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Enfoques

On-line version ISSN 1669-2721

Enfoques vol.23 no.1 Libertador San Martín Jan./June 2011

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

Ética na contemporaneidade: elementos para uma análise

 

Nilo Henrique Neves dos Reis

Universidad Estadual de Feira da Santana

Correspondencia
Nilo Henrique Neves dos Reis: niloreis@ig.com.br

Recibido: 30 de mayo de 2011
Aceptado: 23 de junio de 2011

 


Resumen

En este ensayo se busca demostrar que la discusión sobre la ética envuelve diversas problemáticas que carecen de la mirada atenta del escritor y al mismo tiempo, por ser polifacética, requiere de la contribución de otras áreas del conocimiento. Por lo tanto, es preciso examinar cuidadosamente el tema y, sobre todo, articularlo a los descubrimientos de la naturaleza humana y al patrimonio filosófico.

Palabras clave: Ética; Violencia; Filosofía; Bioética; Dignidad

Summary

The aim of this essay is to demonstrate that discussions on ethics involve different problematics that lack the careful consideration of the author and, at the same time, require the contribution of other areas of knowledge. Therefore, careful examination of the topic is needed and, above all, an articulation with the discoveries related to human nature and philosophical heritage.

Key words: Ethics; Violence; Philosophy; Bioethics; Dignity


 

Minha disposição é a mais pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a manteiga mais frescos, flores em minha janela e algumas árvores em frente de minha porta; e, se Deus quiser tornar completa a minha felicidade, me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos enforcados nessas árvores. Antes da morte deles, eu, tocado em meu coração, lhes perdoarei todo o mal que em vida me fizeram. Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos - mas não antes de terem sido enforcados.1

A epígrafe freudiana poderia revelar que a violência é um fenômeno íntimo à natureza humana. De certo modo, ela não precisa de ambientes hostis para se manifestar, basta somente que as pessoas liberem seus desejos mais recônditos e, logo em seguida, a livre manifestação hipotética aflora em suas diversas fórmulas. Este aspecto humano parece divergir com a ideia difundida de que o homem é um animal social e cooperativo. Em uma leitura histórica, percebe-se que ela foi, muitas vezes, utilizada para disciplinar a conduta dos homens, a fim de prestar auxílio entre si, para atender aos interesses do dominador ou mesmo moldá-lo a uma sociabilidade. Por tanto, a violência pode ser uma mera demonstração de força ou um instrumento de controle social.

Como foi dito acima, a violência é, ao mesmo tempo, um fenômeno e o resultado de uma característica humana; então, ela é uma realidade do contexto social humano. Por violência entende-se qualquer ação do ser contra o ser. Ela pode se manifestar pela agressão, ora física ora psicológica, em todos os ambientes. Neste sentido, desviar o homem de seu encontro com o seu êxito ou contentamento é uma forma de violência, à medida que todos procuram a satisfação plena, seja física ou intelectual.

Aceitando a ideia de que todos procuram o contentamento completo e são seres sociais, surge uma questão: como conciliar a busca da felicidade individual em uma complexa rede de relações humanas. A co-existência do ser humano se desenvolve a partir de sua relação com o outro. A co-existência é um elemento fundamental para o alargamento do homem em sua multiplicidade de quefazeres e, ao mesmo tempo, um obstáculo. Ao contrário dos outros animais que buscam suprir suas necessidades biológicas, o homem busca a satisfação em diversos campos. Assim, seu júbilo pode às vezes ser obtido pela mera competição entre seus semelhantes para conseguir glória e poder. Este tipo de atitude implica em conseqüências sociais, à medida que para atingir certas propriedades, o homem precisa tratar seu semelhante como coisa, objeto e meio para seus objetivos pessoais. Instala-se, em certo sentido, a violência contra o outro, pois, este, perdeu sua característica mais humana: ser um ser humano!

Quando a violência se torna presente no universo humano, é preciso fazer uma reflexão filosófica sobre o caráter e a índole humana. Ideias de conduta tem orientado as sociedades há tempos, mas é também preciso pensar de modo radical este tema. De certo modo, quando se pensa acerca dos costumes e temperamentos humanos em sociedades, inicia-se uma discussão a respeito da ética.

Nesse contexto, é significativo perceber que a ética tornou-se um vocábulo comum nas discussões atuais. Tal afirmação pode ser verificada pelos títulos propostos em várias áreas do cotidiano humano: Ética da vida, Ética e excelência, Ética do juiz, do promotor, e do advogado, Ética e compromisso social nos estudos olímpicos, Hackers - entre a ética e a criminalização, Homossexuais e ética cristã, Dicionário de ética econômica, Economia e ética, Ética nos negócios, Ética e direito na música, Ética e responsabilidade social nos negócios, Ética e serviço social, Ética na comunicação, Ética no uso dos testes psicológicos, Em busca da dimensão ética da educação ambiental, Ética da sexualidade, Ética da leitura, Ética, trabalho e subjetividade, Ética e decoro parlamentar no Brasil e EUA, O que é ética em pesquisa. Esta pequena relação de títulos comprova a assertiva do tópico frasal. Do mesmo modo, não deixa de ser significativa a maneira que os títulos se relacionam com as mais distintas áreas do cotidiano humano. Esta série de livros mostra que o tema tem sido investigado e, ao mesmo tempo, que é preciso delineá-la. Afinal, fala-se de ética até em locais que transgridem os dispositivos estabelecidos pelas leis.2

Com certeza as causas daquela produção devem interessar ao filósofo e aos demais profissionais que tratam diretamente do ser humano. A discussão acerca da ética é legitima à medida que as pessoas são seres valorativos. O mundo não é indiferente a espécie humana, pois as coisas precisam ser boas ou más, belas ou não, etc. Apesar da dificuldade de pensar do ponto de vista filosófico o tema, parece que seu mais grave problema começa na aplicação, em especial, quando contraria o que a pessoa realmente deseja por não ser, às vezes, socialmente aceita. Não se deve descuidar de outras inflexões ou mesmo de procurar apoio em outras áreas de conhecimento. Afinal, as inclinações humanas são várias.

Parece que uma séria discussão acerca do vocábulo precise de metáforas, imagens para enquadrar as ações humanas. Tal modelo ajuda a criar uma sensação de reflexão universal ao mesmo tempo em que permite uma aproximação entre seres que vivem em diferentes culturas. Esta última palavra é um problema mais sério, mas que será desviado propositalmente nestas linhas. A imagem funciona como uma espécie de ferramenta, no momento em que capta o aspecto particular do indivíduo e reproduz uma forma geral, uma espécie de espelho que reflete a superfície a um quadro geral em que cada um se identifica com o outro. Vários foram os modelos pensados na história, ora dando destaque a certos caracteres da razão, ora aos sentimentos. De certo modo, a proeminência da razão tem se destacado, embora seja possível encontrar perspectivas mistas.

Desde que os filósofos, na Grécia Antiga, começaram a inquirir o tema, a configuração característica dos modelos procurou mostrar que a conduta ética excelsa era atingida quando a disputa entre a razão e as afecções humanas era vencida pela primeira, embora os antigos gregos tivessem tido, em suas epopéias, diversos exemplos dos dois caracteres. Em quase todas as discussões acerca da ética, recorrem-se aos conceitos e usos da razão e em sua antípoda, as afecções (as manifestações mais íntimas do sentimento humano). O passo seguinte é a escolha de imagem que possa representar tais valores. Em geral, a literatura fornece o exemplo.3 Odisseus, por exemplo, é o modelo perfeito daqueles que valorizam a razão. Acontece que um personagem celebrado pela sua excepcional capacidade racional pode também manifestar as mais hercúleas afecções. De fato, dado a natureza humana, tais características podem coexistir em um mesmo ser. O personagem de Odisseus ficou conhecido pela sua industriosidade, sua capacidade de pensar além dos comuns. Deve-se a ele a vitória dos gregos sobre os troianos, com o ardil do cavalo. Sua inteligência criou uma estratégia para "ouvir" o canto das sereias sem cometer ato contra a própria vida. Ele viveu exposto aos maiores perigos e, ao final de sua epopéia, venceu todos os inimigos que cobiçavam suas terras e sua linda mulher. Uma situação significativa deste herói foi pela passagem na caverna do Ciclope Polifemo. Preso na cavidade rochosa e sem chances de locomover a enorme pedra que protegia o lar do gigante, ele recorreu a sua sagacidade para fugir a morte certa, o apetite do gigante. Depois de cegá-lo e escapar em sua nau, toda a prudência foi esquecida pela necessidade de pronunciar seu feito a todos. Ele proferiu seu nome para o ser ferido, o que possibilitou a vítima cobrar ao seu progenitor a vingança contra o desafortunado rei de Ítaca. Com efeito, o mesmo homem capaz de enganar o Ciclope ao se apresentar como "Ninguém" precisava manifestar sua Arete.4 Esta passagem do poema merece destaque nestas linhas, pois, o mais industrioso dos homens, não perdeu a oportunidade de vangloriar-se de sua astuta inteligência.

Não obstante a figura de Odisseus como modelo ético, é preciso considerar que ele é um modelo distante da sociedade atual, à medida que tal sagacidade foi coisa muito má distribuída nessas searas ocidentais. O quadro que se sugere aqui permite ao espectador, colocado em um ponto central da reflexão ética, observar, como se estivesse do alto e ao mesmo tempo, como objeto reapresentado. A imagem sugerida, neste escrito, seria a do Minotouro.

Na mitologia grega, foi um ser fantástico que, com corpo de homem e cabeça de touro, residia em um labirinto na ilha de Creta. Trata-se de uma criatura mitológica que permite um estudo acerca de sua criação, evolução e significado. Portanto, a partir de sua imagem seria possível elaborar uma série de significações com a espécie humana, na medida em que ele é resultante de uma escolha e, ao mesmo tem em que terá que ser escondido devido as afecções naturais mais proeminentes de seu caráter.

A palavra Minotauro se associa a existência e, ao mesmo tempo, ao drama de Minos e seus irmãos Sarpécion e Radamante e, em seguida, ao entusiasmo desatinado pelo presente de um deus a um mortal: o touro de pelagem branca. Denomina-se existência ao fenômeno material que está imanente na criatura, nesse caso, as afecções, mas também ao paralelo do homem em ser um ser constituído de razão e afecções. Conta a lenda que este rei solicitou auxílio ao Deus Posídon em sua luta pelo reino de Creta. Estabelece-se uma relação transcendental entre Deus, homem e a própria criatura, na medida em que foi firmado um pacto entre tais personagens. Tal compromisso revela a existência de ritos, de valores morais que estabelecem uma ordem, um sentido ao universo. O pacto assegura o compromisso que as partes devem observar a promessa para evitar a quebra da harmonia ou mesmo o caos. A gênese do seres do Olimpo denota um conjunto de valores e crenças, aspecto fundamental para definir o homem em sua religiosidade e que, por decorrência, fomentará um código de conduta, um modo de agir de acordo com a norma. De acordo com o mito, Posídon socorre a súplica do pretendente a rei, mas exige dele o suplício do touro após a vitória de Minos sobre seus irmãos. Tomado por grande afeição pelo animal, porém, o rei recusa-se a sacrificá-lo em honra ao Deus.

Esse breve relato do mito, é bastante controverso, no entanto, não deixa de ser significativo. Ao negar-se a cumprir sua parte no trato, Minos tenta impor seu desejo, seus limites à estrutura existencial. Os preceitos organizam as crenças e, por decorrência, a ordem político social das comunidades. A ruptura dos pactos ameaçam a ordem e pode, às vezes, gerar o caos. A fim de que os homens reconheçam o valor real das promessas e a submissão a vontade dos deuses, estes agem sobre o destino de seres imperfeitos. O que teria motivado Minos a não seguir as práticas religiosas acordadas em sua promessa? O fato que suas ações são acionadas, em última instância, por afecções, como superar os irmãos; conquistar o poder e a glória não é devidamente considerado à medida que ele usou a razão para percorrer seus objetivos. É imprescindível superar o local delimitado pelo palco da ação. Tal como o teatro, o tablado de madeira é só um espaço cênico, importante, mas não o único do teatro. É conveniente observar ainda que ele adota uma conduta motivada mais pela sua vontade do que pela razão, pois esta, caso tivesse prevalecido, perceberia que o cumprimento da promessa é parte nodal do acordo, seja entre homens ou deuses. É possível reconhecer que a discussão acerca do valor da promessa, os preceitos da tradição e as normas que harmonizam o imaginário do sagrado mantêm relação sobre os costumes e caracteres dos homens.

Embora se tenha citado alguns livros, no início do texto, sobre ética, de acordo com a tradição, entender-se-ia pela palavra grega ética o mesmo que "costume", sendo, portanto, entendida como um substantivo adjetivado, na medida em que denota uma freqüência dos costumes, um modo de ser, um comportamento habitual. Para o leitor mais insatisfeito, basta sugerir que o vocábulo permite uma multiplicidade de sentidos.5 Desse modo, a melhor maneira de entender o sentido exato do termo seja associando a um filósofo determinado, mas isso não elimina a questão de que o tema é controverso e plástico. Aristóteles,6 por exemplo, por um lado, em Ética a Nicômaco, ensina que a busca da felicidade é o objetivo último do homem racional. Assim sendo, deve conduzir sua existência por meio da moderação. A peculiaridade do homem ou o modo de viver é orientado pela razão. Ela deveria ser utilizada como meio de se evitar os extremos. Por outro lado, Hume,7 no Tratado da natureza humana, escreve que a razão não é mais do que uma escrava das paixões. Embora seja uma temática polissêmica, não se deve desconsiderar que o estudo do fenômeno ético, em última instância, suscita a reflexão acerca da conduta do homem em-si e entre si. A grande discussão à baila é saber se a razão ou afecções devem determinar a ação humana. Com bases nessas considerações, é comum se eliminar a reflexão acerca do que é ética tomando como padrão que certas qualidades devem ser buscadas pelos homens e outras evitadas. Embora seja complexo pré-determinar a dualidade das antípodas, elas existem e são encontradas ao longo da história em todas as sociedades e instituições.

É muito comum associarmos aquelas questão anterior os conceitos de virtudes e vícios a discussão ética. Para o homem ocidental, trata-se de algo comum seguir as primeiras e, ao mesmo tempo, evitar as segundas. A questão parece fácil no papel, mas antes da escolha é preciso determinar quais são as virtudes e vícios e se elas estão de acordo com as inclinações humanas. Afinal, o que significa tais conceitos? Independente da questão valorativa, os seres possuem inclinações mais significativas do que a compreensão daqueles conceitos. Por inclinações se denomina as afecções que as pessoas realmente desejam. Pode parecer contraditório e até mesmo tautológico nominar de afecções o que as pessoas realmente desejam, porém, é significativo frisar a relação que se estabelece entre elas, pois há o recorrente risco da discussão se restringir ao campo teórico. Tal interpretação torna-se problemática, à medida que uma profícua discussão acerca da ética deve ter conotação direta com a aplicação. Ao mesmo tempo, é preciso ter o cuidado de um conceito determinado ser exportado para outros campos de saber com um significado diferente daquele usado aqui. As áreas associadas à saúde, por exemplo, costumam chamar de afecção qualquer patologia que ocorre no corpo humano. Contudo, nestas linhas, denomina-se o termo como também um estado de ser, no qual esse direciona sua vontade mais íntima para algo, às vezes com o apoio da razão e, às vezes, independente dos seus ditames. Desse modo, uma discussão sobre o que seria a ética precisaria de uma investigação profunda acerca do que é uma virtude e um vício. Além disso, tal perquirição necessita manter uma conexão recíproca com a mente humana, a fim de saber quais forças instintivas atuam sobre as escolhas humanas.

Não obstante a discussão do último termo, que envolveria uma nova celeuma acerca dos apetites "normais" e "patológicos", cumpre lembrar que o ser humano nasce na condição de ser para o consumo, ou seja, a relação do homem com a natureza é também uma relação de assimilação de produtos. Trata-se de uma questão complexa, mas a criança desde o nascimento está condicionada à situação de ser desejante. Tal como o Minotauro, seu apetite busca unicamente a satisfação dos seus desejos, embora possa algumas vezes postergar ou abdicar deles por um mais efetivo e viável. A permuta por objetos permitiria afirmar que o ser humano está condenado a opressão dos seus desejos, pois, mesmo quando muda o objeto, ainda é o desejo que busca outra coisa. A criatura, embora seja um ser híbrido, vive de acordo com a característica determinante do seu ser, a parte animal, porém, é preciso lembrar que a fera possui os caracteres da mãe, ou seja, ela guarda ou escraviza uma parte animal dentro de si.

Segundo a lenda, sua mãe tentou educar a criança, porém, foi malsucedida no empreendimento. Uma leitura desta passagem permite pressupor a tentativa de educá-lo de acordo com os costumes da comunidade em que vivia. O processo de educação da mentalidade, a consciência de si e do outro, é longo e, às vezes, controverso. As exigências políticas da classe dominante não procuram demandar as reivindicações dos dominados nem sequer entender as inclinações naturais que terão repercussões sociais em algum momento. A própria ideia de direitos e deveres varia no tempo e em sociedades. Em verdade, o tema é abstruso e precisa ser construído dentro do artifício educacional. Entretanto, a educação apenas possibilita ao ser humano compreender a realidade, visto que a real apreensão está associada a um esforço e este a uma determinada visão social de mundo. A Educação também pode ser reacionária. Não obstante as pedagogias adotadas, é por meio delas que as instituições moldam as ‘condutas aceitáveis’ das pessoas. Este fenômeno é tão natural na espécie humana que parece ser sempre afortunado insistir repetidas vezes no processo educativo dos novos membros da comunidade. De fato, a educação tem sido um remédio e um expediente necessário para o homem se transformar no próprio homem. Somente estimulando o uso da razão, no processo educacional, possibilita-se ao espírito humano desenvolver-se em todas as suas faculdades. A questão é que sempre houve uma enorme preocupação com a razão e, ao mesmo tempo em que houve um quase esquecimento dos sentimentos. Parece que os sentimentos deveriam ser confiados exclusivamente à família, já que o Estado teria a ocupação da educação formal. Se por um lado, a educação auxilia a criatura a se tornar consciente e plástica diante da realidade. Por outro lado, cada ser humano nasce e desenvolve suas afecções sem quaisquer incentivos. Tanto a razão como os sentimentos precisam ser educados, mas por uma ética da alegria, jamais repressora! De modo inverso, desde a tenra idade, é ensinada (para não dizer domesticado) a renunciar a sua característica natural: desejar!

Tal verdade é problemática, pois, desse modo, a ideia de um ser racional e cooperativo sofre um ataque sem igual. É evidente que o tema requer uma análise mais cuidadosa, mas não deixa de ser significativo aceitar a ideia de que os homens possuem certas inclinações naturais, dentre estas, a vontade peculiar de satisfazer seus apetites.

Exposto tal situação, cabe discutir o que seja ética, porém, sem as famosas prescrições notadamente repletas de moralismo proibitivo. Apesar de algumas variantes, o quadro referencial para a análise humana pode ser atribuída à criatura aprisionada sob a cidade de Creta, devorando, de tempos em tempos, vítimas para atender aos seus desejos. O Minotauro possuía a marca humana, visto que era um ser híbrido. A espécie humana é tão híbrida como a criatura. Colocar a discussão sobre as justificativas da decisão livre e responsável é desconsiderar os aspectos naturais e as intricadas influências que elas exercem na virtude artificial do livre arbítrio. A natureza humana pode ser interpretada de muitas maneiras, contudo a maior proeminência é dada à luta da razão para dominar as afecções. Este tem sido o ideal de ser humano difundido por algumas filosofias e, com alguns ajustes, pela doutrina cristã. É evidente que esta tradição agirá de algum modo sobre as reações biológicas do ser humano.  No entanto, elas são naturais. Reprimidas, escondidas sob a pele, ajustam-se aos comportamentos sociais impostos pelas instituições, mas as pulsões estão ali. Acontece que o mundo é saborosamente convidativo aos sentidos, mostrando a todo instante que o exercício da razão só pode muitas vezes permutar o objeto de desejo, pois, em última ação, é o desejo que domina a ação. A natureza humana é mista. Além disso, toda criança é uma espécie de animal híbrido que precisa ser educada a aceitar a vida em sociedade. As crianças são ensinadas, como o Minotauro, a reprimir seus desejos. Não se trata aqui de dar vazão sem limites aos desejos desmedidos dos neófitos, mas sim educá-los em uma forma alegre, sem que para isso seja preciso esconder cada minotauro que venha ao mundo. Os adultos reprimidos de hoje foram as crianças deixadas à sorte do destino para trabalhar seus sentimentos diante de mundo cruel e competitivo. Tal como o ser cretense, eles escondem seus sentimentos nos labirintos da Creta contemporânea, à medida que não conseguiu que a parte selvagem do seu ser prevalecesse sobre a social. O comportamento social padrão é apenas uma máscara cultural, eficiente, mas uma máscara, pois a latência instintiva foi hiper-reprimida. Não obstante, teria um animal sido banido da cidade ou, simplesmente, escondido? Esta pergunta envolve a própria compreensão da ética. O processo que transforma o homem no homem não elimina o minotauro existente em cada um, apenas o coloca debaixo da cidade. Quiçá a cidade seja a pele humana?

A vida em sociedade permite ao ser humano transcender sua própria condição humana. Para isso, é preciso educar os sentimentos com uma proposta mais adequada do que a simples repressão dos instintos. Talvez, a primeira formulação a ser feita é entender que a ideia difundida de que apenas a sociedade tecnológica permite a evolução humana seja excessiva e ideológica. Por trás da excelente ideia de evolução tecnológica (seguida da biológica), ramifica-se uma crença sem fundamentos de progresso contínuo da espécie humana, rejeitando o fundamento de uma natureza imutável, fixa que sempre renasce em cada ser humano que chega a este mundo. De certo modo, a educação e a força física, que reinam nas sociedades, conseguem evitar o caos social.

É evidente que a sociedade cria mecanismos de contenção e normas rígidas para a vida em sociedade. Aliás, sem elas, facilmente, qualquer sociedade sucumbiria.8 Um diagnóstico das propostas utópicas nega-se a reconhecer a situação híbrida do ser humano, o que permitiria deixar latente a exposição à desordem. Deste modo, o reconhecimento dos caracteres humanos mais íntimos precisam se tornar claros para a comunidade. A educação tem sido o caminho mais profícuo para estabelecer padrões de conduta e, ao mesmo tempo, esconder a inclinação humana.

Assim sendo, o ser humano não pode ser deixado à auto-suficiência, como elemento isolado, mas sim como membro ativo de sua sociedade. Um ser de relações, mas de relações complexas que precisa aprender a negociar desde cedo uma série de sentimentos naturais e, ao mesmo tempo, viver em uma sociedade excludente, repressora e mascarada de interesses.

A compreensão da natureza humana é essencial para tornar o homem um ser social ajustado a sociabilidade. A sociabilidade precisa criar condições, por meio da educação, para implementar um tipo de ética capaz de utilizar os sentimentos para formar o cidadão, ao invés de reprimir as afecções sob o risco de esconder a criança híbrida que um dia se tornará o minotauro.

DA BIOÉTICA

Hubo un tiempo en que todo el mundo esperaba casi todo de la filosofía. Era el tiempo en que los filósofos trazaban confiadamente las principales líneas de una imagen del mundo dejando en manos de los físicos la servil tarea de completarla em alguno de sus detalles. Cuando se vio que este enfoque apriorístico fallaba, el físico renunció por completo a la filosofía. Hoy nada Bueno espera de Ella. Tanto más cuanto que la mera palabra "filosofia" suele evocar en el una sonrisa irônica e, incluso, desdeñosa. El físico no tiene tiempo para perder con las palabras hueras.9

Desde que a ciência tornou-se predominante, por meio da tecnologia, a explicação do ambiente que cerca a realidade humana, parece ser decidido exclusivamente por seus saberes. O escritor Leão simplificara tal assertiva ao afirmar que é a ciência que determina o ser e a verdade do real.10 Trata-se de um fato; os fatos são imperantes! Desde que conseguiu a admiração e sucesso, ela tem procurado expandir seu universo de influência em outros saberes, como a religião e a filosofia. Trata-se de um processo natural de hegemonia de uma parte sobre outras, como na política internacional.

Não se pretendia minimizar o advento das ciências nem tampouco questionar os limites deste saber. Na interpretação de alguns cientistas, somente a ciência deve determinar os caminhos do ser. Eis a questão teórica que tornaria o tema convidativo a reflexão, contudo, neste momento, gostaria de pôr em análise a bioética. Conforme escrito antes, não é tarefa deste texto discutir o avanço tecnológico, mas sim a conduta do que seria a discussão correta acerca da ética do fabricante de ciências. Assim, o problema localiza-se exclusivamente sobre o proceder do cientista quando o assunto de sua pesquisa envolve o ser humano. Não obstante o comportamento ético, a questão é saber se os agentes sociais que promovem a discussão acerca da ética possuem uma base referencial e histórica do que seja este tema, a ponto de perceberem que o assunto não pode ser discutido por pintores que desconhecem os elementos envolvidos nesta arte. Uma pintura pode ser realizada por qualquer ser humano que consiga segurar um tufo de pêlos com tinta nas pontas, mas uma reflexão acerca do revestimento das superfícies, as cores, da tonalidade, e das escolas só poderá ser feita com maestria por alguém que conhece a história da pintura. Neste sentido, a filosofia teria um patrimônio a oferecer as ciências, um entendimento que pode ser utilizado como herança com as novas conquistas científicas.

Recorrer à referência filosófica ajudaria a promover novas perspectivas, a exemplo do sujeito da pesquisa, conforme prevê a Resolução 196 de 1996, não pode ser colocado como objeto da pesquisa, à medida que esta última condição introduz a violência na relação ética entre pesquisador e o ser humano, que foi coisificado na pesquisa. Coisifica-se o ser humano sempre que ele não é pensado como ser humano. Deste ponto de vista, houve uma violência. Foi-se dito e escrito que qualquer ação ética que não reconheça o ser humano como ser humano não condiz à compreensão do pleno sujeito. A pessoa para se manter digna em suas relações sociais, precisa manter sua dignidade ativa, torná-lo objeto seria controverso à própria condição. Portanto, o discurso da bioética foi avançado ao reconhecer que a pessoa possui uma dignidade.

Mas o que é dignidade? Ide ao início do termo. Dignitas provêm do idioma latino e sugere algo como valor, nobreza, etc. Em seguida, constate-se que é um substantivo feminino. Além disso, o que mais significa tal palavra? Em uma tentativa malfadada ao sucesso, poder-se-ia afirmar que se trata de uma característica moral que causa respeito a outrem. Em suma, alguém tem algo que é valorizado pelo outro. A civilidade do homem contemporâneo só torna mais profunda as afecções que podem irromper a qualquer instante. De certo que tal dignidade produzida pelo avanço não foi acompanhada por uma mudança radical do ethos, uma ética que permitisse o afloramento dos sentimentos aliada a uma responsabilidade do indivíduo. Algumas vezes a razão pode colaborar, mas o reconhecimento do outro como outro só acontece por algum tipo de afecção: amor, compaixão, solidariedade, etc. De que maneira a dignidade atinge o outro? Talvez, pela solidariedade! É sempre um esforço profícuo entender a origem das palavras e suas multiplicidades em uso. Por isso é importante investigar se a dignidade serve para atribuir um valor a um sujeito ou como um discurso que esconde outros valores de uma sociedade rachada que mascara diferenças sociais gritantes com floreios vocálicos.

Não se deve esquecer que a relação ética do ser humano começa, de fato, em sua consciência, portanto, trata-se de uma questão paradoxal, à medida que ele precisa realizar um esforço dentro de si para se reconhecer como sujeito e, ao mesmo tempo, volta-se para o mundo, a fim de reconhecer o outro como seu semelhante. Tal exercício envolve uma preparação inicial e contínua, visto que o ser humano encontra-se em formação até o final de sua existência. Além disso, esse esforço só será continuo se for de interesse de algum sentimento.

Vê-se no parágrafo anterior duas coisas distintas. Em primeiro lugar, a dignidade precisa ser reconhecida pelo outro. A razão deveria ser o instrumento se soubesse compensar o papel das afecções; mas a sociedade moderna prefere reprimir os sentimentos. Em segundo, estaria o outro pronto, do ponto de vista moral, a reconhecer tal dignidade? O outro só pode ser reconhecido como livre no momento que escapou as misérias materiais do mundo. A ideia de uma ética sem as condições mínimas de vida não são aplicáveis na prática. Diante da ausência de consciência de si (fruto de educação cidadã), fome e da sobrevivência, certos direitos naturais (afecções) se tornam proeminentes. A sociedade coeva esforça-se em transmitir a ideia de harmonia, enquanto na verdade utiliza os mecanismos de controle para encobrir as mazelas do capitalismo. Tal como Minos, em Creta, lança-se o desconforto, as tensões, para os labirintos contemporâneos. Enquanto a harmonia estiver contida a níveis sociais, sacrificam-se os jovens atenienses, assim como se imola, as forças criadoras, a favor da velha ordem.  Vive-se em um mundo em que a interpretação da realidade é polissêmica, competitiva, excludente e paradoxal, porém poucos conseguem compreender este fenômeno como histórico e não natural. Que a vida em-si é complexa, trata-se de um fato. Quer se goste ou não, a vida é fonte de dores.  Não se trata de uma visão pessimista, mas a existência humana é marcada tipicamente pela dor, poucos, porém, estão preparados para lidar com essa situação da existência humana. Viver os sentimentos próprios já se constitui em uma epopéia pessoal, mas a conduta ética se estabelece na pessoa e no seu semelhante. Neste caso, as palavras de Ortega y Gasset continuam apropriadas: eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela não salvo a mim.11 A questão é: quem superaria o solipsismo da realidade para encontrar-se com os outros?

De fato, em nenhuma época ocorreram tantas invenções e produção de saberes do que na contemporaneidade, no entanto, o ser humano continua um enigma para si. Houve desenvolvimento tecnológico, mas, o homem ainda alimenta o minotauro dentro de si; talvez, mais do que antes. A sociedade para manter seu ordenamento precisa aumentar o nível de policiamento e repressão, forçando a criatura a se fechar no seu labirinto. Na medida em que as ciências determinam o real, conforme escreveu Leão, seria conveniente que concebesse os remédios para curar a fera. No entanto, ela não enfrenta a barbárie do ser humano, ao invés, fornece instituições e psicotrópicos para lidar com a fragilidade humana. De certo modo, as afecções são parte deste ser híbrido, à medida que foram abandonadas à margem das políticas ou tratada de modo marginal pelos agentes públicos. Por que tal situação controversa persiste? Afinal, o que é a ciência?

Após as indagações deixadas acima, não se deve buscar a gênese das ciências para saber que os olhos ficam abaixo da testa no ser humano, mas sim colocar a seguinte pergunta: conhecer o homem e o mundo não é outra coisa senão conhecer a profunda essência do ser humano? Este saber se volta para o ser humano ou se volta contra o ser humano? Se existe uma criatura contida em cada ser humano, as ciências deveriam tratar o problema de modo sério, procurando entender como a ordenação reprime ou que mecanismos precisam ser criados para que a sociedade seja verdadeiramente harmônica. Na contramão das ações, o discurso científico é do contínuo progresso, pois o desenvolvimento tecnológico propicia as condições ideais para a existência humana.

Aceitando a ideia de que se vive na era das ciências, não deixa de ser significativo pensar que:

nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos e diversos quanto a nossa. Nenhuma época apresentou tão bem e sob forma mais tocante seu saber sobre o homem. Nenhuma época conseguiu tornar este saber tão pronto e facilmente acessível. Mas nenhuma época também soube menos o que é o homem. Em nenhuma outra o homem apareceu tão misterioso (Heidegger apud Jolif).12

Jolif utilizou a epígrafe de Heidegger, em 1950, e, embora os avanços tecnológicos tenham se multiplicado, os mistérios humanos ainda continuam na mesma situação. Vive-se na ilusão das ciências, mas também no silêncio do ser humano. Afinal, as ciências podem descrever todos os processos biológicos da vida humana, podem explicá-las com vários argumentos "comprovados cientificamente", porém, o sentido da vida é, em última instância, uma escolha existencial que foge ao controle das ciências estatísticas. Parece que quanto maior a presença das ciências, maior a distância do que seja a reflexão pelo sentido da vida, pois, ela possui uma limitação, um obstáculo a própria concepção de realidade, embora, o discurso científico define o que é o ser e o que é a verdade da realidade (Leão) na contemporaneidade.

Afinal, o que é a realidade? Esta pergunta é complexa e está entrelaçada com outro problema não menos sério: o que é a verdade? A reflexão acerca da verdade envolve tantas dificuldades que começariam com a sua história, porém, para futuros prolegômenos filosóficos, servem as palavras do escritor espanhol Ortega e Gasset: "uma verdade não é uma verdade porque se deseja; mas uma verdade não é descoberta se não se a deseja e porque se deseja se a busca".13

O parágrafo acima mostra como é complexo tratar superficialmente temas que são recíprocos. Não é possível discutir um tema filosófico sem adentrar em diversas reflexões ao mesmo tempo. A própria discussão acerca da ética mostra que é preciso eliminar carimbos que evitam as fronteiras com outras áreas de conhecimento. Um ser humano é muito mais do que carbono ou água com reações químicas, ele é um ser estético e axiológico. Ele pode ser conduzido em massa, mas pode, sem explicação alguma, permutar suas escolhas. A escolha é outra característica do ser humano. Independente do grau de valorização das ciências, ele é, em algum grau, quem decide que as ciências são os determinantes da realidade. Um leitor apressado pode está aguardando a crítica hostil à elaboração científica e ao projeto de definir o que seja a realidade. No entanto, não são estes aspectos que se deve considerar nestas linhas.

Em primeiro lugar, este texto não pretende ser um laudator temporis acti (louvadores do passado), pelo contrário, reconhece a presença das ciências na contemporaneidade como profícuas e sabe que o pleno desenvolvimento do ser humano dar-se-á em concomitância com este saber. Reconhece o significado e o papel das ciências para transformar o ser humano em tudo aquilo que ele poderia vir-a-ser, pois, definitivamente, a história mostra que esse ser é camaleônico, podendo ser um deus ou demônio para si e para os outros. Afinal, a existência é sempre recolocada de modo existencial para este ser.

O segundo aspecto a considerar é que o passado é uma fonte de conhecimento inestimável. Desse modo, é conveniente tê-lo à mão por um motivo: somos humanos. De certo modo, o sucesso e o insucesso da espécie dependem desta lembrança. Da mesma forma que os sonhos da razão não podem alcançar as nuvens, o descuido com as afecções podem despertar o minotauro, ou seja, é preciso encontrar um caminho em que o pleno desenvolvimento das potencialidades não precisem reprimir o ser humano.

O terceiro aspecto que poderia ser posto na ordem do dia é que as tentativas de reprimir as afecções pelo uso exclusivo da razão tem permitido que a criatura de Minos renasça constantemente na história. Em verdade, é preciso tomar consciência da condição híbrida.

Talvez seja o momento de se pensar radicalmente em um caminho para se educar o ser humano, mas um caminho que se atenha às reais necessidades deste ser. Um caminho em que a repressão não seja o expediente mais profícuo nem o individualismo seja a bandeira da dignidade. É preciso investir na emancipação14 do ser humano. Talvez este fosse o momento de se pensar em outro modelo ético, um que procure conciliar os sentimentos e a razão e não o contrário. CANDIDO15 defendeu algo como uma ética da alegria. Talvez seja preciso abandonar a ideia de dignidade do ser humano e começar a se pensar em ideias que o tornem livre e ao mesmo tempo responsável socialmente, nesta ordem. Afinal, aquela é fruto da razão; esta seria irmã das afecções. Uma pedagogia dos sentimentos. Tal empreendimento que perpassa pelo processo educacional, mas precisa tornar o ser liberto das superstições.

Deste modo, é preciso afastar as superstições acerca da razão, o mito das afecções e o discurso ideológico das ciências. Se as ciências cobrem o universo humano com seu manto hegemônico, é preciso clarificar que a totalidade do ser se difunde em múltiplos caminhos, sendo o mundo dos sonhos também fundamental para a espécie. Portanto, é preciso retirar a formulação de uma conduta ética coercitiva e fundá-la em uma consonância realmente eficaz.

O discurso científico pretende ser decisivo acerca da realidade. Ancorado na ideia de que todos os campos do fazer humano devem se orientar pela busca do progresso e pelo uso exclusivo da razão. De certo modo, a bioética foi mais um fruto das ramificações das ciências. Porém, de modo controverso, este novo saber entendeu que o ser humano não é somente um ser biológico, mas que precisa ser respeitado em sua dimensão ética, por meio de sua dignidade. Contudo, tal leitura ainda é tímida.

Se as ciências colocassem a Filosofia inserida no processo de desvelamento do ser humano na contemporaneidade, e não a deixando à margem do seu próprio processo de edificação perceberia que ela tem sido o palco da razão desde a Grécia Antiga. Até mesmo autores que fizeram a apologia do anti-racionalismo sustentaram suas afirmações dentro de um discurso coerente e compreensivo para a razão e, talvez, por isso falharam ao propor uma ética que não soubesse pensar nos sentimentos em consonância com a razão. Assim, a filosofia não deve ser entendida como uma ameaça a algum tipo de louvador do passado, mas como um parceiro, uma aliada da razão.

A razão tem se mostrado um elemento profícuo para interpretar os fenômenos do mundo e mostra-se eficiente para transformar a natureza. Não obstante, a literatura pode prevenir a espécie quando repousa sua esperança exclusivamente neste elemento, pois

O ser humano é sempre o ser humano, e a inteligência de que eventualmente dispõe pouco ou nada importa, quando a paixão o devasta e os limites da humanidade o impelem à ação.16

As palavras do jovem Werther para Alberto, personagens deste romance de Goethe, refletem sobre a submissão da razão aos sentimentos. Em uma época em que as ciências tem a primazia do saber verdadeiro, talvez fosse significativo promover diálogos entre conhecimentos, principalmente quando existe um patrimônio da reflexão ética na filosofia e, em especial, as ciências se desdobram para formular uma ética da pesquisa científica envolvendo seres humanos.

Se ao final do texto o leitor tem uma sensação de que a ética precisa ser perscrutada de modo cuidadoso, pois ela se envolve em tantas outras problemáticas que precisam ser alimentadas com contribuições de vários saberes, este texto chegou ao seu objetivo. Nesse sentido, não deixem que a soberba razão científica continue alimentando a criatura sob pele humana ou, em breve, teremos títulos superficiais como éticas da bioética.

NOTAS

1 S. Freud, O mal-estar na civilização, trad. Durval Marcondes (São Paulo: Abril Cultural, 1978), 166.         [ Links ]

2 De acordo com o autor, "até no mundo da contravenção, bicheiros e traficante falam de ética em referência a lisura de suas atividades". A. Valverde, "Bioética e aporias da tecnociência", en II Dia da Bioética: desafios éticos (Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2005), 11.         [ Links ]

3 É preciso notar que a escolha do ícone relaciona-se com a justificativa valorativa.

4 A palavra "arete" poderia ser traduzida por excelência, nesse sentido, algo que o homem traz consigo. Em conseqüência da influência cristã, evita-se traduzi-la como virtude a fim de que não seja confundida ou assemelhada aos conceitos cristãos. Existem vários comentadores que se debruçaram sobre a questão. Nesse caso, ver em W. Jaeger, Paidéia: a formação do homem grego (São Paulo: Martins Fontes, 1995).         [ Links ] 

5 Chaui aponta uma diferença semântica que pode ocorrer com a tradução da palavra Éthos. Ver em M. Chaui, Convite à filosofía (São Paulo: Ática, 2009), 310.         [ Links ]

6 Aristóteles, Ética a Nicômacos, trad. Mário da Gama Kury (Brasília: UnB, 1992), 24.         [ Links ]

7 David Hume, Tratado da Natureza Humana, trad. D. Danowski (São Paulo: Herder; USP, 2001), 451.         [ Links ]

8 Freud, O mal-estar na civilização, 164.

9 M. Bunge, Filosofía de la física. Trad. José Luis García Molina. (Barcelona-Caracas-México: Ariel, 1982), 11.         [ Links ]

10 Emmanuel Carneiro Leão, Aprendendo a pensar (Petrópolis: Vozes, 1977).         [ Links ]

11 José Ortega y Gasset, Meditações do Quixote, trad. Gilberto de Mello Kujanwski (São Paulo: Livro Ibero-Americano, 1967), 52.         [ Links ]

12 J. Y. Jolif, Compreender o homem: introdução a uma antropologia filosófica (São Paulo: Herder; USP, 1970), 15.         [ Links ]

13 José Ortega y Gasset, Que é filosofia? trad. Luís Washington Vita (Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1971).         [ Links ]

14 Em conversas com o jornalista e estudante de Filosofia Francisco Antonio Marques Viana, tivemos a oportunidade de "ouvir" e conversar com ele sobre o tema. Estamos no aguardo da sua publicação.

15 DVD Ética: "A arte de viver/ A culpa dos reis", em Laser D [CD-ROM] (São Paulo: Culturamarcas, 2005).         [ Links ]

16 J. W. Goethe. Os sofrimentos do jovem Werther, trad. Marion Fleischer (São Paulo: Martins Fontes, 2000), 63.         [ Links ]

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