordamos a relação entre a autoimagem e os primeiros sintomas de sofrimento moderno galgados por uma cultura da aparência. Por fim, tratamos do processo de emergência dos meios de comunicação e a ascensão de uma cultura da imagem propiciada pela disseminação das mídias de massa. 
A sociedade da Alta Idade Média era uma sociedade rural até o século XI, quando a urbanização transpõe os muros das comunas, resultando em uma mudança sociopolítica. Novas estruturas sociais emergem com a formação de novas atividades profissionais, além de inovações em sistemas simbólicos como a escrita, racionalizada pela política e pelo avanço das atividades comerciais burguesas (Barbier, 2018: 39). A secularização inaugura, assim, o período do Humanismo, que encarna a promoção do homem das letras, autônomo e isolado, porém “não para se autoinfligir penitências, mas para refletir, sonhar, chorar, rezar, ler e escrever” (Minois, 2013: 156).
Na Baixa Idade Média (séculos XIV-XVI), portanto, as cidades constituem-se como mundos a parte da sociedade feudal. Um mundo onde mercadorias, textos, pessoas, experiências e ideias se tocam, transformando-se, assim, em um palco de valorização racional e midiática. Junto à escrita, outras formas de comunicação coexistiram, a exemplo da interpretação visual nos vitrais das igrejas, a sinalização das lojas, pinturas em edifícios públicos e cartazes de peças teatrais. 
Enfim, por essa época, para usar um termo de Peter Burke (1995), as cidades já eram importantes palcos de “comunicação multimídia”. A transformação das cidades em plataformas visuais é uma das primeiras características essenciais para compreender como o sentimento de solidão estava latente. Esta característica se consolidou entre os séculos XVIII e XIX, quando a Europa viveu a ebulição da revolução industrial e das migrações do campo para a cidade.
Por esse período, diversos escritores registraram essas mudanças. Para os iluministas como Voltaire e Adam Smith, a cidade era o lugar de expansão e liberdade, “mas que por sua própria condição de mercado e centro manufatureiro gerava pessoas volúveis e inseguras” (Williams, 2011b: 245). Portanto, as visões desse período se fundem em um relato contraditório: ora a cidade é a expressão da liberdade, ora é o centro de opressão, é o lugar de riqueza e pobreza, ordem e caos ao mesmo tempo. Todas as contradições evidentes geram, segundo Williams (2011b), uma espécie de estado mental sistemático à medida que os indivíduos se instalam nas cidades, expandindo o assim chamado “tumor monstruoso”. A poesia de Wordsworth, por exemplo, trouxe a expressão mais profunda sobre a apática experiência urbana: “como podia um homem / Viver sequer sem conhecer o nome / Dos vizinhos que moram ao seu lado”(Wordsworth apudWilliams, 2011b: 253).
O Século das Luzes, primordialmente, não se mostrou uma cultura favorável à experiência da solidão. Diante do espírito crítico, da racionalidade, da luta contra o absolutismo e do cerceamento da Igreja, nasce um ideal de revolução social fundamentada na colaboração. A criação do poder tripartite e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, estabelecidos a partir da Assembleia Nacional Constituinte Francesa, em 1789, são alguns dos marcos que revelam justamente essa descentralização do poder, abrindo caminho para uma visão otimista de progresso e equidade. Por isso, neste contexto, a solidão voluntária revela-se uma espécie de traição, solitários deliberados “que não compartilham nem suas ideias, nem suas vidas, são seres suspeitos de misantropia, transgressão imperdoável em tempos de filantropia” (Minois, 2013: 298).  Portanto, a filosofia política do século XVIII não dá lugar a uma solidão em seu sentido mais idealista, de liberdade e elevação pessoal. A solidão deliberada conduziria a um estado de anarquia, ameaçando a felicidade coletiva. 
Todavia, de maneira paradoxal, o iluminismo também alavancou o pensamento individualista impulsionado pelos ideais de filósofos contratualistas como John Locke. O contrato estabelecido entre sociedade e Estado garantiria um bem-estar coletivo, em nome de uma autonomia e, em última instância, em nome de uma solidão funcional.  O solitário do século XVIII, que encarna o herói da liberdade individual, é aquele que se isola para alçar-se ao sucesso pessoal. Portanto, ser original e livre pressupunha também uma solidão funcional. A tendência de exaltação à autonomia foi intensa no campo da literatura: o romance realista de Daniel Defoe, cuja posição filosófica muito se aproxima dos primeiros contratualistas ingleses, explorou muito bem a imagem do herói individual. Talvez não por acaso o jovem náufrago de Robinson Crusoé, que passa 27 anos vivendo isolado em uma ilha, tenha agido como um bom lockeano, obrigando pessoas que chegavam à ilha “a aceitarem sua dominação mediante contratos escritos que reconheciam seu poder absoluto” (Watt, 1990: 58). Defoe foi enfático ao considerar o primado da vantagem econômica individual em detrimento dos laços sentimentais que unem o personagem à pátria ou à família. Contudo, para além de uma exaltação, Robinson Crusoé é, em última instância, uma advertência sobre as consequências do ideal individualista absoluto. 
A imagem mental que o indivíduo passa a projetar sobre si mesmo revela os primeiros sofrimentos psíquicos na medida em que a autoafirmação vem acompanhada de um sucesso pessoal pautado pela aparência. Resultante do progresso individual, já em meados do século XIX, manifesta-se os primeiros sintomas do sofrimento pessoal. Por esse período ocorre um vertiginoso aumento de suicídios na Europa, “o indivíduo, ao perceber que não é um fim em si mesmo, sofre o desencanto” (Corbin, 1991: 591). A democratização das profissões e a possibilidade de ascensão social fizeram com que muitos indivíduos empreendessem esforços para uma imagem bem-sucedida. Segundo Corbin (1991), essa experiência competitiva levaria a uma espécie de superaquecimento psicológico e emocional, desaguando em um sentimento de insuficiência. A solidão se enraíza fundamentada no princípio do liberalismo individualista segundo o qual cada um deve forjar seu próprio destino.
Para além de uma experiência que se estrutura sob o aspecto da cidade enquanto plataforma visual e sob a ideia liberal de autopromoção, a solidão também se fundamenta em um terceiro processo que torna essa experiência ainda mais sintomática: o desenvolvimento das mídias de massa e a disseminação das representações iconográficas. Ao longo da dinâmica histórica, o progresso dos meios de comunicação tornou-se um elemento importante na estruturação dos sentimentos, pois os sujeitos passam a subjetivar suas experiências a partir de uma nova relação com a imagem. 
Entre os séculos XV e XVI, a democratização da escrita e sua rápida difusão por meio da impressão em materiais midiáticos inauguraram uma fase de leitura isolada que abre espaço para a abstração dos sentidos. Com a leitura silenciosa, há uma predominância gradativa da visão em relação à audição e ao olfato. É um fenômeno que “faz o leitor passar da memória auditiva e muscular à memória visual abrindo, portanto, a possibilidade de uma exteriorização da referência” (Barbier, 2018: 235).
Do mesmo modo, já em fins do século XIX, também a publicidade dá fortes demonstrações da valorização da imagem em relação ao produto. Centrado numa abordagem a respeito do fetichismo da mercadoria, Sennet (2014) nos oferece uma pista sobre a relação entre investimento emocional e imagem do produto. Na virada do século XIX para o século XX, “os donos de lojas de departamento começaram a trabalhar mais o caráter de espetáculo de suas empresas de maneira quase deliberada” (Sennet, 2014: 214). Isto ocorre, segundo o autor, devido a um processo da chamada “aparência mistificada”. Por esse período, as pessoas passam a dar importância às aparências exteriores como sinais de caráter pessoal.
Da mesma forma, os usos iniciais da fotografia estão atrelados a uma economia de mercado que vislumbrou na mistificação das aparências uma possibilidade de circular a fotografia como valor de atestação social. As chamadas cartas de visita são um exemplo disso, e coube a Eugène Disdéri criar as condições para divulgar os seus “benefícios”. Segundo Rouillé (2005), este fenômeno social pode ser conhecido como a primeira “mídia de massa” capaz de associar uma imagem fotográfica a uma personalidade “célebre”. “A carta de visita fotográfica difundiu largamente os retratos de personalidades no domínio político, militar, econômico, industrial, religioso, artístico, etc. Todos gostavam de multiplicar sua graciosa pessoa” (Rouillé, 2005: 62). A possibilidade de grande circulação da imagem colaborou para consagrar a carta de visita como um dos primeiros meios de espetacularização da imagem pessoal em massa. O retrato como significação da própria existência mostra que, já por esse período, o consumo da imagem passa pela atestação social.
Em 1895, a invenção dos irmãos Lumière viria de encontro à sociedade das aparências. O sucesso da exibição de filmes para grandes plateias torna possível a formação de um novo público em massa que se reconhece nos telões: em uma nota de rodapé do famoso ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,Benjamin mostra como, “à reprodução em massa, corresponde efetivamente uma reprodução das massas. (...) Em outras palavras: os movimentos de massa, e nisto também a guerra, representam uma forma de comportamento humano que corresponde, de forma totalmente especial, à técnica dos aparelhos” (Benjamin, 1975: 33). A partir da Segunda Guerra Mundial, boa parte desses “movimentos de massa”, inclusive a própria guerra, foi acompanhado principalmente por meio de transmissões televisivas. Em 1941, quando os EUA entraram no campo de batalha, canais como a NBC e a CBS iniciaram, ainda que de maneira limitada, algumas transmissões televisivas em horários definidos.
Portanto, ao contrário da aposta de Benjamin – onde a quantidade tornar-se-ia qualidade (Benjamin, 1975: 31) –, a televisão surge de uma contradição em que aparelhos produzidos em grande número atendem a uma necessidade individual e privatizada quando tomam os lares. Essa privatização móvel caracteriza-se, segundo Williams (2016), pelo paradoxo entre mobilidade e lar. Ou seja, de um lado a autonomia e a autossuficiência, e do outro a proteção e a segurança. Segundo Cevasco (2001), a ideia de privatização móvel é uma tentativa de explicar as mudanças radicais que o modo de produção do capitalismo industrial tardio introduziu na vida social. Cevasco também afirma que esse período traz consigo uma estrutura do sentimento que já se fazia presente no final do século XIX: o interesse pelo lar. “Essa nova situação facilita a disjunção de um comportamento privado em um público, a ‘privatização móvel’ obscurece a situação entre os dois” (Cevasco, 2001: 232).
Trata-se de diagnosticar uma sociedade cada vez mais atomizada, isolada e que contempla a exposição da própria vida nos aparatos tecnológicos, criando assim uma ilusão de privacidade. Além disso, as famílias, que ainda eram vistas como projeto de proteção física e emocional, foram fortemente abaladas por fatores externos, como a nova configuração do trabalho, as crises, as depressões e as guerras. Esse cenário criou uma demanda por uma nova forma de contato, isto é, de informação, decorrente sobretudo da ansiedade gerada pela expectativa de forças exteriores que poderiam a qualquer momento interferir no equilíbrio da vida privada. 
Por isso, pode-se dizer que a invenção da TV, entendida como privatização móvel, revela o desejo de uma solidão protetiva e de uma experiência resguardada. No paradoxo entre massivo e individual, esse meio de comunicação resulta de uma morfologia sócio-cultural. A confluência das imagens, que ocorre durante as décadas de 1950 e 60, precisa ser compreendida sob a ótica de uma “tecnologia aplicada proveniente de conjunto de ênfases e respostas dentro dos limites determinantes e das pressões da sociedade capitalista industrial” (Williams, 2016: 39). 

4. Solidão e cultura digital: configurações e considerações

Cultura digital e cibercultura são tomadas por sinônimos a partir do entendimento de que ambas transitam pelo universo dos fatos não apenas online (como se presume da cibercultura), mas também off-line, uma vez que, para sua dinâmica de funcionamento, ela pressupõe a existência de um capital infotécnico, cognitivo e humano (Trivinho, 2007: 4). Para Lemos (2009), o emprego dos termos como sinônimo é possível na medida em que eles fazem parte de uma cultura contemporânea e abarcam não apenas um conjunto de ferramentas eletrônicas da microinformática, mas também porque esse emaranhado tecnológico é gradativamente apropriado por uma força vital, uma sociedade de época. O que vivemos hoje resulta de um movimento de confluência entre desenvolvimento tecnológico e sociabilidade, e que nas décadas de 1960 e 70 emergiu como uma contracultura responsável por expropriar esse conhecimento do uso exclusivo de uma elite (militares e industriais) e passá-lo ao domínio público.

Junto com isso surgiu também a internet, em 1969, mas como algo militar. Com os microcomputadores a internet vai começar a se disseminar a partir de instrumentos de sociabilização, como as listas de discussão, as primeiras BBS, as primeiras comunidades já territorializadas, que visavam ajudar pessoas a resolverem diversos problemas, como Aspen, Santa Monica ou São Francisco. Foram as primeiras comunidades virtuais, que hoje a gente chama de rede social (Lemos, 2009: 137).

A fusão, portanto, entre microinformática e telecomunicações na década de 1970 reinventa o modo de produzir e compartilhar informação, liberando o homem para o estabelecimento de uma rede de conexões infinitas. O que conhecemos por novas tecnologias hoje é uma ressignificação do processo que se intensificou com o advento do telégrafo, do rádio, da fotografia, do cinema e da televisão. Isto significa, na concepção de Miller (2011), que a atual cultura digital é também uma forma cultural. Devoto aos pensamentos de Williams, Miller analisa a dinâmica dos aparatos tecnológicos atuais como um advento resultante de transformações culturais e que, portanto, trazem consigo também mudanças na construção da subjetividade. Ao mesmo tempo em que geram desconfiança, também produzem otimismo, enfim, uma espécie de ansiedade que mobiliza a relação entre sociedade e novas tecnologias. “Assim como a televisão (mas talvez um pouco mais), é importante perceber que a Internet, a Web e as tecnologias móveis digitais são mais do que apenas tecnologias, elas são um conjunto de relações sociais que incorporam o uso de tecnologias com vários resultados” (Miller, 2011: 3).
A grande novidade do século XX, como afirma Lemos (2008), são as novas tecnologias digitais que ampliam o desejo do sujeito de agir à distância, sobretudo com a popularização dos computadores pessoais e a ampliação das redes de internet na década de 1990. A primeira geração de máquinas, antes restrita a um grupo de especialistas em informática, consolida-se gradativamente no cotidiano do cidadão comum, trazendo consigo duas características decisivas para a construção da subjetividade contemporânea: a de ferramenta de trabalho (produção) e a de meio de entretenimento (interação).
Crary (2016) identifica nessa confluência uma intensificação da circulação dos meios imateriais (textos e imagens), sobretudo com o processo de flexibilização do trabalho resultante do sistema neoliberal a partir da década de 1980. Com a desregulamentação do trabalho, o sujeito é liberado para estabelecer seu campo de trabalho à distância e potencializar a produção, primeiro por meio do computador e posteriormente por meio deaparatos móveis, tais como notebook, tablets e celulares. Para Crary, essa confluência digital, aliada ao crescimento de uma cultura home office, aumenta a consolidação de ciclos perenes e diminui o compartilhamento de experiências entre indivíduos. Pensar nos meios eletrônicos apenas como ferramentas de comunicação e/ou trabalho, ou seja, como instrumentos plenamente controlados pelo sujeito, é recair em idealismos de uma sociedade que, no fundo, se torna aos poucos refém dos dispositivos midiáticos (Crary, 2016: 55). 
Igualmente, Turkle (2011) corrobora com as ideias de Crary ao analisar o surgimento, nos anos 2000, de uma cultura falaciosa do homem multitarefa e de uma cultura do entretenimento propiciada pela comunicação instantânea e pelas mídias sociais. Dentro das análises psicossociais de Turkle, a construção subjetiva do homem ocorre a partir do momento em que o sujeito projeta e evoca na máquina uma potencialidade humana e sobre-humana de resposta, atendendo assim a dois desejos latentes do sujeito: primeiro, como identifica Crary (2016), a necessidade de otimização de si, colocando em circulação informações e imagens que servem à autopromoção, alimentando desta forma o supergo institucional; e segundo, como aponta Turkle, a necessidade de um relacionamento que não demande as obrigações inerentes aos relacionamentos vis-à-vis.

O terror de nos sentirmos sós, no entanto, tememos a intimidade, experimentamos diversos sentimentos de vazio e desconexão, de irrealidade no eu. E aqui o computador se apresenta como um companheiro que não reclama emoções e oferece uma solução de compromisso. É possível ser um solitário, mas não estar jamais sozinho. Pode-se interagir, sem, contudo, sentir-se vulnerável frente a outra pessoa (Turkle, 1984: 303).

O prognóstico de Turkle, realizado em sua primeira obra, em 1984, aponta para uma subjetividade construída em torno da vulnerabilidade dos relacionamentos reais de um lado, e da potencialidade e proteção propiciada pelos aparatos tecnológicos de outro lado. Isto se confirma em Alone Together (2011), uma de suas últimas obras, que aborda o paradoxo do sujeito contemporâneo, em última instância, o sujeito herdeiro da falácia individualista do homem iluminista. Em outras palavras, o sujeito contemporâneo vive no limiar entre o desejo de sociabilidade e a necessidade de uma solidão protetiva e funcional.
De um lado, o indivíduo tem a possibilidade de estabelecer inúmeras redes de conexões sem incorrer nos riscos das experiências reais. Ele pode até estar sozinho com os aparatos móveis, porém eles evocam uma presença ao transmitir sinais o tempo todo. “Estar sozinho pode começar a aparecer como uma pré-condição para estar junto porque é fácil se comunicar se você se mantém focado, sem interrupções, sobre sua tela” (Turkle, 2011: 155).
Na outra margem, o sujeito experimenta a otimização de si. Paradoxalmente, a comunicação eletrônica liberta o sujeito, ao mesmo tempo em que o aloca em uma esteira de aceleração que não necessariamente significa alta produtividade. O celular “libera” para trabalhar em casa, no passeio em família e mesmo durante as férias; a máquina projeta-se, assim, como uma ferramenta potencialmente produtiva. O problema ocorre quando essa lógica da produtividade é conduzia às experiências interpessoais. “Quando se está cercado por centenas de e-mails, textos e mensagens – mais do que você pode lidar – demandas se tornam despersonalizadas” (Turkle, 2011: 168). Ou seja, tratamos indivíduos como unidades e inconscientemente invertemos os valores de entes vitais, “quando enxergamos as máquinas como vivas o suficiente para nós, nós as promovemos. Se na internet pessoas se sentem vivas o suficiente por serem máquinas maximizadas devido à quantidade de tarefas realizadas, elas simplesmente foram rebaixadas” (Turkle, 2011: 168).
Em um estudo realizado ao longo de dez anos, Cacioppo e Cacioppo (2016) concluíram que uma em cada três pessoas no mundo sente-se sozinha na era da hiperconexão. É interessante notar a partir disso o quanto os aparatos móveis,na condição de próteses miméticas, têm emulado um tipo de experiência interpessoal sem os riscos e exigências dos relacionamentos reais. Ainda assim, o senso de pertencimento de grupo se esvazia na medida em que o sujeito também é colocado por outros usuários da cultura digital como mais uma “janela” diante de várias outras do cibermundo.
Segundo Turkle (2011), as redes de conexões online deturparam a concepção de comunidade. Hoje o desabafo online, seja por textos ou imagens, promove a falsa ilusão de assistência comunitária. Uma das características do sujeito do século XXI é estar constantemente conectado, e a ansiedade é parte estrutural dessa nova forma de conectividade. Ela decorre justamente de uma existência fluida que combina a insegurança pessoal, o excesso de tarefas ininterruptas, a lógica da produtividade e, sobretudo, o imperativo da felicidade.
Por isso, as emoções expostas no mundo online deixam evidentes as vulnerabilidades humanas. “Quando nos tornamos vulneráveis, nós esperamos ser nutridos por alguém” (Turkle, 2011: 235). O desabafo nas redes evoca uma espécie de narrativa ideal que espera ser lida por outro, todavia, elas permanecem apenas no plano ideal. Isto porque esvaziar-se sozinho por detrás de uma tela parece libertador, no entanto, não liberta o sujeito do estado de solidão. 
Logo, o que se vivencia nas redes sociais não é uma comunidade, e sim excelentes cenários para expor as vidas. Ora, se as redes são usadas para liberar ansiedades, acreditando constituir com elas redes comunitárias de confiança, então é preciso questionar-se sobre o que está por detrás desta inversão de valores em que máquinas tornam-se mais confiáveis que os seres humanos.  Por isso mesmo, Turkle argumenta contrário ao determinismo tecnológico, isto é, não é possível culpar as tecnologias pelo atual estado de atrofia das experiências interpessoais, antes, isto é sintomático de uma condição em que as pessoas já estão decepcionadas consigo mesmas.

5. Conclusão

Para além de um estado de isolamento por detrás das telas, ou de um estado blasé, característico do homem moderno das grandes cidades, a solidão do século XXI pode ser entendida como uma experiência estruturada pelas circunstâncias históricas e suas práticas sociais. À luz do materialismo cultural, as manifestações do sofrimento contemporâneo podem ser compreendidas como “relações entre elementos em todo um modo de vida” (Williams, 2011a: 28)
A solidão patológica de nosso tempo, que caracteriza uma condição de sofrimento psíquico, sintetiza, neste sentido, uma categoria da forma cultural, não sendo desprovida de intenções e mesmo de contradições. Conhecida como o mal-estar do século XXI, esta solidão é sintomática, sobretudo, do quadro neoliberal caracterizado não apenas por uma abertura econômica, redemocratização política ou desburocratização das práticas institucionais e flexibilização das leis trabalhistas, pois o próprio indivíduo passa a entender a vida a partir de avaliações de desempenho, isto é, ele reorienta os resultados para uma competição produtiva desenfreada, tendo em vista a lógica da autosuperação, 
Assim, a solidão de nosso século é fundamentada no individualismo voltado para o desempenho, o que corrobora, portanto, com a hipótese de que esse sentimento é estruturado a partir de uma construção social. Em outras palavras, Williams (1979) diria que essa experiência decorre do que é articulado e vivido em sociedade: articulado a partir de sentidos que nos sãos herdados e vivido a partir de novas experiências conflitantes. Neste sentido, a solidão enquanto um sentimento deficitário costuma, por vezes, ser resolvida por meio de aparatos tecnológicos que mimetizam a presença.
Em última instância, o mundo on-line torna-se uma prótese espontânea capaz de emular uma falsa relação, um falso estado de ocupação e, por isso mesmo, uma pseudoagregação. Ou, para usar uma expressão de Turkle (2011), trata-se de uma tecnologia que se apresenta como “arquiteto de nossas intimidades”. De maneira mais ampla, os aparatos móveis e suas facilidades comunicativas, bem como o entretenimento proporcionado por eles, se circunscrevem em uma cultura que gradativamente aprofunda o isolamento na medida em que as inadequações da imagem ficaram mais sensíveis às manifestações discursivas do sucesso. Por isso mesmo a necessidade de fazer-se existir ou ao menos de fazer-se “sentir” no mundo online. 
Tudo isto aponta para uma cultura digital que se configura em práticas sociais que historicamente se desenvolvem em um sistema hegemônico, mas que nunca é determinante. Assim, as contribuições do materialismo cultural e da estrutura do sentimento nos ajudam a compreender as manifestações do homem pós-moderno, na medida em que se considera toda essa nova cultura digital como parte de um processo social mais amplo e não apenas um resultado de determinações tecnológicas.

Bibliografía:

1. Barbier, F. (2018) A Europa de Gutemberg: o livro e a invenção da modernidade ocidental (séculos XIII-XVI). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.         [ Links ]

2. Benjamin, W. (1975) A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, em: Benjamin, W. et al., Textos escolhidos, 9-34. São Paulo, Abril.         [ Links ]

3. Cacioppo, J. T. y Cacioppo, S. Solidão, uma nova epidemia, em: El País, 13 de abril de 2016, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/06/ciencia/1459949778_182740.html         [ Links ]

4. Cevasco, M. E. (2001) Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.         [ Links ]

5. Corbin, A. (1991) O segredo do indivíduo, em: Ariès, P. y Duby, G. (orgs.), História da Vida Privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra, 419-563. São Paulo, Companhia das Letras.         [ Links ]

6. Crary, J. (2016) 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora.         [ Links ]

7. Gramsci, A. (2011) O leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.         [ Links ]

8. Lemos, A. (2008) Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

9. Lemos, A. (2009) Infraestrutura para a cultura digital, em: Savazoni, R. y Cohn, S. (orgs.), Cultura Digital.Br, 135-149. Rio de Janeiro, Azougue.         [ Links ]

10. Londero, R. R. (2010) Base-superestrutura: modos de usar, em: Pereira, A. et al. (orgs.), A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções, 113-140. Guarapuava, Ed. Unicentro.         [ Links ]

11. Lukács, G. (1968) Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

12. Lukács, G. (2003) História e Consciência de Classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

13. Miller, V. (2011) Understanding Digital Culture. London: Sage.         [ Links ]

14. Minois, G. (2013) Histoire de la solitude et des solitaires. Paris: Fayard.         [ Links ]

15. Rouillé, A. (2005) La Photographie: entre document et art contemporain. Paris: Éditions Gallimard.         [ Links ]

16. Sennet, R. (2014) O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

17. Trivinho, E. (2007) Cibercultura e existência em tempo real. Contribuição para a crítica do modus operandi de reprodução cultural da civilização mediática avançada, em: E-Compós, v. 9, 1-17, disponível em: https://www.e-compos.org.br/e-compos/article/view/151         [ Links ]

18. Turkle, S. (1984) El Segundo Yo: las computadoras y el espíritu humano. Buenos Aires: Galapago.         [ Links ]

19. Turkle, S. (2011) Alone Together. New York: Basic Books.         [ Links ] 

20. Watt, I. (1990) A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ] 

21. Williams, R. (1989) Resources of Hope: Culture, Democracy, Socialism. London: Verso.         [ Links ]

22. Williams, R. (1979) Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

23. Williams, R. (2011a) Cultura e Materialismo. São Paulo: Ed. Unesp.         [ Links ]

24. Williams, R. (2011b) O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ] 

25. Williams, R. (2016) Televisão: tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Fecha de recepción: 13-09-2020.
Fecha de aceptación: 06-04-2021.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License