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Revista iberoamericana de ciencia tecnología y sociedad

versión On-line ISSN 1850-0013

Rev. iberoam. cienc. tecnol. soc. vol.7 no.21 Ciudad Autónoma de Buenos Aires ago. 2012

 

DOSSIER-ARTÍCULOS

Átomos na política internacional

Atoms in international politics

 

Ana Maria Ribeiro de Andrade *

* Ana Maria Ribeiro de Andrade é pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/ MCTI), Rio de Janeiro, Brasil. Correio eletrônico: anaribeirodeandrade@gmail.com.

 


Resumen: Este trabalho examina três temas da história da energia nuclear no Brasil de  fundamental importância para a realização de estudos comparados e compreensão da  dinâmica das relações políticas entre o Norte e Sul. O primeiro tema, a compra e  construção de reatores de pesquisa, inclui a análise do programa Átomos para a Paz e  a Guerra Fria; a criação dos institutos de pesquisa do setor; e os acordos de cooperação  para uso civil da energia nuclear firmados com os Estados Unidos. O segundo, os  reatores de potência, aborda a controvérsia sobre a escolha do tipo de reator e a  aquisição de um reator PWR da Westinghouse; a interrupção do fornecimento de urânio enriquecido pelos Estados Unidos; e o pragmatismo político que resultou no acordo  nuclear teuto-brasileiro e construção de usinas nucleares em Angra dos Reis. O último  tema, o desenvolvimento das tecnologias do ciclo do combustível, sintetiza as  estratégias e realizações que resultaram na autonomia nuclear do país; as pressões  internacionais; as alianças entre os países do continente e os acordos de não  proliferação nuclear dos países desenvolvidos. Mostra que o estudo da cooperação tecnocientífica é essencial para entender as políticas externa e comercial dos países.

Palavras-chave: Átomos para a Paz; Tecnologia nuclear; Acordo de cooperação técnico-científica; Relações internacionais

Abstract: This work examines three points of the history of nuclear energy in Brazil which are fundamental for comparative studies and for the understanding of the dynamics of the political relations between the North and South. The first point, the acquisition and the construction of research reactors, includes an analysis of the program Atoms for Peace and the Cold War, the creation of research institutes and the cooperation agreements for the civilian use of nuclear energy signed with the United States. The second point, focused on power reactors, discusses the conflicts in the choice of the kind of reactor and the acquisition of a PWR from the Westinghouse Electric Company, the interruption of supply of enriched uranium by the United States, the political pragmatism that led to the German-Brazilian agreement and the building of the Angra dos Reis nuclear plants. This last point, the development of the fuel cycle technologies, synthesizes the strategies and achievements that led to the nuclear autonomy, the international pressures, the alliances between the countries of the continent and the non-proliferation agreements of the developed countries. This work concludes that the study of technoscientific cooperation is essential to understand the foreign and commercial politics between countries.

Key words: Atoms for Peace, nuclear technology; Scientific and technical cooperation agreements: International relationships


 

Introdução

Tornou-se emblemático na história da energia nuclear do Brasil o princípio das "compensações específicas", conjetura defendida pelo representante da Marinha nas reuniões da Comissão de Energia Atômica, realizadas no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, entre 1946 e 1948. O autor dessa tese, o futuro almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, valia-se da retórica para jogar com as remotas possibilidades de os Estados Unidos e o Brasil atuarem de forma complementar no comércio de tecnologias e minerais utilizados na produção de energia nuclear. Em linhas gerais, ele propunha que os países exportadores de minerais físseis e férteis, além de venderem a matéria-prima pelo valor intrínseco, deveriam ser compensados por meio de transferência da tecnologia nuclear. O Brasil era um fiel aliado dos Estados Unidos, no entanto, como seu representante naquele fórum defendia a gestão internacional das reservas de tório e urânio -para dificultar o desenvolvimento do ciclo do combustível nuclear em outros países-, Álvaro Alberto registrou que o Plano Baruch significava restrição à soberania nacional.

O antagonismo entre grupos e instituições do Estado marcou o início da história da energia nuclear no país, mas foi a aliança entre militares e cientistas que garantiu o sucesso da criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), em 1951, e de outras instituições que protagonizaram o desenvolvimento da tecnologia do ciclo do combustível.1

A articulação vitoriosa para criar o CNPq ocorreu no governo do general Eurico Dutra (1946-1951) devido ao papel aglutinador e à obstinação do almirante Álvaro Alberto pela energia nuclear (Andrade, 2001). Além dos cientistas estarem empenhados em fazer ciência para superar o atraso crônico da nação, os militares brasileiros atribuíam um papel estratégico à energia nuclear na guerra, defesa e segurança nacional. Por isso, além da desproporcional presença de militares na direção do CNPq, a maior parte dos investimentos se concentrou na montagem da infraestrutura para o setor nuclear, na época estreitamente mesclado ao campo da física, razão pela qual um cíclotron tinha muita importância (Andrade & Muniz, 2006).

Com desmesurado otimismo, os generais do CNPq desprezavam os custos financeiros e entreviam a possibilidade de rápida e fácil aplicação, isto é, do país produzir radioisótopos, possuir reatores de pesquisa e centrais nucleares. Levantavam as bandeiras, desabonavam os céticos e protestavam nos fóruns nacionais, mas se rendiam diante das exigências dos Estados Unidos em troca de qualquer promessa de transferência de tecnologia. Dominar a tecnologia nuclear era prioridade da política brasileira, desde o começo da Guerra Fria.

A opção relegou o financiamento da ciência ao segundo plano, intensificando as disputas internas no CNPq, o parlamento dos cientistas, onde os representantes das disciplinas tinham poder para distribuir os recursos financeiros até mesmo entre grupos e colegas concorrentes (Andrade, 1999: 107-142). As divergências entre os cientistas, somadas às pressões externas contra a resistência do CNPq à exportação de monazita aos Estados Unidos durante o governo de Getúlio Vargas (1951-1954), levaram Álvaro Alberto a criar a Comissão de Energia Atômica (CEA) dentro da estrutura do CNPq (Andrade, 2010: 136-142). Embora sem o estatuto de uma comissão deliberativa, a CEA foi responsável pela criação do Instituto de Energia Atômica (IEA) -hoje, Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN)-, por meio de um convênio entre o CNPq e a Universidade de São Paulo (USP), a fim de viabilizar a compra de um reator de pesquisa pelo programa Átomos para a Paz.

A criação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), em 1956, decorreu de uma estratégia envolvendo o presidente da República Juscelino Kubitschek (1956- 1961) e um grupo de militares interessados em controlar o setor. Aproveitaram-se da crise no CNPq que deu origem a numerosas denúncias na imprensa e no Congresso Nacional, minando as relações pessoais e interinstitucionais, e que estava polarizada, de um lado, entre o Conselho de Segurança Nacional (CSN), Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) e CNPq e, do outro lado, o Ministério das Relações Exteriores (Andrade & Santos, 2010).

A CNEN absorveu a Comissão de Exportação de Materiais Estratégicos (CEME), do Ministério das Relações Exteriores, e a Comissão de Energia Atômica do CNPq, onde provisoriamente se instalou. Os acordos de cooperação técnica -e.g., o Programa Conjunto de Cooperação para o Reconhecimento dos Recursos de Urânio, firmado com os Estados Unidos em 1955, e a construção de usina de beneficiamento de urânio com a Societé des Produits Chimiques des Terres Rares-, processos administrativos e projetos em andamento no CNPq para o setor foram transferidos para a CNEN. Depois disso, acabaram as denúncias na imprensa. Nem o criticado programa de prospecção assinado entre o CNPq e o US Geological Survey, renovado com a CNEN em 1957, foi mais noticiado. Os resultados também não foram cobrados; nenhuma grande jazida de urânio ou tório teve a descoberta confirmada antes da criação da Nuclebrás, empresa que atuou entre 1974 e 1988.

A CNEN se manteve discreta no cenário político e longe da sociedade, exceto durante o período de reestruturação, que correspondeu ao governo João Goulart; nas polêmicas em torno do funcionamento e depósito do lixo radiativo das usinas de Angra 1 e 2, e construção de Angra 3; nos períodos de crise com os Estados Unidos; e, notadamente, após o acidente com o césio-137 em Goiânia e a revelação dos programas militares secretos para enriquecimento de urânio.

No plano da cooperação internacional a dependência dos Estados Unidos se manteve firme até 1961, quando foi trocado pela França via o Commissariat à l'Énergie Atomique. Assistiu-se o breve retorno Estados Unidos em 1965, que surpreendentemente não chancelaram dois acordos de cooperação para uso civil da energia nuclear, que propuseram em 1965 e 1972. A aproximação da República Federal da Alemanha, desde 1969, refletiu o pragmatismo da política externa brasileira e alimentou as duras pressões norte-americanas.

Este trabalho se concentra na análise de três temas fundamentais da história da energia nuclear no Brasil, cujos atores principais foram o CNPq, a CNEN e suas empresas subsidiárias, os institutos de pesquisa do setor, o Ministério das Relações Exteriores, a Marinha e os Estados Unidos. Sem pretender reconstruir todos os eixos sobre os quais giraram a política nuclear brasileira, tais como as atividades dos  institutos de pesquisa, a prospecção mineral e a formação dos especialistas, busca- se na História os elementos para analisar os temas eleitos na dinâmica da política relações internacionais.

Assim, aborda a montagem de reatores de pesquisa, as controvérsias sobre o tipo de reator de potência, a construção e desempenho das usinas nucleares instaladas em Angra dos Reis, e remete ao desenvolvimento das tecnologias sensíveis e consequentes questões internacionais envolvendo a Agência Internacional de Energia Atômica e, notadamente, o protagonismo dos Estados Unidos. Muitos aspectos são inexplicáveis pelo sigilo que envolve as informações sobre energia nuclear e política exterior; outros são repletos de mistérios, porque o processo de desenvolvimento da tecnologia de enriquecimento do urânio traduziu interesses de militares, cientistas, tecnocratas e políticos por caminhos não revelados.

1. Os reatores da Guerra Fria

O presidente Dwight Eisenhower anunciou à Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1953, a realização de um programa dos Estados Unidos para o uso pacífico da energia nuclear e propôs a criação de um organismo internacional encarregado das questões correlatas a ser administrado pela ONU. Evidente oportunismo político, o programa objetivava desviar a atenção da opinião pública americana e internacional do uso militar do átomo e, em particular, do crescimento deliberado do arsenal de armas nucleares dos Estados Unidos. Assim, o programa Átomos para a Paz foi concebido como um instrumento de propaganda e de política externa, ao forjar uma imagem não belicosa da nação hegemônica no mundo ocidental (CNEN, 1959). A estratégia consistia na assinatura de acordos bilaterais de cooperação científica para venda de reator de pesquisa e combustível para o seu funcionamento, sob o mais rígido controle da US Atomic Energy Commission (AEC).

Mudava-se de tática na Guerra Fria, depois que os Estados Unidos perderam o  monopólio das armas nucleares e a supremacia tecnológica para a União Soviética, que testou primeiro a bomba de hidrogênio. A estratégia consistia na banalização das armas nucleares e na popularização dos benefícios da energia nuclear para a agricultura, saúde e bem-estar social. Ao estimular a pesquisa em física e engenharia nuclear nos países signatários, os Estados Unidos também poderiam controlar o desenvolvimento das áreas. Tratava-se de uma arma na guerra contra os comunistas na disputa pela liderança mundial (Ordonez & Sánchez-Ron, 1996: 195) 2 O risco político era pequeno e o empreendimento era atraente para as empresa privadas americanas.

Partia-se de dois pressupostos. Primeiro, não havia mais segredo sobre o conhecimento científico que levou à fissão nuclear e as pesquisas aplicadas nesse  campo se encontravam em estágio avançado no Reino Unido e na União Soviética, e intermediário no Canadá, Noruega e França. Segundo, os Estados Unidos não mais detinham o monopólio da tecnologia da bomba e, o pior, estavam perdendo a batalha da supremacia tecnológica para a União Soviética. Embora poucos países dominassem a tecnologia de enriquecimento de urânio ou a produção de plutônio, era preciso impedir a ampliação desse número e o crescimento do bloco comunista. Logo, o monitoramento dos países possuidores de minerais radioativos era crucial retardar a conquista da autonomia.

A outra forma de coerção consistia em promover (leia, controlar) as investigações no campo das aplicações pacíficas da energia nuclear na chamada periferia da ciência, visto que ainda renderiam vantagens no comércio internacional. Esta prática assegurava o mercado para os reatores de pesquisa fabricados nos Estados Unidos, minando a capacidade de negociação dos compradores com a União Soviética e Grã-Bretanha.

Uma vez que os Estados Unidos investiam maciçamente em pesquisas militares, e. g., na construção de reatores a urânio enriquecido para submarino nuclear, poderiam vender o mesmo tipo de reator para as centrais nucleares de geração de energia elétrica. Por esta razão, Eisenhower sinalizou na ONU que ocorreriam modificações na Lei McMahon (Andrade, 1999: 48) para diminuir as restrições políticas, acelerar a inovação tecnológica e aumentar a competitividade, i.e., ganhar mercados. Um bom pretexto para um real motivo: atender aos interesses das indústrias fornecedoras de insumos e materiais para o setor, e controlar os próprios aliados, através da rigorosa fiscalização das atividades pela Atomic Energy Commission.

Para o físico Isidor Rabi -presidente do General Advisory Commitee da AEC- uma pré-condição para o êxito do programa Átomos para a Paz era a realização de um congresso científico internacional, sob os auspícios da ONU. Assim, ele e o físico inglês John Cockroft elegeram os "reatores nucleares e suas aplicações" tema central do evento realizado em Genebra, em 1955 (Silva, 2010; Andrade, 2006: 77-80). Uma maneira dos países hegemônicos no mundo da ciência demonstrarem sua superioridade, conhecerem o estágio das pesquisas em outros e se apropriarem de resultados inéditos. Afinal, o desenvolvimento científico noutros países era crucial para o progresso da ciência norte-americana.3

A 1a Conferência para Uso Pacífico da Energia Atômica realizada em Genebra foi essencial para o programa Átomos para a Paz ao impedir que países ingressassem na chamada "era atômica" de maneira independente ou através da União Soviética. O clima de otimismo, a troca de informações entre os participantes e a presença de representantes de todos os países signatários de acordo bilateral de cooperação técnico-científica em 1955 resultaram da habilidade da diplomacia americana. Eram vinte países potenciais compradores de reator de pesquisa, mas nem todos tiveram o mesmo tratamento.

Canadá, Reino Unido, Suíça e Bélgica foram privilegiados. Os dois primeiros, parceiros no Projeto Manhattan, assinaram acordos semelhantes sobre o uso civil da energia nuclear em 15 de junho, e o Reino Unido assinou um segundo acordo para a "cooperation regarding atomic information for mutual defense purposes" (Ordonez & Sánchez-Ron, 1996: 198-199). A cooperação com o Canadá estava alicerçada no interesse americano pelas reservas de urânio sob o controle do governo. A Bélgica tinha grandes reservas em colônia na África, no Congo, que fornecia urânio ao Reino Unido e aos Estados Unidos desde 1940. Pela fidelidade durante a Segunda Guerra Mundial e o posterior suprimento de grandes quantidades de urânio, ambos se prontificaram a auxiliar o programa de pesquisa e desenvolvimento nuclear belga, conforme registrado no Art. 1o do acordo bilateral ajustado em julho de 1955 (Ordonez & Sánchez-Ron, 1996: 197). Na prática, a Bélgica poderia receber informações sobre a tecnologia de reatores de potência se quisesse construí-los em seu território e em colônias, Congo Belga e Ruanda-Urundi. Diferente dos termos dos acordos assinados com o bloco dos outros dezesseis países, o documento assegurava à Bélgica: assistência técnica da AEC sobre componentes, materiais, engenharia e física de reatores, e a respeito de segurança no ambiente; autorização para técnicos belgas, depois de rigorosamente selecionados, acompanharem a construção e operação do primeiro reator PWR (na fábrica da Westinghouse Electric Company); e a obrigação da AEC transferir informações sobre projeto, construção e operação de reatores pressurizados a água leve ou pesada para fins industriais ou comerciais. Em contrapartida, a Bélgica se obrigava a não fornecer para nenhum outro país urânio que pudesse ser usado para fins militares, exceto aos Estados Unidos e Reino Unido, que também deveriam ser comunicados sobre qualquer transação envolvendo tório, urânio e outros materiais fissionáveis.

O acordo com a Suíça teve uma vantagem extra para os Estados Unidos, que lhe venderam um reator usado, em troca de 180 mil dólares e da neutralidade política, cuja posição geográfica fazia daquele país o lugar ideal para encontros internacionais nos conturbados anos da Guerra Fria. Ou seja, venderam o equipamento exibido durante a 1a Conferência de Genebra para fazer autopromoção, eficiente marketing político e que tantas atenções despertara.

Os termos e as condições do Acordo de Cooperação para Uso Civil da Energia Atômica assinado entre o Brasil e os Estados Unidos, em 3 de agosto de 1955, eram idênticos aos quinze outros documentos firmados entre 10 de junho e 11 de agosto do mesmo ano, na seguinte sequência: Turquia, Israel, China, Líbano, Colômbia, Espanha, Portugal, Venezuela, Dinamarca, Filipinas, Itália, Argentina, Brasil, Grécia, Chile e Paquistão. Todos enviaram representante a Genebra, no entanto, não há registro de trabalho do Líbano, Chile, Colômbia, Turquia e Venezuela (Andrade & Silva, 2010). A venda de pequenos reatores e o fornecimento de urânio enriquecido em até 20% (sem exceder a 6 kg de urânio contendo U235 que, depois de usados, tinham de retornar para a AEC de forma inalterada) teve resultados diferentes e não se concretizou em alguns casos.

Sem as barreiras originais da Lei McMahon, havia expectativas no meio empresarial americano de ampliação dos acordos de 1955 para possibilitar a venda de projeto e de reatores de potência no mercado internacional. Na visão de um Revista contemporâneo, não podiam perder tempo: "depois da Guerra, com o aparecimento da bomba atômica, que veio mostrar de maneira dramática a importância da energia na fissão nuclear, todos os países se interessavam pelo desenvolvimento da energia nuclear" (Cadernos, 2006: v. 16, 7). Um dos delegados da União Soviética afirmou na Conferência de Genebra que o custo de produção do kWh em usina nuclear de 100.000 kW poderia vir a se equiparar ao custo do kWh de uma usina termelétrica a carvão com igual capacidade. Outros soviéticos, sem embargo, não esconderam que o preço de venda do kWh de sua primeira usina nuclear de 5.000 kW era superior aos preços médios do kWh de energia elétrica produzida em grandes termelétricas a carvão (Guilherme, 1957: 214).

Para fazer propaganda da contribuição do programa Átomos para a Paz e dos benefícios da energia nuclear, uma exposição itinerante patrocinada pela AEC correu o mundo: Japão, Paquistão, Líbano, Grécia, Tailândia, Iugoslávia, Espanha e outros países. No Brasil, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) promoveu o evento nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e em outras capitais, em 1961. A exposição "Átomos em Ação" promovia a imagem dos Estados Unidos associada às vantagens da nova fonte de energia, ao divulgar informações sobre suas aplicações na pesquisa científica, indústria e saúde. O evento foi um sucesso de público e para a popularização da ciência (Manchete, 1961: 23).

A exposição recorreu a imagens e argumentos para distanciar a ciência da guerra. Ciência e cientistas eram apresentados como internacionalistas, universais e promotores da paz. A energia nuclear era a porta de entrada para o mundo da abundância. A ciência para a paz construída em 1955 idealizava a atividade científica e seu papel na sociedade, assim como a importância de uma ciência direcionada do centro produtor para os países da periferia científica e política.

1.a. O Brasil na era atômica

O programa Átomos para a Paz foi oferecido pessoalmente por Eisenhower ao embaixador brasileiro em Washington, em 31 de maio de 1955, conforme registros fotográficos. Em meados de julho, foram firmados dois acordos bilaterais: o Programa Conjunto para o Reconhecimento dos Recursos de Urânio no Brasil e o Acordo de Cooperação para Usos Civis da Energia Atômica. A discussão de ambos envolveu uma delegação de especialistas americanos, majoritariamente constituída por membros da AEC, e, do lado brasileiro, uma Comissão Especial nomeada pelo presidente da República Café Filho, constituída por membros da Comissão de Energia Atômica do CNPq (CNPq, 1956: 7 e 28). Posteriormente, o Estado-Maior das Forças Armadas considerou os acordos de 1955 desastrosos para a política nuclear brasileira, lesivos aos interesses nacionais e reflexo da parcialidade do Ministério das Relações Exteriores (Guilherme, 1957: 195).

Durante o Simpósio sobre a Utilização da Energia Atômica para Fins Pacíficos no Brasil, em 1956, o físico Mario Schenberg fez contundentes críticas a seus colegas Marcello Damy de Souza Santos e Joaquim Costa Ribeiro, ambos integrantes da Comissão Especial. Argumentou que os acordos sobre prospecção de urânio e compra de um reator experimental criaram desconfianças: a versão firmada e discutida pela Comissão Especial foi redigida nos Estados Unidos, não sofreu alterações e já havia sido divulgada na imprensa; os Estados Unidos exigiriam contrapartidas ao governo brasileiro por outras vias e a qualquer tempo; os Estados Unidos estavam atrasados no campo dos reatores; e a Inglaterra e a União Soviética não foram consultadas para cotação de preço de reator e obtenção de outras informações técnicas (Cadernos, 2006: v. 15, 32-45; Guilherme,1957: 172-188).

Schenberg estava certo. O acordo para a venda do reator e arrendamento do combustível era idêntico ao firmado com outros quinze países; em 1956, a Comissão de Exportação de Matérias Estratégicos do Ministério das Relações Exteriores (CEME) firmou o 4o Acordo Atômico Brasil-Estados Unidos e um contrato secreto para venda de 300 toneladas de óxido de tório, alegando necessidade de salvar da falência a Orquima S.A. (Cadernos, 2006: v. 15, 70); contrariando a proposta da Comissão de Energia Atômica do CNPq, o Ministério das Relações Exteriores foi contra a rescisão do 3o Acordo Atômico Brasil-Estados Unidos por temer uma interferência negativa na negociação do programa Átomos para a Paz; e a União Soviética e a Inglaterra começaram a operar as usinas nucleares antes dos Estados Unidos.4 Os dois acordos de cooperação 1955 levantaram tantas suspeitas que foram discutidos na Comissão de Inquérito Parlamentar do Congresso Nacional de 1956. A polêmica sobre a exportação dos chamados minerais radioativos atingiu o ápice.

Como a participação do Brasil no programa Átomos para a Paz foi formalizada antes da Conferência de Genebra, a delegação brasileira fez escala nos Estados Unidos para visitar centros de pesquisa e empresas interessadas em vender um reator de pesquisa, Vitro Corporation e General Electric. Na Universidade de Illinois, foram aconselhados por Donald Kerst a formular uma política de energia nuclear. Nada foi decidido sobre o tipo do reator a ser adquirido antes de Genebra.5 Mas depois de discutir o assunto com os especialistas presentes no evento, Marcello Damy decidiu pelo reator do tipo piscina. Na volta ao Brasil pelos Estados Unidos, depois do evento científico, com a finalidade de examinar os detalhes do reator a ser adquirido pelo CNPq (Mattos Netto, 1955; Cadernos, 2006: v. 17, 12).

Os potenciais candidatos para receber o reator do tipo piscina eram a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade do Brasil, nas quais eram professores físicos com reconhecimento.6A única instituição existente e que foi criada exclusivamente para desenvolver pesquisas na área da física e engenharia nuclear, o Instituto de Pesquisas Radioativas, ainda não tinha tradição de pesquisa. Em contrapartida, o Departamento de Física da USP tinha reconhecimento internacional e era chefiado por Marcello Damy, que acabara de instalar um bétraton e ocupava postos-chaves no CNPq.

1.b. Sucesso na periferia

Em janeiro de 1956, o CNPq e a USP assinaram um convênio de cooperação; e, em agosto, fundaram o Instituto de Energia Atômica (IEA), sob a direção de Marcelo Damy, para ser instalado o reator do tipo piscina comprado da empresa americana Babcock & Wicox, pelo programa Átomos para a Paz.7Na época, considerava-se que esse tipo de reator tinha capacidade de produzir alto fluxo de nêutrons com baixo consumo de combustível, urânio enriquecido a 20% arrendado da AEC.

Os dois primeiros anos do Instituto de Energia Atômica foram marcados pela determinação de Marcello Damy: construir o prédio para abrigar o reator em tempo recorde; e investir na formação em física experimental e teórica de um pequeno grupo de professores da USP e de mais uma dezena de jovens magnetizados pelas perspectivas que a energia nuclear abria ao país. Foram eles os responsáveis pela instalação do reator IEA-R1 e por todos os testes do equipamento. As obras civis foram realizadas em ritmo acelerado diante do estímulo de um prêmio, anunciado pelo governo americano para a instituição estrangeira que concluísse em primeiro lugar a instalação de um reator experimental (CNEN, 1959). Em 1957, o reator IEA-R1 atingiu a criticalidade.

No dia das comemorações de 1958 do aniversário da cidade de São Paulo, o presidente da República Juscelino Kubitschek e o governador do estado Jânio Quadros inauguraram o reator adquirido pelo programa Eisenhower. Diante de dezessete delegações estrangeiras, professores, cientistas e políticos, Kubitschek recebeu o cheque-prêmio das mãos do embaixador americano.8 O reator IEA-R1 foi apresentado como o mais importante equipamento para a medicina nuclear no país e imprescindível para os progressos tecnológicos do país.

Desde o início, o reator foi utilizado para formação de especialistas da Escola de Engenharia da Universidade de Minas Gerais, Escola Técnica do Exército, Escola Nacional de Engenharia e a Universidade do Rio Grande do Sul. A 2a Conferência de Genebra, realizada em 1958, não teve o mesmo impacto do acontecimento de 1955, mas os 23 trabalhos espelharam o crescente grau de especialização da delegação brasileira.

Marcello Damy de Souza Santos assumiu a presidência da Comissão Nacional de Energia Nuclear em 1961, quando Jânio Quadros foi empossado presidente da República. O afastamento dos Estados Unidos tinha início, confirmando a mudança de orientação da política externa brasileira e de orientação da CNEN. Mesmo com a renúncia de Jânio, após sete meses de governo, e a posse de João Goulart, Damy permaneceu no cargo e implementou importantes modificações estruturais na CNEN.

A história do Instituto de Energia Atômica e do Instituto de Engenharia Nuclear tem um ponto em comum: ambos foram criados para instalar um reator. Mas o Instituto de Engenharia Nuclear (IEN) resultou dos esforços dos primeiros engenheiros bolsistas do programa Átomos para a Paz, brasileiros enviados aos Estados Unidos para estágio no Argonne National Laboratory. Ao retornarem à Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, o grupo apresentou a proposta de construção de um reator experimental. O projeto foi viabilizado por meio de convênio entre a CNEN e a Universidade do Brasil, atual UFRJ, que resultou na fundação do IEN, em maio de 1962, no campus da Ilha do Fundão (Instituto, 2012).

O processo de decisão da construção do reator do IEN acentuou as diferenças entre os institutos de pesquisa associados à CNEN. Refletindo a orientação da política nuclear do governo João Goulart e a gestão de Marcello Damy na CNEN, caracterizadas pela busca da autonomia tecnológica, não mais se importou um reator fechado. O reator foi desenvolvido segundo projeto do laboratório americano de Argonne, que foi redesenhado no Brasil e construído com 93% de componentes nacionais, pela empresa CBV Ltda, no Rio de Janeiro. Batizado com o nome de Argonauta, utiliza urânio enriquecido a 20% e se tornou crítico em fevereiro de 1965. Desde então, o reator do IEN é utilizado para produzir radioisótopos utilizados como traçadores em pesquisas nas áreas do meio ambiente e industrial, e formação de pessoal.

Na direção oposta à mobilização de engenheiros e físicos em busca da autonomia nuclear, o marechal Castello Branco assinou, em 1965, o Acordo de Cooperação Referente aos Usos Civis da Energia Atômica com os Estados Unidos. Previa-se a troca de informações projeto, construção e operação de reatores de potência e de pesquisa, além do fornecimento de urânio enriquecido e plutônio.9 Embora coerente com a política de reaproximação dos dois países, os Estados Unidos não o chancelaram.

1.c. Depois da Guerra Fria

Era impensável considerar a possibilidade de que algum dia a rota Norte-Sul seria usada no contrafluxo e que pesquisas dos Estados Unidos e da Europa seriam realizadas no IPEN, por meio de acordos de cooperação. Tal fato se deu pelas características do primeiro reator nuclear genuinamente nacional, o IPEN/MB-01, que entrou em operação em novembro de 1988. Desenvolvido por pesquisadores do IPEN, em parceria com a Marinha, o reator de 100 W foi construído para dar subsídios científicos ao projeto do submarino de propulsão nuclear fabricado no Brasil, mas foi disponibilizado as necessidades de outros projetos.

O reator Triga foi desativado e o Argonauta cumpriu sua missão, mas o IEA-R1 passou por várias reformas, inclusive com a ajuda de especialistas da Argentina. A  grande reforma de 1996/1997 aumentou a potência do reator de 2 MW para 5 MW, e passou a se chamar IEA-R1m. Para a medicina nuclear no Brasil essa mudança trouxe uma grande contribuição: a produção local de radioisótopos de última geração, o que gerou uma economia de divisas.

Com a expectativa de ser inaugurado em 2017, seis instituições de ciência e tecnologia participam do projeto do Reator Multipropósito Brasileiro, um reator de 20 MW planejado para produzir radioisótopos para uso médico, testar combustível nuclear e materiais estruturais de reatores de potência e realizar pesquisas com feixes de nêutrons.

O reator será construído no município paulista de Iperó, junto ao Centro Experimental de Aramar da Marinha, onde é desenvolvido o protótipo do submarino nuclear brasileiro. Além do apoio de instituições de fomento brasileiras, há um acordo de cooperação com a Comissão Nacional de Energia Atômica da Argentina (CNEA) para o desenvolvimento de projeto básico comum dos reatores multipropósitos do Brasil (RMB) e da Argentina (RA-10). A empresa argentina INVAP foi responsável pelo projeto do reator de pesquisas australiano OPAL, inaugurado em 2007, que servirá de referência para o RMB e o novo reator argentino.

2. A controvérsia sobre os reatores e os problemas das usinas

Todos os presidentes da República falaram à nação sobre a importância de se construir usina nuclear para complementar a produção das hidrelétricas.10Juscelino Kubitschek considerou a possibilidade de se associar à American & Foreign Power Company.11Nem as negociações evoluíram, como o desenvolvimento da ciência e tecnologia foi relegado no seu governo. As iniciativas da direção da CNEN para construir uma usina na baía de Angra dos Reis também fracassaram, mas inauguraram a controvérsia sobre o tipo do reator de potência. Diferente das conclusões dos estudos preliminares contratados em Londres, o grupo de trabalho do Instituto de Energia Atômica (IEA) e Furnas recomendou um reator de urânio natural e, para o futuro, o reator de tório.

O programa de governo de Jânio Quadros (1961) incluía a construção de reatores de urânio natural ou de urânio enriquecido no país. A opção refletia a orientação do físico Marcello Damy de Souza Santos, presidente da CNEN que permaneceu no cargo durante o governo de João Goulart (1961-1964), imprimindo na instituição a marca de uma independente política externa. Goulart foi contrário à transferência da CNEN para o Ministério de Minas e Energia e a transformou em autarquia federal, subordinada à Presidência; alterou a política nacional de energia nuclear; e decretou o monopólio da União dos minérios e materiais nucleares.

O Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965) do economista Celso Furtado, política de longo prazo para vencer o ciclo do subdesenvolvimento, exaltava o emprego da energia nuclear para produção de energia elétrica. Também mencionava a decisão de se construir um reator de potência a urânio natural e de aproveitamento do plutônio em uma segunda linha de reatores, funcionando no ciclo tório-plutônio e tório-urânio233. A orientação técnica partiu do Grupo de Trabalho de Reator de Potência (GTRP), constituído por Marcello Damy com especialistas do IEA, CNEN, IPR e Commissariat de l'Énergie Atomique.12 O relatório do GTRP foi entregue às vésperas do golpe militar de 1964 e recomendava: reator da linha urânio natural, moderado a grafite ou a água pesada, criação de subsidiária da Eletrobrás para construir e operar futura usina e de empresa estatal para cuidar da mineração, beneficiamento e comércio de minerais radioativos. Essas conclusões certamente desagradaram os Estados Unidos, diante da perda de um potencial mercado para os reatores PWR e do controle exercido através do monopólio de fornecimento do urânio enriquecido.

No início da ditadura militar houve queda nas expectativas de produção de energia nuclear e de incremento da pesquisa na CNEN. A prioridade era a reestruturação do setor elétrico a cargo da Eletrobrás, holding estatal responsável pelo processo de encampação das concessionárias estrangeiras de energia elétrica, iniciado no governo Goulart. No entanto, em 1965, o Comitê de Estudos do Reator de Potência (constituído por engenheiros e físicos da CNEN e dos três institutos de pesquisa do setor) deu parecer favorável à utilização da energia nuclear para produção de energia elétrica na região Centro-Sul, avaliou o estágio da prospecção mineral e as possibilidades de fornecimento da matéria-prima para o combustível, apontou as dificuldades tecnológicas dos reatores rápidos, concluindo que o tório era uma boa alternativa. Nascia o famoso Grupo do Tório do Instituto de Pesquisas Radioativas, cujas raízes remontam ao Grupo de Trabalho do Reator de Potência.

O Grupo do Tório investiu na engenharia de reatores em parceria com o Commissariat de l'Énergie Atomique, onde seus membros estagiaram e com o qual a CNEN mantinha convênio. Na primeira etapa das atividades, avaliaram a possibilidade de desenvolvimento da tecnologia de reatores a tório (Projeto Instinto), considerando potenciais reservas do minério em Minas Gerais e o desconhecimento sobre as reservas de urânio. A análise da utilização do tório foi baseada em um conceito definido de reator, que pudesse ser desenvolvido pela indústria brasileira em dez ou quinze anos. O reator seria resfriado e moderado por água pesada sob pressão, contido em um vaso de concreto-protendido. Semelhante tecnologia estava sendo desenvolvida na França, Alemanha e Suécia, i.e., o Brasil não estava sozinho nessa linha de investigação.

Como o tório não é fissionável, o Grupo ponderou que a opção pela mescla com urânio enriquecido, embora mais fácil, dependia dos Estados Unidos e que o uso do plutônio só seria exequível a longo prazo, ou após produzi-lo com urânio natural. O Grupo do Tório tinha a expectativa da linha de reatores nacionais ser viável nas décadas de 1980 e 1990. Se o Grupo do Tório fez história, dois protagonistas registraram que a experiência produziu um resultado inesperado: "a conscientização da extrema dificuldade de se realizar a sua ambição inicial" (Lepecki & Syllus, 1996: 3).

2.a. Pragmatismo político

O ano 1967 marca o início da ruptura da concepção de poder dos governos militares, que passaram a vincular o desenvolvimento econômico ao conceito de segurança nacional e aspirar ao status de grande potência. No plano da política externa, atuaram no sentido de reduzir a dependência dos Estados Unidos e de valorizar os vínculos com pequenas e médias potências no eixo Norte-Sul, diante da percepção de que o antagonismo Leste-Oeste da Guerra Fria se deslocara para a polarização entre os países do centro e da periferia política (Cervo & Bueno, 2002: 397-406). Diante disso, priorizou-se os convênios de cooperação técnica e científica para formação de especialistas em energia nuclear na França e República Federal da Alemanha.

Em diferentes situações, o general e presidente Costa e Silva (1967-1969)  reafirmou que a energia nuclear era "o mais poderoso recurso a ser colocado ao alcance dos países em desenvolvimento para reduzir a distância que os separa das nações industrializadas" (Bandeira, 1989: 169) e que era propósito do governo construir uma usina nuclear. Na justificativa de criação do Grupo de Trabalho Especial no Ministério de Minas e Energia para esse fim enfatizou que "(...) tudo que diga respeito ao campo da energia nuclear, interessa à Segurança Nacional" (Decreto n. 60.890, 22 jun. 1967). Somente o general Dutra, presidente da República no imediato pós-guerra, dera tanta ênfase. A clareza das intenções se revelou quando Dutra justificou ao Congresso Nacional a necessidade de criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq, 1952: 72).

No final dos anos 1960, o Grupo de Trabalho Especial do Ministério de Minas e Energia recomendou a construção de uma usina nuclear de 500 MW em 1976/1977, o Grupo do Tório entregou o relatório do Projeto Instinto, e técnicos da Divisão de Engenharia de Reatores do IPR concluíram ser viável construir usinas nucleares no estado do Pará, em plena Amazônia (Lepecki & Syllus,1996: 4; CNEN, 1967: 30).

2.b. Angra 1

Após o lançamento das Diretrizes da Política Nacional de Energia em janeiro de 1968, a CNEN transferiu para Eletrobrás a responsabilidade do processo decisório da primeira usina nuclear. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) enviou uma comissão técnica, liderada por James Lane, para trabalhar em parceria com técnicos da CNEN, Eletrobrás e dos institutos de pesquisa nuclear, IEA, IEN e IPR, inclusive com o Grupo do Tório. O relatório do Grupo Lane, confirmou a recomendação do Grupo de Trabalho Especial do Ministério de Minas e Energia, qual seja, a instalação de uma usina nuclear de 500 MW e estimou que, até o ano 2000, as necessidades brasileiras de energia nuclear seriam de cerca de 50.000 MW instalados. Mencionou que qualquer tipo de reator comercial seria adequado. Revista CTS, no 21, vol. 7, Agosto de 2012 (pág. 113-140)

A preferência dos presidentes da CNEN e da Eletrobrás recaía sobre um reator de urânio natural e água pesada. A equipe do IPR concordou e ainda sugeriu a construção simultânea de um protótipo. Uma grande polêmica tomou conta da CNEN, sobretudo entre os que defendiam a alternativa de reator a água pesada e aqueles que propunham reatores a água leve, como o presidente empossado em 1969, Hervásio de Carvalho. As manifestações se tornaram públicas. Vários cientistas se colocaram contra a compra de reator a urânio enriquecido, por estabelecer dependência dos Estados Unidos, até serem silenciados pela força do AI-5, ato institucional de dezembro de 1968 que cassou dezenas de pesquisadores e induziu outros a viver no exterior.

Quando a CNEN foi transferida para o Ministério de Minas e Energia (Decreto n. 63.951, 31 dez. 1968), ficou claro que sua missão na ditadura militar era produzir energia nuclear para geração de energia elétrica. A Eletrobrás, por sua vez, delegou a tarefa de construir usinas nucleares para Furnas Centrais Elétricas S.A., onde o Departamento de Engenharia Nuclear se encarregou de Angra 1. Para facilitar o contato com Furnas, a CNEN criou o Departamento de Reatores e fixou normas de segurança. A praia de Itaorna, município de Angra dos Reis, foi escolhida para a instalação da usina, após a consultoria de empresas americanas, Universidade de Cornell e da Tecnosolo. Os critérios considerados foram: topografia, população, utilização das cercanias, hidrologia, meteorologia, sismologia, geologia, fundações da usina, acesso ao local, integração ao sistema de transmissão de energia elétrica e o destino a ser dado aos rejeitos radioativos.

Em meio às previsões alarmistas sobre futuros blecautes na região Sudeste, Angra 1 foi lançada hasteada na bandeira do Brasil Grande. Contratou-se consultoria da NUS Corporation e da brasileira SELTEC, e enviou-se engenheiros aos Estados Unidos, Canadá e Europa para avaliar os diferentes tipos de reator, assim como para aprender a organizar uma concorrência internacional.

Nenhuma empresa fabricante de reator a urânio natural se credenciou. Das seis empresas candidatas para a venda e montagem dos equipamentos, a vencedora foi a Westinghouse Electric Company (CNEN, 1970: 45). A americana Gibbs & Hill e a brasileira Promon Engenharia desenvolveram o projeto técnico, cuja concorrência para as obras civis foi vencida pela Construtora Norberto Odebrecht em 1972. O combustível para a primeira unidade da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto seria fabricado da seguinte maneira: o yellowcake seria comprado na África do Sul, a conversão em hexafluoreto realizada na Inglaterra e o enriquecimento feito nos Estados Unidos. Diversificou-se os parceiros, por orientação do Ministério das Relações Exteriores, mas continuava a dependência dos Estados Unidos, que detinham o monopólio do suprimento de urânio enriquecido no mundo Ocidental (Andrade, 2006: 133-136).

A participação da indústria nacional na fabricação dos equipamentos para Angra 1 foi pífia, já que o Eximbank exigia a realização de concorrência internacional. Na realidade, a Westinghouse vendeu uma caixa-preta lacrada e com inúmeros problemas técnicos, contendo um reator PWR -urânio enriquecido e água leve pressurizada (Bandeira, 1989: 224).

A solução foi considerada incompatível com os interesses nacionais por uma ala de militares, repudiada por parlamentares filiados ao partido de oposição e muito criticada nas universidades. Os últimos defendiam a compra de um reator do tipo CANDU (urânio natural e água pesada), argumentando que se tratava de uma tecnologia mais simples e fácil de ser transferida, além do país não ficar refém dos Estados Unidos. Foi a vitória do presidente da CNEN, o físico Hervásio de Carvalho, que defendia a alternativa de curto prazo, em detrimento da continuidade de investimento em pesquisa para a fabricação de reatores nacionais. Cálculos e experiências importantes para a continuidade do projeto de engenharia de reatores nacionais se perderam; o Grupo do Tório se extinguiu diante da opção pelos reatores PWR (CNEN, 1970: 60).

2.c. Angra 2

A fase empresarial do setor nuclear brasileiro foi inaugurada com a Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear (CBTN), empresa de economia mista subsidiária da CNEN de 1971. A despeito do início de Angra 1, os estudos de viabilidade econômica conduzidos na CBTN recomendavam outra estratégia: transferência de tecnologia com participação crescente da engenharia e indústria nacionais; implantação gradativa das indústrias do ciclo do combustível; escolha de tecnologia adequada aos interesses nacionais a médio e longo prazos; padronização tecnológica de quatro usinas nucleares a serem construídas; negociação conjunta da importação dos equipamentos para as usinas, em contrapartida à transferência de tecnologia de reator e do ciclo do combustível, sobretudo as tecnologias sensíveis (enriquecimento e reprocessamento); e criação de empresas mistas, em parceria com o país fornecedor da tecnologia, para aperfeiçoar o processo (Lepecki & Syllus, 1996: 6, 12). Eram os fundamentos do futuro Acordo Nuclear Brasil-República Federal da Alemanha.

O presidente da República empossado em 1974, o general Ernesto Geisel, reorientou a política energética com empréstimos bancários internacionais, quando as contas do petróleo desequilibravam a balança comercial e a dívida externa era crescente. No mesmo ano, firmou-se o chamado Protocolo de Brasília com a Alemanha, para acelerar o ritmo da indústria do ciclo do combustível, substituiu a CBTN pela Empresas Nucleares Brasileiras S.A. (Nuclebrás) e reorganizou a estrutura dos institutos de pesquisa. Holding de várias empresas subsidiárias binacionais e subordinada ao Ministério de Minas e Energia, coube à Nuclebrás a execução do Programa Nuclear Brasileiro sob a presidência do embaixador Paulo Nogueira Batista.

Em junho de 1975, os ministros das Relações Exteriores do Brasil e da Alemanha assinaram, em Bonn, o Acordo sobre Cooperação no Campo dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear e, em seguida, o Protocolo de Bonn, no qual foram ajustados os procedimentos comerciais, societários e contratuais. As negociações rápidas e secretas envolveram autoridades alemãs, o presidente da CNEN, o ministro de Minas e Energia e o presidente da Nuclebrás, caracterizando a supremacia da política sobre qualquer consideração de ordem técnica.

 

Geisel manteve os militares afastados, assim como Nogueira Batista ignorou os adidos militares da embaixada brasileira de Bonn (Gaspari, 2004: 131). Os acertos finais foram relativamente fáceis, pois o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha estava alicerçado em acordos anteriores: o Acordo de Cooperação sobre as Utilizações Pacíficas da Energia Atômica entre o Brasil e a Euratom (1961), o Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica entre o Brasil e a Alemanha (1969) e as Diretrizes para a Cooperação Industrial entre o Brasil e a Alemanha (1974), conhecidas como Protocolo de Brasília (Andrade, 2006: 139-143). O draconiano acordo de salvaguardas entre o Brasil, a Alemanha e a AIEA de 1976 incluía material e equipamento específicos, assim como informações tecnológicas relevantes (Marzo & Almeida, 2006: 198-199).

A Alemanha foi escolhida em detrimento dos Estados Unidos e da França, pelas seguintes promessas: transferência de tecnologia e implantação de todas as etapas do ciclo do combustível; capacidade de fabricação de reatores de grande porte; e identificação de reservas de urânio e tório. As vantagens para a Alemanha eram de âmbito comercial: utilização da capacidade ociosa da indústria nuclear; incremento das exportações; possibilidade de enriquecer urânio, pois era impedida pelo Euratom; e interesse nas reservas brasileiras de urânio.

O Acordo de 1975 previa a construção de oito usinas nucleares no Brasil, a capacitação de pessoal -cerca de dez mil técnicos de nível médio e superior, a participação da empresa Urangesellschaft na prospecção e mineração de urânio, em cooperação com a Nuclam, subsidiária da Nuclebrás (Medeiros, 2005: 72). Por se tratar de um negócio da ordem de dez bilhões de dólares e com duplas vantagens (para o capital industrial e também para o capital financeiro, que financiou a venda dos equipamentos), ficou conhecido internacionalmente como o acordo do século.

A censura à imprensa dispensou Geisel das explicações à sociedade sobre o Acordo teuto-brasileiro, limitando-se as justificativas às necessidades futuras de energia elétrica e à crise do petróleo de 1973. O cancelamento unilateral pelos Estados Unidos do fornecimento de urânio enriquecido para Angra 1 e para os três reatores de pesquisa existentes no Brasil, em 1977, foi usado a favor do Acordo (Bandeira, 1989: 224).

O conflito com os Estados Unidos estavam evidentes desde a insubmissão da política externa brasileira ao Tratado de Não Proliferação Nuclear de 1968. Agravaram-se na gestão de Jimmy Carter, após a inclusão da transferência de tecnologia de enriquecimento e reprocessamento de urânio no acordo com a Alemanha. Como o Brasil e a Alemanha não cederam às pressões, Carter contra- atacou denunciando o desrespeito aos direitos humanos pelas autoridades brasileiras. A questão ecoou entre os militares, levando o Brasil a denunciar o acordo militar com os Estados Unidos, que vigorava desde 1952.

A possibilidade de transferência da tecnologia para o reprocessamento reascendeu a crise com o governo Carter, que desdobrou suas ações diplomáticas em gestões multilaterais e bilaterais mais complexas. As pressões se estenderam aos demais países envolvidos no comércio internacional de tecnologia nuclear, por meio de diferentes estratégias. Até a pretensa rivalidade entre a Argentina e o Brasil foi usada pelo secretário de Estado Cyrus Vance, insinuando que ambos deveriam renunciar ao reprocessamento.13

Em 1978, as pressões americanas foram duplamente amparadas. Primeiro, pelo Nuclear Non-proliferation Act, que permitia ao governo americano suspender os contratos de fornecimento de urânio enriquecido. Foi o que Carter fez unilateralmente, a despeito da inspeção internacional, existência de contratos comerciais e do acordo de cooperação de 1955 para fornecimento de combustível aos reatores de pesquisa.  O Projeto Cobra (Coopéracion Brésil Rapide), firmado entre a CNEN e França em 1975 para a construção de um reator de pesquisa térmico-rápido, foi interrompido em 1979 por esse motivo (Instituto, 2012: 15). Posteriormente, as pressões aumentaram com a reformulação do Clube de Londres e as medidas para a plena vigência do Tratado de Tlatelolco, que, embora não lhes dissesse respeito, era uma forma de criar obstáculos para os países latino-americanos não signatários do TNP.

A Nuclebrás ficou encarregada da execução do Acordo, desde as atividades de pesquisa e prospecção de minerais nucleares, desenvolvimento do ciclo do combustível, construção das usinas, montagem de parque industrial destinado à fabricação de equipamentos e componentes para as usinas. Copiando o modelo adotado na época por empresas de capital privado nacional, constituiu subsidiárias sob a forma de joint ventures: a Nuclebrás Auxiliar de Mineração (Nuclam), com participação da Urangesellschaft (UG), para atuar na prospecção, pesquisa, mineração e beneficiamento de urânio; a Nuclebrás Engenharia (Nuclen), em associação com a Kraftwerk Union (KWU), grupo Siemens, para realizar serviços de engenharia; a Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep), em acordo com a KWU, a Gute Hoffnungs Hütte (GHH) e a austríaca Voest, para a fabricação de reatores, geradores de vapor, componentes pesados e protótipos de carros blindados; a Nuclebrás Enriquecimento Isotópico (Nuclei), em associação com a Steag e a Interatom, para a produção de urânio enriquecido; e a Nuclebrás-Steag Companhia de Exploração de Patentes de Enriquecimento por Jato-Centrífugo (Nustep), a única com sede na Alemanha e associada à Trenndüsen Entwicklungs Patentverwertung GmbH & Co. KG, criada para o desenvolvimento do método de enriquecimento por jato centrífugo. A Nuclebrás tinha participação majoritária no capital da Nuclam (51%), Nuclen e Nuclei (75%), e Nuclep (98,2%).

Furnas, responsável pela construção de Angra 2 e 3, assinou os contratos de compra de equipamentos com a KWU; a Nuclen ficou encarregada da parte de engenharia dos demais projetos. As obras de construção civil de Angra 2 foram iniciadas em 1977 e os primeiros problemas apareceram ainda na etapa da fundação, atrasando de forma irrecuperável o cronograma.

A exigência de reforço das fundações partiu da CNEN -órgão fiscalizador- e coincidiu com as primeiras críticas da Sociedade Brasileira de Física, que denunciou 13. Informação disponível no documento EG pr. 1974.0318 rolo 3. f. 4055 microfilme (Arquivo E rnesto Geisel). que o Acordo não garantiria o domínio das tecnologias sensíveis. A comunidade científica, excluída do processo de decisão, questionava a necessidade de o Brasil adotar a energia nuclear em larga escala, contestando o argumento de crescimento da demanda de energia elétrica e escassez de recursos hidrelétricos. Havia também os defensores de opções brasileiras, como o aproveitamento do potencial hídrico da Amazônia, no lugar do emprego de tecnologia com risco de graves acidentes. Aos opositores do meio acadêmico, juntaram-se os ambientalistas, preocupados com o rejeito e lixo radioativos (Barros, 2006; CNEN, 1977, anexo: 6; Rosa, 2006: 44).

Se no plano internacional as relações estavam tensas, diante das pressões do governo americano contra a transferência de tecnologias sensíveis, nos canteiros de obras de Angra dos Reis a situação era complicada. Os problemas surgiram do erro estratégico de forçar a convivência diária das equipes ligadas à Westinghouse e à KWU, que tinha melhores instalações. A questão provocou ásperos diálogos entre o presidente da Nuclebrás Nogueira Batista, o ministro de Minas e Energia, o presidente Geisel e Hervásio de Carvalho, da CNEN, quem denunciou as péssimas condições de trabalho dos operários de Angra 1 e era contra acelerar o ritmo das obras em detrimento da segurança. Por detrás dos atritos entre o embaixador e o físico, estava o fato de que eles estavam em arenas opostas: o primeiro, defensor da autonomia tecnológica; o outro, um fiel aliado dos Estados Unidos.

O Acordo Brasil-Alemanha foi sobre-estimado: o Brasil pagou caro pelos equipamentos e não ocorreu a prometida transferência de tecnologia. O acidente de Three Mile Island foi um golpe na credibilidade internacional, mas não interferiu no Programa Nuclear Brasileiro; afinal, era uma questão de segurança nacional!

As obras civis de Angra 2 foram aceleradas, quando se observava a recessão econômica, espiral inflacionária e dificuldades correlacionadas com o segundo choque do petróleo. O último presidente militar, o general Figueiredo, ainda deu exclusividade para a Nuclebrás Construtora de Centrais Nucleares (Nucon) construir outras usinas. Mas era impossível dar prosseguimento ao Acordo devido à elevação dos custos financeiros. Assim, assistiu-se a sucessivos atrasos, depois à paralisação das obras de Angra 2; à ociosidade da fábrica de equipamentos pesados da Nuclep; ao insucesso da unidade de enriquecimento isotópico da Nuclei, devido à tecnologia alemã; à desativação da Nucon em 1984; e, por fim, ocorreu a redução geral das atividades da Nuclebrás e evasão do pessoal qualificado.

O Acordo não atingiu as metas: apenas a primeira etapa da Fábrica de Elemento Combustível foi inaugurada; as obras de Angra 2 se estenderam de 1976 a 2000; a transferência da tecnologia para enriquecimento do urânio nunca se materializou; e a construção de Angra 3 se arrasta. A exceção foi a prospecção mineral: as reservas de urânio identificadas ultrapassaram 300 mil toneladas, mesmo que apenas 25% do território nacional tenha sido prospectado.

A sociedade brasileira só tomou conhecimento do Programa Nuclear com o retorno à democracia, na década de 1980. A imprensa divulgava informações sobre os sucessivos defeitos do equipamento vendido pela Westinghouse, no Congresso Nacional uma comissão de inquérito examinou o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, ocorreram diversas manifestações populares e ações judiciais contra o funcionamento de Angra 1, especialmente por falta de plano de emergência e contínuos defeitos. Finalmente a utilização da energia nuclear para a produção de energia elétrica deixou de ser um assunto de segurança nacional.

O Programa Nuclear foi revisto por uma comissão nomeada em 1985. Mesmo reconhecendo o fracasso e o alto custo do acordo com os alemães, a comissão recomendou a conclusão de Angra 2 e Angra 3, cujos equipamentos já haviam sido pagos, e a redução da Nuclebrás a uma empresa especializada nas atividades do ciclo do combustível e fabricação de equipamentos para reatores. Como os problemas do setor nuclear pareciam ter solução com a mudança de nome das instituições, a Nuclebrás foi transformada na Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB), subsidiária da CNEN; a Nuclen em subsidiária da Eletrobrás, que devolveu a Furnas o gerenciamento da construção e operação das usinas nucleares (Decreto-Lei n. 2.464).

A construção de Angra 2 ficou paralisada de 1983 a 1994; em 2001 teve início a operação comercial com potência média de 1.300 MW sob a responsabilidade de empresa exclusiva, a Eletrobrás Termonuclear S.A (Eletronuclear) criada em 1997. Persistem as polêmicas sobre o depósito provisório de resíduos e muita preocupação em esconder os incidentes da sociedade.

A construção de Angra 3 foi autorizada no governo de Fernando Henrique, iniciada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva e calcula-se que serão necessários 1,7 bilhão de dólares. Há setores da sociedade céticos quanto à conclusão de Angra 3 e outros permanecem radicalmente contra a usina. Em 2004, a Alemanha rompeu o acordo nuclear com o Brasil, sem causar danos nas relações políticas e comerciais. Para diplomatas brasileiros, o acordo de 1975 cumpriu seus objetivos centrais; para o historiador, o país hegemônico troca de estratégia em busca de vantagens comparativas, sejam no plano político ou no mercado internacional para seus novos produtos, serviços e tecnologias.

3. Tecnologias estratégicas e acordos sensíveis

Na esfera das relações internacionais, a cooperação técnica e científica não se limita a simples permuta de informações, conhecimentos e métodos, ou venda, empréstimo e doação de equipamentos, insumos e outros bens. A cooperação é um instrumento de política e, muitas vezes, de propaganda política do país que se encontra em patamar superior em determinadas áreas do conhecimento ou que é hegemônico em dado contexto, para facilitar negociações futuras, abrir mercado, formar opinião, ganhar aliados, etc. Bons exemplos são o Acordo de Cooperação para Uso Civil da Energia Atômica assinado entre o Brasil e os Estados Unidos em 1955, que viabilizou o programa Átomos para a Paz, e o Acordo Geral sobre Cooperação nos Setores de Pesquisa Científica e do Desenvolvimento Tecnológico firmado entre o Brasil e a República Federal da Alemanha em 1969, que abriu as portas para acordo nuclear de 1975 em troca da capacitação de centenas de engenheiros, físicos, químicos para a área nuclear, como de biólogos e matemáticos, naquele país.

Os acordos de cooperação também devem ser examinados como uma estratégia dos países técnico e cientificamente periféricos para alavancar uma área do conhecimento. Foi o caso do Instituto de Energia Atômica (IEA), atual Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), cuja criação decorreu de convênio entre o CNPq e a USP para instalar um reator experimental previsto no acordo de cooperação com os Estados Unidos, de 1955. Embora a política dos Átomos para a
Paz tivesse a real intenção de restringir as iniciativas voltadas para o desenvolvimento autônomo de tecnologia, direcionando a investigação e práticas nesse campo para a dependência de conhecimento, materiais e insumos (inclusive refém do urânio enriquecido para o reator), técnicos e cientistas aproveitaram as vantagens relativas de um acordo político de mais alto nível do qual não participaram.  O reator IEA-R1 teve efeito multiplicador na formação de equipes para outros institutos e universidades, além de ter permitido a realização de vários experimentos e projetos de engenharia.

A busca da autonomia nuclear consumiu muitos investimentos, foi marcada pela descontinuidade da política para o setor e, principalmente, agregou décadas de trabalho de investigação no IEA/IPEN, IPR/CDTN e IEN, e em outras instituições pesquisa financiadas pelo CNPq e CNEN, tal como no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Instituto Militar de Engenharia -para o Grupo de Trabalho da Água Pesada- Unicamp, USP, dentre outras (CNEN, 1967: 47-49; CNEN, 1970: 120). Apesar de o empenho das equipes dos institutos, lutando contra uma série de adversidades, só a partir de 1967 que a política de ciência e tecnologia emergiu como uma alternativa de ação coordenada e o pragmatismo passou a orientar a política exterior brasileira. Rejeitava-se o poder associado à potência hegemônica ocidental, os Estados Unidos, que impediam a importação de tecnologias avançadas para o setor nuclear pela via da cooperação científica. Como a conquista da tecnologia nuclear tinha raízes no nacionalismo dos anos de 1950, que se fortalecia ao ser associado ao desenvolvimento econômico, os instrumentos de política foram articulados em vários níveis. Ou seja, a estratégia estava alicerçada na possibilidade de se conjugar dois níveis da política, a interna e a externa, para alcançar o desenvolvimento econômico autossustentado, não importa com quais parceiros, e, ao mesmo tempo, redefinindo a relação com os Estados Unidos, para limitar o grau de dependência financeira, tecnológica e cultural. A engenhosidade política causou impacto positivo em grupos de influência e a ambiguidade caracterizou as ações da política externa no período da ditadura militar (Cervo & Bueno, 2002: 398).

Como mencionado, a Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear (CBTN), empresa de economia mista subsidiária da CNEN de 1971, inaugurou a fase empresarial do setor nuclear. No marco do Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica entre o Brasil e a Alemanha de 1969, redistribuiu as pesquisas relacionadas ao ciclo do combustível entre os três institutos que passou a coordenar.

O Projeto Hexafluoreto de Urânio (UF6) foi conduzido pelo IEA. O Projeto de Reprocessamento, a fim de extrair do combustível utilizado nos reatores o material físsil nele ainda contido (U235 e plutônio), foi implantado no IEN, com assessoria de especialistas alemães. O Projeto Tratamento de Rejeitos foi sediado no IPR, também teve assessoria de alemães. O Projeto Elemento Combustível foi subdivido: a fabricação de pastilhas ficou a cargo do IEA; a fabricação de varetas, do IPR; a fabricação de componentes estruturais e a montagem do elemento combustível, do IEN; e o projeto da fábrica de elemento combustível se concentrou no IEN. Para o desenvolvimento do Projeto Enriquecimento, a mais complexa da etapa, a CBTN tornou-se membro da Association for Centrifuge Enrichement, formada pela Inglaterra, Holanda e Alemanha, que tinha por objetivo comercializar o processo de enriquecimento por ultracentrifugação. A CBTN ainda contratou a NUS Coorporation (EUA) para dar consultoria sobre o assunto.

Em 1973, foi inaugurada no IPEN a planta piloto para produção de UF6. As atividades lá realizadas foram fundamentais para o domínio do processo de enriquecimento de urânio por ultracentrifugação, posteriormente desenvolvido em colaboração com o Centro Tecnológico da Marinha de São Paulo (CTMSP).

3.a. O programa da autonomia

A pressão dos Estados Unidos em torno da transferência da tecnologia de enriquecimento de urânio prevista no Acordo Nuclear Brasil-Alemanha terminou, após a avaliação do erro estratégico em 1977, da constatação de que o processo de jato centrífugo (jet nozzle) não representava nenhuma ameaça (Marques, 1992: 76) e que a tecnologia do processo por ultracentrifugação era de propriedade da Alemanha e de empresas da Inglaterra e da Holanda, que formaram o consórcio Urenco. Os holandeses foram contra transferência, em aliança com os Estados Unidos, com os quais tinham um acordo bilateral que permitia a esses estacionar armas nucleares na Europa.

Essas certezas eram compartilhadas entre militares das três armas envolvidos em pesquisas básicas e aplicadas na área nuclear, no final da década de 1970. Além disso, eramm de opinião que os compromissos estabelecidos com a AIEA, expressos nos acordos tripartites de salvaguardas internacionais do Acordo Nuclear de 1975, limitavam a autonomia brasileira. Diante das dúvidas quanto à viabilidade técnica do método de enriquecimento negociado com a Alemanha, e mesmo a respeito da viabilidade econômica do acordo, a Marinha elaborou um programa paralelo, independente daquele conduzido pela Nuclebrás. A motivação imediata era o desenvolvimento da tecnologia nuclear para a propulsão de submarinos e, evidentemente, do combustível necessário. A cargo do Centro Tecnológico da Marinha de São Paulo, o programa começou com a construção do Centro Experimental Aramar, em Iperó (SP), sob o comando do almirante Othon Luiz Pimenta da Silva, principal coordenador do projeto. Em maio de 1978, ele havia apresentado um relatório ao Estado-Maior da Armada, a partir do qual a Marinha decidiu investir no ciclo do combustível nuclear pela via do método de ultracentrifugação.

Naquele ano era grande a preocupação com os rumos do acordo nuclear, que não previa uma planta para a produção de hexafluoreto de urânio (UF6) já que a Alemanha não fazia a conversão do yellowcake (U3O8). Duas correntes se formaram em torno da questão: uma defendia a importação dessa tecnologia da França; a outra, era de opinião que o IPEN tinha capacidade de desenvolver a tecnologia de conversão com financiamento da CNEN e CNPq. Esta corrente saiu vencedora com o apoio da Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, à qual se juntaram as agências de fomento -CNPq, CNEN-, Nuclebrás e o Ministério das Relações Exteriores, como teve aval do general Geisel, dias antes de deixar o cargo de presidente, em 1979.

A Aeronáutica, através do Centro Tecnológico da Aeronáutica, que já promovia pesquisas utilizando o laser no enriquecimento isotópico do urânio em convênio com o IPEN, intensificou as atividades voltadas para o desenvolvimento de reatores rápidos e construiu uma base para testar artefatos nucleares na Serra do Cachimbo (PA). "Em consequência desse sigilo e falta de controle é que se desenvolveram atividades quase clandestinas dentro do próprio governo e que levaram aos planos de fazer armas nucleares" (Congresso, 1990: 88). Era o chamado Projeto Solimões, o qual cabia ao IPEN produzir o composto de urânio; desenvolver a tecnologia de reprocessamento e de separação de urânio metálico; fabricar equipamentos eletrônicos e materiais especiais; e exercer o controle radiométrico e ambiental das instalações.

A concomitância das pesquisas de enriquecimento de urânio nas duas instituições ilitares, mas por métodos diferentes, tinha autorização do presidente da República, a quem fora enviado uma Exposição de Motivos conjunta dos ministros da Marinha e da Aeronáutica nesse sentido. Queriam deixar claro que não havia nenhuma conotação de rivalidade entre os dois projetos.

O Exército, também em convênio com o IPEN, esteve envolvido até por volta de 1990 com o projeto de um reator a urânio natural e grafite no Centro Tecnológico de Guaratiba (RJ), para produção de plutônio (Congresso, 1990: 105).

O projeto exitoso foi o da Marinha, que teve o apoio inicial do superintendente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas e do chefe da área de Processos Especiais do IPEN. Como o principal instituto brasileiro de pesquisas nucleares não era subordinado à Nuclebrás, não estava sujeito às salvaguardas internacionais. O projeto de enriquecimento de urânio tinha apoio de Rex Nazaré Alves, diretor executivo da CNEN, cujo presidente Hervásio de Carvalho negou o pedido de auxílio financeiro solicitado em 1979. Isto não impediu as atividades, até porque o projeto contava com o aval do general Figueiredo, sucessor de Geisel na Presidência da República. Em 1981, a Secretaria do Conselho de Segurança Nacional concedeu apoio; no final desse ano, estava concluída a primeira ultracentrífuga; e oito meses depois foi realizado o primeiro experimento de enriquecimento isotópico de urânio. Na mesma época, Rex Nazaré assumiu a presidência da CNEN, que passou a conceder recursos ao programa paralelo ou autônomo, como preferem chamar os protagonistas que nele estiveram envolvidos (Alves, 1998: 6; Congresso, 1990: 4-7).

O programa Marinha/IPEN envolveu diretamente sete engenheiros, liderados pela almirante Othon Pinheiro da Silva, muitos consultores da comunidade tecnocientífica e setores da indústria verdadeiramente nacionais. Se empresas brasileiras não fossem capazes de fornecer e produzir determinados componentes para as centrífugas, o empreendimento não poderia se concretizado (Barros, 2006).

A primeira minicascata de centrífugas do Centro Tecnológico da Marinha de São Paulo (CTMSP) entrou em operação em 1984. O sucesso foi anunciado pelo presidente José Sarney em 1987 e, no ano seguinte, o programa paralelo da Marinha foi incorporado às pesquisas oficiais. Os programas do Exército e da Aeronáutica não tiveram o mesmo fim.

No Congresso Nacional, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPI), destinada a Investigar o Programa Autônomo de Energia Nuclear ou as atividades secretas das Forças Armadas, data de 1990. O ex-ministro almirante Maximiano da Fonseca preocupou-se em esclarecer a finalidade do projeto da Marinha. Alegou em seu depoimento que o programa foi mantido em segredo "não para esconder da opinião pública, mas para proteger o projeto e o governo brasileiro da tremenda pressão internacional contrária" e justificou o dispendioso plano do submarino nuclear, lembrando que "a Argentina sofreu muito na guerra das Malvinas, por não dispor desse equipamento" (Congresso, 1990: 8).

O almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva -gerente-responsável pelo Programa de Enriquecimento de Urânio com Ultracentrífugas Brasileiras e pelo Programa de Propulsão para o Submarino Nuclear Nacional- seguiu a mesma linha de argumentação. Fez ver aos membros da CPI que o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha era basicamente industrial e que a tecnologia jet nozzle não era promissora. Advertiu que o país precisava também de um programa de desenvolvimento científico e tecnológico, "(...) mas não é um principal e outro paralelo. (...) Um não conflita com o outro de forma alguma. Mesmo que o programa industrial tivesse dado certo, teríamos que ter um programa industrial de desenvolvimento científico e tecnológico, porque a tecnologia evolui" (Congresso, 1990: 55-56).

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito demonstrou admiração pelo sucesso do programa de enriquecimento de urânio, contudo destacou que a sociedade precisa ter conhecimento dessas atividades e fez sugestões de formas para o controle (Congresso, 1990: 109).

3.b. A desconfiança internacional

Depois de ter desenvolvido a tecnologia de enriquecimento isotópico do urânio para ser usado na propulsão nuclear, o Centro Tecnológico da Marinha de São Paulo transferiu as centrífugas para a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), unidade de Resende (RJ). A autonomia do país na área nuclear despertou a desconfiança de observadores da AIEA e, em particular, dos Estados Unidos. Quando a capacidade de produção industrial de UF6 enriquecido tornou-se pública, a imprensa americana igualou o Brasil aos países do Oriente Médio que julgavam ser uma ameaça em potencial.

Os embates se acirraram com o início dos testes das centrífugas instaladas na INB Resende, provocando um contencioso político entre a AIEA e o Brasil. O governo brasileiro impediu o acesso dos inspetores à área das centrífugas e defendeu o seu direito de preservar tecnologia estratégica desenvolvida para fins pacíficos. Os  inspetores que estiveram em Resende (RJ), em 2004, ficaram separados dos equipamentos por um painel e só puderam ver válvulas e conexões.

Na ocasião foram levantadas duas hipóteses para a realização de inspeção mais minuciosa. De um lado, o trauma do terrorismo que assolou os Estados Unidos depois do 11 de setembro de 2001, aliado ao falso discurso de que o crescimento da esquerda populista na América do Sul contaminaria o continente. E bem mais factível, de outro lado, o interesse de conhecer os aprimoramentos técnicos introduzidos nas centrífugas brasileiras. Na verdade, as pressões sobre o Programa Nuclear Brasileiro continuavam sendo orquestradas de Washington, para serem usadas como moeda de troca no jogo das negociações próprio da política e do comércio internacionais. Em meio às tensões, o secretário de Estado Collin Powell tentou atenuar o conflito e declarou à imprensa que seu governo não via o Brasil como uma ameaça nuclear e que era absurda a suspeita de que se estivesse enriquecendo urânio para desenvolver armas. O país era signatário do Tratado de Não Proliferação (TNP) desde 1997. O urânio enriquecido a 3,5% na INB Resende atende pequena parte das necessidades de Angra 1 e 2. O restante da matéria-prima para a fabricação das pastilhas de urânio, que compõem os elementos combustíveis usados nos reatores, continua sendo produzido pela Urenco.

Transcorridos mais de quarenta anos da compra do reator da Westinghouse, urânio das jazidas brasileiras até os reatores de potência percorre um caminho alternativo, mais desimpedido e com menos barreiras políticas. Diferente do previsto naquele tempo, no século XXI o trajeto é outro: o yellowcake é produzido com urânio brasileiro na INB Caetité; convertido em hexafluoreto de urânio (UF6) no Canadá, de onde grande parte vai para uma das fábricas associadas à Urenco para ser enriquecido. Da Europa, vem para a INB Resende, onde é reconvertido e utilizado para a fabricação de pastilhas. Entretanto, há um atalho independente e seguro: uma parte do UF6 vem direto do Canadá para ser enriquecido nas centrífugas da INB Resende, desde 2006.14

Conclusões

Há consenso nos debates em torno do singular papel desempenhado pela energia nuclear no mundo contemporâneo, bem como de que sua utilização é marcada pela dicotomia entre fins pacíficos e militares. Do mesmo modo que o monopólio da tecnologia nuclear diferenciou os Estados Unidos dos demais países durante um longo período da Guerra Fria, o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que estabeleceu o direito de apenas alguns países possuírem armas nucleares, diferenciam os Estados nacionais. Se o pretexto sobre a finalidade de programas nucleares de determinados países marcam o cenário das relações internacionais, é tênue a diferença, se é que existe, entre fabricar artefatos nucleares para a defesa e para a guerra. Em meio à polêmica, muitos asseguram que todo programa nuclear  está associado às aspirações militares, i.e., tem fins bélicos. Devido às etapas de enriquecimento e de reprocessamento, o desenvolvimento do ciclo do combustível está sujeito às salvaguardas da AIEA. Logo, o debate envolve questões gerais relacionadas à guerra, segurança mundial, autonomia tecnológica e hegemonia política, como aos riscos de acidentes.

Setor privilegiado do sistema de ciência e tecnologia, pelo potencial de aproveitamento e necessidade de grandes investimentos em pesquisa e para a produção industrial, a energia nuclear tem um significado particular para as Forças Armadas e na política de relações internacionais, e, ao mesmo tempo, distinto da percepção na sociedade. Se o domínio da tecnologia nuclear é considerado um ícone do poder militar e da autonomia de um país, o comércio de tecnologias sensíveis, a venda de minerais radioativos, os acordos de cooperação técnico-científica e tratados firmados entre Estados e/ou organismos internacionais têm especificidades. Sem desconsiderar os riscos da atividade, as relações internacionais entre os Estados são permeáveis às políticas de energia nuclear e ao grau de domínio da tecnologia nuclear. Tratados e acordos regionais buscaram estabelecer normas de coexistência pacífica entre os povos. Um dos mais polêmicos instrumentos, o TNP, em vigor desde 1970, na prática dividiu as nações em duas categorias: as potências nucleares e as potências não nucleares, proibidas de adquirir tecnologias sensíveis ou de fabricar artefatos nucleares, ainda que para fins de defesa.

A presença de militares no cenário internacional dessas decisões é indissociável nahistória no Brasil, revelando os fortes vínculos entre energia nuclear, guerra e segurança nacional. Tanto assim que, por receio de a presença dos militares causar apreensão no meio internacional, os adidos e assessores militares foram afastados da cena das negociações do Acordo de Cooperação Técnico-Científica para Uso Pacífico da Energia Nuclear firmado entre o Brasil e a República Federal da Alemanha em 1975. Para recuperar a dimensão política da questão, dois acontecimentos chamaram a atenção. De um lado, a perplexidade da sociedade brasileira com a descoberta de que as três armas mantinham projetos secretos para desenvolver a tecnologia do enriquecimento de urânio e o gesto simbólico de um presidente da República fechando o buraco para testes nucleares da Aeronáutica. Do outro lado, a imagem forjada na sociedade americana pelos gestores de sua política externa de que o antigo fiel aliado tornara-se um perigo em potencial por dominar a tecnologia e estar enriquecendo urânio. A reação de cientistas afiançando as centrífugas transferidas pela Marinha para a Indústrias Nucleares Brasileira e das autoridades exigindo um tratamento equânime para o país no que diz respeito aos limites da inspeção da AIEA, somaram-se aos tratados firmados com países do continente e com o fato de existir, desde 1991, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) para dissipar os temores internacionais quanto aos fins exclusivamente pacíficos dos programas de ambos.

Notas

1. O nome do CNPq foi modificado para Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec nológico, em 1974.

2. Para outra interpretação, ver: Fischer, 1997: 22.

3. Proposta de Lloyd Berkner defendida em seu famoso relatório de 1950, Science and Foreign Relations, citado por Krige, 2006: 166.

4. O 3o Acordo era importante para os EUA, que solucionavam dois problemas: mercado para seus excedentes agrícolas e matéria-prima para estocar como reserva estratégica, isto é, para reatores  super-regeneradores de tório.

5. Donald Kerst inventor do bétraton e responsável pela construção dos laboratórios de alta atividade do reator experimental de Idaho.

6. Na década de 1960, a Universidade do Brasil passou a ser denominada Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

7. Além da Babcock & Wicox, a Bendix International, General Electric, Foster Wheeler & Co e a AMF Atomics enviaram propostas. Ver: CNPq. Comissão, de Energia Atômica. Ata da 34a sessão da Comissão de Energia Atômica em 12 de janeiro de 1956. p. 79; idem. Ata da 36a sessão da Comissão de Energia Atômica em 27 de janeiro de 1956. p. 1 (Arquivo Leite Lopes).

8. O cheque era de 350 mil dólares (valor de 1958), quando se estimava um custo total de US$800 mil para a compra e montagem.

 9. Decreto Legislativo n. 48 de 1966: aprova o Acordo de Cooperação para Usos Civis de Energia Atômica entre o Governo dos Estados Unidos da América e o Governo dos Estados Unidos do Brasil, assinado em Washington, em 8 de julho de 1965.

10. As principais fontes consultadas para esta parte do trabalho foram os relatórios de comissões de inquérito do Senado Federal e os relatórios anuais da CNEN. Ver também: Andrade, 2006.

11. O governo de Kubitschek (1956 -1960) foi marcado pela modernização baseada no capital estrangeiro.

 12. Veja o relato de engenheiros Syllus & Lepecki, 1996: 2; CNEN, 1966: 11, 13.

 13. Informação disponível no documento EG pr. 1974.0318 rolo 3. f. 4055 microfilme (Arquivo E rnesto Geisel).

14. O Brasil tem a tecnologia da conversão, mas economicamente é mais interessante realizar em outro país.

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