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Cuadernos de antropología social

On-line version ISSN 1850-275X

Cuad. antropol. soc.  no.26 Buenos Aires Aug./Dec. 2007

 

Pinceladas sobre as práticas comerciais em um bairro popular de Florianópolis

Alicia Norma González de Castells* y Ana Cristina Rodrigues Guimarães**

* Doctora en Antropología y Profesora de la Universidad Federal de Santa Catarina. Dirección electrónica: alicia@castells@cfh.ufsc.br.
** Especialista em Derecho Tributário y Procuradora de la Hacienda Nacioanl em Santa Catarina. Dirección electrónica: ana.guimaraes@pgfn.gov.br.

Fecha de realización: junio de 2007. Fecha de entrega: agosto de 2007. Fecha de aprobación: diciembre de 2007.

Resumen

Este artículo expone los resultados de una investigación desarrollada entre 2006 y 2007 en un barrio popular de Florianópolis/SC. El objeto de estudio se centra en las experiencias y las representaciones de los comerciantes del barrio sobre la su propia actividad laboral. La investigación realizada fue predominantemente de carácter cualitativa utilizando también datos cuantitativos. El objetivo fue elaborar una etnografía de la actividad comercial, pensada más allá de las cuestiones económicas presentes en este tipo de realidad social. El trabajo entiende la acción económica como acción social, es decir, los agentes no sólo persiguen objetivo económicos, pero también sociales, como la sociabilidad, el reconocimiento, prestigio, el poder, por ejemplo. Por otro lado, las acciones económicas tienen variadas motivaciones, desde la racionalidad hasta la afectividad o las costumbres. La etnografía puede contribuir para entender la realidad de los pequeños comerciantes y el lugar que ocupa el comercio en la sociedad compleja.

Palabras clave: Acción económica; Prácticas comerciales; Relaciones sociales

Abstract

This article presents the results of a research developed between 2006 and 2007 in a popular neighborhood of Florianópolis/SC. The inquiry object is centered in the experiences and representations of the traders of neighborhood concerning its proper labor activity. For in such a way, we developed a predominantly qualitative research, even so have made use of quantitative data. The objective was to elaborate an ethnography on the commercial activity being thought it stops beyond the economic questions, the first sight marked in this type of social reality. This work understands the action economic as a social action, that is, the actors do not only pursue objective economic, but also social, as the sociability, the recognition, prestige, power... Moreover, the economic actions have motivations varied, since the rationality until the affectivity or the customs. Leaving of these premises, the ethnography can help to understand the reality of the traders and the place of the commerce in the complex society.

Key Words: Economics Actions; Commercial Practices; Social Relations.

Resumo

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa desenvolvida entre 2006 e 2007 em um bairro popular de Florianópolis/SC. O objeto de investigação está centrado nas vivências e representações dos comerciantes de bairro acerca da sua própria atividade laboral. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa predominantemente qualitativa, embora tenha feito uso de dados quantitativos. O objetivo era elaborar uma etnografia sobre a atividade comercial pensando-a para além das questões econômicas, a primeira vista marcantes neste tipo de realidade social. Este trabalho entende a ação econômica como uma ação social, isto é, os atores não perseguem apenas objetivos econômicos, mas também sociais, como a sociabilidade, o reconhecimento, o prestígio, o poder, etc. Além disso, as ações econômicas têm motivações variadas, desde a racionalidade até a afetividade ou os costumes. Partindo dessas premissas, a etnografia pode ajudar a compreender a realidade dos comerciantes e o lugar do comércio na sociedade complexa.

Palavras-chave: Ação Econômica; Práticas Comerciais; Relações Sociais

Não obstante, esta ação tão simples, essa passagem de mão em mão desses dois objetos inúteis e sem sentido, veio de alguma forma a tornar-se o alicerce de uma grande instituição intertribal associada a um sem-número de outras atividades. Os mitos, a magia e a tradição constituíram em torno do Kula formas bem definidas de cerimônias e rituais, deram a ele um halo de romance e valor na mente dos nativos e deveras criaram, em seus corações, enorme paixão por essa simples permuta de objetos. (Malinowski, 1976:78)

A proposta de Malinowski permanece atual na medida em que propõe uma análise das práticas sociais para além de simplicidades aparentes, percebendo as representações dos envolvidos, e pensando-as a partir da importância atribuída a elas pelo grupo. Nesse sentido, torna-se interessante refletir acerca da relevância dos estudos antropológicos sobre o comércio nas sociedades complexas e o quanto eles podem dizer sobre a própria sociedade.

Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada no final de 2006 e início de 2007 com comerciantes do bairro de Saco Grande, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina/Brasil.

Diante de uma proposta de estudo de uma atividade econômica, a atividade comercial, foi pensado um objeto de pesquisa centrado nas vivências e representações dos comerciantes de bairro sobre sua atividade laboral . A pretensão era entender, sob a perspectiva do comerciante, como a atividade comercial é realizada cotidianamente; o que está em jogo nessas relações sociais. O que representa para o grupo ter um comércio? Que valores permeiam as relações comerciais? Quais os fatores que influem na tomada de decisão? Essas e outras questões podem ser levantadas, buscando-se, em síntese, problematizar a atividade comercial pensada além do fenômeno puramente econômico.

Para a execução desta pesquisa foi utilizada uma variedade de métodos e técnicas. O ponto de partida foi a integração entre a pesquisa quantitativa e qualitativa, privilegiando a última. Esta “triangulação” tem como objetivo melhorar a compreensão do fenômeno estudado. Segundo Miriam Goldenberg, “a premissa básica da integração repousa na idéia de que os limites de um método poderão ser contrabalançados pelo alcance do outro” (2000:63). A complementaridade dos métodos só traz benefícios para o resultado da pesquisa, pois possibilita ampliar o campo de visão do pesquisador, alertando para questões que passariam despercebidas tanto num caso como no outro. O objetivo final era elaborar uma etnografia. A etnografia aparece como um instrumento útil para a compreensão do significado das ações humanas. Através dela é possível fazer uma descrição densa, isto é, alcançar o cerne da questão, ultrapassar a superficialidade, a aparência e penetrar num universo muito mais profundo. O etnógrafo busca formar um sistema, dar coerência àqueles fragmentos que lhes são apresentados. É a tarefa de compreender as subjetividades alheias, atribuindo-lhes sentido (Geertz, 1986).

Brevíssimas referências teóricas

Estudar as relações entre o comerciante e o consumidor ou o fornecedor na perspectiva de uma análise para além de simplicidades aparentes é uma tarefa instigante, mas, ao mesmo tempo, complexa. Essas relações são tipicamente urbanas e capitalistas e, conseqüentemente, pautadas, à primeira vista, na superficialidade e no anonimato. Entretanto, em dados contextos é mais fácil identificar outros valores que permeiam essas relações. Os comerciantes que se estabelecem em bairros de Florianópolis, ao contrário daqueles que optam pelo centro da cidade, muitas vezes também moram no bairro onde mantém o seu estabelecimento, possuindo relações de vizinhança e de parentesco com os clientes, fornecedores e com outros comerciantes. Muitos freqüentam a mesma igreja, as mesmas festas; estudam na mesma escola; sabem onde as pessoas moram, onde trabalham; presenciam o cotidiano dos membros do bairro. Uma das minhas informantes percebeu essa relação e enfatizou em sua entrevista que ter comércio no bairro é diferente de ter comércio no centro. Segundo ela, no bairro há afinidades entre o cliente e o proprietário da loja, todos se conhecem. No centro a relação é impessoal, a pessoa vai à loja e compra.

Nesta pesquisa, a par destas contribuições e críticas, pensa-se a ação econômica como uma espécie de ação social e não como duas esferas autônomas. Segundo Weber,1 as ações sociais podem ser determinadas de modo racional referente a fins, referente a valores, de modo afetivo e de modo tradicional. A ação social determinada de modo racional voltada para fins pauta-se “por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente” (2004:15); já a ação social determinada de modo racional referente a valores pauta-se “pela crença consciente no valor [...] absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado” (2004:15); a ação determinada pelo afetivo, pelo emocional, é aquela direcionada “por afetos ou estados emocionais atuais” (2004:15); e a ação social determinada pelo modo tradicional é aquela pautada no costume. Desta forma, a ação econômica pode ser determinada racionalmente referente a fins, a valores, determinada afetivamente ou tradicionalmente. A ação econômica não se restringe à esfera da racionalidade voltada para fins, há outras questões em jogo –como poder, honra, status, sociabilidade– e é neste sentido que este trabalho pretende contribuir.

Os nomes dos estabelecimentos e a construção da pessoa

Durante a primeira etapa da pesquisa, foi possível perceber o uso constante de prenomes e nomes de família na construção dos nomes dos estabelecimentos comerciais. Bar do Mário, Marina Cabeleireiros, Armazém Luzia, Oficina do Pepe, Confecções Dilma, Aviário Nunes, Marcenaria Mendes, Supermercado Coelho, são apenas alguns exemplos. Numa análise mais depurada, percebi também o uso de iniciais ou partes de nomes para o mesmo fim, como em RG Lavação, Brukar, Juvicon, SM Eletrônicos e etc. Este comportamento atribui, num primeiro momento, uma relação de propriedade entre o comerciante e sua atividade econômica ou estabelecimento comercial.

Em outros casos, entretanto, esta relação não estava tão explícita. Um estabelecimento que a primeira vista possuía um nome que não fazia referência ao comerciante era rebatizado socialmente. A Padaria 2000 é chamada de “Padaria do Ferrugem”, apelido do dono do estabelecimento. Da mesma forma, o Bar Canto da Felicidade é mais conhecido como “Bar do Donico”. Esse rebatismo social nem sempre inova, às vezes explicita elementos da própria atividade, como no caso do Aviário Nunes que é conhecido como o “Galinheiro do Reginaldo”.

Essas questões podem ser interpretadas como uma forma do grupo pessoalizar uma atividade que em princípio seria impessoal. O comércio passa a ter referências, tem um nome, um rosto, uma família e uma história. A Selma me contou que a “Padaria do Ferrugem” havia sido assaltada três vezes, “coitado!”. O Paulo me disse que o Pepe estava vendendo a oficina, queria se mudar, ele ia se aposentar. Neste sentido, não se vai a qualquer salão para fazer o cabelo, mas na Sônia.

Por outro lado, a pessoa também é referenciada pela atividade econômica que exerce. Quando conheci o filho do Reginaldo, eu o indaguei se era filho do Reginaldo e ele me perguntou: “Reginaldo das galinhas?” Esse episódio me fez perceber que o comércio, a atividade econômica exercida pelo indivíduo acaba contextualizando-o no grupo. É a Luzia do Armazém, a Marta do Salão e assim sucessivamente. Ao mesmo tempo em que esta atitude contextualiza o sujeito também o individualiza, pois Reginaldo das galinhas, Luzia do Armazém e Marta do Salão não têm outros. Assim é construída a identidade das pessoas dentro do grupo. A profissão e a atividade que a pessoa exerce vão dando contornos à identidade pública dos sujeitos.

Clifford Geertz analisando o conceito de pessoa entre os marroquinos apresenta uma interpretação sobre o nisba até certo ponto similar à apresentada aqui para a atividade econômica. Segundo ele, “os ‘eus’ que se atropelam e se acotovelam nas ruelas de Sefrou adquirem sua definição através das relações associativas com a sociedade que os circunda, relações essas que lhes são atribuídas. São pessoas contextualizadas” (2003:101). E continuando sua explicação afirma que esta contextualização não é capaz de dizer quem a pessoa é, limita-se a localizá-la no interior do grupo.

A casa e o comércio

É possível elaborar uma tipologia a partir da relação comércio-casa no que tange ao prédio usado como estabelecimento. O primeiro tipo, o comercial puro, é aquele em que o estabelecimento ocupa com exclusividade o imóvel; o segundo tipo, o residencial-comercial, é aquele em que em um mesmo imóvel encontra-se uma residência e um estabelecimento comercial. Nesse modelo, tem-se três subdivisões: (a) os independentes, isto é, os casos em que a casa e o comércio são independentes e, algumas vezes, separados por muros; (b) os sobrados: quando o prédio é de dois andares e a residência situa-se no andar superior e o comércio no térreo, em geral com entradas independentes; e (c) os conjugados: no qual o comércio integra a residência, formando um todo, havendo, em geral, acesso à casa pelo estabelecimento.

No modelo residencial-comercial a esfera residencial e a laboral aparecem intimamente relacionadas. Por essa razão, as categorias casa e rua de Roberto Da Matta podem ajudar a pensar essa realidade social. A casa é o lugar do descanso, do aconchego, do controle, do parentesco e dos laços de sangue. A rua é o lugar do trabalho, da distância, dos imprevistos, das relações inevitáveis, como as profissionais. “É evidente que a oposição rua/casa separa dois domínios ou universos sociais mutuamente exclusivos que podem ser ordenados de forma complexa, pois se organizam tanto na forma de uma oposição binária quanto em gradações (num continuum )” (1997:91-92). Em linhas gerais, a casa seria o universo da hierarquia, da diferença, enquanto a rua , do individualismo, da igualdade. Nossa questão é saber onde o comércio está situado.

Um casal de comerciantes que trabalhavam juntos são bons representantes do modelo residencial-comercial conjugado e da junção da casa e da rua num só cenário, o estabelecimento comercial. Quando visitei pela primeira vez a loja deles –um salão de beleza– e abordei a esposa para conversar, ela me disse que não poderia me atender, pois tinha que dar almoço aos filhos. A segunda tentativa também foi em vão porque estava na hora de buscar os filhos na escola. Desta vez consegui conversar com o marido, e assim tive tempo de ver a chegada das crianças: entraram na loja, caminharam até uma porta ao fundo, abriram-na e entraram. Neste momento, pude ver um beliche; era o quarto das crianças. Outra vez passei em frente à loja e lá estava a esposa limpando os vidros como se fosse a casa dela.

Com outro comerciante, dono de um abatedouro, uma cena interessante. Certa vez, quando cheguei no seu estabelecimento comercial ele estava sentado numa poltrona, quase deitado, com os pés sobre um banquinho tirando um cochilo em frente à televisão e de lado para a porta de entrada de sua loja. Parecia que estava entrando na sua sala, até pedi licença. Outra vez, passando em frente a sua loja, eu o vi sentado na soleira da porta cortando a unha do pé. Neste momento percebi que a sua loja é, em alguns momentos, como se fosse a sua casa; ali ele come, dorme, assiste televisão, conversa com os amigos e parentes, com sua mãe –como tive oportunidade de presenciar–, etc. Em sua entrevista, ele declarou que abre o estabelecimento todos os dias, inclusive domingos e feriados. Percebi que para ele estar em casa era estar com as portas da loja aberta. Diante disso, interessante foi ver afixado no mural do estabelecimento o seguinte dizer: “Aqui trabalha eu e minha família. Favor respeitar.” Essa afirmação para mim parecia totalmente desnecessária, já que era bastante explícito o fato de se tratar de um comércio familiar. Entretanto, a necessidade de reforço e o pedido de respeito não devem ser entendidos como vazios de significado. Eles pressupõem a confusão desses dois universos –a casa e a rua– nas percepções do comerciante e do freguês, ou outros freqüentadores. Da Matta afirma que o respeito é um “conceito relacional básico do universo social brasileiro” (1997:91) e que está presente tanto na esfera da casa quanto na da rua.

Quando cheguei, pela primeira vez, à loja de uma outra informante fui atendida pela vendedora, que abriu uma porta para chamar a responsável pelo estabelecimento. Atrás da porta havia uma cozinha e a Andréa estava lá executando uma receita, com o auxílio de uma senhora. Logo depois ela veio me atender. Pelo que pude perceber ela dividia o seu tempo entre a casa e a loja. Aliás, o seu estabelecimento comercial situa-se numa espécie de varanda da sua casa, totalmente integrado, como se fosse mais um cômodo da residência.

Nesta entrevista, a comerciante comenta que “morar de frente para a Geral” é uma vantagem, pois é possível abrir um negócio sem pagar aluguel. Não pagar aluguel apareceu como um fator importante para ter um empreendimento da localidade. Entretanto, todos os informantes já moravam ali, antes de ter um comércio. O negócio aparece como uma decorrência da residência, e não o contrário, o que gera algumas vantagens como não pagar aluguel. Um imóvel na Geral é bivalente, é casa e é comércio. Caberia, também, fazer a mesma análise nas ruas transversais, o que não foi possível nesta pesquisa.

Outra comerciante –dona de uma loja de produtos esotéricos– e o marido, por exemplo, têm um prédio que é um misto do modelo sobrado e conjugado. Na parte de baixo, tem a loja na frente ao lado da garagem. Nos fundos da loja há um corredor que dá acesso ao estoque e a cozinha da residência. Tem uma área vazia e depois outra casa, que ela aluga para complementar a renda do casal. Esta casa possui uma entrada independente pela garagem. No corredor que dá acesso à cozinha tem uma escada, que liga a parte de baixo com a de cima. No piso superior tem a sala e os quartos. O marido da Selma é aposentado e auxilia na loja. Diversas vezes passei em frente ao estabelecimento e o marido da Selma estava lá: ou varrendo, ou limpando os produtos, ou, simplesmente, tomando conta da loja. O exemplo da Selma é um caso típico de uso polivalente do imóvel, ela mora, trabalha e aluga o mesmo bem. Aliás, é freqüente a prática de construir várias edificações num mesmo imóvel com fins diversos: na frente, abre-se ou aluga-se para abrir um comércio; em cima, mora-se; e nos fundos, aluga-se para residência. Nem sempre há identidade entre o proprietário do imóvel e o comerciante, muitas vezes o ponto é uma fonte de renda.

A família

A participação familiar no desempenho da atividade econômica é uma característica marcante; mais de trinta por cento do total dos estabelecimentos entrevistados contam com a mão de obra familiar. Uma trabalha com a mãe, que foi quem abriu o negócio. Outro, quando tem que se ausentar do estabelecimento, recebe a ajuda da irmã. Outra estava doente e seu irmão tocava seu negócio. Uma atendia os clientes e seu irmão cuidava do serviço. Outro trabalha de manhã e seu irmão à tarde. Uma é auxiliada pelo marido no seu pequeno negócio. Outra fica no caixa e seu marido atende os fornecedores, embora eles tenham outros funcionários. Em outro estabelecimento, também com funcionários, o negócio era em família: a mãe no caixa, a filha no escritório e o pai cuidando das mercadorias, tratando com os empregados, etc. Tive conhecimento de comércios com mais de quarenta anos de existência na localidade, e que já estava na segunda geração de administradores: iniciado pelo pai, hoje é o filho quem gerencia.

A família aparece de forma marcante no grupo. A família nuclear auxilia no trabalho e na gestão do comércio. A noção de família extrapola o campo das práticas e é focada também no discurso. A família aparece como a razão para o início da atividade comercial. Um informante diz que é comerciante porque seu pai, seu avô, seu bisavô foram. A família é o motivo para permanecer com um comércio. Com o estabelecimento é possível investir nos filhos. Ele disse que não guarda o dinheiro para si, ele pensa nos filhos; com o comércio pôde pagar a faculdade de dois e pretende pagar a do caçula. Ele tem consciência de que seus filhos não vão dar continuidade ao seu pequeno negócio, entretanto sente orgulho de ter filhos com nível superior.

O comércio não é só uma atividade em família, mas também de família. Durante a pesquisa percebi que vários comerciantes são parentes, afins e colaterais. Uma das minhas informantes, que não nasceu no Saco Grande, foi para lá quando casou, seu marido é “nascido e criado”.2 A família dele mora no bairro. O cunhado, a sobrinha, o sobrinho dela tem comércio na “Geral” em ramos de atividade diferentes. Outro comerciante-informante, que é “nascido e criado”, também tem parentes comerciantes; ele me indicou vários quando via as fotos das fachadas dos estabelecimentos.

A família é referência para a escolha da atividade; a família que está perto; a família investindo nos filhos; a família que trabalha junta; a família diversifica suas atividades para gerar renda para todos. A família é um ponto estruturante para o grupo. Ela pode ser vista como uma estratégia de ascensão social.

O dono do pedaço

O comércio é comumente o lugar em que o comerciante passa mais tempo de seu dia. Um informante declarou abrir de domingo a domingo, inclusive feriado. Outra informante declarou a mesma coisa. Neste sentido, o espaço do comércio deixa de ser um lugar estritamente de trabalho, transformando-se no lugar das visitas, dos amigos e parentes. Enfim, um lugar de sociabilidade. José Guilherme Cantor Magnani ao estudar os espaços de lazer em um bairro popular desenvolve a categoria pedaço para descrever esses lugares. O pedaço é uma categoria em que o espaço, inicialmente físico, passa a ser simbólico, e torna-se referência de “um tipo particular de sociabilidade e apropriação do espaço urbano” (2002:21). As relações sociais que se dão no pedaço não se enquadram nas de parentesco e nem permitem o anonimato dos indivíduos; elas compõem uma rede de relações calcada na amizade, em que o grupo compartilha códigos comuns. O pedaço é o lugar dos colegas. A dicotomia proposta por Da Matta –a casa e a rua– é repensada por Magnani, uma vez que o pedaço é um espaço que não se enquadra na classificação damattiana. O pedaço concilia características da casa , como o afeto, o calor humano, com características da rua , como a associação voluntária. O pedaço rompe com a oposição drástica entre a casa e a rua,3 já sinalizadas por Da Matta quando se referia às gradações das categorias.

Na pesquisa de campo identifiquei alguns espaços de sociabilidade, dos quais destaco três: o bar, a loja de materiais de construção e o estabelecimento do Paulo.

O bar é o “pedaço” por excelência. É um ambiente masculino, freqüentado quase exclusivamente por homens. No “Canto da Amizade” logo na entrada há duas mesas de sinuca. Elas ficam num espaço intermediário entre o interior do bar e a rua. A frente é toda aberta, fechada apenas por grades. Depois das mesas de sinuca inicia-se uma área fechada com novas portas de ferro, estilo comercial. Esta parte do bar é dividida ao meio por uma parede, com uma passagem ligando os lados. Do lado esquerdo há máquinas de jogos eletrônicos. Do lado direito fica o balcão, que vai de uma parede a outra. Em cima do balcão há uma estufa de salgados. Na parte de dentro do balcão, onde fica o dono, tem prateleiras. Na parede esquerda ficam exibidas bebidas alcoólicas. No fundo, as bandeiras dos times de futebol Avaí e Figueirense, uma do lado da outra. Na parede direita há troféus, um freezer e a geladeira. O mural foi pendurado em cima do balcão, uma parte para dentro, outra para fora do mesmo. No mural há fotos dos clientes e também alguns papeis com desenhos e outros com dizeres engraçados. Já na parte dos clientes há uma televisão. Trata-se de um espaço de sociabilidade masculino, com elementos que integram o universo masculino, como sinuca, bebidas, petiscos, futebol e jogos eletrônicos. A televisão provavelmente deve centralizar a atenção em dias de jogo. Os homens costumam usar camisetas de clube de futebol. Os fregueses são assíduos. Roberto, Antônio e Sérgio, por exemplo, estavam presentes em quase todas as vezes que eu fui lá. Antônio já morou no bairro, mas hoje mora na Agronômica e, mesmo assim, continua indo ao bar por causa dos amigos. Existe um entrosamento entre o comerciante e os fregueses. Alguns se chamam por apelidos. O dono do bar é tratado com descontração e amizade pelos clientes, em tom de brincadeira, e vice-versa.

Um outro pedaço só pôde perceber durante a pesquisa: era uma loja de materiais de construção e o motivo da sociabilidade girava em torno dos passarinhos. O dono criava passarinhos e expunha as gaiolas na frente da loja, penduradas na parede ou no teto. Vários homens se reuniam freqüentemente na frente da loja para conversar e cuidar dos bichinhos. As gaiolas eram trocadas de lugar para colocar ou tirar os animais do sol. Conversando com o proprietário, soube que ele era “nascido e criado” no bairro e não tinha funcionários. O cuidar coletivo dos passarinhos era um pretexto para um encontro, do qual a loja era o ponto.

Nem sempre a presença dos amigos no estabelecimento comercial é pautada por uma razão que não a própria sociabilidade. O estabelecimento do Paulo é um exemplo de que as pessoas freqüentam um lugar não por ser um bar ou ter um motivo especial, mas simplesmente para conversar. Ele não tem funcionários, mas sua loja está sempre movimentada. Vem um, vem outro; sai um, sai outro. Esse vai e vem gira em torno do próprio Paulo. As pessoas o procuram para conversar. Ficam ali, ajudam às vezes, e depois vão embora. Tanto o bar, como a loja de materiais de construção e a loja do Paulo são espaços de sociabilidade masculinos, são pedaços .

Os exemplos de comércio como pedaço têm como figura de destaque o comerciante. O comerciante é o “dono do pedaço”. Embora as relações sejam postas em níveis de amizade e igualdade, há hierarquia entre os sujeitos dessa relação. O comerciante centraliza as relações. Os amigos vão ao bar do fulano, a loja do cicrano, ao salão da beltrana. A hierarquia aparece mais evidente no caso do bar e do salão de beleza, onde o(a) colega é também freguês(a). Essa relação bifacetada evidencia a potencialidade de conflito decorrente da quebra das regras de uma das relações.

Assim, é possível concluir que o comércio não se enquadra na categoria de casa ou rua. Da mesma forma, não se coaduna inteiramente com a noção de pedaço. O comércio é um espaço diferenciado, possuindo características de todas essas categorias. Aproxima-se da casa quando se pensa na família, na hierarquia; da rua, quando se refere ao trabalho; do pedaço, quanto à sociabilidade. No entanto, ele não é uma gradação entre a casa e a rua, nem uma extensão da casa e muito menos algo híbrido. É um espaço à primeira vista das relações econômicas, mas de onde emergem relações de confiança, amizade, parentesco, sociabilidade etc.

O fiado

Quando comecei a pesquisa, uma das primeiras coisas que me chamou a atenção foi o fiado, que é, em princípio, a prática de vender uma mercadoria ou prestar um serviço mediante a promessa verbal de pagamento futuro. A essa prática é dada visibilidade principalmente pela afixação, nos murais, junto com fotos de clientes, anúncios de serviços, etc., de cartazes com frases jocosas. As principais frases identificadas foram: “Fiado só para maiores de 90 anos e acompanhados pelos pais” e “Coitado do comerciante, nunca vive sossegado, quando escapa do ladrão cai no golpe do fiado”. A recorrência desses pequenos cartazes me fez descobrir que eles são vendidos aos comerciantes por um rapaz que passa de porta em porta oferecendo-os. E por que eles compram?

Alfred Radcliffe-Brown, quando trabalha com o parentesco por brincadeira vê a jocosidade da relação como um costume lícito e até obrigatório, em alguns casos, em que uma pessoa importuna ou zomba de outra que, por sua vez, não fica aborrecida. Segundo ele, “o parentesco por brincadeira é uma combinação peculiar de amistosidade e antagonismo. O comportamento é tal, que em qualquer outro contexto social exprimiria e suscitaria hostilidade; mas não é entendido seriamente e não deve ser tomado de modo sério” (1973:116).

As lições de Radcliffe-Brown nos ajudam a pensar essa tensão presente no fiado entre a amistosidade e hostilidade. É praticamente um consenso entre os informantes que o fiado não é uma prática aconselhável em termos de lucratividade. A inadimplência aparece como o fator desestimulador dessa prática. Paulo declarou jocosamente que “o fiado é uma perdição, vender fiado é pedir carona no assalto”. A moral subjacente no fiado não pago é equiparável a crime, crime contra o patrimônio do comerciante. A frase citada supra fala em “golpe do fiado” lembrando ao estelionato. A afirmação do Paulo fala expressamente em assalto. A pessoa que abusa da confiança a ela atribuída pelo comerciante não é devedor, mas criminoso. É possível interpretar a exposição de frases caluniosas dos devedores como uma forma de dar visibilidade a uma relação conflituosa entre o comerciante e o freguês e de tentar impedir a inadimplência. Além disso, o não-pagamento pela mercadoria ou serviço prestado rompe a justiça do fiado. Émile Durkheim afirma que o contrato justo é aquele “em que as coisas e os serviços são trocados pelo valor verdadeiro e normal, ou seja, em suma, pelo valor justo” (2002:291). O fiado é um contrato que nasce justo, baseado na justiça retributiva, “em virtude dela devemos sempre receber a justa remuneração pelo que damos” (2002:302). Entretanto, a injustiça pode vir posteriormente com o inadimplemento. A presunção da inadimplência pode afetar a justiça do contrato desde seu nascedouro, pois o comerciante tende a usar mecanismos de compensação do prejuízo econômico como a elevação do preço.

Entretanto, essa tensão não impede a prática. Quase todos –exceto dois– afirmaram vender fiado. Um desses informantes já vendeu, mas desistiu em face ao grande número de casos de não-pagamento. A outra faz uso das formas de crédito previstas pelo Direito positivo como o cartão de crédito e o crediário próprio em até três vezes. Usa, também, mecanismos jurídicos postos como a inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) em caso de não-pagamento.

Os comerciantes que vendem ou venderam fiado dizem que não cobram ou cobravam aos devedores. Eles chegam a afirmar que não tinha coragem de cobrar. Outros informantes já são mais condizentes e apelam para a alegação de que a inadimplência é algo inerente ao comércio e que só paga quem é honesto. Um dos comerciantes informantes justificou a sua não-cobrança dizendo que “eles [os não pagadores] não pagam no comércio, não vão vir aqui pagar”. Outro já afirmou que “até com a ameaça de ter o nome inscrito na SERASA4 as pessoas não pagam”, explicando o porquê de não cobrar. Para ele, quem é honesto paga, e do desonesto não adianta nem cobrar. Há duas opções: ou não se vende mais ou se pede um sinal. Ele pede metade do valor, se a pessoa pagar a outra metade, ótimo; se não pagar, ele esquece. Já uma outra comerciante procura um acordo, propõe dividir o débito em algumas vezes.

A confiança e a boa-fé aparecem no cerne do fiado. Granovetter argumenta haver uma participação importante das relações sociais concretas e as redes delas decorrentes na formação da confiança e no desencorajamento da má-fé. Segundo ele, é muito mais seguro a experiência adquirida em negócios anteriores em relação à reputação de uma pessoa, do que a informação fornecida por terceiros. Entretanto, adverte que as relações sociais baseadas na confiança também podem favorecer em muito o comportamento desonesto. O ponto importante da teoria da imbricação social é afirmar que as relações sociais são mais relevantes para a produção da confiança na vida econômica do que as normas institucionais ou a moral generalizada. A pesquisa no que tange ao fiado foi ao encontro da teoria da imbricação social. O fiado é baseado na confiança que se forma através das relações sociais estabelecidas no grupo. Não é para qualquer um que se vende fiado. Afonso me disse que o fiado é para os fregueses mais antigos, geralmente são mais velhos, já aposentados. Entretanto, essa rede de relações não impede a má-fé. Como afirmaram os informantes, o desonesto não paga mesmo. Eles também desacreditaram os mecanismos oficiais de coerção e cobrança de crédito.

Os informantes não só vendem fiado como também compram fiado. Presenciei o marido de uma das comerciantes-informantes acertando a conta na Padaria. Outro comerciante me afirmou que compra fiado no comércio local, “para coisas pequenas”.

O fiado é uma prática do grupo que se enquadra na noção de estratégia de Pierre Bourdieu. “Ela é produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância, participando das atividades sociais” (2004:81). Para Bourdieu, regra é um conceito impreciso, pois dá margem para várias interpretações: como tipo jurídico, simples regularidades ou um modelo elaborado pelo cientista. Já estratégia trabalha com a subjetividade e com a agência. As estratégias equiparam-se às técnicas corporais, isto é, são ações baseadas na experiência e independem da consciência e do discurso. O fiado insere-se no “sentido do jogo” da vida econômica. É uma forma de crédito baseada na experiência e nas relações sociais estabelecidas cotidianamente, depende da subjetividade dos envolvidos que agem de acordo com as possibilidades.

Embora o fiado seja uma prática bastante difundida no grupo dos informantes, não é a única forma de crédito. Há a coexistência das formas de crédito institucionalizadas como o cartão de crédito e o crediário. Também há o uso do “cheque pré-datado”. O global e o local encontram-se num mesmo estabelecimento. Na vitrine da loja de uma das informantes tem colado um adesivo de uma administradora internacional de cartões de crédito; mas é possível também comprar fiado as mercadorias na sua loja.

A rede local de Comunicação

No decorrer da pesquisa fui me dando conta de que o comerciante é uma fonte privilegiada de informações sobre a vida social dos indivíduos. Não é apenas uma fonte, mas um canal de comunicação. Uma das minhas informantes contou-me dos assaltos a estabelecimentos comerciais. O outro sabia da proposta que o shopping havia feito a um imóvel próximo; sabia também o valor da taxa de um condomínio em que ele não morava. Outro ainda contou para sua mãe do falecimento de um conhecido morador do bairro, etc.

O papel do comerciante como informante do e sobre o grupo, ou centralizador das informações, coloca-o em projeção em relação aos demais membros do grupo. Freqüentemente pessoas vão ao comércio do outro simplesmente para conversar, para se informarem sobre os acontecimentos. Há uma intensa sociabilidade que passa pelo estabelecimento comercial, como já exposto anteriormente.

Entrando num estabelecimento visualizei logo no início, próximo ao caixa, um mural com anúncios de prestação de serviços, compra e venda e aluguel de imóveis. Este comércio é o único da espécie próximo a um conjunto habitacional. Percebi que ali se prestava um serviço à comunidade, fazendo as vezes de jornal. Em contrapartida, obtinha uma clientela e a simpatia dos moradores da localidade.

Num levantamento preliminar realizado junto a um jornal de grande circulação no estado pude perceber a ausência de anúncios imobiliários relativos a essa região do bairro, o que reforça a importância do comerciante na propagação de informações sobre a localidade.

O mural é um meio de circulação de informações bastante comum nos estabelecimentos comerciais pesquisados. Entretanto, creio que o “boca-a-boca” seja o método mais utilizado. Dessa forma tem-se conhecimento das mortes, da reputação dos estabelecimentos, da vida alheia, etc.

Considerações finais

Durante a pesquisa, foi possível perceber que o comércio ou a atividade econômica contextualiza a pessoa que a exerce, localizando-a no interior do grupo. A família marca fortemente a atividade comercial. O comércio em família é aquele em que a família participa da atividade gerindo ou trabalhando no empreendimento. O comércio na família é aquele em que o estabelecimento é passado de geração para geração. E o comércio de família, aqui se referindo a família extensa, tem-se quando vários comércios pertencem a uma mesma família. Quando no comércio não se tem a participação direta da família, ela aparece no discurso como referência para a escolha da atividade ou como motivo para a permanência nesta. Este contexto favorece a participação da mulher seja como empreendedora, seja como companheira do marido na empreitada. Nas duas condições, o exercício da atividade comercial pela mulher parece ser viabilizado graças à proximidade da casa e, quando em parceria com o homem, ela assume tarefas ligadas ao interior do estabelecimento.

O estabelecimento comercial é um espaço de sociabilidade, muitas vezes tido como um “ponto de encontro” dos amigos do comerciante. O comerciante aparece como uma figura de destaque, centralizador das atenções, é o “dono do pedaço”. Entretanto, esta categoria não é suficiente para dar conta da realidade social. O comércio é um espaço diferenciado, com características próprias, não podendo ser classificado como pertencente nem à categoria “rua”, nem à “casa”, apropriando-se, contudo, de elementos de ambas as noções. O comércio é um lugar destinado a relações econômicas, mas onde emergem relações de confiança, amizade, parentesco, sociabilidade, dentre outras.

Pelo comércio passa uma rede local de comunicação que informa sobre a vida social dos indivíduos. Esta rede incrementa a sociabilidade no ambiente do comércio e permite a circulação de informações, alternativamente a outros meios de comunicação como o jornal e a Internet.

No bojo das relações econômicas, os envolvidos desenvolvem estratégias de acordo com a necessidade do jogo. Neste sentido, o fiado se apresenta como um misto de amistosidade e hostilidade. A relação entre o comerciante e o freguês que compra fiado é baseada na confiança e na boa-fé. Os clientes são hierarquizados de acordo com o grau de confiança que o comerciante possui neles. Esta confiança é baseada principalmente nas condutas anteriores do freguês para com o comerciante. O não-pagamento do fiado representa a quebra desta confiança e da justiça do contrato de compra e venda ou prestação de serviço com vistas a pagamento futuro. Embora o fiado seja uma prática difundida, ele coexiste com as formas de crédito previstas no direito como o cartão de crédito e o crediário.

Ao final deste trabalho espero ter contribuído, ainda que pouco, para desvelar a atividade comercial para além do plano econômico. Entretanto, outras pesquisas são necessárias para compreender melhor essa realidade social, tanto sobre assuntos diversos dos abordados aqui, quanto aprofundando tópicos referenciados neste trabalho. Dentre esses assuntos destaco principalmente a participação da mulher na atividade comercial e a rede de solidariedade existente nesse contexto.

Entretanto, o importante é compreender que são pessoas dotadas de sentimentos que vivenciam o cotidiano do comércio. Ou seja, estou falando de homens e mulheres concretos, de Afonsos, Césares, Selmas e Andréas. Pessoas que, como a pesquisadora, tem uma forma de pensar, agir e sentir, mas que, de certa forma, se propuseram a dar reflexibilidade à sociedade complexa.

Notas

1 Para Weber, “por ‘ação’ entende-se, neste caso, um comportamento humano (tanto faz tratar-se de um fazer externo ou interno, de omitir ou permitir) sempre que e na medida em que o agente o relacione com um sentido subjetivo. Ação ‘social’, por sua vez, significa uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros , orientando-se por este em seu curso” (2004:3). Assim, para Weber, nem toda ação é uma ação social. Nesta mesma linha, nem toda ação econômica é uma ação social. “Uma ação será denominada ‘economicamente orientada’ na medida em que, segundo seu sentido visado, esteja referida a cuidados de satisfazer o desejo de obter certas utilidades” (2004:37)

2 Dentre os pesquisados, um grupo comumente se auto-descreviam como “nascido e criado” no bairro; alguns faziam referência expressa ao termo “manezinho”. A auto-atribuição vinha em resposta à pergunta “você mora no bairro?” Neste contexto, foi possível perceber uma postura afirmativa, reivindicatória da condição de nativo. Esta conduta está em consonância com o descrito por Carmen Rial (2001), isto é, um movimento de ressemantização do atributo de manezinho que até então era tido como negativo passa a ser motivo de orgulho.

3 Magnani (2002) sugere esta interpretação da categoria “pedaço” em relação as categorias “casa” e “rua”.

4 A SERASA é uma empresa que presta serviços de proteção ao crédito e apoio aos negócios. Assim como o SPC, possui um banco de dados com nomes de pessoas que, em princípio, não pagaram alguma dívida.

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