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Revista iberoamericana de ciencia tecnología y sociedad

versión On-line ISSN 1850-0013

Rev. iberoam. cienc. tecnol. soc. vol.11 no.31 Ciudad Autónoma de Buenos Aires ene. 2016

 

DOSSIER-ARTÍCULOS

A questão da técnica e ciência em Jürgen Habermas

La cuestión de la técnica y la ciencia en Jürgen Habermas

The Issue Of Technique And Science In Jürgen Habermas

Vicente Zatti *

Professor de filosofia do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: vicentezatti@yahoo.com.br.


Habermas em seu diagnóstico da sociedade não faz uma crítica à razão técnica como tal, maselabora uma crítica à sua universalização, à perda de um conceito mais compreensivo de razão em favor da validade excessiva do pensamento científico e tecnológico. Não se trata de preconizar a ruptura radical com a razão técnica, senão situar adequadamente esta dentro de uma teoria da compreensão da racionalidade. Para situar a questão da técnica e ciência dentro da teoria da racionalidade habermasiana, analisamos temas centrais da primeira fase do pensamento do filósofo alemão, como positivismo, tecnocracia, colonização do mundo da vida, suspeita à filosofia da consciência. A delimitação de um espaço legítimo para a técnica e ciência, reconhece sua importância para a reprodução material da sociedade, mas ao mesmo tempo, estabelece o mundo da vida como uma esfera inacessível à razão instrumental, pois legitimamente é regida pela razão comunicativa. A ação não distorcida da razão instrumental está restrita ao sistema. E sua legitimidade ética, política, estética, é estabelecida por algo externo a si, o mundo da vida.

Palavras-chave: Técnica e ciência; Razão instrumental; Razão comunicativa.

Al hacer un diagnóstico de la sociedad, Habermas no critica la razón técnica en sí, sino su universalización, el excesivo valor otorgado al pensamiento científico y tecnológico, que conduce  a la pérdida de un concepto más comprensivo de la razón. No se trata de preconizar la ruptura radical con la razón técnica, sino de situarla adecuadamente dentro de una teoría de la comprensión de la racionalidad. Para situar esta cuestión de la técnica y la ciencia dentro de la teoría de la racionalidad habermasiana, analizamos algunos temas centrales de la primera etapa del pensamiento del filósofo alemán, tales como el positivismo, la tecnocracia, la colonización del mundo de la vida, la sospecha de la filosofía de la conciencia. La delimitación de un espacio legítimo para la técnica y la ciencia reconoce su importancia en la reproducción material de la sociedad, pero al mismo tiempo establece el mundo de la vida como una esfera inaccesible a la razón instrumental, pues, legítimamente, es regido por la razón comunicativa. La acción no distorsionada de la razón instrumental se restringe al sistema. Y su legitimidad ética, política y estética es establecida por algo externo al mundo de la vida.

Palabras clave: Técnica y ciencia; Razón instrumental; Razón comunicativa.

By making a diagnosis of society, Habermas does not criticize the technical reason per se, but its universalization, the overestimated value placed upon scientific and technological thinking that leads to the loss of a more comprehensive concept of reason. This is not about upholding the radical rapture with technical reason, but about correctly placing it within a theory of the understanding of rationality. In order to place the technical and scientific issue within the Habermasian theory of reason, we analyse some central themes in the German thinker’s first period, such as positivism, technocracy, the colonization of the lifeworld, the philosophy of consciousness. The delimitation of a legitimate space for technology and science becomes relevant in the material reproduction of society, while the lifeworld is established as an unattainable sphere for instrumental reason, being legitimately ruled by communicative reason. The non-distorted action of instrumental reason is restricted to the system; and its ethical, political and aesthetical legitimacy is determined by something external to the lifeworld.

Key words: Technology and science; Instrumental reason; Communicative reason.


Introdução

Nesse artigo procuramos retomar os principais conceitos habermasianos sobre a questão da técnica e ciência de tal modo a demonstrar que o filósofo alemão não se coloca como contrário ao desenvolvimento técnico-científico, ele busca apenas criticar a elevação da racionalidade instrumental como a única instância de verdade.1 Segundo MacCarthy (1995: 42) Habermas em seu diagnóstico da sociedade não faz uma crítica à razão técnica como tal. Sua crítica se volta à sua universalização, à perda de um conceito mais compreensivo de razão em favor da validade excessiva do pensamento científico e tecnológico, a redução da práxis à técnica, e a extensão da ação racional com respeito a fins a todas as esferas de decisão. Portanto, a resposta adequada não é a ruptura radical com a razão técnica, senão situar adequadamente esta dentro de uma teoria da compreensão da racionalidade.

A crítica habermasiana se dirige ao positivismo que estabeleceu uma ideologia tecnocrática segundo a qual a racionalidade instrumental é estendida como a única possibilidade de critério de validação, desse modo, a práxis, âmbito de legitimidade do mundo da vida, fica reduzida à técnica. “[...] a forma racional da ciência e da técnica, isto é, a racionalidade materializada em sistemas de ação racional teleológica acaba por constituir uma forma de vida, uma ‘totalidade histórica’ de um mundo vital” (Habermas, 2009: 55). Isso representa a colonização do mundo da vida pelo sistema, o que reduz a liberdade humana ao invadir espaços legítimos de interação. Em seu diagnóstico social, Habermas encaminha a crítica ao positivismo, à tecnocracia, à filosofia da consciência e à colonização do mundo da vida pelo sistema, o que vai lhe permitir resgatar a racionalidade como instância emancipatória através da proposição da racionalidade comunicativa.

1. A questão do positivismo

No começo da década de 60 ocorreu a chamada polêmica sobre o positivismo na sociologia alemã, iniciada por Adorno e continuada, dentre outros, por Habermas. Os desdobramentos das discussões que se travaram em torno desse assunto aparecem principalmente em Conhecimento e Interesse, A lógica das ciências sociais e Técnica e Ciência como Ideologia. Segundo Pinzani (2009: 50) o que Adorno e Habermas põem em questão é o fato de as ciências sociais assumirem uma atitude indiferente em relação ao mundo criado pelo homem, da mesma forma como acontece nas ciências naturais. Eles acusam as ciências sociais positivistas de quererem encontrar de forma dedutiva leis que possam ser pensadas em analogia com as leis das ciências naturais. Desse modo, também as questões de prática da vida humana ficam subsumidas às questões técnicas:

“Nesta civilização a-histórica, por isto, as ciências nomológicas, que excluem metodologicamente uma relação com a história, assumem a ‘direção da ação e do conhecimento’. A sociedade moderna ‘obedece às leis da reconstrução do mundo por meio das ciências naturais e sociais que se transformam em técnica; a calcificação e a autonormatividade da civilização científica e científico-industrial moderna suspendem a possibilidade de produção de um efeito por parte da personalidade dirigida por ideais, assim como a necessidade de se compreender historicamente na ação e na intervenção política e social” (Habermas, 2011: 35).

No prefácio de Conhecimento e Interesse, Habermas (1982: 23) define o positivismo: “Recusar a reflexão, isso é o positivismo”. Essa recusa à reflexão está associada à elevação do método científico, típico das ciências naturais, como única instância de verdade. Segundo MacCarthy (1995: 62), com o positivismo, a partir da metade do século XIX, há uma alteração radical na herança crítica deixada por Kant segundo a qual a razão compreendia não somente a razão teórica mas também a razão prática, o juízo reflexivo e também a crítica mesma. O conhecimento passa a ser identificado com a ciência, a teoria do conhecimento se converteu em filosofia da ciência, ou seja, estabelece-se uma fé na validade exclusiva da ciência empírica.

Habermas, a partir das teses sobre o método das ciências naturais apresentadas por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, critica a hipótese de Albert e Popper segundo a qual a base empírica das ciências rigorosas seria independente dos próprios padrões que a ciência aplica à experiência. Habermas aponta que são pensáveis também outras formas de experiência que não correspondem a tais padrões e não podem ser elevadas ao nível da instância experimental. Surge a ideia de que pode haver outras formas de conhecimento que servem de critério diferente das ciências exatas para verificar a cientificidade. Habermas sabe que Popper se distancia da tese positivista clássica, segundo a qual a experiência sensível nos coloca em contato direto com o que é. Popper reconhece que podemos constatar e compreender fatos somente à luz de teorias, no entanto, entende que as teorias são testadas em fatos independentes, as teorias são verdadeiras se suas hipóteses correspondem à fatos constatáveis empiricamente, esse é o resquício positivista de Popper. (cf. Pinzani, 2009: 51).

“Habermas acusa Albert e Popper de terem uma concepção limitada da forma de racionalidade que se articula nas ciências empíricas. Pois, para Habermas, em tais ciências é presente não somente uma racionalidade técnica interessada em dominar a natureza; as ciências naturais são, antes, objeto de um debate que acontece no âmbito de uma comunidade científica (uma ideia que ele retoma de Pierce)” (Pinzani, 2009: 52).

Ou seja, a pesquisa é uma instituição de homens que agem juntos e falam entre si, os princípios da pesquisa metódica são estabelecidos a partir do consenso entre a Revista CTS, no 31, vol. 11, Enero de 2016 (pág. 29-47)Vicente Zatti comunidade de pesquisadores por meio de um processo de debate crítico no qual são ativas outras formas de racionalidade que não a técnica. Essa racionalidade é orientada pela compreensão e pela interpretação. Ao debater os princípios e critérios em questão, os pesquisadores não estão formulando nenhuma teoria, mas tentando entender-se com o objetivo de alcançar um consenso.2 Temos então a ideia que paralelamente à racionalidade técnica típica das ciências naturais há uma racionalidade voltada à compreensão. Mas o positivismo nega isso e “[...] prefere uma abordagem teórica, que torna supérfluo o princípio da interpretação subjetiva dos fatos. [...] No plano da experiência de estados de coisa sociais, portanto, um quadro de comunicação linguística não seria necessário; seria sempre suficiente a observação ao invés de uma compreensão problemática de sentido” (Habermas, 2011: 90).

Outro aspecto da crítica habermasiana em A lógica das ciências sociais é com respeito ao caráter instrumental das ciências sociais, ou seja, ao fato de que ellas visam o desenvolvimento de técnicas para solucionar problemas sociais. Teorias científicas se deixam guiar por um determinado interesse, o interesse na possibilidade de assegurar o agir controlado pelo seu sucesso. Hipóteses são leis desenvolvidas para antecipar regularidades e gerir ações controladas pelo seu sucesso. Assim, as ciências empírico-analíticas são conduzidas por um interesse cognitivo técnico. No caso das ciências sociais cujo interesse é desenvolver técnicas sociais, uma ciência empírico-analítica não consegue compreender a sociedade como um todo, apenas auxilia a dar respostas pontuais. Ao não contribuir para a compreensão da sociedade como um todo, não contribui para solucionar de forma efetiva os problemas sociais. Desse modo Habermas retoma uma diferenciação entre ciências naturais que buscam criação de teorias empíricas que permitem prognóstico sobre o futuro e, ciências do espírito que não tentam apenas descrever os acontecimentos mas compreender o sentido deles, portanto, é incorreto atribuir às ciências sociais o mesmo estatuto das ciências naturais.

“Os sistemas de pesquisa que geram um conhecimento tecnicamente utilizável tornaram-se de fato forças produtivas da sociedade industrial. Como eles só produzem técnicas, porém, não são capazes precisamente da orientação no agir. O agir social é de início uma conjugação de fatores mediada pela tradição em uma comunicação corrente, uma conjugação que exige respostas a questões práticas. A práxis só equivaleria ao agir instrumental, se a vida social tivesse se reduzido a uma existência em sistemas de trabalho social e de autoafirmação violenta. A autocompreensão positivista das ciências monológicas favorece certamente uma repressão do agir por meio da técnica” (Habermas, 2011: 36).

Habermas (2011) cita três enfoques que tentam lidar com a problemática da compreensão do sentido nas ciências empírico-analíticas da ação: fenomenológico, linguístico e hermenêutico.

A fenomenologia demonstra que todas as experiências são interpretadas, há um pano de fundo, um saber pré-científico que constitui a perspectiva do próprio pesquisador. “A experiência comunicativa não se orienta, contudo, tal como a observação, por estados de fato ‘nus’, mas antes por estados de fato previamente interpretados: não é a percepção de fatos que é simbolicamente estruturada, mas os fatos enquanto tais”. (Habermas, 2011: 147). Típico do enfoque fenomenológico orientado por Husserl são as obras de Schütz:

“Schütz parte da intersubjetividade do mundo das interações cotidianas. Neste plano da intersubjetividade, nós dependemos de outros homens como sujeitos; nós lidamos com eles não como lidamos com coisas naturais, mas nos encontramos de antemão em perspectivas mutuamente restritivas e em papéis recíprocos do mesmo contexto comunicativo, falando e agindo uns com os outros” (Habermas, 2011: 170).

O conhecimento prévio legado pela tradição é intersubjetivo, mas nas mãos do positivismo o plano da intersubjetividade se dissolve. O enfoque fenomenológico salienta o caráter intersubjetivo das relações cotidianas. Tal configuração que se dá no mundo da vida é constitutiva das visões pré-científicas do pesquisador. Nesse ponto Habermas também encontra os limites da abordagem fenomenológica, já que os fenomenólogos partem sempre da experiência de mundo da vida individual, permanecendo nos limites da análise da consciência, não fazendo justiça ao papel central da linguagem na constituição do mundo da vida.

Somente a partir do enfoque linguístico a problemática tradicional da consciência foi substituída pela problemática da linguagem, de tal modo que a crítica transcendental à linguagem substitui a critica à consciência. “As ‘formas de vida’ de Wittgenstein, que correspondem aos ‘mundos da vida’ de Husserl, não seguem mais as regras da síntese de uma consciência em geral, mas as regras da gramática de jogos de linguagem”. (Habermas, 2011: 187). Com o enfoque linguístico, passamos a compreender que apenas temos acesso ao mundo social por intermédio da linguagem.

Para o enfoque hermenêutico, as compreensões fenomenológica e lingüística caem ambas no objetivismo, na medida em que, o fenomenólogo e o filósofo analítico da linguagem assumem uma atitude teórica, enquanto para a hermenêutica não existe a figura do observador, o que garante a objetividade é a participação refletida.

“Uma comunicação realiza-se segundo regras que os parceiros de diálogo envolvidos dominam; essas regras não possibilitam, porém,apenas o consenso, elas também encerram a possibilidade de afastar situações de perturbação do entendimento. Falar um com o outro significa as duas coisas: efetivamente entender-se e poder se fazer compreensível no caso dado” (Habermas, 2011: 227).

Contudo, Habermas situa os limites de tal enfoque hermenêutico principalmente na incapacidade de ir além da mera interpretação dos fenômenos sociais.

2. Técnica e ciência como ideologia

Os antecessores à Habermas da Escola de Frankfurt já haviam feito a análise das consequências nefastas da visão positivista predominante na técnica e ciência que se estabeleceu desde a modernidade. Eles já buscavam analisar as contradições e limitações do positivismo, diagnosticando as patologias da modernidade e explicando os mecanismos ideológicos que regem as consciências dos indivíduos na sociedade capitalista. De acordo com Mühl (2003: 93), “tais abordagens identificam como principal limitação do positivismo a sua tentativa de estender os princípios das ciências naturais como padrão metodológico para todas as áreas do saber”. O positivismo considera o método científico neutro, sem qualquer relação com aspectos normativos, sendo, portanto, ahistórico. Tal neutralidade funda-se em uma superestimação do fato como dado objetivo e na possibilidade de o método garantir por meio de regras lógico-formais o acesso à verdade.

Na obra Técnica e Ciência como Ideologia, Habermas (2009: 45) inicia a discussão sobre a técnica e a ciência analisando o conceito de racionalidade desenvolvido por Max Weber. 3 Este introduziu o conceito de “racionalidade” para definir a forma da atividade econômica capitalista, do tráfego social regido pelo direito privado burguês e da dominação burocrática. Portanto, racionalização significa a ampliação das esferas sociais submetidas ao critério de decisão racional, ao que corresponde a industrialização do trabalho social com a consequência de que os critérios da ação instrumental penetram também noutros âmbitos da vida. A racionalização progressiva da sociedade depende da institucionalização do progresso científico e técnico e, no momento em que isso acontece, as próprias instituições sociais são transformadas. Herbert Marcuse afirma que nesses processos que Weber chamou de “racionalização”, não se implanta a racionalidade como tal, mas em nome da racionalidade se estabelece uma dominação política oculta. Para Marcuse, o próprio conceito de razão técnica é ideologia, não só sua aplicação, mas a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculante. Portanto, a própria técnica já é um projeto social em que os interesses dominantes estabelecem um projeto para os homens e as coisas. Além disso, a institucionalização do progresso técnico- científico faz com que as relações de produção se apresentem como a forma de organização tecnicamente necessária de uma sociedade racionalizada. “A racionalidade da dominação mede-se pela manutenção de um sistema que pode permitir-se converter em fundamento da sua legitimação o incremento das forças produtivas associado ao progresso técnico-científico [...]” (Habermas, 2009: 47). Dessa forma, no desenvolvimento técnico-científico as forças produtivas já não funcionam em prol de um esclarecimento político como fundamento da crítica das legitimações vigentes, mas elas próprias se convertem na base da legitimação. Habermas (2009: 50) considera que se o a priori material da ciência e da técnica é o projeto oculto de um mundo determinado por interesses da classe dominante, não há como pensar a possibilidade de emancipação sem uma revolução prévia da própria técnica e ciência. Por isso Habermas vai procurar reformular os conceitos de Weber e Marcuse, buscando um diagnóstico mais satisfatório para a questão.

Para reformular o que Max Weber chamou de “racionalização”, Habermas utiliza-se da distinção entre trabalho e interação.

“Por traballho ou ação racional teleológica entendo ou a ação instrumental ou a escolha racional ou, então, uma combinação das duas. A ação instrumental orienta-se por regras técnicas que se apóiam no saber empírico. Estas regras implicam em cada caso prognoses sobre eventos observáveis, físicos ou sociais; tais prognoses podem revelar-se verdadeiras ou falsas.[...]. Por outro lado, entendo ação comunicativa uma interação simbolicamente mediada. Ela orienta-se segundo normas de vigência obrigatória que definem as expectativas recíprocas de comportamento e que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por dois agentes. [...] Enquanto a validade das regras e estratégias técnicas depende da validade de enunciados empiricamente verdadeiros ou analiticamente corretos, a validade das normas sociais só se funda na intersubjetividade do acordo acerca de intenções e só é assegurada pelo reconhecimento geral das obrigações” (Habermas, 2009: 57-58).

A racionalização enquanto ação estratégica e instrumental busca o aumento das forças produtivas e extensão do poder técnico, já a racionalização enquanto ação comunicativa busca a extensão da comunicação isenta e a emancipação. A partir dessa distinção dos tipos de ação, podemos distinguir os sistemas sociais segundo predomine a ação racional teleológica ou a interação. Há subsistemas como o aparelho estatal e o sistema econômico que institucionalizam proposições acerca de ações racionais teleológicas. Por outro lado, subsistemas como a família e o parentesco se baseiam sobretudo em regras morais de interação.

Habermas (2009: 60-61), identifica as sociedades tradicionais como aquelas que habitualmente distinguimos como superiores (civilizations), diferenciam-se das formas sociais mais primitivas e, são caracterizadas pela existência de um poder central, pela divisão de classes sócio-econômicas e pelo fato de estar em vigor algum tipo de mundividência central que tem como fim a legitimação eficaz da dominação. O filósofo (2009: 62), acrescenta que a expressão sociedade tradicional refere-se à circunstância de que o marco institucional repousa sobre um fundamento legitimatório inquestionado contido nas interpretações míticas, religiosas, metafísicas. Portanto, as sociedades tradicionais só existem enquanto a evolução dos subsistemas da ação racional dirigida a fins se mantém dentro dos limites da eficácia legitimadora da tradição cultural. A partir do momento em que o capitalismo dotou o sistema econômico de um mecanismo regular, que assegura o crescimento a longo prazo, a inovação é institucionalizada e a superioridade tradicionalista do enquadramento institucional perante as forças produtivas é abalada. Com o processo de modernização instaura-se um estado evolutivo das forças produtivas que torna permanente a expansão dos subsistemas de ação racional teleológica e que, deste modo, impugna a forma que as culturas superiores têm de legitimar a dominação mediante interpretações cosmológicas de mundo. Essas imagens do mundo, míticas, religiosas, metafísicas, obedecem à lógica dos contextos de interação (cf. Habermas, 2009: 63).

“Ora bem, a racionalidade dos jogos linguísticos religada à ação comunicativa vê-se confrontada, no limiar da modernidade, com uma racionalidade das relações fim/meio, que está ligada à ação instrumental e estratégica. Logo que se chega a esta confrontação, instaura-se o princípio do fim da sociedade tradicional: entra em colapso a forma de legitimação da dominação” (Habermas, 2009: 63-64).

O capitalismo se põe como o modo de produção que resolve esse problema pois oferece uma legitimação da dominação que não depende mais da tradição cultural, mas que surge da base do trabalho social. O mercado surge como a instituição baseada na reciprocidade, então a legitimação da dominação deixa de estar na relação política (como nas sociedades tradicionais) e passa a estar na relação de produção (racionalidade do mercado, ideologia da sociedade de troca). As legitimações enfraquecidas são substituídas por outras, que nascem da crítica à dogmática das interpretações tradicionais e, pretendem possuir um caráter científico. “Só assim surgem as ideologias em sentido estrito: substituem as legitimações tradicionais da dominação, ao apresentarem-se com a pretensão da ciência moderna e ao justificarem-se a partir da crítica às ideologias” (Habermas, 2009: 66). A ciência moderna e o direito natural fundamentaram as revoluções burguesas que destruíram a legitimação da antiga ordem política de dominação. Introduzem então a ideologia como base da nova dominação.4 Com o fim da sociedade tradicional, o capitalismo oferece a legitimação da dominação no sistema de trabalho social. Tal programa político exclui as questões práticas e a discussão acerca de critérios que só poderiam ser acessíveis à formação da vontade democrática. 5 Ao excluir a discussão pública e legar seu programa ao funcionamento do sistema regulado, exige uma despolitização da massa da população.

Desde o final do século XIX, a cientificização da técnica surge como uma característica marcante do capitalismo. O Estado fomenta o progresso técnico- científico e, a ciência e a técnica tornam-se a primeira força produtiva. Com a institucionalização do progresso técnico-científico, o potencial produtivo assumiu uma forma que leva o dualismo do trabalho e interação a ocupar um segundo plano na consciência dos homens. O progresso da técnica e da ciência parece como quase autônomo e a evolução social parece estar determinada pelo progresso técnico- científico. Temos então a tecnocracia que permanece como uma ideologia de fundo na consciência das massas despolitizadas e dessa forma estabelece sua força legitimadora.

“A eficácia peculiar desta ideologia reside em dissociar a autocompreensão da sociedade do sistema de referência da ação comunicativa e dos conceitos da interação simbolicamente mediada, e em substituí-lo por um modelo científico. Em igual medida, a autocompreensão culturalmente determinada de um mundo social da vida é substituída pela autocoisificação dos homens, sob as categorias da ação racional dirigida a fins e do comportamento adaptativo” (Habermas, 2009: 74).

A ideologia faz com que as pessoas pensem que o bem estar social depende do desenvolvimento técnico-científico, dessa forma, os interesses sociais passam a coincidir com os interesses sistêmicos. Tal força ideológica tecnicista apoia-se no poder prático que a técnica e a ciência possuem para promover o desenvolvimento econômico, incrementar níveis cada vez mais elevados de consumo da população. O progresso técnico-científico, como primeira força produtiva, tornou-se o fundamento da legitimação. “Essa nova forma de legitimação perdeu, sem dúvida, a velha forma de ideologia” (Habermas, 2009: 80). Para Habermas, a ideologia de fundo da consciência tecnocrática é mais irresistível e de maior alcance do que as ideologias precedentes pois sua dissimulação não só justifica o interesse parcial de dominação de uma determinada classe e reprime a necessidade parcial de emancipação de outra classe, mas também afeta o interesse emancipador do gênero humano. Habermas (2009: 81) argumenta que a nova ideologia (tecnocracia) se distingue da velha ideologia por dois aspectos. Primeiro, a ligação com uma forma política de distribuição que garante a lealdade já não é o fundamento da exploração e opressão. Segundo, a lealdade das massas só pode obter-se por meio de compensações destinadas à satisfação de necessidades privatizadas. Por isso a ideologia tecnocrática se distingue das antigas pelo fato de separar os critérios de justificação da organização da convivência, das regulações normativas da interação em geral, e os vincular às funções de um suposto sistema de ação racional dirigida a fins. Desse modo, ocorre a despolitização das regulações normativas da interação em geral. “O núcleo ideológico desta consciência é a eliminação da diferença entre práxis e técnica [...]” (Habermas, 2009: 82).

A consciência tecnocrática faz com que o interesse de manutenção de uma intersubjetividade da compreensão e do estabelecimento de uma comunicação liberta da dominação, desapareça detrás do interesse de ampliação do poder de disposição técnica.

“A nova ideologia [tecnocrática] viola assim um interesse que é inerente a uma das duas condições fundamentais da nossa existência cultural: à linguagem ou, mais exatamente, à forma da socialização e individualização determinada pela comunicação mediante a linguagem comum. Este interesse estende-se tanto à manutenção de uma intersubjetividade da compreensão como ao estabelecimento de uma comunicação liberta de dominação. A consciência tecnocrática faz desaparecer este interesse prático por detrás do interesse pela ampliação do nosso poder de disposição técnica” (Habermas, 2009: 82).

Segundo Honneth (2009: 392), a teoria habermasiana está profundamente influenciada pela experiência da autonomização da técnica: o domínio tecnológico progressivo provoca a desertificação das relações vitais constituídas comunicativamente. Quanto mais se estende o progresso técnico-científico, mais se amplia paulatinamente o perímetro dos subsistemas da ação racional conforme a fins. Com as transformações culturais ocorridas no capitalismo liberal ao tardio, este processo se intensifica até chegar numa situação social perigosa, essa combinação de política administrativa de governo e ideologia tecnocrática, levam ao desaparecimento da distinção elementar entre práxis comunicativa e ação técnica. De acordo com MacCartthy (1995: 22), a esfera do prático é absorvida pela esfera do técnico, o problema prático da vida virtuosa dos cidadãos da pólis, se transforma em problema técnico de como regular a interação social para assegurar a ordem e o bem estar dos cidadãos do Estado.

Nesse sentido, Habermas (2009: 107) diagnostica a existência da política cientificada. A clássica relação de dependência do especialista em relação ao político parece ter se invertido. O especialista torna-se órgão executor de uma inteligência científica que desenvolve tanto as técnicas e fontes auxiliares disponíveis como as estratégias de otimização dos imperativos de controle. Quanto mais a competência do especialista pode determinar as técnicas da administração racional e da segurança militar, tanto mais a prática política depende das regras científicas e menos é objeto de decisão propriamente política. Mas cabe destacar que as decisões práticas não são de âmbito técnico. “Sobre ‘sistemas de valores’, ou seja, sobre necessidades sociais e situações objetivas da consciência, sobre as direções da emancipação e da regressão não podem fazer-se quaisquer proposições vinculantes no âmbito das investigações que alargam o nosso poder de disposição técnica” (Habermas, 2009: 110). Habermas (2009: 127) ainda afirma que uma sociedade cientificada só poderia constituir-se como sociedade emancipada, na medida em que a ciência e a técnica fossem mediadas pelas cabeças dos homens juntamente com a prática vital.

A discussão pública sem coações e sem restrições, sobre a adequação dos princípios e normas orientadoras da ação, como processo de reflexão generalizada, modificaria as instituições para além de uma simples mudança de legitimação. Uma racionalização das normas sociais seria então caracterizada por um decrescente grau de repressividade, um decrescente grau de rigidez e a aproximação de um tipo de controle do comportamento que permitiria a distanciação relativamente aos papéis e uma aplicação flexível de normas internalizadas passíveis de reflexão. Uma racionalidade que fosse avaliada pelas modificações nessas dimensões, não leva a um incremento do poder de disposição técnica, nem a um melhor funcionamento dos sistemas sociais, mas dotaria os membros da sociedade com oportunidades de uma mais ampla emancipação e de uma progressiva individuação. “O aumento das forças produtivas não coincide com a intenção da vida boa, pode, no entanto, pôr-se ao seu serviço” (Habermas, 2009: 89). Portanto, Habermas não está colocando em questão a técnica e a ciência em si, mas sua forma positivista, articulada como consciência tecnocrática, que assume a forma de ideologia.

3. Suspeita à filosofia da consciência

A crítica de Habermas à tecnocracia e à redução da razão a sua dimensão instrumental, está relacionada à suspeita que ele submete a filosofia da consciência. Segundo Siebeneichler (1989: 61) no paradigma da filosofia da consciência, que serviu de moldura para Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Schelling e Hegel, o sujeito é interpretado como dotado de capacidade de assumir um duplo enfoque em relação ao mundo: o conhecimento dos objetos e a capacidade de dominação, ou seja, de interferir neles e torná-los como deveriam ser. A razão centrada no sujeito possui suas medidas em critérios de verdade do conhecimento de objetos e de sucesso no domínio sobre objetos e coisas. Prossegue Siebeneichler (1989: 63) afirmando que Habermas considera esse enfoque como resultado de uma usurpação e de uma fissura de um determinado processo social, que faz com que um momento particular subordinado, tome o lugar do todo sem possuir, porém, a força para assimilar a estrutura do todo culminando na subjetivação do todo.

Habermas abandona a ortodoxia histórico-filosófica e dá um giro para não cair nos erros do cientificismo e da filosofia analítica. Procura desmascarar o déficit da racionalidade instrumental e do poder, o que o afasta do paradigma da filosofia da consciência. Mas quais motivos levaram Habermas a colocar sob suspeita e abandonar o caminho da filosofia da consciência? “São quatro pontos: o círculo sem saída da própria filosofia da consciência, o caráter unilateral da racionalidade enclausurada no modelo sujeito-objeto, a ilusão da autofundamentação cognitivista- instrumental, e, por fim, a recusa ao mundo da vida” (Pizzi, 2005: 25).

O primeiro motivo da suspeita é que a filosofia da consciência move-se em um círculo sem saída, suas antinomias não possuem possibilidade de superação pois permanecem presas à individualidade monológica. O paradigma da filosofia da consciência considera a autoconsciência como fenômeno originário. Mas a tentativa de reduzir o sujeito a objeto empírico coloca a filosofia num emaranhado sem alternativa, a teoria do conhecimento reduz a filosofia a delineamentos teóricos, salientando os dados da experiência objetiva. Isso deixa transparecer um tipo de experiência do sujeito que se constitui a si mesmo em consonância com os dados da natureza objetiva. Nesse sentido, a filosofia da consciência não tem outra saída senão incrementar uma teoria do conhecimento que torna plausível a circunstância empírica do conhecimento fático. Desse modo, o paradigma da consciência alimenta uma teoria do conhecimento cuja primazia está na observação e na constituição do objeto. O sujeito se transforma em objeto do conhecimento, porque se situa no mesmo nível do objeto. (cf. Pizzi, 2005: 25-26).

O segundo ponto de desconfiança de Habermas quanto à filosofia da consciência é em relação a uma teoria do conhecimento reduzida ao binômio sujeito-objeto. Segundo Habermas (2002b: 54), desde a época de Frege, a lógica e a semântica deram um duro golpe na concepção da teoria do objeto que resulta da estratégia conceitual da filosofia da consciência, na medida em que os objetos não são apenas objetos, os atos do sujeito vivenciador, agente e sentenciador somente podem referir- se a objetos de forma intencional, desse modo a consciência é sempre consciência de algo. Se a consciência é consciência de algo, a teoria do conhecimento precisa responder como é possível o agir social. Mas uma teoria do conhecimento elaborada em termos de filosofia da consciência, permanece presa à verdade proposicional dos enunciados particulares de cada asserção e não consegue restabelecer a conexão com o agir social.

O terceiro argumento que justifica a suspeita à filosofia da consciência é que a consciência transcendental não se reduz às ciências objetivantes, pois “[...] o sujeito agente e cognoscente pode adotar diversas atitudes básicas frente a um mesmo mundo” (Habermas, 1989: 429, tradução nossa). A racionalidade cognitivo- instrumental, ao rejeitar os fundamentos normativos, torna-se uma razão excludente e despótica, centrada no sujeito monológico. Segundo Pizzi (2005: 29), Habermas não aceita a crença de que a única força a exercer a estratégia objetivante sobre o mundo da vida e a servir como ponto de partida e solução, encontra-se no sistema de referências suscetível de verificação empírica. Nesse caso a filosofia abandonaria sua capacidade de justificação racional pois não seria capaz de distinguir o procedimento específico da constituição dos objetos da experiência e o sentido da racionalidade prática. “O equívoco consiste em supor que a auto-referência da teoria do conhecimento pode também fundamentar a experiência intersubjetiva, isto é, os princípios de caráter normativo” (Pizzi, 2005: 30).

No quarto ponto a respeito da suspeita de Habermas à filosofia da consciência, ele afirma que a constituição do objeto e a validade das proposições pressupõe uma conexão congruente, ou seja, uma percepção do objeto possui sempre um conteúdo valorativo. Segundo Habermas (1982: 340-341), em todas as ciências a argumentação está sob as mesmas condições de realização, inerente a Revista CTS, no 31, vol. 11, Enero de 2016 (pág. 29-47) reivindicações que pretendem ser satisfeitas no médium do discurso. Na investigação  envolvendo os processos de pesquisa das ciências naturais ou das ciências do espírito, Pierce e Dilthey defrontam-se com os domínios pré-científicos a cada vez diferentes dos objetos da experiência possível. Portanto, a teoria da constituição do conhecimento é precedida por uma teoria do mundo da vida. Aqui a suspeita de Habermas volta-se ao fato de a filosofia da consciência rejeitar a quase-infinidade de conteúdos do mundo da vida. Desse modo, segundo Pizzi (2005: 31), a proposta habermasiana tem como finalidade superar as categorias da filosofia da consciência, as quais obrigam compreender o saber como saber sobre algo no mundo objetivo e a racionalidade restrita ao modo como o sujeito isolado se orienta em função dos conteúdos das suas representações e enunciados. Nesse sentido, segundo Habermas (1989: 39) o conceito de mundo da vida, oriundo de Husserl, promove uma virada que põe no centro da discussão a experiência cotidiana como parte de um mundo compartilhado intersubjetivamente, no qual cada sujeito vive, fala e atua com os demais sujeitos. Essa experiência intersubjetiva comunicalizada se expressa em sistemas simbólicos nos quais o saber acumulado é dado aos sujeitos particulares como tradição cultural. Também as ciências naturais estão inseridas nesse contexto.

“Erraríamos a constituição de um mundo da experiência se elegêssemos como paradigma o âmbito objetual do conhecimento científico e não percebêssemos que a ciência está enraizada no mundo da vida e de que este mundo da vida constitui o fundamento de sentido da realidade cientificamente objetivada. À teoria da constituição do conhecimento da natureza tem que anteceder, portanto, uma teoria do mundo da vida [...]” (Habermas, 1989: 40, tradução nossa).

Para Habermas (2002b: 60), a filosofia que não se esvai na auto-reflexão das ciências, ao libertar seu olhar da fixação no sistema das ciências, detendo-se nas veredas do mundo da vida, liberta-se do logocentrismo. Ela descobre uma razão já operante na prática comunicativa cotidiana. No espectro de validez da prática cotidiana de entendimento aparece uma racionalidade comunicativa que se abre num leque de dimensões.6 A filosofia da consciência não permite ir além da verificação dos fenômenos, portanto seu alcance é restrito. A partir da superação da filosofia da consciência a crítica ao cientificismo situa-se na possibilidade de proporcionar uma explicação da comunicação, que seja ao mesmo tempo técnica e normativa, ultrapassando os limites da hermenêutica e sem se reduzir a uma ciência empírico- analítica restrita. (cf. MacCarthy, 1995: 315). Vislumbramos assim dois paradigmas do pensamento filosófico, o paradigma da filosofia da consciência ou do sujeito e o paradigma da intersubjetividade:

“A razão centrada no sujeito encontra sua medida nos critérios de verdade e êxito, que regulam as relações do sujeito que conhece e age segundo fins com o mundo de objetos ou estado de coisas possíveis. Em contrapartida, assim que concebemos o saber como algo mediado pela comunicação, a racionalidade encontra sua medida na capacidade de os participantes responsáveis da interação orientarem-se pelas pretensões de validade que estão assentadas no reconhecimento intersubjetivo. A razão comunicativa encontra seus critérios nos procedimentos argumentativos de desempenho diretos ou indiretos das pretensões de verdade proposicional, justeza normativa, veracidade subjetiva e adequação estética” (Habermas, 2002a: 437).

Segundo Gomes (2007: 25-26), no paradigma da filosofia da consciência, a razão é concebida como relação de uma subjetividade com o objeto do conhecimento, de tal modo que o sujeito possui primazia sobre o objeto, prevalecendo a dimensão instrumental da razão, uma vez que tem como intenção dominar e controlar o objeto. Em contrapartida, no paradigma da intersubjetividade, a razão é intersubjetiva e interativa e pressupõe sempre ao menos dois participantes que buscam o entendimento. Esse paradigma considera a linguagem como recurso pragmático da interação dos seres humanos entre si, de modo que, o aspecto cognitivo-instrumental fica inserido em um conceito mais amplo, a racionalidade comunicativa. Assim, Habermas supera a teoria do conhecimento típica da filosofia da consciência.

4. Racionalidade sistêmica e colonização do mundo da vida

Habermas aprofunda a tese da colonização do mundo da vida no diagnóstico sobre a crise da modernidade que faz na obra Teoria da ação comunicativa. Habermas (1987) reconhece a validade do trabalho de Weber e utiliza seu diagnóstico sobre a perda do sentido e a perda da liberdade como consequência da tecnificação e burocratização do mundo moderno. Mas Habermas reavalia as conclusões de Weber apontando seus limites. Segundo Cenci (1996: 42-43), Habermas destaca dois problemas na teoria weberiana que precisam de reformulação. Primeiro, Weber desenvolve um conceito de racionalização parcial, tendo em vista apenas o ponto de vista da racionalidade com respeito a fins, a racionalidade instrumental. Para um diagnóstico mais completo, Habermas propõe um conceito de racionalidade que englobe também aspectos prático-morais e estético-expressivos. Segundo, Weber equipara a racionalização capitalista com a racionalização social em geral, o que o leva a uma percepção negativa sobre o potencial emancipatório da razão.

Para superar o modelo restrito de racionalidade de Weber, Habermas apresenta uma concepção de racionalidade fundada no modelo comunicativo. Reconhecendo um âmbito de atuação específico para a racionalidade instrumental, postula que os processos de racionalização dos subsistemas de ação econômica e administrativa não esgotam o processo de ação racional. Há esferas legítimas de ação comunicativa. Essa separação permite que Habermas apresente as categorias de mundo da vida e sistema, a partir das quais ele desenvolveu sua tese sobre a Colonização do mundo da vida refere-se à interferência da racionalidade sistêmica no mundo da vida.

Colonização do mundo da vida refere-se à interferência da racionalidade sistêmica no mundo da vida. Segundo Mühl (2003: 99-100), Habermas funda-se em Marx e retoma a ideia que no capitalismo ocorre a instrumentalização das formas tradicionais de vida, especialmente transformação do trabalho concreto em trabalho abstrato. Esse processo e a reificação das relações de trabalho, que as naturaliza, torna-se a mediatização da vida provocando o desacoplamento e autonomização do sistema econômico. Mas Habermas pensa que esse processo não ocorre somente no plano econômico, ele estende-se a outras esferas da vida. Assim a colonização não representa apenas uma ameaça de reificação das relações econômicas, mas a dominação da racionalidade sistêmica, instrumental, das instâncias legítimas de racionalidade comunicativa. 

Segundo Freitag (2005: 169) a colonização do mundo da vida “refere-se à penetração da racionalidade instrumental e dos mecanismos de integração do ‘dinheiro’ e do ‘poder’ no interior das instituições”. Quando há essa penetração dos meios sistêmicos, eles passam a assumir o papel de função integradora do plano de interação social e os elementos prático-morais acabam sendo eliminados da vida pública.

“A hipótese global que se obtém para a análise dos processos de modernização é que o mundo da vida, progressivamente racionalizado, acaba desacoplado dos âmbitos de ação formalmente organizados e cada vez mais complexos que são a economia e a administração estatal, ficando sob sua dependência. Esta dependência, que provém de uma mediatização do mundo da vida pelos imperativos sistêmicos, assume a forma patológica de uma colonização interna na medida em que os desequilíbrios críticos na reprodução material só podem evitar-se a custo de perturbações na reprodução simbólica do mundo da vida” (Habermas, 1987: 432, tradução nossa).

Habermas (1987) afirma que para Weber a perda da liberdade e a perda do sentido, gerados pelo avanço da burocratização é decorrente do processo de racionalização. A burocratização da sociedade global impõe uma forma suprema de racionalização social como subjugação dos sujeitos sob o poder objetivo de um aparato autonomizado. Mas Habermas (1987: 435) considera a tese da perda da liberdade mais plausível se considerarmos a “burocratização como um sinal de um novo nível de diferenciação sistêmica” vinculada à crescente desacoplação da economia e do Estado do sistema institucional do mundo da vida. Surgem âmbitos de ação formalmente organizados que se dissociam do mundo da vida e estabelecem uma sociedade vazia de substância normativa. Esse desacoplamento pode ser constatado pela indiferença da organização com relação à cultura, à sociedade e à personalidade. A indiferença em relação à personalidade ocorre na medida em que as instituições desvinculam as ações ajustadas ao sistema e as estruturas de sentido e motivação das pessoas. Através de condições de pertença voluntária e obediência generalizada, a organização se faz independente dos contextos particulares do organização em relação à cultura e sociedade se manifesta na neutralidade ideológica, as organizações desconsideram os programas das sociedades tradicionais e configuram seus próprios programas de legitimação através dos mecanismos de instrumentalização da cultura. A independência também ocorre em relação aos contextos do mundo da vida por meio da neutralização do âmbito normativo pelas ações sistêmicas.

Mas, diferentemente de Weber, Habermas pensa que o processo de racionalização tem possibilidades e a humanidade não está condenada à “jaula de ferro”. Ele vê no “desacoplamento” entre mundo da vida e sistema a possibilidade concreta de a humanidade superar limitações que impediram o desenvolvimento racional. O diagnóstico weberiano da racionalização, na análise de Habermas, mostra-se incompleto, por isso propõe uma releitura do diagnóstico buscando compreender a perda da liberdade como efeito do distanciamento entre sistema e mundo da vida. A perda do sentido e perda de liberdade não são consequência do desenvolvimento da racionalidade burocrática no mundo do sistema, mas do avanço da racionalidade sistêmica sobre o mundo da vida, fazendo com que “a mediatização do mundo da vida mude para uma colonização do mundo da vida” (Habermas, 1987: 451).

O capitalismo e o Estado moderno são subsistemas através dos quais o dinheiro e o poder se diferenciam do componente social, o mundo da vida. Na sociedade burguesa os âmbitos de ação integrados socialmente adquirem, frente ao capitalismo e ao Estado, a forma de esfera privada e esfera pública. O núcleo da esfera privada é a família, exonerada das funções econômicas e especializada nas tarefas de socialização. O núcleo da esfera da opinião pública é constituído por redes de comunicação que se materializam nos meios de comunicação de massas e possibilita a participação do público de consumidores na reprodução da cultura e participação do público de cidadãos na integração social mediada pela opinião pública. “As esferas da opinião pública cultural e política ficam definidas na perspectiva sistêmica do Estado como o entorno relevante para a obtenção da legitimação” (Habermas, 1987: 452). Na medida em que o modo metódico-racional do sistema impõe ideologicamente um estilo de vida unilateral, a esfera pública deixa de ser espaço de mediação comunicativa e a ação política torna-se luta pelo exercício do poder.

Dessa forma, o mundo da vida, progressivamente racionalizado, fica desligado dos âmbitos de ação formalmente organizados, representados pela economia e administração estatal, e ficando sob sua dependência. Na medida em que o mundo da vida torna-se mediatizado pelos imperativos sistêmicos, ele adquire uma forma patológica de colonização. As questões de ordem econômica e administrativa são resolvidas por meio da monetarização e burocratização da vida prática nos âmbitos do privado e do público. O sistema econômico resolve seus problemas de forma unilateral, submetendo a seus imperativos o modo de vida de consumidores e empregados. O sistema administrativo encontra suas soluções apoderando-se dos processos de formação da opinião e vontade coletiva, esvaziando seu conteúdo tradicional e conectando-as a processos técnicos e a legitimações procedimentais.

Conclusão

Quando é reduzida à racionalidade técnico-científica, a razão é destituída de sua dimensão mais ampla e, perde seu caráter de auto-referencialidade e criticidade. Por isso Habermas propôs o paradigma da comunicação segundo o qual o sujeito cognoscente não é mais definido exclusivamente como sendo aquele que se relaciona com objetos para conhecê-los e dominá-los. Ele analisa o entendimento intersubjetivo entre sujeitos capazes de falar e de agir e põe em descoberto uma dimensão da racionalidade que não tinha sido abrangida na clássica teoria de Weber sobre a racionalização, trata-se de uma racionalidade processual, que denominou racionalidade comunicativa. Tal racionalidade se refere ao desenvolvimento do mundo da vida.

De acordo com Mühl (2003: 212-213), o aumento da racionalidade, mesmo daquela ligada ao desenvolvimento de racionalidade instrumental e estratégica para controle e manipulação da natureza, só pode ser avaliado como crescimento da aprendizagem se for regido pelo mecanismo da ação comunicativa. Portanto a complexificação do mundo sistêmico não representa a evolução da humanidade, a não ser como fator de contribuição para o desenvolvimento da racionalidade comunicativa nas esferas da sociedade, da cultura e da personalidade. Para que isso ocorra, a racionalidade instrumental deve ficar restrita à sua dimensão específica, o sistema de reprodução material das condições de vida, sem invadir o mundo da vida e permitindo que este se mantenha regido pela racionalidade comunicativa.

Por mais que o mundo sistêmico se complexifique e utilize de mecanismos de violência para manter seu predomínio, ele continuará dependendo do mundo da vida para ser institucionalizado e mantido. Portanto, a evolução social sempre estará ligada ao desenvolvimento da racionalidade comunicativa. A emancipação humana não depende da evolução sistêmica, mas sim da ampliação da racionalidade comunicativa e da reflexividade dela decorrente. É a organização da sociedade sob a base de uma discussão livre de qualquer dominação repressiva, e não as novas tecnologias, que possibilita o progresso da formação social em etapas progressivas de reflexão. Ou seja, o desenvolvimento técnico-científico não encerra a questão da emancipação humana. Desse modo, ao mesmo tempo, a racionalidade instrumental deve restringir-se à técnica e a ciência, e, a legitimação social da técnica e ciência depende de questões éticas, políticas e estéticas oriundas do mundo da vida.

Notas

1. Este artigo está fundado em parte das pesquisas realizadas no programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para a elaboração de tese de doutorado defendida em 2012.

 2. “[...] consenso tem a ver com o reconhecimento intersubjetivo da pretensão de validade que o falante une a uma exteriorização” (Habermas, 2012: 221).

3 Habermas (2009: 101) entende por técnica “[...] a disposição cientificamente racionalizada sobre processos objetivados”

4 Com o fim da sociedade tradicional, o capitalismo oferece a legitimação da dominação no sistema de trabalho social. Tal programa político exclui as questões práticas e a discussão acerca de critérios que só poderiam 4. Segundo Habermas (2011: 66), as ideologias em sentido estrito surgem a partir do momento em que as legitimações tradicionais da dominação se enfraquecem e são substituídas por outras legitimações que nascem da crítica à dogmática das interpretações tradicionais de mundo e pretendem possuir caráter científico. Essa nova visão mantém a função legitimadora e subtrai as relações de poder à análise e à consciência públicas “Nesse sentido, não pode haver ideologia pré-burguesa”.

5. Para Habermas, democracia se refere “[...] as formas institucionalmente garantidas de uma comunicação geral e pública, que se ocupa das questões práticas: de como os homens querem e podem conviver sob as condições objetivas de uma capacidade de disposição imensamente ampliada” (2009: 101).

6. “Entendimento significa a união dos participantes da comunicação sobre a validade de uma exteriorização”

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