SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número33Lógicas y modos de producción de conocimiento en política educativa: Análisis de la investigación producida en Chile (2000-2011)DOSSIER- PRESENTACIÓN índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista iberoamericana de ciencia tecnología y sociedad

versión On-line ISSN 1850-0013

Rev. iberoam. cienc. tecnol. soc. vol.11 no.33 Ciudad Autónoma de Buenos Aires set. 2016

 

ARTÍCULOS

A Anomalia da Política de C&T e sua Atipicidade Periférica  

La anomalía de la política de ciencia y tecnologia  y su atipicidad periférica

The Anomaly Of S&T Policy And Its Peripheral Atypical Development

Renato Dagnino *

* Unicamp, Brasil. Email: rdagnino@ige.unicamp.br. O autor agradece ao parecerista desta revista as demandas feitas no sentido de esclarecer conceitos e avaliações que lhe pareceram imprecisos, incorretos ou inapropriados para a abordagem dos temas aqui tratados. Elas foram atendidas, principalmente, por meio da inclusão das notas de rodapé que seguem.


As características da política de ciência e tecnologia (PCT) de países situados na periferia do capitalismo, como os da América Latina, resultam da composição de duas dinâmicas, uma inerente à PCT enquanto política pública e outra decorrente da sua condição periférica. A primeira, de natureza genérica, pode ser encontrada “em estado puro” minerando-a nos países avançados e é responsável pela anomalia (anormal, irregular) de sua PCT. Essa dinâmica faz com que a PCT apresente um desvio acentuado do padrão normal das políticas públicas, que se originam de um processo decisório no qual os atores envolvidos materializam seus projetos políticos nas agendas particulares com que nele participam. A anomalia se deve a que atores que participam em outras políticas defendendo agendas muitas vezes antagônicas, dado que resultantes de (ou condicionadas por) projetos políticos irreconciliáveis, concordam sistematicamente a respeito da orientação dada à PCT. Em consequência, por estar essa agenda decisória enviesada pela concepção da neutralidade e do determinismo da tecnociência, que entende a tecnociência (produzida pelas e para as empresas) como passível de ser “usada” para a materialização de qualquer projeto político, a PCT, ainda quando elaborada por governos de esquerda, tende a seguir a serviço dos valores e interesses do capital. A segunda dinâmica é específica de países que, como o Brasil, apresentam uma condição periférica. Aqui a PCT possui, por acréscimo, uma caraterística de atipicidade (particular, singular, inabitual). Os atores envolvidos na sua implementação, em função do contexto econômico-social e político periférico em que se inserem, manifestam comportamentos sistematicamente divergentes daqueles observados nos (e modelizados pelos) países avançados. Seus comportamentos, por essa razão, são distintos daqueles que deles se espera no momento de formulação da PCT.

Palavras-chave: Política de C&T; Brasil; Capitalismo periférico; Elaboração de políticas; Neutralidade e determinismo da tecnociência; Pensamento latino-americano em ciência; Tecnologia e sociedade.

Las características de la política de ciencia y tecnología (PCT) de países situados en la periferia del capitalismo, como los latinoamericanos, resultan de la composición de dos dinámicas, una inherente a la PCT en tanto política pública y otra derivada de su condición periférica. La primera, de naturaleza genérica, puede encontrarse “en estado puro”; es explotada en los países avanzados y es responsable de la anomalía (anormal, irregular) de su PCT. Esta dinámica hace que la PCT presente un desvío acentuado en relación al estándar normal de las políticas públicas, que se originan en un proceso de decisión en el cual los actores involucrados materializan sus proyectos políticos en las agendas particulares con las que participan en él. La anomalía se debe a que los actores que participan en otras políticas defendiendo agendas muchas veces antagónicas, dado que son resultantes de (o condicionadas por) proyectos políticos irreconciliables, acuerdan sistemáticamente con respecto a la orientación dada a la PCT. En consecuencia, en virtud de que esa agenda de decisión está sesgada por la concepción de neutralidad y determinismo de la tecnociencia, que entiende a la tecnociencia (producida por y para las empresas) como plausible de ser “usada” para materializar cualquier proyecto político, la PCT, aun cuando es elaborada por gobiernos de izquierda, tiende a mantenerse al servicio de los valores e intereses del capital. La segunda dinámica es específica de países que presentan una condición periférica, como Brasil. Aquí la PCT posee, de manera adicional, una característica de atipicidad (particular, singular, infrecuente). Los actores involucrados en su implementación, en función del contexto económico-social y político periférico en el que se encuentran, manifiestan comportamientos sistemáticamente divergentes a los observados en (y modelados por) los países avanzados. Por esa razón, sus comportamientos son distintos a los que se espera de ellos en el momento de formulación de la PCT.

Palabras clave: Política de ciencia y tecnología; Brasil; Capitalismo periférico; Elaboración de políticas; Neutralidad y determinismo de la tecnociencia; Pensamiento latinoamericano en CTS.

The characteristics of science and technology policies (STP) of countries located on the margins of capitalism, such as Latin American countries, result from the composition of two dynamics: one inherent to STP as a public policy and another that derives from its marginal condition. The first has a generic nature and can be found in “pure state”; it is exploited in advanced countries and it is responsible for the anomaly (abnormal, irregular) of its STP. This dynamic causes the STP to present a marked deviation from the normal standards of public policy, which originate in a decision-making process in which the players involved materialize their political projects in the specific agendas with which they participate. The anomaly comes from the fact that many players who participate in other policies defending agendas that are often antagonistic, given that they result from (or are conditioned by) irreconcilable political projects, systematically agree on the direction given to the STP. Consequently, since that decision-making agenda is biased by the conception of neutrality and determinism of techno-science, which understands techno-science (produced by and for companies) as something plausible to be “used” to materialize any political project, the STP, even when produced by left-wing governments, tend to be at the service of the capital’s values and interests. The second dynamic is specific of countries that present a peripheral condition, such as Brazil. In this case, the STP has an additional way, an atypical characteristic (particular, singular, infrequent). Players involved in its implementation, depending on the socioeconomic and peripheral political contexts that surround them, exhibit behaviors that systematically diverge from those observed in (and modeled by) advanced countries. Due to this, their behavior differs from the expected one when developing said policies.

Key words: S&T policy; Brazil; Peripheral capitalism; Policy-making; Neutrality and determinism of techno-science; Latin American thinking regarding science; Technology and society.


Seria fantàstic que guanyés el millor i que la força no fos la raó.

Que s’instal·lés al barri el paradís terrenal.

Que la ciència fos neutral.

Joan Manuel Serrat

As características da política de ciência e tecnologia (PCT) de países situados na periferia do capitalismo resultam da composição de duas dinâmicas, uma inerente à PCT enquanto política pública e outra decorrente da sua condição periférica.1   2

A primeira, de natureza genérica, pode ser encontrada “em estado puro” minerando-a nos países de capitalismo avançado (daqui para frente, simplesmente, países avançados) e é responsável pela anomalia (anormal, irregular) de sua PCT.3  Essa dinâmica faz com que a PCT apresente um desvio acentuado do padrão normal das políticas públicas, que se originam de um processo decisório no qual os atores envolvidos materializam seus projetos políticos nas agendas particulares com que nele participam. A anomalia se deve a que atores que participam em outras políticas defendendo agendas muitas vezes antagônicas, dado que resultantes de (ou condicionadas por) projetos políticos irreconciliáveis, concordam sistematicamente a respeito da orientação dada à PCT.

A segunda dinâmica é específica de países que apresentam uma condição periférica, como o Brasil e os demais países latino-americanos com exceção de Cuba.4

Aqui a PCT possui, por acréscimo, uma caraterística de atipicidade (particular, singular, inabitual). Diferentemente da primeira dinâmica, cuja percepção implica uma observação centrada no momento de formulação da política, a constatação do caráter atípico da PCT periférica demanda um foco no momento da implementação.

Os atores envolvidos na implementação da PCT, em função do contexto econômico-social e político periférico em que se inserem, manifestam comportamentos sistematicamente divergentes daqueles observados nos (e modelizados pelos) países avançados. Seus comportamentos, por essa razão, são distintos daqueles que deles se espera no momento de formulação da PCT.

O trabalho começa caracterizando a anomalia “genérica” da PCT. O argumento levantado é que ela tem sua origem em mitos que a acompanham desde quando ações governamentais, que depois foram agrupadas sob a denominação PCT, tentaram influenciar a direção e o ritmo da mudança tecnológica e o fomento à formação de pesquisadores.

Atravessando ideologias e reunindo desde neoliberais a marxistas ortodoxos, esses mitos fazem com que os projetos políticos dos atores envolvidos com a PCT, em especial, o daqueles que se alinham com os interesses da classe trabalhadora, não se expressem em suas agendas particulares e, em consequência, na agenda decisória que origina a PCT enquanto política pública.

Em consequência, por estar essa agenda decisória enviesada pela concepção da neutralidade e do determinismo da tecnociência, que entende a tecnociência (produzida pelas e para as empresas) como passível de ser “usada” para a materialização de qualquer projeto político, a PCT, ainda quando elaborada por governos de esquerda, tende a seguir a serviço dos valores e interesses do capital.

O argumento acerca da atipicidade da PCT periférico pode ser inferido diretamente das contribuições dos fundadores do Pensamento Latino-americano em Ciência,

Tecnologia e Sociedade (PLACTS) (Dagnino, Thomas e Davyt, 1996) que há mais de quatro décadas apontaram a diferença entre o comportamento da empresa dos países avançados e das aqui localizadas. Ao explicaram sua baixa propensão a realizar P&D pela nossa condição periférica, mostraram, por um lado, que nossa PCT dificilmente poderia alterá-la e, por outro, que para colocar em ação nosso potencial tecnocientífico eram necessárias substantivas mudanças no plano político e socioeconômico.

Embora, de maneira talvez imprudente, o argumento aqui apresentado se refira demodo genérico aos países periféricos, as evidências apresentadas se referem à experiência brasileira. Além de considerações relacionadas à minha vivência com essa experiência e ao aspecto “paradigmático” que ela possui - no sentido de que se o que se mostra para o Brasil com maior razão tenderá a ocorrer em outros países periféricos (ou, pelo menos, latino-americanos) - isso se deve a que as séries históricas abrangendo treze anos (1998-2011) divulgadas pelo IBGE permitem hoje comprovar esse comportamento. E mostrar cabalmente que é sensivelmente distinto do visado pela PCT. Apesar de seguir desde o governo neoliberal uma orientação em que a comunidade de pesquisa aparenta abandonar o modelo institucional ofertista linear que implantou, em benefício dos ditames da Economia da Inovação, ambos inspirados na realidade e nas experiências de modelização da relação CTS e de elaboração da PCT dos países avançados, a PCT está longe de poder alterar a baixa propensão à realização de P&D das empresas locais. Ao mesmo tempo em que mostram o acerto da “cinquentona” formulação do PLACTS e da crítica que vem sendo feita àqueles ditames, essas evidências revelam o irrealismo das expectativas dos fazedores da PCT que tentam mudar um comportamento que eles consideram irracional e atrasado, mas que é uma resposta racional aos sinais de um mercado caracterizado pela nossa condição periférica.

Quando se reinterpreta essa formulação à luz da noção de anomalia genérica da PCT chega-se a uma caracterização bem distinta do que ela considerava como sendo os obstáculos ao cenário de equidade e justiça social que pretendia. Fica evidente que o caráter comportamental a ele adverso não era exclusivo à maneira (atípica e especifica) como a condição periférica atuava sobre nossos empresários. Vem à tona o condicionamento que sobre a atuação da comunidade de pesquisa exerce a concepção da neutralidade e do determinismo da tecnociência da qual decorre a anomalia (genérica) da PCT.

As considerações que encerram o trabalho são, como também o eram as formuladas pelo PLACTS, de caráter normativo.

Elas ressaltam a necessidade de concepção de um novo marco analítico-conceitual para a elaboração a PCT latino-americana capaz de, levando em conta sua anomalia, e também sua atipicidade, orientar a utilização do potencial tecnocientífico da região para alavancar o processo de democratização em curso.

Para falar de anomalia (estado ou qualidade do desvio acentuado do padrão normal de alguma realidade, anormalidade, irregularidade, aberração) é imprescindível falar primeiro do que não é anômalo, do que é normal. Por isso, para explicar a anomalia da PCT, o trabalho começa abordando as políticas públicas “normais”; as que não apresentam a anomalia que caracteriza a PCT.

Em seguida, na sua quarta seção, argumenta porque a PCT, genericamente falando, deve ser enquadrada nessa categoria. Em seguida, apresenta-se elementos de natureza discursiva que evidenciam a anomalia da PCT brasileira.

A sexta seção, trilhando um caminho já relativamente bem explorado, mostra porque a PCT brasileira deve ser considerada atípica quando comprada às PCTs dos países avançados.

1. Políticas “normais”. Processo decisório: atores, agendas, projeto político

Entende-se por política “normal” aquela em que atores sociais animados por projetos políticos que são materializados em agendas particulares, e dotados de poder acumulado em jogos sociais (políticos) anteriores são capazes de inserí-las na agenda decisória que lhe dá origem.

Para deixar mais clara essa afirmativa, e seguindo o marco analíticoconceitual sugerido por autores bem conhecidos e prestigiados, se apresentam os conceitos de:

• Ator social: pessoa, grupo, organização que participa de um jogo social; possui um projeto político; controla algum recurso relevante; tem, acumula (ou desacumula) forças no seu decorrer e pode produzir fatos para viabilizar seu projeto (Matus, 1996).

• Projeto político do ator: conjunto de crenças, interesses, concepções de mundo,  representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes atores envolvidos com uma política (Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006).

Agenda particular de um ator: conjunto de problemas percebidos e enfrentados por ele ao envolver-se com uma política pública. Numa política “normal”, ela é a materialização do seu projeto político.

• Processo decisório: negociação entre os atores defendendo suas agendas particulares com o poder que têm que irá originar a agenda decisória.

Agenda decisória: originada no processo decisório, ela é a proposta de resolução dos problemas trazidos pelos atores sociais. É um conjunto de problemas, demandas, assuntos que o governo (coalizão política que ocupa o poder executivo do aparelho de Estado) seleciona (ou é forçado a selecionar). Ela é formada pelas agendas particulares dos atores (inclusive pelo governo, cuja agenda é o programa de governo da coalizão eleita em função da correlação de forças existente na sociedade).

Agenda decisória e poder relativo dos atores: nem todos os problemas que formam as agendas particulares têm a mesma facilidade de fazer parte da agenda decisória e, assim, impor aos que governam a necessidade de atuar sobre eles (Kingdon, 1984; Deubel, 2006). A agenda decisória é uma combinação (média ponderada pelo poder relativo do ator) das agendas particulares de cada ator. Se um ator social for suficientemente forte ele pode, via coerção, reduzir (ou, no limite, anular) o poder relativo dos demais e, assim, sua participação na formação da agenda decisória. Ou, via convencimento (manipulação) ideológico, fazer com que os demais atores adotem a sua agenda. Nos dois casos, a agenda decisória será, no limite, a agenda particular do ator dominante (primeiro caso) ou hegemônico (segundo), uma vez que passa a existir um “consentimento” dos demais (Gramsci, 1999).

Política pública: originada pela negociação (processo decisório) em torno da agenda decisória, ela é a proposta de resolução dos problemas trazidos pelos atores sociais que nela participam segundo seu poder relativo e que o Estado tem que implementar.

Conflitos: em tese e em políticas “normais”, se originam da diferença existente entre os projetos políticos dos atores envolvidos com uma dada área de política pública. São: 1) “abertos” quando em função do poder semelhante dos atores, as diferenças entre suas agendas particulares se explicitam no processo decisório; 2) “encobertos”, quando o ator dominante consegue, via coerção (velada ou explícita), anular o poder relativo de um mais fraco (dominado), impedindo que sua agenda entre no processo decisório mesmo quando ele participe formalmente do mesmo (Bachrach e Baratz, 1963); e 3) “latentes” (Lukes, 1980), quando o ator, agora hegemônico, consegue, via manipulação ideológica, fazer com que os demais atores adotem a sua agenda ou, mais precisamente, impedir que o ator dominado seja capaz de sequer conceber uma agenda particular coerente com seu projeto político acerca daquela área de política pública.

Identificação de conflitos latentes: como não podem ser identificados mediante a simples consideração do processo decisório, exigem uma análise do contexto político e ideológico, dado que os atores dominados não percebem claramente os problemas que os prejudicam e não são capazes de formular uma agenda particular, e das relações de poder, uma vez que não conseguem participar do processo decisório e da formação da agenda decisória para influenciar na orientação da política (Ham e Hill, 1993).

Cabe precisar que a proposição da noção ou do conceito (e a partir daqui uso com o mesmo sentido esses dois termos) de política “normal” possui um objetivo estritamente funcional ou operacional uma vez que ela deriva da hipótese de que existem políticas que dela se diferenciam, que são aqui denominadas políticas anômalas.

2. Políticas anômalas

Kuhn (1978) chama de anomalias os problemas não solucionados ou os fenômenos não explicados que a teoria vai apresentando à medida que é empregada pelos pesquisadores. Segundo ele, “as anomalias aparecem somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma da ciência normal” (p. 192).

A noção de política anômala deriva, justamente, da dificuldade encontrada ao analisar um fenômeno não passível de explicação pela “ciência normal”. Ou seja, pela Revista CTS, no 33, vol. 11, Septiembre de 2016 (pág. 33-63) identificação de fenômenos -processos de elaboração de políticas públicas- que não são passiveis de explicação pelo marco analíticoconceitual “normal”, o proposto pelo campo da Análise de Políticas. E é justamente para caracterizar a insuficiência desse marco para analisar esses fenômenos que esse tipo de política é denominado política anômala.

Há que ressaltar que essa noção não é construída de modo genérico, abstrato, seguindo um procedimento metodológico dedutivo. Ao contrário, ela é resultado de uma dificuldade específica, concreta, dado que decorrente da análise da PCT, e que embora sem a pretensão de aplicabilidade para outros contextos adquire pela via indutiva, mas apenas para fins explicativos, um estatuto próximo ao de um conceito analítico. Assim, embora essa noção possa eventualmente se mostrar útil para análises não atinentes à relação ciência, tecnologia e sociedade, não há aqui a intenção de propô-la com este objetivo.

O proposito dessa noção é, então, facilitar a análise da participação dos atores no processo decisório na PCT, em especial, o modo como se dá essa participação tendo em vista a relação entre ela o conceito de projeto político que estabelece o “paradigma normal” da ciência política. O fato de que, novamente de acordo com Kuhn, as anomalias podem ser resolvidas com o avanço da própria “ciência normal”, e que é apenas quando elas se acumulam a ponto de competir com ela que pode ocorrer uma revolução científica, coloca em seus devidos termos incrementais a noção aqui sugerida.

Ao contrário do que ocorre quando um dado ator social materializa seu projeto político na sua agenda particular no âmbito de um processo decisório de uma política “normal”, quando ele se envolve com uma política anômala a agenda que ele defende não é coerente com seu projeto político. Assim, embora participe em outras áreas de política pública enfrentando outros atores na defesa de seus interesses, no âmbito de uma política anômala ele não o materializa numa agenda particular própria, coerente com seu projeto político.

As políticas anômalas são diferentes daquelas políticas, aqui denominadas “normais”. Inclusive daquelas em que se manifestam conflitos “latentes”. Isto é, aquelas em que o ator dominante consegue fazer com que o ator dominado adote sua agenda contrariando seu projeto político. Nessas políticas “normais”, ocorre uma manipulação ideológica sistemática e decididamente levada a cabo e renovada pelos porta-vozes do ator dominante fazendo com que, frequentemente, o consentimento do ator dominado extravase para outras áreas de política pública.

Deixar mais clara essa afirmativa, é necessário revisitar conceitos pertencentes ao marco analítico-conceitual da ciência normal; o que é feito a seguir novamente tendo como referência autores bem conhecidos e prestigiados. Em particular, é necessário voltar ao conceito de projeto político uma vez que ele é insuficiente para permitir a análise de políticas que, como a PCT, considero, anômalas. E, em função disso, formular um novo conceito, que denominei “modelo cognitivo”, que dê conta do objetivo de analisar a PCT e, assim espero, outras políticas que apresentem essa anomalia.

• Projeto político e cultura: os projetos políticos não se reduzem a estratégias de atuação política, mas veiculam matrizes culturais mais amplas e transformam o repertório cultural da sociedade (Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006). Cultura não é uma esfera, mas uma dimensão de todas as instituições - econômicas sociais e políticas; é um conjunto de práticas materiais que constituem significados, valores e subjetividades. O que implica que as relações de poder entre os atores não possam ser compreendidas sem o reconhecimento de seu caráter “cultural” ativo, na medida em que expressam, produzem e comunicam significados” (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000).

• Modelo cognitivo do ator: nas políticas anômalas, a atuação do ator não é “informada” pelo seu projeto político, mas sim pela “maneira como ele entende” aquela específica área de política e seu contexto; a essa “maneira” denomino modelo cognitivo do ator. A relação identificada entre projeto político e cultura acima apontada, embora se aproxime daquela entre projeto político e modelo cognitivo, se diferencia na medida em que, por se referir a um aspecto eminentemente cognitivo do campo mais amplo da cultura, é mais apropriado para a caracterização das políticas anômalas.

Projeto político e modelos cognitivos: um determinado ator, embora possua apenas um projeto político, pode ter tantos modelos cognitivos quantas forem as áreas e política com as quais se envolve. Ao contrário do projeto político, o modelo cognitivo não é um atributo “intrínseco” ao ator, oriundo de sua visão de mundo etc. Sua natureza e eminentemente relacional. O modelo cognitivo de cada ator é condicionado pela sua interação com outros atores no âmbito daquela específica área de política. Ele vai sendo conformado à medida que o ator interage com outros e suas agendas particulares, em processos decisórios. O modelo cognitivo é, então, o conjunto de ideias a partir do qual o ator irá descrever, explicar e prescrever acerca do objeto da política, do seu contexto e participar no processo decisório.

Modelo cognitivo do ator dominante: como o modelo cognitivo possui um atributo relacional e tem a ver com o nível de conhecimento do ator sobre a área de política, sempre que ela envolver outro ator que possua sobre ela um conhecimento visualizado como sendo significativamente maior, o modelo cognitivo deste ator - cognitivamente dominante - tenderá a influenciar o modelo cognitivo do primeiro. O caráter de dominante desse ator não tende a estar associado aos fatores de natureza econômica ou política que condicionam seu projeto político, como ocorre em relação às políticas “normais”. Não obstante, é razoável pensar que o desvio que o modelo cognitivo do ator terá em relação ao seu projeto político será tanto menor quanto maior for seu conhecimento sobre o modo como funciona a área de política, sobre como a orientação desta o atinge e influencia a satisfação de seus interesses. Inversamente, quanto menor for sua familiaridade com a política em questão e com os assuntos a ela associados, maior tenderá a ser esse desvio. No limite, quando as questões que centralizam o projeto político do ator dominado estiverem muito distantes dos assuntos abarcados por essa área de política, ele tenderá a nela participar de modo praticamente omisso.

Modelo cognitivo da área de política: como, muito mais do que o projeto político, o modelo cognitivo de um ator é sensível à influência dos outros atores, quando esse conhecimento que possui o ator dominante possui um caráter de “verdade inquestionável”, os demais internalizam seu modelo cognitivo, que passa a ser o modelo cognitivo daquela área de política. Por isso, nas áreas caracterizadas por políticas anômalas, tende a “emergir” da interação que ocorre entre os atores envolvidos um modelo cognitivo próprio. Diferentemente do que ocorre nas políticas “normais” em que se manifestam conflitos “latentes”, nas políticas anômalas não são as relações de poder econômico ou político que fazem com que o ator dominado não consiga materializar seu projeto político numa agenda particular a ser defendida no processo decisório. Há aqui um poder mais sutil, e por isso naturalizado, de natureza cognitiva. Mais do que naquele caso, por estar a influência do ator dominante investida e revestida de um status superior, derivado de seu maior conhecimento, o modelo cognitivo do ator dominante e, também, o modelo cognitivo daquela área de política.

A anomalia, então, implica que atores que participam em outras políticas defendendo agendas (no limite) antagônicas, dado que resultantes de projetos políticos irreconciliáveis, por compartilharem o mesmo modelo cognitivo, que é o daquela área de política, concordam sistematicamente a respeito da orientação a ser dada à política.

Para terminar esta seção, cabe ressaltar dois aspectos. O primeiro tem a ver com o fato de que, como em qualquer caso em que um pesquisador se encontra com o que considera uma anomalia que escapa ao espectro explicativo da ciência normal, o que se acaba de propor, correto ou equivocado, possui uma carga forte e explicitamente normativa. Como é também normativo o qualificativo “normal”, derivado, justamente, do conceito kuhniamo de “ciência normal”, com que se qualifica a noção de política normal.

O segundo aspecto se refere ao fato de que os conceitos de política “normal” e anômala não possuem nenhuma relação com o contexto nacional onde elas existem. Ou com o fato desse contexto poder ser caracterizado como o de um país “central” ou “periférico”, no sentido de que as políticas “normais” seriam ou tenderiam a ser aquelas que emanam de processos decisórios que ocorrem em países “centrais” e de que as políticas anômalas, por oposição, seriam as que teriam lugar em países “periféricos”. Tal como já se assinalou na Introdução deste trabalho, o atributo de anômala que aqui se empresta a uma determinada política é relacional. Ou seja, uma política é anômala em relação a outras políticas, as políticas “normais”.

3. A anomalia da PCT

Para iniciar esta seção, vale enfatizar algo que se depreende do anteriormente escrito sobre a noção de políticas anômalas. Isto é, que aquilo que pode ser interpretado como uma “dicotomia” normal/anómala não é algo que deva ser entendido como prévio ao propósito de analisar a PCT. Como se as noções ou os conceitos de política “normal” e política anômala existissem antes desse propósito e estivessem sendo “aplicados” para analisá-la. Ao contrário, é justamente o intento de analisar a PCT o que dá origem a esses conceitos.

A anomalia da PCT pode ser evidenciada ao analisar a PCT dos países avançados, como fiz em Dagnino (2006 e 2007) através de extensa revisão bibliográfica, de maneira a mostrar como atores sociais tão distintos como comunidade de pesquisa, empresários, trabalhadores, movimentos sociais concordam em relação ao modo de orientar a PCT.5 E, por extensão: 1) como partidos políticos e governos que orientam suas políticas públicas (e principalmente, as sociais) de modo tão distinto implementam a mesma PCT; 2) como a PCT parece ser uma policy sem politics; 3) como a PCT parece estar idelogicamente “blindada”; (como ela está tão sujeita a processos de non decision-making; 4) como conflitos “latentes” e “encobertos” não se convertem em “abertos” no processo decisório da C&T; e 5) como ela está envolta numa “neblina ideológica” de positividade.

A análise que realizei, permite explicitar o fato de que seu ator dominante, em todo o mundo, é a comunidade de pesquisa. E que, por isso, o seu modelo cognitivo é o que tende a orientar, por ser adotado pelos demais atores envolvidos, a PCT desses países. O que me leva a concentrar neste trabalho minha atenção (ou talvez seja mais adequado dizer limitá-la) no ator comunidade de pesquisa e na maneira como ela atua no processo decisório da PCT fazendo valer o seu modelo cognitivo. O qual, como irei mostrar, é condicionado pela noção que ela possui sobre a natureza C&T. Ou, melhor, num aspecto central dessa noção, que é a não percepção por parte da comunidade de pesquisa dos aspectos e das implicações ideológicas com ella envolvidos.

Para entender a anomalia da PCT é necessário, então, identificar qual a noção ou concepção que possui a comunidade de pesquisa sobre C&T, ou sobre o que prefiro denominar, por razões que trato em outros trabalhos (Dagnino, 2008), tecnociência. Isso porque essa concepção, solidamente ancorada em mitos como os assinalados por Sarewitz (1996) e, em particular naquele que, apoiado em Feenberg (2010) e Lacey (1999), considero fundacional: o da neutralidade e do determinismo da tecnociência (Dagnino, 2008).

Limitar a análise à atuação da comunidade de pesquisa obriga a um distanciamento em relação aos outros atores (trabalhadores, empresários) que, animados por seus respectivos projetos políticos, poderiam contrapor-se à comunidade de pesquisa no processo decisório da PCT. Não obstante, como ficará claro em seguida, o fato de limitar (e refinar) a abordagem sobre a comunidade de pesquisa não inviabilizará a entrada em cena dos dois atores -trabalhadores e empresários, ou classe trabalhadora e classe proprietária- portadores dos projetos políticos que interessa aqui abordar.

Para prosseguir, é conveniente (e necessário) distinguir dois segmentos dentro dessa comunidade. Eles são os que “introduzirão” na análise esses dois atores e seus projetos políticos, ou conjuntos de interesses e valores. A consideração do comportamento desses dois segmentos é o que tornará possível, mediante uma operação de reflexão para dentro da área da PCT, fazer com que “apareçam” no seu decorrer os seus projetos políticos desses atores uma vez que eles são adotados e veiculados por cada um desses segmentos.

Para o primeiro, que agrupa a maioria de seus integrantes, a tecnologia é a aplicação da ciência (a “verdade que avança”) para produzir mais, melhor, mais barato, poupar tempo, e beneficiar a sociedade. Eles costumam dizer que “a tecnociência é intrinsecamente boa e verdadeira, mas se a sociedade a usar sem ética, para o mal, o problema não é meu...”. Para esse segmento, e este é o aspecto que permite classificá-lo como possuidor de um projeto político de direita, o único agente técnico-produtivo capaz de promover desenvolvimento é a empresa privada que usa a tecnociência que eles ajudam a produzir. Em consequência, acreditam que o conhecimento, para servir à sociedade, tem que passar pela empresa e pelo mercado; tem que ser “comercializável”. E se a empresa for inovadora e competitiva, gerará empregos bem pagos, produtos melhores e mais baratos; o empresário obterá mais lucro, investirá mais, os trabalhadores ganharão mais e os consumidores, ficarão mais bem servidos. Enfim, haverá desenvolvimento econômico e social.

A tecnociência, assim, por ser neutra, produzida em busca da verdade e da eficiência, caso esteja submetida ao controle externo e a posteriori da ética, pode ser usada para satisfazer infinitas necessidades da “sociedade” qualquer que seja o substrato e a orientação políticos que ela num dado momento decida implementar.

A participação desse segmento na PCT está centrada em duas ideias. A primeira, é a de que o Estado deve financiar P&D nas empresas para, desta forma, promover o desenvolvimento. A segunda, é a de que como a tecnociência é boa, verdadeira e universal, temos que emular o que fazem os grupos de pesquisa (ou países) líderes em cada área de conhecimento nos campos da pesquisa e da formação de recursos humanos. E, dado que as eventuais implicações socioeconômicas ou políticas negativas são derivadas simplesmente de uma falta de ética, temos que nos concentrar nas “áreas de ponta”.

Mas há um segundo segmento da comunidade de pesquisa que se opõe a essa maioria replicando: “sociedade, ética; que nada! Só a revolução e o socialismo resolvem!”. Esse ator social, que representa o pensamento de esquerda dentro dessa comunidade, participa junto com o primeiro, ainda que, por razões que trato mais adiante, de modo indistinto, no processo decisório que origina a PCT.

Seu projeto político está identificado com os interesses da classe trabalhadora: dos que são obrigados a vender sua força de trabalho para os detentores dos meios de produção e desta forma, via extração de mais valia relativa que a tecnociência faculta, possibilitar a reprodução ampliada do capital. Em função disso, caberia a esse segmento um comportamento coerente com o projeto político que, por serem de esquerda, adotam ou endossam. De fato, antes mesmo do que classe trabalhadora com a qual se identifica, mas que se encontra muito distanciada dessa área de política, caberia a esse segmento a concepção de uma agenda particular radicalmente diferente daquela identificada com os interesses da empresa privada defendidos pelo primeiro segmento. E, em consequência, lutar, no âmbito do processo decisório da PCT em que ele participa como o primeiro, dado que também pertencente à comunidade de pesquisa, para fazer valer os interesses daquela classe.

Coerentemente com a visão marxista que se situa no núcleo ideológico do pensamento de esquerda, esse ator considera que cada vez mais, no capitalismo, a tecnociência (ou o que denominavam pelo conceito aparentado de forças produtivas) tem servido para elevar a produtividade do processo de trabalho, ou dos trabalhadores, passível de ser apropriada pelos proprietários dos meios de produção, como lucro.

Mas, em função de uma leitura possível da obra de Marx, que se originou nos anos que sucederam à revolução russa no âmbito do esforço de transição para o socialismo, esse ator possui uma concepção a respeito da tecnociência, ou das forças produtivas, de natureza determinista e neutra (Feenberg, 2002). Ou seja, que na polaridade dialética entre as relações de produção e as forças produtivas cabe a estas o papel dinâmico e determinante. Ou ainda, que, como elas se desenvolvem linear e inexoravelmente, sua tensão, que ocorre periodicamente com as relações sociais de produção (escravistas, feudais, capitalistas, socialistas), em ciclos de longa duração, terminará levando ao modo de produção comunista.

A maior parte dos autores que criticam a visão da neutralidade não se referem à da tecnociência, mas à ciência. Segundo Löwy, 2007, ela seria decorrente da concepção positivista do saber, que tem como uma de suas premissas a ideia de que as ciências da sociedade, assim como as da natureza, devem limitar-se à observação e à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de valor ou ideologias, descartando previamente todas as prenoções e preconceitos.

Para Agazzi (1996), ela implica o não envolvimento da ciência com o seu objeto; de independência com relação a preconceitos; de não orientação por interesses particulares; pela liberdade de condicionamentos e indiferença aos empregos que dela se pode fazer. Para Lacey (1999), a consideração do juízo científico como imparcial se dá pela consideração de que os valores sociais não devem estar entre os critérios utilizados pelos cientistas na atribuição de juízos. Tampouco as prioridades de pesquisa ou sua orientação devem ser influenciadas por valores de qualquer ordem.

No que respeita ao determinismo tecnológico, a ideia é de que desenvolvimento da tecnociência é uma variável independente e universal que determinaria o comportamento de todas as outras variáveis do sistema produtivo e social; como se ela dependesse inteiramente das mudanças e da organização tecnológicas. O desenvolvimento econômico é determinado pelo avanço da tecnociência. Ela é um determinante da estrutura social e a força condutora do progresso social (Dagnino, 2008).

No momento atual, a contradição entre o caráter coletivo e cooperativo da produção levada a cabo pela classe trabalhadora, engendrado pelo atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, e a apropriação privada dos seus frutos pelos proprietários dos meios de produção, tenderia a levar ao socialismo. O que ocorreria quando as condições materiais, objetivas, derivadas dessa contradição estivessem suficientemente maduras para que as condições adstritas à ideologia, à consciência de classe dos trabalhadores, denominadas subjetivas, possam provocar a “centelha revolucionária”.

Segundo essa concepção, como a tecnociência que hoje oprime a classe trabalhadora é neutra e endogenamente condicionada, amanhã, com a revolução, ella poderá ser apropriada por ela e usada para construir o socialismo.

A participação desse segmento minoritário da comunidade de pesquisa na PCT está centrada em duas ideias que possuem como fundamento a concepção da neutralidade e do determinismo. A primeira, pode ser assim sintetizada: como o socialismo irá demandar a tecnociência mais avançada que seja possível obter (e a que os cientistas produzirão amanhã será sempre melhor do que a de hoje) para usá- la para satisfazer as necessidades que surgirão do enfrentamento com os interesses capitalistas remanescentes, enquanto ela não vem, temos que produzir C&T de “qualidade”. E para isso é necessário fazer o que sugerem os cientistas “de ponta”. Afinal, eles é que são os líderes, eles é que sabem de tecnociência. A segunda ideia em a ver com o fato de serem militantes, de estarem trabalhando pela Revolução e o socialismo. E que para isso é importante que desde agora os avanços da tecnociência sejam usados para melhorar a vida dos oprimidos. Afinal, como a tecnociência é neutra, esse uso depende apenas de vontade política para explorar as brechas do sistema.

Resumindo, saliento o fato de que esses dois segmentos da comunidade de pesquisa, embora identificados com atores que atuam em outras políticas públicas defendendo agendas com conteúdo oposto, dado que emanadas de projetos políticos antagônicos, propõem o mesmo tipo de orientação para a PCT. Fato que, justamente, é o que tipifica o caráter anômalo da PCT.

4. A anomalia da PCT brasileira

Expostas as características das políticas anômalas, seria possível explicar por que, em países como o Brasil, atores com projetos políticos, não apenas distintos, mas, antagônicos, participam no processo decisório da PCT defendendo a mesma agenda particular. O que poderia ser feito contrastando, por exemplo, os documentos que tratam da PCT de organizações representativas dos trabalhadores, como o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Marcolino e outros, 2013) e dos empresários, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI, 2005). Ou como partidos políticos que apresentam projetos de governo também antagônicos como o PT ou o PSOL, de um lado, e o PSDB ou o DEM, de outro, apresentam, em relação à área de C&T, plataformas eleitorais praticamente iguais.

O fato de já ter realizado esse exercício mais de uma vez (em trabalhos como Dagnino (2007 e 2007a, entre outros) e a maneira como o encaminhei a seção anterior discorrendo sobre a anomalia da PCT nos países avançados a partir da consideração da forma como atua a comunidade de pesquisa, é uma das razões que me leva a adotar o mesmo procedimento nesta seção. Reforça essa opção o resultado da análise que tenho realizado, a respeito do papel da comunidade de pesquisa na PCT que, mais do que dominante, como ocorre nos países avançados, é aqui hegemônico, em função da incompletude e rarefação que a situação periférica condiciona no “tecido sociotécnico” que nesses países, por ter características opostas, é o que orienta, com relevância e qualidade, sua agenda de pesquisa pública e privada e a PCT (Dagnino, 2004).

Os resultados que tenho alcançado a esse respeito têm sido corroborados, entre outros, por Dias (2009), Bagattolli (2013) e Silva (2013). Embora seja recorrente no meio acadêmico a “miragem” de que a intervenção de outros atores, como os empresários e o governo seja predominante na definição da agenda de pesquisa brasileira, é a própria comunidade científica que, contando com o apoio dos que “estão burocratas” nos órgãos governamentais e nas agências de apoio à pesquisa, que orienta esta agenda. Essa situação é tão marcante que é possível dizer que comunidade científica e esses que “estão burocratas” formam uma comunidade de pesquisa que orienta a PCT segundo seu próprio modelo cognitivo.

Adicionalmente, fato de que aparentemente não existam trabalhos semelhantes relacionados à realidade brasileira e latino-americana que apontem resultados distintos, por reforçar o que indiquei na seção anterior a respeito da PCT dos países avançados, contribuem para sancionar a opção que escolhi.

Para prosseguir a análise, poder-se-ia, como se fez na seção anterior, distinguir dois segmentos dentro dessa comunidade no que respeita a seus projetos políticos. Ao fazê-lo para a realidade da nossa PCT, seria possível fazer com que “aparecessem” no seu decorrer os projetos políticos desses atores uma vez que eles são adotados e veiculados por cada um desses segmentos.

Não obstante, o fato de que o objetivo aqui não é opor suas visões acerca da tecnociência para depois mostrar como ambos conformam seu modelo cognitivo e, em consequência, a orientação que propõem para a PCT, me leva a optar por um outro curso de ação. A não aceitação das posturas e da proposta que fazem esses dois segmentos, e a crítica a elas aqui formulada, me leva a concentrar o foco naquelas que veicula, através do discurso que passo a analisar, o seu segmento de esquerda; aquele que defende um projeto político que em outras políticas públicas se materializa em posturas, agendas e propostas com ele coerentes.

Esta seção, então, procura mostrar como a PCT brasileira da última década elaborada (isto é formulada, implementada e avaliada) por um governo de esquerda pode ser enquadrada na categoria de política anômala. Ou seja, mostrar como ella está guiada segundo um modelo cognitivo não aderente ao projeto político desse governo, que é o que é usado para orientar muitas outras de suas políticas.

A plausibilidade dessa afirmação se fundamenta no fato de que isso não tem ocorrido devido a imposições de governabilidade; aquela que têm feito com que outras políticas públicas não tenham avançado o desejado. É o caso das que são denominadas políticas “econômicas”, porque interessam aos que detêm o poder econômico, político e midiático, ainda extremamente concentrado, mas que deveriam ser chamadas, dado o dano social que costumam causar, de “antissociais”. O governo avançou nas políticas sociais, que as elites tendem a considerar “antieconômicas”, porque subtraem recursos à acumulação de capital. Sobretudo nas que não chegam a contrariar severamente seus interesses. É o caso das de natureza compensatória que, dada à “periculosidade” do problema, também as beneficiam. Avançou-se também em políticas como a de educação que, apesar da oposição de alguns setores, favorecem, ao mesmo tempo, trabalhadores e empresários.

O caso da PCT, e este é o ponto que me interessa ressaltar, é diferente. Seu afastamento da orientação neoliberal seguida por governos anteriores não teria (e segue não tendo) um grau de oposição que ameaçasse a governabilidade.

De fato, os interesses que seriam contrariados -os de um segmento de direita da comunidade de pesquisa- com um alinhamento da PCT ao projeto político da esquerda. Em primeiro lugar, porque eles não são interesses de classe, uma vez que a comunidade de pesquisa está longe de poder ser considerada uma classe. Nem sequer pode ser pensada como um ator, uma vez que como indicado acima, existem, em termos de projeto político (esquerda versus direita), dois atores até diferenciados.

Em segundo, porque sua natureza não é propriamente econômica ou mesmo política. Embora existam anéis burocráticos e outras formas de cooptação e captura da burocracia no seio dessa comunidade, seus rendimentos normais e aqueles que provêm da ação as agências de fomento à pesquisa e à pós-graduação não seriam afetados por uma reorientação da PCT. Sempre e quando, é claro, essa reorientação em termos de aproximação do seu modelo cognitivo ao projeto político da esquerda fosse levado ao campo institucional e, em particular, no sistema de avaliação do desempenho dos professores, pesquisadores e estudantes.

A afirmação acerca de seu caráter anômalo fica reforçado quando se constata que seus resultados cognitivos são uma condição para potencializar políticas que estão sendo orientadas pelo projeto político da esquerda. Exemplos delas são as que visam à produção de bens e serviços e que abarcam desde a saúde até a de produção de commodities, passando pela geração de trabalho e renda, seria razoável enfrentar alguns setores que dela se vêm beneficiando.

Mais força ela ganha quando se constata a quase inexistência de manifestações críticas à orientação da PCT de integrantes daquele segmento de esquerda da comunidade de pesquisa brasileira. Inclusive de alguns que além de possuírem elevado prestigio entre seus pares se notabilizam pelo alinhamento com o projeto político da esquerda e, mais do que isto, atuam em conformidade com ele no âmbito de outras políticas.

O objetivo desta seção é, então, apresentar evidências de natureza discursiva que mostram a anomalia da PCT brasileira e, por extensão, como esta categoria ajuda a melhor entendê-la e, esta é a intenção, torná-la mais coerente com o projeto político da esquerda.

Apesar de existirem muitas outras evidências a respeito de como pensam os fazedores da PCT brasileira que poderiam ser destacadas do seu discurso (entrevistas, artigos) acerca das questões atinentes à anomalia da PCT, farei referência a uma que considero, entre outras coisas pelas características do ator que a enuncia, um marco importante para caracterizar o caráter anômalo da PCT brasileira. Ele ocorre em fevereiro de 2012, quando assume o Ministério da Ciência, Tecnologia (que, mais tarde e sintomaticamente, em sua gestão, é rebatizado como Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) um novo ministro, o pesquisador Marco Antônio Raupp. Pertencente à elite científica (e “tecnológica”) nacional, ele tem acompanhado de perto a elaboração da PCT, inclusive como protagonista em cargos institucionais e ocupando posições de liderança em associações representativas da comunidade de pesquisa.

Ele foi apresentado à opinião pública, provavelmente por sugestão sua, como um “técnico”. Termo que, na acepção que se costuma dar ao termo, significa um “não- quadro-político” ou, mais precisamente, uma pessoa “desprovida de ideologia”, que pauta suas ações por critérios “técnicos”.

O que na realidade não corresponde às declarações e ações que ele vem desenvolvendo no âmbito da PCT. Por visarem o estímulo à inovação na empresa privada e à aproximação da atividade de ensino, pesquisa e extensão realizadas na universidade pública a sua agenda de pesquisa, elas denotam um perfil ideologicamente enviesado e revelam preocupações políticas bem definidas. O que, verdade seja dita, não é de estranhar e apenas desnuda o inevitável caráter político que possuem as políticas públicas e, as pessoas que as elaboram. A trajetória do novo ministro, sem ser conservadora, o aproxima daqueles fazedores de política que vêm defendendo no âmbito da PCT uma agenda pouco coerente com o projeto político da esquerda e com o viés progressista que vem sendo imprimido a outras políticas. Sobretudo aquelas que, como dito acima, podem ser reorientadas sem colocar em risco a governabilidade.

Logo após sua posse, o novo ministro deu uma entrevista reproduzida em várias publicações em que ressaltava a “necessidade aumentar a colaboração entre a geração de conhecimento no meio científico e o desenvolvimento de pesquisa nas empresas privadas”. Nas suas palavras: “Uma das necessidades que se impõem é a construção de um modelo que faça a aliança entre o conhecimento científico e a economia”.

Parece ser através desse “modelo” a ser construído que ele pretendia, na ponta da empresa, materializar a sua crítica acerca do seu pouco interesse em P&D. De fato, em seguida à expressão do seu desejo - “As empresas têm de investir também” -, ele diz, como se elas não soubessem como obter o lucro que justifica a sua existência, ou escolher racionalmente se precisam ou não inovar e de que forma devem fazê-lo, se mediante P&D interna ou aquisição de máquinas e equipamentos, “Precisamos criar condições para que elas vejam que poderão ter benefício econômico a partir de pesquisa”. Em trabalhos como Dagnino (2008b), cujo título é “Por que os ‘nossos’ empresários não inovam?”, me dedico especificamente a mostrar porque a racionalidade defendida.

Na ponta da universidade pública, o modelo viria a corrigir o que ele considera um desvio: o fato de ela não estar oferecendo o conhecimento incorporado em pessoas que a empresa, segundo ele, está a demandar. Como se o conhecimento que gera e difunde e os profissionais que forma, em particular os pós-graduados que efetivamente poderiam realizar P&D na empresa, não fossem em tudo semelhantes àqueles cuja produção ocupa as melhores universidades do mundo. Respondendo à provocação de um entrevistador expressa na pergunta “Falta pesquisador no Brasil?”, o ministro responde “Sim. Nossa pós-graduação se concentrou em formar pessoas para as próprias universidades” enquanto “precisamos de gente para trabalhar nas empresas”.

De novo, aqui, aparentando desconhecer o quanto foi e segue sendo debatida a questão subjacente a este assunto, de profundas raízes ideológicas e significativas implicações para a sociedade e para a própria universidade, ele assevera que ao “estabelecer uma parceria com o setor produtivo” e “mostrar às universidades que elas têm grandes vantagens em entrar na problemática do desenvolvimento do País, com as empresas, com a área econômica, sobre assuntos estratégicos”, será alcançado seu objetivo de “dar consistência à pesquisa tecnológica no país”.

Empreguei a expressão “aparentando” em função do que me parece ser o uso de um eufemismo quando ele se refere ao estabelecimento de contratos para realizar pesquisas de interesse das empresas privadas falando em “estabelecer uma parceria com o setor produtivo”; à busca de recursos alocados por elas, em geral mediante o repasse de dinheiro público, falando em “entrar na problemática do desenvolvimento do País”; à necessidade de aproximar a universidade ao que ele equivocadamente supõe serem as demandas colocadas pelas estratégias das empresas inovadoras falando em “assuntos estratégicos”; e ao objetivo de atender a estas supostas demandas mediante a pesquisa universitária falando em “dar consistência à pesquisa tecnológica no país”.

Respondendo à pergunta de um entrevistador (“Seu governo será de continuidade?”), o ministro respondeu: “É o mesmo governo. Não vou reinventar a roda. Minha missão é acelerar a roda.” Frase que, no contexto em que foi dita, significa que ele pretender aprofundar a orientação seguida pelo seu antecessor, de estreitar a relação entre universidade e empresa. A qual, como bem apontado no trabalho, é o que caracteriza (e dá sentido) desde o seu surgimento, há sessenta anos quando se supunha que isso seria suficiente para que a empresa pudesse desenvolver tecnologia e se tornar competitiva, o atributo de política-meio que tem a PCT.

Fica evidente, observando o que foi apresentado nos últimos parágrafos, a relativa artificialidade da separação heurística, que é o centro deste trabalho, entre a anomalia genérica da PCT e a atipicidade da PCT brasileira. De fato, os defensores da PCT atual, e não teria porque ser diferente, utilizam argumentos que ora revelam seu caráter anômalo, ora, como ficará mais claro em seguida, seu caráter atípico.

Finalmente, e concluindo esta seção, ressalto que embora seja possível indicar muitas outras evidências discursivas presentes em manifestações de pessoas responsáveis pela elaboração (formulação, implementação e avaliação) que poderiam reforçar o argumento acerca da anomalia da PCT brasileira, considero a aqui apresentadas como suficientes para mostrar a sua anomalia.

5. A atipicidade da PCT brasileira

O termo atipicidade (que tem como sinônimos particularidade, singularidade, excentricidade) usado aqui para denotar a PCT de países periféricos, se refere à diferença, em termos qualitativos e quantitativos, entre o comportamento dos atores com ela envolvidos e o que eles apresentam nos países avançados. O que, para deixar claro e abusando das metáforas, significa que a peça Sistema Nacional de Inovação, que ao que se sabe tem tido grande sucesso nesses países, não poderia ser encenada no Brasil. Faltariam aqui “atores e atrizes” capazes de desempenhar o papel que aqueles dos países avançados lá desempenham. O que significa que apesar dos esforços que os fazedores da PCT têm feito nesse sentido, os atores nacionais não conseguem imitar o desempenho que deveriam ter os protagonistas dessa peça.

A diferença entre o comportamento das empresas dos países avançados e das aquí localizadas em relação à realização de atividades de P&D pode ser inferido diretamente das contribuições críticas e politicamente enviesadas do PLACTS à PCT latino-americana. Há mais de quatro décadas, elas ressaltavam as implicações de sua condição periférica sobre o comportamento empresarial frente à inovação. Contribuições que, como se irá mostrar, além de válidas no plano argumentativo são corretas, dado que empiricamente comprováveis pelas evidências agora disponíveis para o caso brasileiro.

Uma citação de Amilcar Herrera, um dos integrantes do PLACTS que mais incisivamente tratou o tema é suficiente para ilustrar essa visão: “Se trata de un empresariado que aparece y se desarrolla tardíamente; en número limitado por la estratificación social rígida; frenado por, a la sombra de, o en ensamblamiento con fuerzas tradicionales y monopolistas del país y del extranjero, con escasas posibilidades de competitividad y capitalización. Su horizonte no excede los ámbitos de lo mercantil y dinerario. No representa ni transmite lo que merezca preservarse del orden tradicional; ni opera como vehículo de innovación” (1970: 7).

Esse comportamento era visto pelo PLACTS como sensivelmente distinto do visado pela PCT orientada pelo modelo institucional ofertista linear do Relatório Bush que ele criticado. Mais recentemente, o modelo de PCT da Economia da Inovação que codificou a síntese neoliberal que emergiu da realidade e das experiências de modelização da relação CTS e de elaboração da PCT dos países avançados, tem levado a fazer com que os fazedores da PCT tentem irrealisticamente mudar o comportamento das empresas locais, que eles consideram irracional e atrasado.

Em função desse comportamento empresarial, estabeleceu-se em nossa PCT um mito fundador: o de que cabe à universidade pública a função de pesquisar para obter resultados úteis para a empresa privada. Arraigado nas elites, ele é aceito, inclusive, pelo seu segmento nacionalista que, denunciando nossa condição periférica, preocupa-se com a debilidade das empresas nacionais frente às do “império”. E supõe ingenuamente que aquilo que as universidades fazem, possuem no que respeita à infraestrutura material e humana para a pesquisa, e produzem em termos de conhecimento, poderia ser usado pelas e nas empresas. Esse mito vem orientando as ações governamentais visando ao estímulo a atividades tecnocientíficas, desde antes da década de 1950 e muito antes de que existisse, como tal, uma PCT.

Como qualquer outro, esse mito nasce de uma simplificação da realidade modelizada pelo senso comum. Ele se caracteriza por transformar a exceção, o fato de algumas empresas estrangeiras terem “dado certo” desenvolvendo tecnologia a partir de resultados de pesquisa universitária, em pauta de conduta ou em modelo de política pública.

A promoção da relação universidade-empresa, embora conceitualmente equivocada e apesar de ter seu virtuosismo negado pela evidência empírica, segue sendo o núcleo da PCT que vem sendo formulada, implementada e avaliada pelo seu ator hegemônico, a comunidade de pesquisa.

Equivocada porque presume que o conhecimento que origina a inovação pode ser transferido da universidade, que supostamente o detinha, para a empresa; a qual, por ser débil, não podia gerá-lo. A negação do virtuosismo do agenciamento dessa relação ou, mais corretamente, a afirmação acerca de sua inocuidade para a promoção do desenvolvimento tecnológico e a competitividade nas empresas, vem sendo corroborada pela evidência empírica há décadas existente no nível dos paísesavançados e, há alguns anos, como retomarei em seguida, no Brasil. Nos EUA, o país que entre nós se toma como referência virtuosa de PCT a ser emulada, apenas 1% do custo da universidade é financiado por contratos de pesquisa com empresas. E que esses contratos representem por sua vez, coincidentemente, em relação ao gasto de P&D das empresas uma parcela também próxima ao 1% (o significa que 99% dos gastos de P&D estadunidense são realizados nelas mesmas).

Como já assinalei, já nos anos de 1960, os fundadores do PLACTS apontaram que o modelo linear de inovação proposto pelo establishment tecnocientífico estadunidense do pós-guerra e em implementação na região não tinha como funcionar na periferia do capitalismo. Eles nos legaram três ensinamentos que podem ajudar a entender as limitações das ações que desde aquela época vem sendo implementadas e que paradoxalmente continuam a ser propostas pela PCT.

O primeiro é que, em áreas onde não existia o conhecimento necessário para aplicar um projeto político de alguma elite dominante, fomos capazes de armar a “cadeia de inovação” que vai da “pesquisa pública básica” até o sucesso econômico (Instituto Agronômico, Embrapa, Cenpes-Petrobras), político-estratégico (CTA-ITA- Embraer, CPqD) ou social (Instituto Oswaldo Cruz). O fato de que isso ocorreu em vários países da América Latina a partir da ação do Estado parece ter passado despercebido pelos fazedores da PCT quando para mostrar a viabilidade da sua proposta de estimular a P&D na empresa privada, citam os “exemplos” das estatais Petrobras e Embrapa, e da ex-estatal Embraer cuja criação e posterior privatização seriam impossíveis sem o apoio do Estado.

Outra importante característica da relação ciência, tecnologia e sociedade na periferia tem passado despercebida. Ou seja, de que, em toda a América Latina, tem sido apenas em segmentos com essa característica -especificidades locais e importância para algum projeto político- que se pôde emular aquela “cadeia linear”.

O segundo ensinamento legado pelos fundadores do PLACTS é: “Em qualquer lugar e tempo, existirão três bons negócios com tecnologia: roubar, copiar e comprar...; e nenhuma empresa ou país irá desenvolver tecnologia se puder realizar um desses três”.

O terceiro, é um corolário para o caso brasileiro. Aqui, mais do que em outros países que foram relegados à periferia do capitalismo - como Índia, Peru, China, onde o conhecimento autóctone não foi arrasado pelo eurocêntrico -, nossa ancestral dependência cultural, o baixo preço da força de trabalho e o elevado grau de oligopólio tornam ainda mais intensa e estrutural a aversão natural da empresa a realizar P&D.

Ou seja, não é porque sejam atrasadas, ou porque não exista “cultura” ou “ambiente de inovação”, como dizem os fazedores da PCT, e sim porque são agentes econômicos racionais, que as empresas “brasileiras” (porque tem um CNPJ) não fazem P&D. Quem duvida disso deve observar a elevada taxa de lucro (que é o critério mais apropriado para avaliar o seu desempenho) que obtêm “nossos” excelentes empresários. O fato de os segmentos em que logramos êxito estarem em geral situados em áreas como saúde humana, vegetal e animal, e recursos naturais, e não na industrial, apenas confirma esse velho, ainda que pouco lembrado, ensinamento.

Já naquela época era possível entender que nossa dependência cultural e, mais genericamente, nossa condição periférica, fazia com que o comportamento racional da empresa industrial, mesmo quando inovadora, não era realizar P&D. Sua atividade inovativa preferida já era, continua sendo, e não há nenhuma razão para que mude, importar tecnologia desincorporada ou incorporada em equipamentos e insumos. E também que, ainda que a nossa universidade detivesse um conhecimento que a empresa “deveria” absorver, seu comportamento não tinha porque ser diferente da estadunidense que, dificilmente se interessa pelos resultados da pesquisa universitária.

O que não existia na década de 1960 e que só no final dos anos de 1990 começou a ser produzido mediante as pesquisas sobre inovação realizadas pelo IBGE, eram informações empíricas confiáveis concernentes ao conjunto das empresas do país que pudessem comprovar as afirmações do PLACTS e dos que seguiam fazendo os pesquisadores a partir de sua observação e experiência.

No início dos anos de 1980, economistas neo-schumpeterianos dos países avançados mostraram que também lá o modelo linear não funcionava. As empresas que inovavam o faziam a partir de sua própria capacidade de P&D. Com a correta expressão que imortalizaram - “o lócus da inovação é a empresa” -, os economistas da inovação pareciam ter sepultado a ideia que ainda hoje vaga nos círculos em que se decide a nossa PCT.

Aqui, na década de 1990, influenciados por essa visão crítica do ofertismo, muitos dos formuladores da PCT, que desconheciam o PLACTS ou que o consideravam muito radical ou démodé, já estavam convencidos de que o seu componente tecnológico deveria ser alterado. De que ele deveria deslocar seu foco da relação universidade-empresa para o apoio direto à P&D empresarial. Formava-se uma nova coalizão.

Os fazedores de política de então esperavam que as empresas industriais, acicatadas pela abertura comercial, iriam se tornar competitivas por meio da transferência dos resultados da pesquisa universitária e a realização de P&D intramuros. O que ficou patente foi que elas, inclusive algumas que eram atípicas pelas atividades de P&D que realizavam, simplesmente venderam seus ativos ao capital estrangeiro para explorar outros negócios, provocando a informalidade que até agora amargamos.

Mas voltando ao momento presente vou fazer uma rápida avaliação dos resultados que vêm alcançando a PCT. Seu propósito é, perseguindo um caminho de crítica interna, mostrar o fracasso da PCT em curso em cumprir os objetivos que ela mesma se colocou a partir da informação quantitativa disponível. Com isso, pretendo mostrar que a PCT brasileira, devido ao fato de conter medidas e ações que supõem um comportamento dos atores com ela envolvidos significativamente distinto daquele que se pode depreender da evidência empírica disponível deve ser considerada atípica.

Desde os anos de 2000, quando se verificou que não era suficiente fazer pesquisa e formar pessoal na universidade para que a empresa pudesse desenvolver tecnologia e se tornar competitiva, e se passou a focar mais intensamente o objetivo de subsidiar diretamente a P&D na empresa, os recursos não param de crescer. Do aumento do orçamento do MCTI, de 1,6 para quase 9 bilhões de reais entre 2000 e 2011, a maior parte foi destinada a cumprir esse objetivo. Adicionalmente, há recursos semelhantes para inovação que vêm do BNDES e os cada vez maiores provenientes dos mecanismos de renúncia fiscal.

Qualquer política pode ser objeto de uma crítica interna; aquela que não questiona os valores e interesses dos seus formuladores. A que vou fazer em seguida tem por base três critérios independentes: “eficácia (a capacidade de realizar objetivos), eficiência (de utilizar produtivamente os recursos) e efetividade (de realizar a coisa certa para transformar a situação existente)”.

As cinco edições da Pesquisa de Inovação (PINTEC/IBGE) realizadas segundo o Manual de Oslo cobrem um período de treze anos (1998-2008) suficientemente longo para embasar a avaliação que se apresenta a seguir.

Se a política tivesse sido eficaz, seu objetivo de aumentar a P&D nas empresas, ou alterar o sua conduta ou, pelo menos, mudar a percepção de que ela poderá torná- las inovadoras e competitivas, teria sido cumprido.

Comparando a informação disponível para o período, constata-se que isso não ocorreu:

• a parcela da Receita Líquida alocada pelas empresas industriais inovadoras em atividades inovativas, que indica a responsividade das mesmas, diminuiu de 3,8% para 2,5% (uma queda de 35%) e a orientada à P&D permaneceu estável em 0,6%;

• as inovadoras que declararam realizar P&D para inovar diminuíram de 33% para 11% (uma queda de 67%) e as que adquiriram máquinas e equipamentos se mantiveram em cerca de 60%;

• as inovadoras que apontaram a P&D como importante para sua capacidade de inovar diminuíram de 34% para 12% (uma queda de 65%), e as que apontaram a aquisição de máquinas e equipamentos se mantiveram em cerca de 80%.

Além da política não ter sido eficaz, dado que não foi “capaz de realizar seu objetivo”, é possível mostrar que tampouco foi eficiente. O fato de que durante o período os recursos disponíveis para sua implementação se multiplicaram, por um fator de mais de 10, enquanto os indicadores que podem ser usados para avaliar a eficiência da política estiveram longe de alcançar uma evolução semelhante, mostra que ella também não foi eficiente. Ela esteve muito longe de “utilizar eficientemente os recursos” disponíveis.

Ainda que não atendesse aos dois primeiros critérios, a política poderia justificar-se por ter tido efetividade. Apesar de não ter ainda alcançado seu objetivo (eficácia) e de não ter conseguido aplicar bem os recursos disponíveis (eficiência), ela poderia estar na direção correta, uma vez que estava “realizando a coisa certa para transformar a situação existente”: a baixa propensão à P&D das empresas.

Com relação à efetividade a informação disponível mostra que:

• entre as empresas pesquisadas que não inovaram a parcela que apontou como o maior obstáculo à inovação a “escassez de fontes de financiamento” chegou a ser 12%, enquanto que a que entendeu serem “condições de mercado” alcançou 70%. O que indica que as ações de multiplicar os arranjos institucionais para subsidiar a P&D empresarial, e aumentar brutalmente os recursos oferecidos, não são “coisas certas”;

• das inovadoras somente 7% se relacionam com universidades e institutos de pesquisa e 70% destas consideram estas relações de baixa importância. O que sugere o mesmo em relação à criação incubadoras, polos e parques tecnológicos, e ao estímulo ao patenteamento universitário e ao estabelecimento de parcerias;

• dos 90 mil mestres e doutores formados em “ciências duras” entre 2006 e 2008, apenas 68 foram contratados para realizar P&D em empresas (cifra que contrasta radicalmente com a que se verifica nos EUA, onde mais da metade deles são absorvidos com esta finalidade). O que indica que treiná-los para colocá-los à disposição das empresas mediante de bolsas, como está fazendo o governo, tampouco pode ser considerada uma ação frutífera.

• o fato de que as pouquíssimas empresas realmente inovadoras e competitivas, dado que introduziram produtos (0,7% do total de inovadoras) ou processos (0,2%) considerados novidades para o mercado mundial, serem pouco responsivas às medidas de política implementadas -a ponto de algumas sequer poderem ser tratadas em conjunto com empresas privadas, como a Petrobras- aponta no mesmo sentido.

Para concluir esse procedimento de crítica interna, que permitiu mostrar a desproporção entre os resultados alcançados em termos da dinâmica inovativa empresarial, por um lado, e o esforço institucional despendido e os recursos públicos disponibilizados, por outro, é conveniente explicar sua origem. Ela reside na inadequação do modelo da PCT à realidade periférica. Mais especificamente, ao comportamento atípico, no sentido de não condizente com o esperado (ou prescrito) por esse modelo, das empresas locais.

Considerações finais

A motivação inicial deste trabalho é a observação de que os governos latino- americanos que foram eleitos em oposição ao neoliberalismo e que vêm implementando, muitas vezes colocando em risco sua governabilidade, políticas públicas coerentes com o processo de democratização em curso, têm encontrado grande dificuldade em orientar sua PCT num sentido coerente com este processo.

Entendendo o trabalho como composto de dois momentos -descritivo e explicativo-poder-se-ia resumir seu resultado com as seguintes considerações.

No momento descritivo, e no plano da crítica externa, acredito ter mostrado na seção “A anomalia da PCT brasileira” como ela, apesar de elaborada por um governo de esquerda, manteve a orientação inaugurada no período neoliberal que vai de 1990  a 2002.6 E, no plano da crítica interna, considero que foi possível evidenciar que a PCT implementada se tem mostrado ineficaz em relação ao objetivo de aumentar a propensão a realizar P&D das empresas).

No momento explicativo, que explica as origens e condicionantes da situação existente, acredito ter conseguido relacionar duas particularidades da PCT brasileira atual aos dois conceitos centrais -política “normal” e política anômala- discutidos neste trabalho.

A primeira particularidade, a contraditória manutenção de sua orientação neoliberal, tem sua origem numa característica (ou, melhor, propriedade) genérica da PCT, que denominei anomalia, apoiando-me em conceitos da Análise de Políticas e da crítica à neutralidade e ao determinismo da tecnociência para examinar a PCT dos países avançados.

A segunda particularidade, sua ineficácia em aumentar a propensão à P&D na empresa, se deve ao que o PLACTS, há muito tempo, já havia chamado a atenção e que, nele apoiado e tendo agora por base a evidência empírica então inexistente, chamei de atipicidade. Essa característica específica da PCT dos países periféricos. Enquanto a abordagem realizada a esse último assunto (atipicidade), por já ter sido explorado em outros trabalhos de colegas filiados ao PLACTS, inclusive de minha autoria, não foi o foco deste texto, o segundo (anomalia), pelo menos no que tange ao tratamento que a ele se refere é, até onde eu posso perceber, relativamente original.

Quando o PLACTS formulou sua interpretação sobre o desenvolvimento tecnocientífico latino-americano, nosso atraso era atribuído, pela maior parte da esquerda (tradicional), apoiando-se nas ideias cepalinas e no reformismo do marxismo stalinista, aos obstáculos associados ao imperialismo. Em conjunto com os “resquícios feudais”, eles impediam o desenvolvimento de um capitalismo baseado num Estado-nação independente e soberano. Entendia-se a “burguesia nacional” como capaz de nuclear uma aliança com o operariado e outros atores em prol de uma revolução democrático-burguesa que fundasse, como havia ocorrido no então Primeiro Mundo, o capitalismo latino-americano.

Privilegiando o imperialismo com o “inimigo principal” e elegendo como “contradição principal” daquela conjuntura aquela que opunha essa aliança ao capital multinacional, a esquerda tradicional buscava gerar um clima de mobilização nacional que estimulasse a burguesia industrial nascente a assumir o que era considerado como sendo o seu “papel histórico”.

A minoria que antepunha a essa racionalidade interpretações como a da Teoria da Dependência considerava que a elite local era dependente das elites dos países ricos, de sua cultura e de seus padrões de consumo eurocêntricos. E como estava a ela conectada, de forma subordinada, por fortes laços culturais políticos e econômicos, não estava interessada apostar num caminho de desenvolvimento autônomo.

E era por alinhar-se à concepção que se contrapunha àquela da esquerda tradicional, que o PLACTS entendia que o rompimento da “dependência tecnológica” só poderia ocorrer pela via da adoção de um “projeto nacional” que contivesse uma “demanda social” por conhecimento tecnocientífico autóctone. E que enquanto isso não ocorresse, as elites empresariais, inclusive as nacionais, não teriam porque aproveitar os resultados da pesquisa ou os profissionais qualificados gerados pelo complexo público de ensino superior e de pesquisa. Suas demandas em relação a esse complexo não se deviam a intenção de realizar P&D e se limitavam aos desafios colocados pela adaptação e operação de tecnologia importada (em especial a incorporada em máquinas, equipamentos e insumos) que o processo de industrialização por substituição de importações trazia consigo.

Contrariando essa avaliação, a comunidade de pesquisa responsável pela elaboração da PCT vem perseguindo desde então uma estratégia de sucesso duvidoso semelhante àquela que adota, no plano político (da politics e das policies), a esquerda tradicional. Ao tentar criar um “ambiente de inovação”, através da criação de mecanismos institucionais e da alocação de recursos para estimular o empresário, entendido como “atrasado” e ainda não “convencido” de que a realização de P&D é a melhor maneira de inovar e se tornar competitivo, a comunidade de pesquisa parece estar incorrendo num equívoco análogo. Também nesse caso, ao pretender, no plano tecnocientífico e da dinâmica inovativa, que o empresário tenha um comportamento semelhante ao dos seus congêneres do capitalismo avançado, ela vem tentando reencenar o enredo análogo (e fracassado) que colocava a burguesia nacional como um ator principal, capaz de enfrentar o capital multinacional em prol do desenvolvimento brasileiro.

O segmento de esquerda da comunidade de pesquisa atua como se estivesse ainda vivendo o tempo em que a esquerda tradicional tentava fazer com que a burguesia nacional lançasse mão dos recursos humanos e materiais locais para forjar uma rota autônoma de desenvolvimento para o país.

A realidade globalizada dos nossos dias, sem tirar de cena, transforma a maneira como nela aparece as questões do imperialismo e do nacionalismo. Não se trata de fazer com que a empresa de capital nacional se fortaleça a partir da capacidade (ou potencial) tecnocientífica do complexo público de ensino e pesquisa de modo a opor- se às multinacionais no plano interno ou externo. O objetivo da PCT se imita a fazer com que a empresa local, que por possuir um CNPJ é considerada brasileira independentemente de seu capital ser nacional ou estrangeiro, seja estimulada a aproveitar-se desse potencial. O que, por não estar ocorrendo (e dificilmente poderá vir a ocorrer mantidos os contornos da situação atual), vem preocupando a comunidade de pesquisa responsável pela elaboração da PCT ameaçada de não mais poder manter um círculo que ela segue tentando apresentar como virtuoso, mas que se revela cada vez mais, mesmo quando se aceita os objetivos bastante questionáveis que ela persegue, como vicioso.

É como se as ações governamentais frente às antigas questões do imperialismo e do nacionalismo se devessem limitar ao âmbito do complexo público de ensino e de pesquisa e não se deixar contaminar pelo âmbito privado do tecnológico-produtivo em que se situam as empresas nacionais e estrangeiras. Como se a razão de ser da PCT fosse tão somente incrementar o seu potencial passível de ser aquilatado pelo número de mestres e doutores formados, de artigos publicados e citados, pelo pertencimento às instituições de “classe mundial”, pela posição no ranking internacional das universidades. E, mais recentemente, de patentes depositadas, independentemente de quem as deposita, se universidades públicas ou empresas multinacionais, ou se, algum dia, elas possam vir a ser de fato licenciadas e utilizadas. Como se para avaliar a PCT no que respeita àquelas antigas questões do imperialismo e do nacionalismo fosse suficiente assegurar que ela leve ao incremento da “competitividade” da ciência nacional elidindo qualquer preocupação a respeito de qual é seu impacto na competitividade da empresa de capital nacional. E note que eu nem sequer estou mencionando o espinhoso assunto da relevância da produção científica apoiada pela PCT ou as implicações que ela deveria ter para a solução dos problemas que afligem a maioria da população.

Frente a essa situação, os participantes do segmento de esquerda da comunidade de pesquisa com algum grau de (in)formação marxista, que é o que poderia se organizar para alterá-la, costuma dizer algo como “Embora no capitalismo, a tecnociência sirva para elevar a “eficiência” dos trabalhadores passível de ser apropriada pelos proprietários dos meios de produção, como lucro, como “as forças produtivas” se desenvolvem linear e inexoravelmente, sua sucessiva tensão com as relações sociais de produção (escravistas, feudais, capitalistas, socialistas) levará necessariamente ao modo de produção comunista. E como a tecnociência que hoje oprime a classe trabalhadora é neutra, amanhã, com a revolução, poderá ser apropriada por ela e usada para construir o socialismo, estamos, como militantes, trabalhando para isto. Mas enquanto as condições para a revolução não estão maduras, devemos promover a C&T de “qualidade”. Por isso, vamos fazer o que querem as lideranças científicas; afinal, elas é que sabem de tecnociência”.

Para concluir uma última aclaração e desafio relacionados ao que afirmei anteriormente sobre o fato de que o tratamento dado ao assunto que batizei de anomalia da PCT ser relativamente original. Há que ressaltar, a respeito, que partindo de outra matriz ideológica, autores como Sarewitz (1996), se aproximaram da análise dessas implicações ao apontar a existência dos mitos orientadores da PCT.

Adentrando no plano ou momento normativo, há também que enfatizar que embora, tal como eu mesmo tenha reconhecido a partir de leituras que resenhei em Dagnino (1977 e 2008), que os assuntos referentes à neutralidade e ao determinismo da tecnociência tenham sido objeto da atenção de autores marxistas críticos à trajetória do stalinismo, a sua relação e, em especial, as suas implicações para a PCT, não foi por eles tratado. O que em consequência, fez com que no plano normativo, do processo decisório da C&T, o segmento de esquerda do seu ator dominante (ou hegemônico no caso dos países periféricos), não tenha se preocupado em materializar seu projeto político numa agenda que aproximasse a PCT da orientação que, em muitos casos, seus próprios membros, propunha para outras políticas públicas.

Talvez o fato que explorei em outro trabalho (Dagnino, 2008a), de que a preocupação com a relação CTS ter surgido na América Latina, diferentemente do que ocorreu na Europa e nos EUA, com um olhar claramente focado e orientado para a PCT, explique o surgimento de um “debate implícito”, ou inviabilizado em função de conflitos encobertos para uns e latentes para a maioria do segmento de esquerda da comunidade de pesquisa latino-americana, acerca da neutralidade e do determinismo.

Nesse particular, vale enfatizar que no âmbito do PLACTS, a formulação que durante muito tempo foi dominante na discussão sobre a PCT latino-americana e que, ainda hoje se mantém como uma referência importante no debate acerca de sua orientação, a posição majoritária não questionava a neutralidade e o determinismo. Cito a esse respeito Amilcar Herrera, um dos fundadores do PLACTS que mais tratou dos aspectos políticos relacionadas à PCT e que como quase a totalidade dos demais, se alinhavam com essa corrente. Acerca do caráter pretensamente universal, e, portanto, neutro, da tecnociência, e das implicações que isto colocava para a PCT, ele assim se expressava: “Los métodos y el fin de la ciencia son efectivamente universales, y el intercambio continuo y la conexión estrecha con el sistema científico mundial son la única garantía de un nivel de calidad acorde con el que exige el trabajo científico moderno. No puede existir una ciencia ‘latinoamericana’; lo que sí puede, y debe existir, es una ciencia cuya orientación y objetivos generales estén en armonía con la necesidad de resolver los múltiples problemas que plantea el desarrollo de la región” (1971: 97).

Ou seja, sua posição, expressa também em outras de suas contribuições (de inestimável valor, destaco, para fortalecer a corrente de pensamento nacionalista que defendia, e defende, a autonomia tecnológica e científica dos países latino- americanos) era de que aquela “ciência universal” poderia ser “usada” para promover o desenvolvimento da região.

O único dos integrantes do PLACTS que não endossava essa proposição foi Oscar Varsavsky. Segundo ele: “Los medios de difusión de nuestra sociedad ensalzan estas virtudes de la ciencia a su manera, destacando su infalibilidad, su universalidad, presentando a las ciencias físicas como arquetipo y a los investigadores siempre separados del mundo por las paredes de sus laboratorios...” (1969: 14). E segue, dizendo: “Su historia (da ciência) se nos presenta como un desarrollo unilineal, sin alternativas deseables o posibles, con etapas que se dieron en un orden natural y espontáneo y desembocaron forzosamente en la ciencia actual, heredera indiscutible de todo lo hecho... cuya evolución futura es impredecible pero seguramente grandiosa, con tal que nadie interfiera con su motor fundamental: la libertad de investigación (esto último dicho en tono muy solemne)”. E apontava em seguida, referindo-se em conjunto à anomalia e à atipicidade, uma das implicações que esse fato, por induzir uma percepção nos participantes da comunidade de pesquisa, tinha para a PCT latino-americana: “Es natural, pues, que todo aspirante a científico mire con reverencia a esa Meca del Norte, crea que cualquier dirección que allí se indique es progresista y única, acuda a sus templos a perfeccionarse, y una vez recibido su espaldarazo mantenga a su regreso -si regresa- un vínculo más fuerte con ella que con su medio social. Elige alguno de los temas allí en boga y cree que eso es libertad de investigación, como algunos creen que poder elegir entre media docena de diarios es libertad de prensa.” (1969: 15).

Notas

1. Correndo o risco de parecer démodé, prefiro, por várias razões, usar a expressão PCT em vez de política de ciência, tecnologia e inovação (PCTI). Não obstante, se o leitor assim preferir, a adição do último termo (inovação) não modificará o conteúdo da análise feita neste trabalho.

2. O conceito de “países periféricos” pertence ao marco analítico da Teoria da Dependência, concebido por intelectuais de esquerda latino-americanos na década de sessenta, que consiste numa leitura crítica e marxista dos processos de reprodução do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo mundial, em contraposição às posições marxistas convencionais dos partidos comunistas e à visão da CEPAL. Ele é ainda hoje empregado no mundo inteiro, inclusive por analistas identificados com o pensamento de direita, para analisar a realidade contemporânea. Dentre eles, por ser um dos intelectuais brasileiros mais prestigiados e extremados dessa corrente, cabe citar Demétrio Magnoli (2000) quando se refere à condição desses países no bojo do processo de globalização: “A grande mutação na economia mundial e na geopolítica planetária agravou as desigualdades entre a acumulação de riquezas e a disseminação da pobreza. O desenvolvimento assume padrões crescentemente perversos, marginalizando parcelas maiores da população. Em escala mundial, a década de 80 presenciou uma ampliação da fratura econômica entre o Norte e o Sul. Atualmente, os 20% mais ricos da população do planeta repartem entre si 82,7% da riqueza, enquanto os 20% mais pobres dispõem apenas de 1,4%”.

3. Analogamente ao anterior, este conceito é de natureza eminentemente relacional. Ele designa um conjunto de países que, apesar de possuírem flagrantes particularidades, apresentam, em relação àqueles outros, características distintivas. À semelhança daqueles, que recebem denominações como subdesenvolvidos, em desenvolvimento, emergentes, eles são também chamados de países centrais, desenvolvidos, industrializados.

4. A opção de incluir o Brasil na categoria de países periféricos, embora aceita até mesmo por intelectuais de direita como o recém citado, não é consensual. No âmbito dessa corrente, há quem, privilegiando indicadores socioeconômicos e políticos, como PIB per capita ou liderança no âmbito dos BRICS, e de C&T, como sua posição no ranking de doutores formados ou artigos publicados por ano, em detrimento de outros como, respectivamente, coeficiente de Gini ou sujeição à finança globalizada, e déficit na balança comercial de produtos de alta e média intensidade tecnológica, disso discorde. Na extrema esquerda, há os que, por considerarem o Brasil um país subimperialista no contexto latino-americano e africano, sequer aceitam a designação de país semiperiférico usada em alguns círculos. A titulo de desculpa por não fazê-lo, esclareço que caso fosse minha intenção justificar essa opção através da consideração das visões conflitantes, ainda que me restringisse às atualmente existentes, haveria que analisar algumas dezenas de obras das áreas de economia, sociologia, ciência política.

5. A procedimento que tenho adotado nas pesquisas que venho realizando, de “tratar em bloco” as PCT dos países avançados, que já de per se possuem evidentes aspectos sociais, econômicos, distintivos, é francamente majoritário entre os analistas latino-americanos. Além de não o escopo deste trabalho demonstrar sua pertinência, considero que o fato de ele ser também o empregado pelos colegas daqueles países (o famoso artigo de Bell e Pavitt, 1993, é um exemplo disto), me exime de justificá-lo.

6. A consideração da coalizão que ocupa o Executivo do Estado brasileiro como sendo um “governo de esquerda” não é consensual. Dentre os intelectuais que eu classifico como de direita, é comum a colocação de que já não existe esquerda ou direita. E, dentre os que considero de ultraesquerda há  os que a consideram neoliberal.

Referências bibliográficas

1 AGAZZI, E. (1996): El bien, el mal y la ciencia: las dimensiones éticas en la empresa científico-tecnológica, Madrid, Tecnos.         [ Links ]

2 ALVAREZ, S. E., DAGNINO, E. e ESCOBAR, A. (2000): “O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos”, em S. E. Alvarez, E. Dagnino e A. Escobar (orgs.): Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos, Belo Horizonte, Ed. UFMG, pp. 15-57.         [ Links ]

3 BACHRACH, P. e BARATZ, M. S. (1963): “Decisions and Nondecisions: An Analytical Framework”, American Political Science Review, vol. 57.         [ Links ]

4 BAGATTOLLI, C. (2013): Política científica e tecnológica no brasil: mitos e modelos num país periférico, tese de doutorado, Campinas, Unicamp.         [ Links ]

5 BAGATTOLLI, C. e DAGNINO, R. (2012): “Inovacionismo e Dinâmica Inovativa no Brasil”, Congreso de Ciencia y Sociedad 2012, Berkeley (CA, USA), p. 13.         [ Links ]

6 BELL, M. e PAVITT, K. (1993): “Technological accumulation and industrial growth: contrasts between developed and developing countries”, Industrial and Corporate Change, vol. 2, n° 2, pp. 157-211.         [ Links ]

7 CAPES (s/f): Várias publicações.         [ Links ]

8 CNI (2005): Políticas Públicas de Inovação no Brasil: a agenda da indústria, Brasília.         [ Links ]

9 CNPq (s/f): Várias publicações.         [ Links ]

10  DAGNINO, E., OLVERA, A. J. e PANFICHI, A. (2006): “Para uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina”, em E. Dagnino, A. J. Olvera e A. Panfichi (orgs.): A disputa pela construção democrática na América Latina, São Paulo, Paz e Terra/Campinas, Unicamp, pp. 13-91.         [ Links ]

11 DAGNINO, R. (1977): Tecnologia Apropriada: uma alternativa?, dissertação de mestrado, Brasília, UnB.         [ Links ]

12 DAGNINO, R. (2004): “A Relação Pesquisa-Produção: em busca de um enfoque alternativo”, em L. W. Santos: Ciência, Tecnologia e Sociedade: o desafio da interação, Londrina, IAPAR, pp. 101-151.         [ Links ]

13 DAGNINO, R. (2006): “A comunidade de pesquisa dos países avançados e a elaboração da política de ciência e tecnologia”, Rev. bras. Ci. Soc., vol.21, n° 61, pp. 191-201.         [ Links ]

14  DAGNINO, R. (2007): Ciência e tecnologia no Brasil: o processo decisório e a comunidade de pesquisa, Campinas, Unicamp.         [ Links ]

15 DAGNINO, R. (2007a): “Os modelos cognitivos das políticas de interação universidade-empresa”, Convergencia, n° 45, pp. 84-99.         [ Links ]

16  DAGNINO, R. (2008): Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico, Campinas, Unicamp.         [ Links ]

17  DAGNINO, R. (2008a): “As Trajetórias dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade e da Política Científica e Tecnológica na Ibero-américa”, Revista de Educacao em Ciencia e Tecnologia, vol.1, n° 2, pp. 3-36.         [ Links ]

18 DAGNINO, R. (2008b): “Por que os “nossos” empresários não inovam?”, Economia & Tecnologia, ano 4, vol. 13, pp. 111-120.         [ Links ]

19  DAGNINO, R. (2012): “Why science and technology capacity building for social development?”, Science and Public Policy, vol. 39, n° 5, pp. 548-556.         [ Links ]

20 DAGNINO, R., THOMAS, H. e DAVYT, A. (1996): “El Pensamiento en Ciencia, Tecnología y Sociedad en Latinoamérica: una interpretación política de su trayectoria”, Redes, n° 7, pp. 13-51         [ Links ]

21 DEUBEL, A-N. R. (2006): Políticas Públicas: formulación, implementación y evaluación, Bogotá, Ediciones Aurora.         [ Links ]

22 DIAS, R. (2009): “A Trajetória da Política Científica e Tecnológica Brasileira: um Olhar a Partir da Análise de Política”, tese de doutorado, Campinas, UNICAMP.         [ Links ]

23 FEENBERG, A. (2002): Transforming Technology: A Critical Theory Revisited, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

24 FEENBERG, A. (2010): “O que é a filosofia da tecnologia?”, em R. T. Neder: A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia, Brasília, Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, pp. 51-65.         [ Links ]

25 FINEP (s/f): Várias publicações.         [ Links ]

26 GRAMSCI, A. (1999): Cadernos do cárcere. V. 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira         [ Links ]

27 HAM, C. e HILL, M. (1993): The policy process in the modern capitalist State, Londres.         [ Links ]

28 HERRERA, A. (1971): Ciencia y Política en América Latina, México DF, Siglo XXI.         [ Links ]

29 HERRERA, A. (1970): América Latina: ciencia y tecnología en el desarrollo de la sociedad, Santiago de Chile, Editorial Universitaria.         [ Links ]

30 IBGE (2002-2010): Pesquisa de Inovação (PINTEC) 2008, Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.         [ Links ]

31 KINGDON, J. (1984): Agendas, alternatives and public policies, Boston, Little Brown.         [ Links ]

32 KUHN, Thomas (1978): A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva.         [ Links ]

33 LACEY, H. (1999): Its science value free? Values and scientific understanding, London, Routledge.         [ Links ]

34 LÖWY, M. (2007): As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento, São Paulo, Cortez.         [ Links ] 

35 LUKES, S. (1980): O poder: uma visão radical, Brasília, Ed. da Universidade de Brasília.         [ Links ]

36 MAGNOLI, D. (2000): União Europeia: História e Geopolítica, São Paulo, Moderna.         [ Links ]

37 MARCOLINO, A. e outros (2013): “DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Desenvolvimento, inovação e os trabalhadores: subsídios para a participação do movimento sindical na 4a. Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação”, Ciência e Tecnologia Social, vol. 1, n° 2.         [ Links ]

38 MATUS, C. (1996): Política, planificação e governo, Brasília, IPEA.         [ Links ]

39 MCT (s/f): Várias publicações.         [ Links ]

40 OLIVEIRA, M. B. (2011): “O inovacionismo em questão”, Scientiæ Studia, vol. 9, n° 3.         [ Links ]

41 SAREWITZ, D. (1996): Frontiers of Illusion: Science, Technology and Politics of Progress, Philadelphia, Temple University Press.         [ Links ]

42 SILVA, R. (2013): A comunidade científica, o governo e a agenda de pesquisa da universidade, tese de doutorado, Campinas, Unicamp.         [ Links ]

43 VARSAVSKY, O. (1969): Ciencia, Politica y Cientificismo, Centro Editor de América Latina.         [ Links ]

 

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons