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Revista iberoamericana de ciencia tecnología y sociedad

versión On-line ISSN 1850-0013

Rev. iberoam. cienc. tecnol. soc. vol.9 no.26 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mayo 2014

 

ARTICULOS

Telecentros: um projeto para a inclusão digital de  jovens de baixa renda?

«Telecentros». A project for digital inclusion of poor youths?

Helga Nazario e Estrella Bohadana *

* Helga Nazario é investigadora, mestre em educação (Universidade Estácio de Sá) e atua na Universidade Federal Fluminense. E-mail: helganazario@hotmail.com. Estrella Bohadana é investigadora, doutora em comunicação, professora adjunta da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e do Programa de Pós- Graduação da Universidade Estácio de Sá. E-mail: ebohadana@gmail.com.


O objetivo deste trabalho é apresentar e discutir parte dos dados decorrentes da pesquisa que investigou as relações entre Tecnologias da Informação e Comunicação e jovens de baixa renda usuários da Internet. Indagamo-nos se os usos da Internet em telecentros por esses jovens, no município de Niterói, constituir-se-iam em ações de inclusão digital. Valemo-nos das conceituações teóricas propostas por Canclini, Cazeloto, Soares, Sorj e Warschauer, que atentaram para as articulações entre inclusão digital e exclusão social. A pesquisa realizou-se em cinco telecentros, com entrevistas e questionários. Para a análise dos dados utilizamos a Teoria de Análise Argumentativa, de Perelman e Olbrecths-Tyteca. Ao final, concluímos que os usos da Internet em telecentros não promovem a inclusão digital, no sentido de proporcionar a inclusão social de seus usuários, como pretendido no discurso governamental. Ainda que tais estabelecimentos criem novos espaços para as relações sociais de jovens, observamos que as ações ali realizadas não reduzem a marginalização já instaurada nesse grupo, evidenciando a precariedade dessas estratégias.

Palavras-chave: Inclusão digital; Internet; Telecentros.

The aim of this paper is to present and discuss the main points of a research that investigates the relationship between Information and Communication Technologies and low-income Internet users. We asked ourselves if the use of the Internet by youngsters in establishments called “telecentros” in the city of Niterói could promote a successful digital inclusion initiative. Our theoretical support was composed by authors like Canclini, Cazeloto, Soares, Sorj and Warschauer, who observed the links between digital inclusion and social exclusion. The study was taken in five “telecentros”, by means of interviews and questionnaires. For data analysis we were supported by the Perelman and Olbrecths-Tyteca’s Theory of Argumentative Analysis. We concluded that the use of the Internet in “telecentros” does not promote digital inclusion as intended in the governmental discourse. Although such establishments create new spaces for social relationships between youngsters, the actions carried out there do not reduce the marginalization already established in this particular group.

Key words: DIgital inclusion; Internet; “Telecentros”.


Introdução

No cotidiano, principalmente das metrópoles, deparamos com conexões de rede sem fio, equipamentos com chips, aparelhos de som digitais, telefones celulares com múltiplas funções, até a não tão nova Internet. A tecnologia digital está em toda parte e de alguma forma envolve a sociedade, mesmo não se difundindo homogeneamente nos países em desenvolvimento.

No Brasil, a disparidade entre usuários da Internet, demarcada pela renda familiar, é exemplo disto.1 Embora as estatísticas revelem um crescente aumento do número de conectados entre as camadas favorecidas, no que se refere à população de baixa renda, a falta de infraestrutura física, de computador e o custo elevado das conexões apresentam-se como importantes fatores responsáveis pelo não acesso à Internet dessa população (CGI, 2010: 1).

Se, por um lado, as discrepâncias no acesso à Internet evidenciam as desigualdades sociais existentes, por outro, demonstram que essas desigualdades não serão resolvidas apenas com o aumento de conectados, uma vez que a não conexão indica a precariedade de renda. Além disso, mesmo que o número de jovens conectados possa crescer, isto possivelmente se deverá mais ao aumento de frequência nos espaços públicos que pela melhoria socioeconômica dessa parcela da população. Nesse sentido, a conexão de per si ou a chamada inclusão digital não será certamente indicadora de inclusão social ou do fim das diferenças sociais, como querem algumas medidas governamentais. 

Pode-se dizer que projetos visando à inclusão digital começaram a ser delineados em 1997, com o Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo), ainda em atividade e estabelecido pela Secretaria de Educação a Distância como “programa educacional com o objetivo de promover o uso pedagógico da informática na rede pública de educação básica”.2 

Já no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, ampliou-se a abrangência e o número de projetos. Citando os diretamente destinados aos jovens de baixa renda: Programa Computador Portátil para Professores, que fornece computadores portáteis sem custo para professores da rede pública; Programa Banda Larga nas Escolas, com a implantação de conexão rápida em escolas; e o Kit Telecentros, um incentivo à criação de espaços públicos gratuitos para acesso à Internet.

No que se refere, especificamente, aos telecentros, estes são uma proposta do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, definidos como espaços públicos e gratuitos que visam proporcionar acesso às TIC, com computadores conectados à Internet, “incluindo navegação livre e assistida, cursos e outras atividades de promoção do desenvolvimento local em suas diversas dimensões”.3 Promovendo o “uso intensivo da tecnologia da informação para ampliar a cidadania e combater a pobreza”, os telecentros teriam o propósito de “garantir a privacidade e segurança digital do cidadão, sua inserção na sociedade da informação e o fortalecimento do desenvolvimento local” (IdBrasil).4 Diante desses objetivos, questionamos sua possibilidade de sucesso, uma vez que o Projeto Telecentros não faz parte de uma política pública mais ampla, capaz de responder pela pobreza e cidadania da população de baixa renda no sentido de modificar seu status.

Neste sentido, indagamos: o uso da Internet em telecentros seria o caminho para promover transformações sociais na população jovem e de baixa renda? É possível para este mesmo jovem, em sua maioria educado por uma escola ineficiente, partir para o contato com a Internet e incluir-se digital e socialmente? É possível ao indivíduo analfabeto funcional, pobre, excluído de seus direitos de cidadão, apoderar- se das tecnologias para magicamente modificar o seu quadro social?

Este artigo apresenta parte dos resultados finais de uma pesquisa realizada em cinco telecentros, cujo objetivo foi o de investigar até que ponto os usos da Internet nesses estabelecimentos, por jovens de baixa renda, no município de Niterói,5 podem promover a inclusão digital.

1. Sobre a pesquisa

Os participantes da pesquisa foram: (a) jovens, com idade entre 15 e 20 anos, com renda familiar entre um e três salários mínimos e usuários de telecentros; (b) monitores de telecentros; e (c) coordenadoras municipais do projeto.

Os dados foram obtidos por meio da aplicação de 50 questionários, contendo perguntas abertas e fechadas para os jovens, visando conhecer as atividades executadas nos telecentros; cinco entrevistas com monitores de telecentros, questionando acerca da inclusão digital e da intencionalidade das atividades oferecidas nesses estabelecimentos e uma entrevista com coordenadoras municipais, com o intuito de conhecer pormenores do Projeto Telecentro.

As entrevistas foram analisadas a partir da Teoria da Argumentação. Esta consiste em identificar a quem os discursos se destinam, quais as teses, os acordos e a maneira com que o orador constrói seus argumentos a fim de persuadir o outro. Esta teoria é “uma alternativa de Análise de Discurso, na qual interpretações são procuradas muito mais junto à intenção do locutor de persuadir do que junto a significações pontuais de cada momento do discurso” (Rizzini, 1999: 105), e tem como propósito a interpretação de processos ideológicos, daí sua relevância sempre que se quer buscar a compreensão de tais processos ou levantar novos aspectos que os permeiam.

Nesta pesquisa, o uso da análise argumentativa contribuiu para desvendar as noções de inclusão digital nas falas dos sujeitos sem que nos detivéssemos apenas no discurso explicito e institucional de leis, decretos e planos.

2. Referencial teórico

O conceito de exclusão digital começou a ser delineado na década de 1990, a princípio com sentido análogo ao termo “digital divide”. Este se referia à lacuna existente entre os indivíduos que possuíam ou não acesso aos computadores, à Internet e à informação on line. No entanto, segundo Warschauer (2006: 21), esta noção reducionista desconsidera que “o acesso significativo às TIC abrange muito mais do que meramente fornecer computadores e conexões à Internet. [...] Insere-se num complexo conjunto de fatores, abrangendo recursos e relacionamentos físicos, digitais, humanos e sociais”. Desconsidera, ainda, que os indivíduos não se classificam apenas entre os que têm acesso e os que não têm.

Outros sentidos foram atribuídos à exclusão digital, apontando a relação desta com uma teia de causalidades – idade, etnia, renda, educação, entre outros – e que qualquer iniciativa para reduzi-la não poderia desconsiderar esse contexto (Warschauer, 2006: 21-24).

Warschauer (2006) enfatiza ser necessário focar a transformação social e não as tecnologias. Debater os conceitos de inclusão social e TIC é uma alternativa que, de modo mais acurado, retrata os desafios a serem superados. A discussão muda do eixo da exclusão digital para o da inclusão social, uma vez que o cerne das ações políticas globais não deve ser apenas superar a exclusão digital. Esta passa, então, a ser concebida como fato relacionado a uma exclusão maior, a social.

Segundo Sorj e Guedes são sempre os ricos “os primeiros a usufruir as vantagens do uso e/ou domínio dos novos produtos no mercado de trabalho, enquanto a falta destes aumenta as desvantagens dos grupos excluídos” (Sorj e Guedes, 2005: 102). Ainda, “(...) Os novos produtos TICs aumentam, em princípio, a pobreza e a exclusão digital” (Sorj e Guedes, 2005: 102).

Já Canclini (2007) nos revela que na atual sociedade globalizada, pensada como “metáfora da rede”, os conectados são os incluídos, enquanto os desconectados são os excluídos. Desta forma, para o autor, “o mundo apresenta-se dividido entre os que têm domicílio, documento de identidade, cartão de crédito, acesso à informação e dinheiro, e [...] os que carecem de tais conexões” (Canclini, 2007: 92).

Elencando os fatores responsáveis pela exclusão digital de parte significativa da população, Mattos e Chagas (2008) afirmam que a falta de investimentos na melhoria da educação básica aumenta as desigualdades educacionais e consolida as distâncias em termos de educação formal, gerando uma diferença que os autores chamam de “cognitiva”. Esta diferença não seria detectada pelos mecanismos de aferição tradicionais de inclusão (medição do percentual de acesso à Internet), falseando a noção de crescimento em qualidade desse acesso. Portanto, não seria possível captar se “de fato a ampliação do número de pessoas conectadas à Internet significa que essas pessoas estão percebendo um acesso qualificado às TIC e se de fato esse acesso tem promovido uma melhoria significativa na qualidade de vida dessas pessoas” (Mattos e Chagas, 2008: 72).

Segundo esses autores, para mensurar a eficácia dos projetos de inclusão digital, os indicadores deveriam verificar se os projetos proporcionam ao indivíduo: “inserção no mercado de trabalho e geração de renda, melhora do relacionamento entre cidadão e o poder público, (...) facilitação das tarefas cotidianas, incremento de valores culturais e sociais, ampliação da cidadania e difusão do conhecimento tecnológico” (Mattos e Chagas, 2008: 86).

Em outra abordagem, Cazeloto (2008) afirma que a inclusão digital é um artifício de engenharia social que visa estender à maioria as possíveis vantagens que as classes média e alta usufruem ao conectar-se. A crítica que faz à ação dos programas sociais de inclusão digital (PSID) é a de que estes estão voltados para capacitar os usuários a realizar as tarefas mais simples, e são oferecidos cursos básicos que não requerem atualizações velozes e constantes de sua clientela, nos quais “o capital cognitivo fornecido (...) é perecível e estático, ao passo que a cibercultura faz da velocidade uma forma de riqueza e subordinação” (Cazeloto, 2008: 135).

Nesse sentido, vale lembrar que, em artigo questionando a relevância da conectividade e da mobilidade nas novas tecnologias, Amaral e Bohadana (2008) apresentam dados (CGI) evidenciando o aumento de conexões à Internet; entretanto, averiguam que esse aumento não ocorre na sociedade em sua totalidade, e sim em grupos mais favorecidos. E, embora constatem que a aquisição de aparelhos celulares cresceu significativamente, a sua utilização para conexão à Internet é de apenas 5% (Amaral e Bohadana, 2008: 4).

Portanto, os autores comprovam a ineficácia dessa mobilidade para disseminar a inclusão digital, uma vez que o índice de desconectados não poderá ser mudado por uma estratégia de tão pequeno alcance, e as tecnologias móveis, “embora facilitem a comunicação e a troca de informações, não possibilitam, por si só, a inclusão digital” (Amaral, Bohadana, 2008: 5).

Ainda acerca da multiplicidade de fatores que influenciam a inclusão digital, temos a questão da alfabetização e do letramento. Segundo Soares (2004), no Brasil, a discussão do letramento está sempre atrelada ao conceito de alfabetização, o que gera uma fusão inadequada dos dois processos, com “prevalência do conceito de letramento, perdendo a noção de alfabetização a sua especificidade. (Soares, 2004: 8).

Ainda discorrendo sobre a perda da especificidade da alfabetização e dos problemas decorrentes de falsas inferências, a autora argumenta que “a percepção que se começa a ter de que, se as crianças estão sendo (...) letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, parece estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo autônomo, independente do letramento e anterior a ele” (Soares, 2004: 11).

A autora alerta ainda que a tendência atual, nos processos de alfabetização, é basear-se numa concepção holística da aprendizagem da língua escrita, na qual “aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido para e por meio de textos escritos”, utilizando experiências e conhecimentos prévios. Nessa concepção, o sistema “grafofônico (as relações fonema–grafema) não é objeto de ensino direto e explícito, pois sua aprendizagem decorreria de forma natural da interação com a língua escrita” (Soares, 2004: 12).

No entanto, as avaliações de ensino apresentam resultados insatisfatórios quanto ao nível de alfabetização de crianças e jovens no contexto escolar. Esse fato tem gerado críticas a essa concepção de aprendizagem da língua escrita, principalmente devido à ausência de “instrução direta e específica para a aprendizagem do código alfabético e ortográfico” (Soares, 2004: 12).

Segundo a caracterização de alfabetização e letramento proposta por Soares (2004: 14), a relação estabelecida é de interdependência. A alfabetização desenvolve-se “no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema–grafema, isto é, em dependência da alfabetização” (Soares, 2004: 14).

Em se tratando da problemática alfabetização e letramento, não podemos desconsiderar que o amplo acesso à escola nem sempre se traduz em aprendizado, já que “entre os 28,3 milhões de crianças de 7 a 14 anos, que pela idade já teriam passado pelo processo de alfabetização, foram encontrados 2,4 milhões (8,4%) que não sabem ler e escrever” (IBGE, 2008a).6 Ainda contamos com 14,1 milhões de analfabetos absolutos, o que corresponde a 10,0% da população adulta.

Nesse caso, não é apenas o analfabetismo que inviabiliza o letramento digital, pois o analfabetismo funcional também deve ser contabilizado. E mensurar com precisão o percentual de analfabetos funcionais em uma população é tarefa complexa. Considera-se analfabeto funcional a pessoa que, apesar de possuir a capacidade de decodificar letras e números, não depreende o sentido de frases e textos e/ou não efetua as operações matemáticas. Também é analfabeto funcional aquele que, com 15 anos ou mais, possui menos de quatro anos completos de estudo, ou seja, jovens e adultos que não concluíram o primeiro segmento do ensino fundamental (IBGE, 2008b: 44).7

Em 2007, esse percentual era de 21,7% e, se somados aos 10,0% de analfabetos absolutos, chega-se ao patamar de 31,7% da população (IBGE, 2008b: 45), não alcançando mínimo esperado de competências para a lectoescrita.

Em face do exposto, indagamos: até que ponto a inclusão digital é factível a indivíduos que não efetivarão a produção de conhecimento autônomo por meio de busca e seleção de informações, quer em livro, quer na Internet?

3. Resultados da pesquisa

3.1. Monitores

Como mencionado anteriormente, os resultados abaixo transcritos referem-se a parte da pesquisa. Neste artigo, apresentaremos trechos das entrevistas realizadas com cinco monitores de telecentros, cujo objetivo era averiguar o que entendiam por inclusão digital, uma síntese do perfil dos jovens freqüentadores de telecentros e das principais atividades realizadas nestes estabelecimentos e fragmentos de entrevista realizada com coordenadoras do projeto.

Durante entrevista no primeiro telecentro (T1), a monitora (M1) nos relatou que o computador é visto como algo que aguça o interesse de todos, e mesmo crianças e jovens analfabetos sentem vontade de manipulá-lo. As atividades de reforço escolar e pesquisas são em grande parte executadas no computador, e o livro didático não é mais utilizado, a não ser para recortar gravuras para os trabalhos. Em seu discurso, a inclusão digital se remete à comunicação, ao acesso às informações e à possibilidade de experimentar virtualidade no ciberespaço. Compara o acesso à Internet ao telefone, exaltando a mobilidade de ambos. Um trecho elucidativo de sua resposta à primeira pergunta nos diz que inclusão digital é “utilizar a informática como meio de se comunicar, como um meio de divulgar algum produto, meio de se comunicar com alguma pessoa, de falar a distância, como antigamente nós tínhamos o telefone (...)”, e ainda ressalta: “É você estar incluído digitalmente dentro de um sistema [em] que você pode, sentado numa cadeira, viajar o mundo”.

Tendo em vista a clientela carente que freqüenta esse espaço, “viajar pelo mundo” pode ser visto como uma oportunidade de participar de outra realidade que não a sua. As desigualdades sociais, que também se reproduzem no ciberespaço, não os impediriam de sonhar – e, por que não dizer, viver virtualmente uma outra história. A comparação da navegação no mundo virtual com uma viagem pelo mundo destaca a amplitude percebida para o ambiente. Quando frisa que isso é feito “sentado numa  cadeira”, a locutora destaca também que muito é conseguido onde geralmente nada se consegue.

Com relação à educação, sabemos que o livro didático está na pauta de discussões, sendo questionado como única fonte válida de saber. No entanto, aboli- lo totalmente nos parece retirar da população escolar, que não tem acesso a jornais e revistas, mais uma fonte de informações. Porém, nas palavras de M1, é preciso conformar-se às mudanças, pois o “livro acabou, o livro só tá na estante pra enfeitar, o livro que a gente usa aqui é só o de literatura”.

Resumindo, a desvalorização do livro estaria se dando em função de uma comparação com o uso da Internet, o qual ocuparia o lugar do uso do livro, mostrado como ineficaz. Haveria, nesse caso, uma mudança hierárquica: o computador ganha um valor no ambiente superior ao livro didático utilizado na escola, que vem exatamente da comparação feita entre seus usos.

Ainda acerca da importância do computador, M1 ressalta que, depois que aprendeu a usar o computador, suas atividades profissionais se tornaram mais ágeis ou mesmo mudaram de perfil, em suas palavras: “Antes eu tinha medo do mouse, (...) hoje não, hoje sem computador metade do meu trabalho eu não posso fazer. Então, a inclusão digital passa a ser um mecanismo do seu dia a dia, né, uma necessidade do seu dia a dia”. Este relato nos permite concluir que, ao inserir os jovens nas tecnologias digitais, mais rapidamente estes usufruirão de benefícios, tal como ela usufruiu. 

Para M1, “hoje em dia adolescente procura emprego, adolescente que não quer se envolver com bandidagem, com vida errada [...]”. Fica implícita a oposição entre trabalho e bandidagem, ou seja, uma coisa invalida a outra. Sem a informática que oportuniza a entrada no mercado de trabalho, restaria uma única opção para este jovem, a bandidagem.

Seus argumentos podem ser classificados em quase-lógico com relação de reciprocidade, têm a aparência de raciocínios formais, o que “nos tempos contemporâneos acrescenta um valor retórico a este tipo de argumento. (...) Parecer com enunciados científicos é um privilégio” (Castro, 1997: 84).

Já a segunda monitora entrevistada (M2) afirma que os telecentros “por si só não bastam, visto que a figura do monitor faz toda a diferença”. Para ela, a inclusão digital se dá em etapas: “No primeiro momento, vou passar [...] o mouse, depois o teclado, entendeu? Depois, eu vou prosseguir com o curso em diante, Internet, e-mail, entendeu? Então pra mim, eu posso definir inclusão digital como um acesso, um meio de informação, pra quem realmente não tem acesso nenhum”.

A tese que se apresenta em seu discurso é: inclusão digital é igual a acesso à informação. O termo informação aqui se encontra ampliado pela ambigüidade que a locutora deixa quando sugere que esses usuários não sabem nada de nada. Não saber nada aqui pode significar não ter o domínio dos esquemas básicos necessários à leitura e à escrita.

Os dois acordos construídos no presente do indicativo conferem a ideia de generalidade ao discurso e se reportam ao real. O primeiro evidencia a exclusão digital, já que é ressaltado o fato de os usuários não terem acesso à informação, nada saberem e, ao procurarem o telecentro, quererem mudar esta realidade. O segundo nos remete, indiretamente, a duas ideias: a da Internet como repositório de informações e a da inclusão digital como capacidade para acessar esse repositório. M2 ressalta, ainda, a responsabilidade de o monitor garantir que o usuário cumpra as seguintes etapas: adquirir destreza com o mouse e o teclado, usar software para editar textos, elaborar planilhas e navegar na Internet. Cumprida essas etapas, a inclusão digital estaria completa e, curiosamente, na percepção de M2, isto independeria do grau de escolarização do indivíduo.

O terceiro monitor (M3) acredita que a inclusão digital se relaciona com a exclusão social. Enfatiza que é preciso alterar o estado de marginalização em que o indivíduo se encontra, para que possa ascender à condição de cidadão.

Sobre a maneira como percebe a inclusão digital, M3 diz: “É você oferecer acesso à tecnologia da informação e, além disso, você ensinar também a usar de uma maneira que vai melhorar a vida da pessoa.” Para M3, a cidadania está vinculada a uma possível mudança que se daria ao longo do percurso no telecentro: “[A pessoa] entra, processa, modifica e sai uma coisa diferente. [...] Então qual seria a melhor opção? Seria modificar o processo. Eu, pelo menos, tento fazer do telecentro local de pensar, de ficar repensando no contexto dessa comunidade.” Para atingir essas “metas”, M3 enfatiza a necessidade oferecer além dos cursos, as oficinas.

No entanto, sua argumentação não inclui as ações que deveriam ser promovidas para que o telecentro venha a se tornar um “local de pensar”. Mesmo sem esclarecer, M3 vincula o uso da Internet com a melhora de vida das pessoas e fortalece a ideia de que a Internet não deve ser apenas “veículo de entretenimento”. E, finalmente, para M3, a “inclusão digital é mudança: [o indivíduo] entra marginalizado, processa e sai o cidadão”.

Podemos interpretar os argumentos de M3 de duas formas diferentes, como fundado na estrutura do real e quase-lógico (Castro, 1997: 84-86). Ao considerar sua argumentação como fundada na estrutura do real, estabelecemos uma relação de meio e fim, na qual a inclusão digital é o meio e melhorar a vida é o fim. O monitor visa por meio da inclusão digital alterar o status de excluído para o status de cidadão. Já ao classificarmos seus argumentos em quase-lógicos, estes reforçariam a lógica dos raciocínios formais. Um implicaria o outro: a inclusão digital resulta em inclusão social.

O quarto monitor, (M4), chamou nossa atenção pelo tom enfático de sua resposta no que se refere à inclusão digital. Para este, a inclusão digital seria o primeiro passo, pois o objetivo maior seria “transformar o excluído digital em um especialista da informática”. Em seu discurso, afirma que a inclusão digital é “você disseminar realmente a informática em todas as áreas. Fazer com que todos tenham pelo menos o conhecimento mínimo dessa área digital”. E prossegue: “É fazer [com] que saia daqui um profissional da informática; primeiro ele começa aprendendo a mexer no computador, aprende a acessar a Internet e tudo mais, aí ele se torna um usuário, depois ele pode se tornar um profissional.”

Ainda que seu discurso tenha dado ênfase à possível transformação do usuário de telecentro em profissional da Internet, não consideramos ser esta a sua tese. Nos trechos “é você disseminar realmente a informática” e “fazer com que todos tenham pelo menos o conhecimento mínimo”, notamos que sua noção de inclusão digital se relaciona com a imersão em tecnologias e não propriamente na formação de especialistas em informática.

Segundo esse locutor, a inclusão digital é “direito de todos, e alcançar os indivíduos que já são incluídos digitais depende do desejo de cada um, uma vez que as ferramentas para essa instrumentalização estão disponíveis nos telecentros”. Portanto, para M4, o usuário do telecentro deve se responsabilizar por sua aprendizagem técnica.

Podemos considerar que sua tese é: “disseminar as TIC para que todos (indivíduos) tenham algum conhecimento digital”. Este monitor não questiona a aplicabilidade da aprendizagem técnica da informática, pois basta estar inserido de alguma forma nas tecnologias para ser incluído digital.

Seus argumentos podem ser classificados em quase-lógicos. As premissas, no presente do indicativo, estruturam-se como afirmações em linguagem corrente e parecem raciocínios formais; entretanto, não gozam “da força de univocidade dos signos da linguagem matemática” (Castro, 1997: 84).

O quinto monitor, (M5), atua em um telecentro frequentado por usuários de um centro de tratamento para dependentes químicos instalado no mesmo prédio. O discurso de M5 vai ao encontro das outras falas apresentadas nesta pesquisa, visto que destaca a relevância da comunicação. O locutor nos afirma que a inclusão digital é importante para saber o que “rola no mundo”, exalta a facilidade de acesso e diversidade de informações na Internet.

Novamente, algumas questões se evidenciam: por que é importante estar a par do que “rola” no mundo de informações da Internet? E o que fazer com as descobertas depois de saber das últimas novidades? Segundo M5: “[...] tudo está relacionado à Internet, à informática no caso. Então, qualquer coisa que você fizer, vai ter auxílio da informática pra você viver.” Para ele, a inclusão digital serviria também “pra facilitar a eles quando forem procurar um emprego, alguma coisa, procurar pela Internet, […] pra não perder tanto tempo pra se deslocar ao trabalho, pra botar currículos, essas coisas”.

Em seu discurso, na Internet, as informações seriam fluidas, estariam à disposição do usuário para auxiliá-lo até para conseguir postos de trabalho. Ora, uma vez que este usuário, como já mencionamos outras vezes, é proveniente de marginalização, sendo não apenas excluído digital, mas também social, que empregos seriam esses disponíveis na Internet? Parece-nos que o discurso que afirma haver postos de trabalho à distância, no ciberespaço, que permitam aos trabalhadores pobres atuar em suas residências, pra não perder tanto tempo pra se deslocar ao trabalho, é marcado por um ideal que não encontra eco na realidade social.

Não poderíamos deixar de mencionar que, quando adentramos a sala, o monitor já estava e permaneceu todo o tempo da entrevista com um dos fones de seu MP3 na orelha. Quando os usuários do telecentro, além da pesquisadora, tentavam lhe dirigir a palavra para saber se a Internet estava funcionando, ele forçosamente abaixava o volume para responder, numa atitude muito mais típica dos jovens que lá se encontravam do que o esperado de um promotor, um monitor, de inclusão digital.

A sua tese é: “A inclusão digital é pra que fiquem por dentro do que tá rolando atualmente mundo.” Neste caso, podemos interpretar seus argumentos como fundados na estrutura do real, pois “se apóiam sobre a experiência, sobre ligações reconhecidas entre as coisas e apresentadas como inerentes à natureza das coisas” (Castro, 1997: 84). Essas argumentações se parecem com uma explicação de fatos e, neste caso específico, evocam uma relação do tipo causa e efeito. Podemos dizer que, “se a Internet condensa o mundo e a inclusão digital me proporciona acesso a esse mundo, quando me torno incluído, tenho acesso às informações, facilidades e trabalho”.

Observamos que os discursos sobre a inclusão digital de todos os monitores entrevistados foram uníssonos no que concerne à importância que atribuem ao acesso às TIC e ao uso massivo da Internet. Ainda que desconfiem não ser possível promover literalmente a inclusão social por meio da inclusão digital nos moldes desse projeto (telecentro), validam as ações que realizam nesses estabelecimentos, conferindo-lhes destaque.

3.2. Jovens usuários de telecentros

Voltando nossas atenções para o questionário aplicado a 50 jovens e respondido corretamente por 39 destes, destacamos que nos valemos de três perguntas para caracterizá-los: a idade, o gênero e a renda familiar.

Com relação à faixa etária, verificamos que predominam os usuários de 15 anos (28%), seguido dos de 17 anos (23%). O gênero que predomina é o masculino (64%) e na questão renda familiar, a maior concentração de respostas nas primeiras faixas (até um e de um a três salários mínimos) nos permitiu confirmar o baixo poder aquisitivo desses usuários. Esses dois segmentos totalizam 74% dos entrevistados.

Na questão relativa ao lazer visávamos saber se as visitas a telecentros também eram citadas como atividades recreativas. E, conforme prevíamos, além de menções aos esportes, o jogo de futebol era o grande destaque; as idas à praia e às igrejas; os jogos de celular; os games manuais; também o acesso à Internet foi citado. Destacamos que algumas atividades que supúnhamos serem citadas, ainda que em baixa frequência, tais como assistir a peças de teatro ou leitura de livros, não foram mencionadas. As atividades recreativas são quase sempre gratuitas. Estes jovens vinculam o lazer às atividades relacionadas à navegação e aos jogos na Internet (35% usufruem o seu tempo de lazer em conexões no ciberespaço) e como veremos adiante, uma vez que não dispõem de conexões caseiras e nem renda para freqüentar lanhouses ou cibercafés, conectam-se em telecentros, sempre que possível.

Quanto ao local onde aprendeu a utilizar o computador, os jovens participantes desta pesquisa fizeram seus primeiros contatos com a Internet, em lanhouses (38%), seguido do telecentro (23%) e da escola (18%). A casa, o curso e a casa de amigos ou parentes foram pouco mencionados.

Ao questionarmos esses jovens acerca da freqüência de suas visitas a telecentros, em primeiro lugar, obtivemos a resposta de três a quatro vezes por semana (41%), em segundo lugar, cinco ou seis vezes por semana (36%), seguidos de uma ou duas vezes por semana (15%). Em último lugar, a opção raramente, com 8% da freqüência. Ressaltamos que nenhum usuário de telecentro pode frequentá-lo diariamente ou seis vezes por semana, uma vez que tais estabelecimentos funcionam de segunda a sexta-feira.

Como já mencionamos anteriormente, quando questionados acerca da posse de computador doméstico com ou sem acesso à Internet, os usuários de telecentros nos informaram que, em sua maioria (54%), não possuem computador doméstico. Com relação aos jovens que possuem computadores, com conexão à Internet, temos 28%, ainda que, em muitos casos, esta conexão não seja rápida (linha discada), e sem acesso à Internet, temos o restante dos usuários (18%).

Por fim, a questão: “Com que finalidades você usa a Internet nos telecentros?” foi de suma importância para a pesquisa. As finalidades informadas pelos usuários atrelam-se aos depoimentos dos monitores e nos permitiram ambos os discursos eram consonantes. Aferimos os maiores percentuais no uso comunicacional e recreativo da Internet (58% atestaram jogar on e off line, navegar em Orkut, MSN, Twitter e Facebook).

Em síntese, estes jovens ávidos pelo ciberespaço, uma vez nele navegando, não vivenciam situações ricas que possibilitem por meio da inclusão digital, reverter a sua própria condição de excluído social tal qual esperado.

3.3. A coordenação do projeto

Na entrevista em questão, as coordenadoras nos apresentaram os diferenciais do projeto Telecentro se comparado a outros projetos governamentais, detalharam os objetivos e normas de funcionamento desses estabelecimentos e apontaram as dificuldades em mantê-los. Em seus discursos, observamos a repetição dos objetivos governamentais e a ausência de questionamentos com relação à eficácia desse projeto.

Quando questionadas acerca dos objetivos e diferenciais do projeto de inclusão digital, fizeram menção aos objetivos explícitos nos discursos governamentais, citaram a portaria interministerial que operacionaliza o Programa Telecentros e os sites governamentais IdBrasil (Inclusão Digital - Brasil). Ressaltamos que não forneceram suas noções particulares de inclusão digital, visto que se limitaram a nos indicar essas fontes. Em seguida, nos apontaram que:

Com relação à possibilidade de avaliar o andamento dos projetos, elas nos informaram que se fazem sempre presentes, a fim de detectar e corrigir falhas, mas que as maiores contribuições são os feedbacks que as comunidades fornecem: “é, até por conta, como acontece de fechar, como, por exemplo, aconteceu agora lá no morro (telecentro), as meninas (monitoras) vieram se desligar, e vieram até pra dizer que o pessoal lá está muito triste” (áudio gravado com coordenadoras do projeto).

Tendo em vista tais discursos observamos que não há acompanhamento e avaliações que de fato permitam perceber se este projeto “permite mudar a condição social do excluído conferindo a ele o status de cibercidadão” e imersos no pensar de Freire e de Bakhtin, entre outros, podemos destacar que sem conhecer a “alma” da cultura do outro, nada podemos compreender de modo criativo, aberto, sem invasão. O diálogo se instaura no encontro e no contato. Acreditamos que, quando há essa instauração, transparece o que Freire denomina ser mais.

Segundo Freire, a vocação para o ser mais fica na natureza humana como tal, ao longo da história de homens e mulheres e historicamente condicionada. Salienta que o ser mais é vocação por isso, “não é dado dado, nem sina nem destino certo” (Freire,1994:191). Adverte que é tanto vocação como pode, distorcidamente, virar desumanização. E acrescenta que viver essa vocação implica lutar por ela e que, sem essa luta, ela não se concretiza. Conclui que, nesse sentido, a liberdade é um direito que ora conquistamos, ora preservamos, ora aprimoramos, ora perdemos. E afirma: “em que pese, ontológica, a humanização anunciada na vocação não é inexorável, mas problemática. Tanto pode concretizar-se quanto pode frustrar-se. Depende do que estaremos fazendo do nosso presente” (Freire, 1994:191).

Ciência e tecnologia, no dizer de Freire, como já mencionado, não são quefazeres assexuados ou neutros. A neutralidade é a maneira ideal de escamotear uma escolha (Freire e Horton, 2003: 116).

Assim, acordamos com Matos e Chagas (2008: 85) ao afirmarem que os responsáveis pelos indicadores nacionais deveriam averiguar os efeitos práticos desses projetos de inclusão no cotidiano dos que a eles se submetem.

E mais: os responsáveis pelos projetos de inclusão, na verificação desses efeitos,deveriam perceber que “o homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não pode ser objeto dela” (Freire, 1997: 27).

Considerações finais

Os discursos acerca da inclusão digital nos levaram a concluir que os monitores não alcançam a amplitude de fatores envolvidos na exclusão social e desconsideram a complexidade de ações multidirecionadas que seriam necessárias para minimizar essas disparidades.

Na lógica governamental incorporada pelos monitores, o indivíduo deve incluir-se digitalmente e, com isso, evoluir socialmente. Metaforizando, dentre os diversos projetos para a inclusão digital, os telecentros seriam os veículos ofertados pelos governos, e os indivíduos marginalizados seriam os motoristas responsáveis por habilmente conduzirem-se pela estrada digital, chegando ao final dela, já na condição de cidadão, ao lugar da não-pobreza.

Consideramos que o foco governamental deveria estar centrado em ações que permitam ao excluído ter acesso à educação de qualidade, sanando as questões de alfabetização e letramento existentes. Essas medidas possibilitariam ao indivíduo efetivar leituras e escritas críticas: da sociedade, de livros e de conteúdos na Internet.

Além disso, as ações governamentais deveriam voltar-se contra a precarização do trabalho e promover políticas de proteção ao mesmo, interferindo no mercado que visa exclusivamente ao lucro. Esses jovens deveriam ter assegurada a escolarização, adentrando no mundo do trabalho em idade ideal e não precocemente.

E, finalmente, para a diminuição da brecha entre os informados e os desinformados, ou melhor, entre os “ciberincluídos” e os “ciberdesincluídos” – criando neologismos para sermos mais claros –, as ações de inclusão digital deveriam ser centralizadas e não pulverizadas, a fim de que todo o processo pudesse ser avaliado continuamente.

Neste sentido, o caminho seria primeiro sanar as disparidades socioeconômicas para posteriormente pensar na inclusão digital. Pois, como combater a perversidade do ciclo de consumo, de informações, inclusive, que sempre confere o acesso a novos produtos aos ricos e depois, após um tempo (curto ou longo), difunde-se (ou não) aos pobres, sem provocar profundas alterações na divisão social de bens?

Esta pesquisa evidenciou as fragilidades do discurso sobre a inclusão digital, constatando empiricamente que os usos da Internet em telecentros por jovens de baixa renda, no município de Niterói, não conduzem à inclusão digital, tal qual preconizada na fala e nos documentos governamentais. O uso da Internet em telecentros não “amplia a cidadania”, não combate “a pobreza” e nem garante “o fortalecimento do desenvolvimento local”.

Em outras palavras, podemos inferir que o projeto de inclusão digital está muito longe de promover a instauração do diálogo com a população de baixa renda. Nesta perspectiva, nos unimos ao pensar de Paulo Freire (2003: 138), que tão sabiamente questionou: “Como é possível para nós trabalhar em uma comunidade sem sentir o espírito da cultura que está lá há muitos anos, sem tentar entender a alma da cultura?” E nos responde, afirmando que não se pode interferir, pois, “sem entender a alma da cultura, apenas invadimos essa cultura” (Freire, 2003: 138).

Na concepção deste autor, a educação implica buscas. E estas seriam realizadas por um sujeito que é homem. E afirma:

“O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não pode ser objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém. Por outro lado, a busca deve ser algo e deve traduzir-se em ser mais: é uma busca permanente de si mesmo (...). Esta busca solitária poderia traduzir- se em ter mais, que é uma forma de ser menos. Esta busca debe ser feita com outros seres que também procuram ser mais e em comunhão com outras consciências, caso contrário se faria de umas consciências, objetos de outras. Seria coisificar as consciências” (Freire, 1994: 27).

Finalizamos nossas reflexões apontando para a necessidade de transformar as concepções de inclusão digital de maneira que, traduzidas em ações, não mais “coisifiquem” o homem e sua consciência. Acreditamos ser mister repensar o que se está fazendo no presente com essa formação tecnológica, “sob pena de mutilar-se e mutilar-nos” (Freire, 1994: 94), não combatendo a pobreza, não ampliando a cidadania, tampouco fortalecendo o desenvolvimento local.

Notas

1. O Comitê Gestor da Internet afirma que, na população brasileira com rendimentos de “até um salário mínimo, o percentual de usuários de Internet é de 16%, contra 79% de usuários na faixa de cinco ou mais salários” (CGI, 2010:17). Este mesmo Comitê demonstra que, pesquisando somente a população de baixa renda, 84% não possuem acesso algum à Internet e que os 16% restantes realizam esse acesso de cibercafés, ou telecentros (CGI, 2009:126).

2. Disponível em:. Acesso em 10 de maio de 2010http://portal.mec.gov.br/index.php? option=com_content&view=article&id=244&Itemid=823. Acesso em 10 de maio de 2010.

3. BRASIL, Portaria Interministerial MP/MCT/MC no 535, art. 2o, parágrafo IV, grifo nosso.

4. Disponível em: www.idbrasil.gov.br. Acesso em 10 de abril de 2010.

5. O município de Niterói apresenta o segundo menor índice de pobreza do estado. É um dos principais  centros financeiros, comerciais e industriais do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em 17 de setembro de 2010.

6. A Síntese dos dados do IBGE atesta que 97,6% dos indivíduos em idade escolar estão matriculados em instituições de ensino. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&  acesso em 20 de julho de 2009. Síntese dos dados relativos ao ano de 2007.

7. Ver IBGE. Dados de indicadores sociais - Condições de vida da população brasileira. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2008/indic_sociais2008.pdf acesso em 20 de julho de 2009.

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