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Revista iberoamericana de ciencia tecnología y sociedad

versión On-line ISSN 1850-0013

Rev. iberoam. cienc. tecnol. soc. vol.8 no.23 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mayo 2013

 

ARTICULOS

O enfoque ciência, tecnologia e sociedade (CTS) e educação física: alguns apontamentos

Science, technology and society (STS) and physical education: some notes

Camila da Cunha Nunes, Adolfo Ramos Lamar e Fabio Zoboli *

* Camila da Cunha Nunes: Mestre em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB. Professora do departamento de Educação Física do Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE. E-mail: camiladacunhanunes@gmail.com. Adolfo Ramos Lamar: Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB, Blumenau, Santa Catarina, Brasil. E-mail: ajemabra@yahoo.com.br. Fabio Zoboli: Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Professor do departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe – UFS. São Cristovão, Sergipe, Brasil. E-mail: zobolito@gmail.com.


A problemática científica e tecnológica da Educação Física é cenário de relações sociais, porém no Brasil esta tem sido analisada em sua maior parte pela Epistemologia. Partindo disso, se faz necessário abordar a referida problemática desde uma perspectiva que a discuta de forma mais ampla e aprofundada. Assim, é importante refletir sobre a possível relevância do enfoque Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) para análise da Educação Física. Nessa perspectiva, o presente artigo discute a importância do enfoque CTS na Educação Física na medida em que este enfoque considera não somente os aspectos epistemológicos como também sociais da ciência. O enfoque CTS na Educação Física, e no esporte, envolve a atenção para as suas condições de gênero social, ideológico, econômico, político, cultural, aspectos étnicos, raciais e religiosos, ética e moral, a necessidade de supervisão ou controle público e o progresso democrático e sua implementação. Ao aplicar esta abordagem da CTS é importante entender que as práticas no campo da Educação Física e esportes não são inerentemente boas ou más ou socialmente neutras.

Palavras-chave: Ciência, tecnologia e sociedade; Educação física; Sociedade

The scientific and technological aspects of physical education tend to be studied within the scene of social relations; however, in Brazil it has been analyzed mostly from an epistemological perspective. It is necessary to address such issues from a more extensive and thorough point of view. Thus, it is important to discuss the possible relevance of the relation between physical education and STS studies (Science, Technology and Society). This new approach not only considers epistemological aspects, but social derivations as well. The STS approach requires paying attention to several conditions: social gender; ideological, economical, political and cultual conditions; ethnic, racial, religious, ethical and moral conditions; the need for supervision or public control, democratic progress and the implementation of this last aspect. But before even applying the STS approach, it is important to understand that these practices in the field of physical education and sports are neither inherently good or evil, nor socially neutral.

Key words: Science; Technology and society; Physical education society.


Introdução

A problemática social da Educação Física e do esporte é pouco discutida entre os cientistas sociais no Brasil. Ferreira, Moreira e Marchi Júnior (2008) salientam que este aspecto sofre resistências por parte das Ciências Sociais, pois alguns pesquisadores não se libertaram dos valores e juízos inerentes à sua área, não concebendo o esporte como um objeto de estudo pertinente. Os mesmos autores ainda sinalizam que são poucos os grupos de pesquisa que discutem essa problemática no Brasil1. Nos últimos tempos, se está tentando mudar essa situação; um dos meios adotados consiste nas discussões feitas por alguns grupos de pesquisa que estudam a Sociologia do esporte no Brasil, entretanto, esses grupos apenas se preocupam pela problemática do conhecimento e com a Sociologia da Ciência.1

É relevante aqui mencionar que na Educação Física brasileira existe uma crescente crítica ao ideal positivista da Ciência. Mas, essa crítica está relacionada com a Epistemologia e/ou Filosofia da Ciência. Cabe apontar que na Educação Física influem diversas concepções de ciência. Assim, as concepções sobre, verdade, relação teoria e experimento e racionalidade, predominantes nas referidas ciências, participam de diversas formas no ambiente teórico-metodológico da referida área.

Para os autores do presente artigo, a formação de professores é central na concretização de mudanças na Educação. Assim, concordamos com os portugueses Vieira e Martins (2005) que salientam a existência de várias perspectivas de como concretizá-las. No caso da Educação, com o enfoque Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), parece particularmente relevante partir das concepções dos professores sobre as interligações CTS para desenhar programas de formação mais eficazes.

Na formação de professores de Educação Física no Brasil pode-se trabalhar não somente as questões filosóficas das ciências que formam parte dela ou cooperam com ela. Assim, chamamos a atenção para trabalhar com o enfoque CTS a problemática científico-tecnológica relacionada com o treinamento esportivo, a Educação Física escolar e seu currículo, seu status científico, ética e outros assuntos. Desta forma, esse enfoque pauta uma discussão no âmbito interdisciplinar.

Acreditamos que um dos grandes problemas, quando se discute a Educação Física no Brasil. é perceber sua crise epistemológica, no sentido de ser uma área de conhecimento que tem seus objetos de estudo amparados sob a teoria e o método de outras ciências.

Para fundamentar nossa crítica, trazemos ao texto Valter Bracht (2007), que defende a idéia de que a Educação Física não é uma ciência. No entanto, ela está interessada nas ciências e nas explicações científicas. 

A Educação Física é composta por um emaranhado de diferentes áreas. Conformar um único objeto científico para a Educação Física é, em nosso entender, um tanto quanto impossível. Bracht (2007) menciona que a Educação Física precisa ser pensada mais em pequenas comunidades de diálogo. Isso vai significar, provavelmente, a presença de diferentes comunidades organizadas de diferentes formas, produzindo e vinculando conhecimentos que se orientam por diferentes problemas.

Diante disso, surge então a necessidade de se pensar a Educação Física de forma transdisciplinar, para então melhor compreendermos as necessidades/problemas do homem, um ser humano, complexo. Isso porque as especificidades das disciplinas científicas são, a nosso ver, insuficientes – ou no mínimo reducionistas – para explicar a complexidade de uma prática educativa que articula problemas de um ser humano físico, psicológico, sagrado, cultural, econômico, político, ético...

As pesquisas de Educação Física ficam sempre sendo mediadas pela interface com outras áreas/ciências que vem dar suporte teórico a tais pesquisas. Surge então um problema muito bem explicitado por Vaz (in Bracht e Crisório, 2003: 118): "Muitos dos trabalhos que produzimos em interface explícita com outras áreas do conhecimento não são considerados à altura daquelas áreas disciplinares, mas compõem, às vezes sem muitos problemas, as possíveis subáreas da Educação Física. São o que chamamos, às vezes com mal-estar, outras tantas com jubilo, "bons para Educação Física". No entanto, há que se ponderar que muitos de nossos trabalhos apresentam grande qualidade nas interfaces com outras áreas do conhecimento, mas por reserva de mercado acadêmico ou por puro preconceito – ou pela soma dos dois fatores – são descredenciados para congressos e periódicos, considerados trabalhos acadêmicos menos relevantes nas áreas com as quais dialogamos."

Na menção de Sanchez Gamboa (2010), pesquisar a problemática da Educação Física não consiste apenas em utilizar instrumentos, realizar procedimentos, aplicar algumas teorias e métodos já desenvolvidos em outras áreas, oriundos especialmente das denominadas "disciplinas mães" como Fisiologia, Biomecânica, Psicologia, Sociologia, caracterizando um "colonialismo epistemológico". Implica a elaboração de referenciais teóricos específicos e do delineamento de opções epistemológicas condizentes com a natureza da área, parecendo ser necessário definir pontos de partida e de chegada dos processos do conhecimento, de caminhos, das articulações entre processos e horizontes compreensivos, que fogem das receitas científicas e de paradigmas prontos e consolidados em outras áreas.

Por isso Vaz (1994) chama a atenção ao mencionar que mais importante do que a avalanche de novas pesquisas é o rigor que se possa incorporar na prática profissional. Mais relevante que anúncios de novos conhecimentos imaginários que se pretendam como transformadores, mas que na verdade se revelam conservadores de uma atividade científica nada rigorosa, é o habito de pesquisa como prática do

Camila da Cunha Nunes, Adolfo Ramos Lamar e Fabio Zoboli fazer ciência, e não como preenchimento de espaços em revistas e encontros científicos. Observamos ainda que a problemática científico-tecnológica na área de Educação Física e sua cientificidade tem sido analisada, principalmente, partindo  da Epistemologia. Nessa linha, existem críticas, também, à Sociologia de R. K. Merton (1979) e seus imperativos, que considera que o ethos da ciência se caracteriza pelo a) objetivismo; b) desinteresse material do cientista, que tem como único interesse a procura da verdade; c) universalismo e d) ceticismo institucionalizado (Merton, et al., 1979). O estudioso brasileiro Renato P. Dagnino (2011) salienta que:

"estes imperativos, formulados no plano normativo enquanto uma "ética" do cientista, ainda se mantêm dominantes, embora (como se verá adiante) essa visão tenha sido questionada no plano acadêmico, no ambiente do debate da Sociologia da Ciência contemporânea. A cienciometria, os diversos instrumentos de avaliação quantitativa da pesquisa, assim como a falta de ferramentas de análise qualitativa da produção acadêmica, são fruto deste tipo de compreensão neutra, instrumental, da C&T e estão disseminados enquanto "senso comum acadêmico", apesar da existência de debates, divergências e controvérsias".

A idéia mertoniana da ciência ainda predomina em meio às produções de conhecimento na Educação Física. Uma das perspectivas críticas da Epistemologia Tradicional e da Sociologia mertoniana é a representada pelo enfoque CTS, que tem como uma de suas principais idéias, a crítica da referida idéia mertoniana. Alguns de seus primeiros representantes foram o Programa Forte da Sociologia da Escola de Edinburgo, Escocia, liderado por Barry Barnes de Edinburgo e o historiador marxista da ciência e químico J. D. Bernal com sua obra "A História Social da Ciência".

Neste viés, o presente artigo discute a importância do enfoque CTS na Educação Física, na medida em que este enfoque considera não somente os aspectos epistemológicos como também sociais da ciência.

Dagnino e Thomas (2002) salientam que essa perspectiva conforma um extenso campo para o qual convergem diversas perspectivas disciplinares – sociologia e história da ciência, sociologia e história da tecnologia, economia da mudança tecnológica, análise de políticas, filosofia do conhecimento, estudos ambientais, entre outras – que abordam uma multiplicidade de objetos. Envolvem instituições públicas de P&D, empresas privadas, tradições científicas, dinâmicas sócio-tecnológicas, políticas públicas e prospectiva tecnológica.

Os mesmos autores supracitados ainda salientam que o enfoque CTS, que para alguns é sinônimo dos ESCT refere-se ao estudo da ciência e da tecnologia na sociedade, isto é, da forma na qual os fenômenos técnicos e sociais interatuam e influenciam-se uns aos outros.2

A crítica da imagem tradicional da ciência e da tecnologia na educação física

 Desde David Bloor (1979), a confortável divisão entre um contexto de descoberta e outro contexto de justificação confunde-se, e vai pelos ares o tranqüilo pacto implícito entre sociólogos e filósofos (epistemólogos, metodólogos, moralistas...) que confina aos primeiros o estudo das condições de produção do conhecimento científico (a comunidade científica mertoniana) para conceder aos segundos a consideração dos critérios de validação de seus produtos (o conhecimento científico). A caixa preta que mantinha resguardados os conteúdos próprios da ciência (teorias, leis, demonstrações, conceitos, teoremas...) tem-se revelado, ao abrir-se como uma autêntica caixa de Pandora.

Barry Barnes e o próprio David Bloor, refletindo sobre sua obra (Bloor, 1998), reafirmam os princípios básicos expostos nos primeiros trabalhos do programa forte e seguem afirmando os seguintes pontos como sinais de sua identidade:

  • O caráter contextual das observações, que dependem dos pressupostos do observador;
  •  A existência de um componente intrinsecamente social em todo conhecimento;
  •  O experimento como uma forma de vida prática;
  •  As formas de classificação como convenções sociais;
  •  Os procedimentos ostensivos como processos sociais;
  •  A afirmação do empirismo e de estratégias realistas;
  •  As teorias científicas como metáforas.

Na mesma linha, Bazzo, et al (2003) definem a expressão CTS como um campo de trabalho acadêmico cujo objeto de estudo é constituído pelos aspectos sociais da ciência e da tecnologia, tanto no pertinente aos fatores sociais que influem na mudança científico-tecnológica, como no que diz respeito às conseqüências sociais e ambientais.

Nesta concepção, o enfoque CTS constitui uma perspectiva interdisciplinar composta de inter-relações sociais e técnicas necessárias para a compreensão e aplicação deste enfoque. A missão principal desses estudos é a exposição de uma interpretação da ciência e da tecnologia como processos sociais, ou seja, como empresas complexas em que o aspecto cultural, político e econômico dão forma ao processo e, por sua vez, produzem impacto sobre esses valores e aqueles da sociedade a que pertence (Cutcliffe, apud Nuñez, 2003). E isto significa que o desenvolvimento científico e tecnológico, que inclui a Educação Física, exige uma avaliação cuidadosa de seus "motoristas", e os impactos, um conhecimento profundo de suas inter-relações com a sociedade.

O enfoque CTS tem alcançado um elevado grau de institucionalização nos Estados Unidos, Europa e América Latina. É um caminho para a análise crítica e interdisciplinar da Ciência e Tecnologia e sugere uma nova imagem da mesma, em contraste com a imagem tradicional ou clássica que defende a neutralidade da ciência. A imagem tradicional é uma "imagem internalista" que postulou sua determinação por fatores e valores internos, no caso da ciência, teorias, métodos, e  a verdade, e, no caso da tecnologia, a eficácia, eficiência e desempenho. É também uma "visão romântica" da ciência e tecnologia na Educação Física, e absolutização do papel do desenvolvimento técnico e científico e da referida área na solução dos problemas sociais e de bem-estar ("imagem científica" e "imagem tecnocrática"),  que pressupõe a idéia de que a ciência e a tecnologia são boas por natureza ("boa imagem"), ou pelo menos neutras ou imparciais do ponto de vista social, político, ideológico, da ética, de classe, gênero, raça ou cultural.

Esta imagem clássica da ciência e da tecnologia sugerida especialmente em toda a filosofia moderna (Bacon, Descartes, Iluminismo), e no positivismo, tem operado no campo da Educação Física e do esporte – como sendo parte do conteúdo da Educação Física – tanto nos currículos como na produção do conhecimento, política e dinâmica institucional e de gestão. Não é difícil relacionar esta imagem a conceitos que estabeleceram normas neste domínio, como é o caso no Brasil na década de 30 e 40 do século passado, que se concentra tendo como base o treinamento de Educação Física para mulheres e homens, saneamento forte, ativo, e público, de uma sociedade livre de doenças e vícios (Góis, 2000). O mesmo poderíamos dizer sobre a concepção "militarista", que tinha como escopo a formação ditada pelo governo, no desenvolvimento de homens obedientes e adestrado próprios de condutas apresentadas nos quartéis, como os exercícios que faziam alusão aos exercícios calistênicos.

A tecnização da Educação Física, fundada numa práxis historicamente pautada na concepção do ser humano e de um mundo cartesiano/fragmentado/técnico, casa-se perfeitamente bem com os interesses desta Educação Física que tinha – e ainda hoje tem –, como meio e fim, a competição desportiva. Isto nos leva a pensar que o atleta de alto-rendimento se constitui primeiramente como ideal produzido por projeções racionais mediante as descobertas científicas no campo das ciências de cunho médico/biológico oriundas originalmente do método científico desenvolvido por René Descartes.

Dentre as práxis da Educação Física, o desporto se configura como sendo uma práxis que tem laços estreitos com os valores sociais e do sistema de produção econômica. Nos treinamentos e práxis desportivas realizados no contexto dos programas de Educação Física, o ser humano, muitas vezes, é vítima de uma ética sem sujeito na qual seu corpo tem sido cada vez mais orientado e dirigido pelas leis de competição e do mercado. A vida deve ser o bem maior e ela deve determinar como deve acontecer o processo de competição. Não se pode deixar que a vida se adapte e se sujeite às exigências e caprichos da competição, que têm na "medalha"seu maior objetivo. Nesse caso, percebe-se inclusive a existência de um prazer extracorporal.

Nos valores do processo competitivo, por vezes, o respeito à corporalidade, à honestidade e outros atributos, são valores secundários. O que importa é o quanto o sujeito é capaz de produzir. Desta forma, este fica reduzido a sua capacidade de performance.

A busca exacerbada da quebra de limites humanos através da competição conforma um corpo sujeito a ideais de vitória, e isso, na maioria das vezes, torna secundária a reflexão crítica e ética sobre o próprio existir humano, reduzindo assim a saúde à capacidade de rendimento – diminuindo sobremaneira a dimensão existencial da mesma. A estrutura da competição, organizada em torno dos seus fins, prende-se muito à melhor forma de fornecer resultados a seus objetivos, independentemente dos demais interesses e valores das condições do ser humano.

Há uma instigação recorrente no imaginário desportivo em relação à superação de limites de dor e medo. Circulam vários depoimentos nos meios desportivos de atletas que são vistos como heróis por terem sucumbido à dor para jogar uma final de campeonato. Quem pode se esquecer daquela cena da Olimpíada de Los Angeles, em 1984, onde a maratonista suíça Gabriele Andersen Scheiss cruzou a linha de chegada desconfigurada, surrada pela fadiga e cambaleando sob os aplausos do público por quem foi ovacionada.

Na competição desmesurada é sempre o profissional do desporto a principal vítima. "Será por acaso que muitos dos praticantes do desporto altamente competitivo findam suas carreiras com moléstias que os vão acompanhar para o resto de suas vidas?" (Sérgio, 2003: 31). Após trazer esta relevante reflexão, Manuel Sérgio cita que a cultura desportiva, como sistema coletivo de conhecimento e de conduta, debe estimular o agente do desporto ao respeito pelos outros e por si mesmo! "Apreservação da saúde é um dos aspectos que o atleta deve a si mesmo e aos seus adversários (Ibid)".

A partir do acima descrito percebemos que a concepção de ser humano utilizada pela Educação Física para fundar sua práxis está implícita numa antropologia que imprime uma forte conotação à sustentação de uma Educação Física biologizante. Isto explica historicamente as constantes preocupações que a Educação Física manteve com a manutenção do corpo saudável, com o desenvolvimento de habilidades físico-motoras e principalmente com a performance esportiva. Essa caracterização é confirmada dentro da história da Educação Física pelos exercícios mecânicos feitos nas escolas e também se percebe na repetição exacerbada de gestos esportivos a fim de adestrar fisicamente o aluno para obter uma melhor técnica visando um melhor desempenho em determinada modalidade. Deste modo, não existe muito interesse em aprofundar na história social do uso de C&T na Educação Física.

Estas tentativas realizadas acima, tendo como foco o desporto, são algumas das possibilidades de reflexão a partir e por meio do enfoque CTS na área da Educação Física, que traz críticas às ideologias e valores do cientificismo dessa área, esquecendo- se do sujeito científico como um todo complexo composto por subjetividades.

Educação física, ciência e tecnologia: a relevância do enfoque CTS

Uma das preocupações da perspectiva CTS está nos estudos dos problemas sociais internos das comunidades científicas. Assim, a problemática científica e tecnológica na Educação Física, em particular no interior de suas comunidades acadêmicas, poderá ser tratada como cenário de relações sociais. O social também influi nas teorias, nos experimentos, na hora que se decide que teoria utilizar, portanto as questões sociais, psicológicas, políticas, pessoais, culturais, fazem parte desse contexto.

Deste modo, a Ciência e a Tecnologia vivem sob influência de fenômenos como globalização, nova economia, sociedade de risco e a relação de humanidade. A Educação Física é marcada por constantes mudanças sociais, tecnológicas, econômicas e políticas, e os marcos de poderes, interesses e valores em que se desenvolve. Assim, partindo de Bazzo et al. (2003) e Dagnino e Thomas (2002 ), entendemos que o enfoque CTS refere-se ao estudo da ciência e da tecnologia na sociedade, isto é, da forma pela qual os fenômenos técnicos e sociais interatuam e influenciam-se uns aos outros.

Para Valério e Bazzo (2006), existe uma crescente inserção das inovações científicas/tecnológicas no âmbito social; e a onipresença da Ciência e Tecnologia em nosso cotidiano, conferindo novos significados para os sentimentos e valores humanos, numa mostra do que parece ser a característica mais marcante de nossos dias.

Santin (1987), escrevendo no contexto do currículo, evidencia que na Educação Física o privilégio aos aspectos físico/práticos sobre os intelectuais, políticos e psico/sociais é determinante, tendo em vista sua materialização quase que exclusivamente no esporte, em que os exercícios, treinamentos e práticas desportivas são marcantes e oportunos.

Como podemos observar, estas características visualizadas, sobretudo nos currículos, apresentam pontos buscados pelo mercado de trabalho que desconsideram o sujeito, havendo uma fragmentação entre os requisitos objetivados pela sociedade e as relações humanas e seus valores.

Para que não exista esta fragmentação entre sujeito e objeto é preciso que a sociedade, a Educação Física e o esporte reflitam de forma crítica as inovações geradas pela ciência e tecnologia e ajudem a participação democrática dos seres humanos na sociedade, questionando a exclusão social.

Essas modificações, ao mesmo tempo em que possibilitam benefícios ao meio, causam exclusão, como a troca de seres humanos por máquinas. É o trabalho manual perdendo espaço para a tecnologia, o que nos leva a pensar: até que ponto as inovações são benéficas?

Em meio a esses paradigmas é que a Educação Física se materializa, desconsiderando o desenvolvimento total do indivíduo e as relações sociais entre os cientistas.

Sua práxis é sustentada e desenvolvida na busca de resultados, corpos perfeitos estabelecidos por verdadeiros modelos visualizados na sociedade, ocasionando a exclu-são dos que não tem tal padrão ou não o atingem.

O modelo corporal produzido e difundido pela mídia é um modo de alienação que ar-rasta um grande número de sujeitos à busca do corpo belo, socialmente determinado. Segundo Freitas (1999), é dessa maneira que o corpo é controlado, pois, debatendo-se na busca de uma solução para o conflito – entre o que se é e o que se deve ser e querer – torna-se incapaz de superá-lo, ou seja, de perceber as implicações ideológi-cas que se armam como pano de fundo. É também por esta via que se suscita a ver-gonha do próprio corpo naqueles que não se enquadram nas definições desses modelos.

A imagem corporal é construída através das representações estabelecidas no diadia, permeada por modelos de corpos estabelecidos como se fossem dogmas, despreocupados com a diversidade cultural e preocupados com medidas, músculos e rendimento; permeados, como uma dicotomia, conforme Harvey (2004) sinaliza, por uma cisão entre corpo social e corpo político.

É na perseguição deste padrão de corpo estético pela sociedade, que proliferam as academias de ginástica; as cirurgias de reparação plástica; os programas de dietas; as indústrias de remédios, vitaminas e esteróides anabolizantes; as fábricas de cosméti-cos e tantos outros.

O desenvolvimento econômico e a busca de resultados trazem consequências para a Educação Física, viabilizando cada vez mais materiais, aparelhos e produtos resultan-tes da Ciência e Tecnologia que possibilitem um melhor desempenho. Isto é evidenciado no mundo mercadológico do treinamento desportivo e do fitness. Este desenvolvimento ocasiona muitas vezes a utilização de produtos inadequados para a melhora do desempenho corporal, partindo de paradigmas científicos considerados socialmente neutros.

São verdadeiros padrões estéticos, que caracterizam um corpo em exibição no mer-cado da imagem, oriundos do poder da tecnologia em intervir na estrutura corporal; cada vez mais vemos um corpo construído e reduzido à imagem, sem vestígios das imperfeições da vida que ressaltam formas e curvas corporais.

Para Coelho e Severino (2007) o corpo, superfície privilegiada de inscrição da história, não consegue disfarçar as marcas deixadas pelos diferentes usos e desusos que recebeu no longo do percurso, no qual hoje expõem fotogenicamente suas silhuetas às milhares de lentes invisíveis que o expõem a uma sabatina incessante de controle, vigilância e cobrança.

Hoje vivemos numa sociedade que considera a aparência física como um dos seus aspectos mais relevantes no mundo da exibição. Deste modo, o corpo não pertence à pessoa, mas às regras e orientações, artifícios e disfarces do mundo social. As pesso-as procuram ajustar seus corpos (aparência física e conduta) aos cânones da moral oficial, numa clara tentativa de se auto-valorizar a partir das regras sociais impostas pelo meio (Trasferetti, 2008).

Neste sentido, Pimenta e Anastasisou (2008) salientam que diante das contradições presentes na realidade, que se refletem na universidade como instituição social, é pre-ciso discutir a diferenciação entre treinamento e formação, ciência e tecnologia, infor-mação e conhecimento e seu compromisso com o social ou com o capital, de modo que durante o processo educacional seja possibilitada a reflexão sobre estes aspectos entre os envolvidos no processo.

Nesta perspectiva, alguns autores pontuam e apontam para uma Educação Física que tenha outros valores além dos esportivos, para que a mesma deixe de ter caráter adestrador, autoritário e excludente. Só pensando nestes valores é que o enfoque CTS pode ser trabalhado na Educação Física em geral, seja no contexto escolar, alto rendimento, fitness, saúde, entre outros que abrangem o campo de atuação do profis- sional de Educação Física.

Considerações finais

O enfoque CTS na Educação Física, envolve a atenção para as suas condições de caráter social, ideológico, econômico, político, cultural, aspectos étnicos, raciais e religiosos, ética e moral, a necessidade de supervisão ou controle público e o processo democrático e sua implementação. Este enfoque aborda as relações sociais no interior da pesquisa; o que é "científico" ou não?; a questão da verdade; os condicionantes sociais das produção científica e sua avaliação.

Ao aplicar esta abordagem, é importante entender que as práticas no campo da Edu-cação Física e esportes não são inerentemente boas ou más ou socialmente neutras. Portanto esta análise é necessária para esclarecer as limitações e impactos superve-nientes, independentemente de boas intenções.

Os processos científicos e tenológicos em Educação Física são acompanhadas por riscos, que não residem apenas na aplicação, mas também na própria estrutura do conhecimento. Assim, a análise CTS deve começar na própria concepção do produto, e não apenas depois que ele já está preparado. Aqui se recomenda ter em conta que nem tudo é cientifica e tecnicamente possível, social ou eticamente desejável.

O enfoque CTS sugere a responsabilidade social não somente dos cientistas, mas também, de todas as partes envolvidas. Por isso, é importante discutir esse enfoque entre educadores, pesquisadores, atletas, estudantes e administradores esportivos da Educação Física e Deportes.

Notas

1. Ver anexo ao final das referências com lista de alguns Grupos de pesquisa que estudam esporte no Brasil e as instituições às quais estão vinculados. No total são 20 grupos de Pesquisa que estudam Sociologia do esporte no Brasil.

Anexo

2. Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT).

Referências

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