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Cuadernos de antropología social

versión On-line ISSN 1850-275X

Cuad. antropol. soc.  n.29 Buenos Aires ene./jul. 2009

 

Explorando a noção de etnografia popular : comparações e transformações a partir dos casos das cidades-satélites brasileiras e das townships sul-africanas

Antonádia Borges*

* Doctora en Antropología Social. Profesora de la Universidad de Brasília. Investigadora de CNPq. Dirección Electrónica: antonadia@uol.com.br. Versión escrita de la presentación en el Panel Etnografías: horizontes en la construcción de conocimientos , de las V Jornadas de Investigación en Antropología Social organizadas por la Sección de Antropología Social del Instituto de Ciencias Antropológicas (FFyL, UBA), Buenos Aires, 19 al 21 de noviembre de 2008.

Resumo

A definição de etnografia popular apresentada neste texto busca esclarecer um tipo de relação de pesquisa em que o antropólogo é apenas um a mais dentre as pessoas que dedicam boa parte de seus cotidianos a fazer perguntas, formular hipóteses, testar alternativas e a inventar teorias a respeito de suas vidas e da vida dos Outros. A condição de classe como orientação para pesquisa tende a destituir os sujeitos entendidos como populares —ou por serem "muitos" em relação a outros pensados como "poucos e bons" ou por estarem "abaixo" de alguém que se crê e se entende "acima" — de sua inventividade, aprisionando-os em um mundo de constrangimentos inescapável. Esse tipo de perspectiva termina por corroborar um exercício de dominação que em alguns casos tenta-se aparentemente combater. Aprendemos com as pesquisas em cidades-satélites brasileiras e em townships sul-africanas que uma forma de enfrentar esse modelo intelectual de análise é assumir uma postura mimética em relação ao modo de investigação inventivo de nossos anfitriões. Em suma, adotar como postura teórica e política a idéia de etnografia popular.

Palavras-chave: Etnografia; Brasil; África do Sul; Segregação; Pobreza.

Exploring "popular" ethnography: anthropological insights from Brazilian satelite cities and South African townships

Abstract

"Popular" ethnography is defined here as the process in which anthropologists and other people are engaged in a mutual research relationship. This simple statement comes from the fact that all of us spend a large part of our daily lives asking questions, formulating hypotheses, testing alternatives, and creating theories about our lives and those of Others. When we do not consider the people whom we do research with as subjects we reject the common tendency of categorizing them as populares. We avoid elevating a small group of so-called sages above the common masses. In other words populares cannot be considered intellectually beneath a dominant class. The goal of pointing out social constraints should not allow anthropologists to corroborate the same domination they supposedly are against. The research experience in Brazilian satellite cities and in South African townships help us challenge class-based analytical models. By not sustaining an elitist relationship, we have learned how important it is to assume a mimetic perspective of understanding of how people investigate their own lives and of those around them.

Key words: Ethnography; Brazil; South Africa; Segregation; Poverty.

Explorando la noción de etnografía popular: comparaciones y transformaciones a partir de los casos de las ciudades-satélites brasileñas y de las townships sudafricanas

Resumen

La definición de etnografía popular presentada en este texto busca iluminar un tipo de relación de investigación en el que el antropólogo es sólo uno más entre millares de personas que dedican buena parte de su cotidianeidad a hacer preguntas, formular hipótesis, testear alternativas y a inventar teorías respecto de sus vidas y de la vida de Otros. La condición de clase como orientación para la investigación tiende a destituir a los sujetos entendidos como populares —ya sea por ser "muchos" en relación a otros pensados como "pocos y buenos" o por estar "abajo" de alguien que se cree y entiende "arriba"— de su creatividad, aprisionándolos en un mundo de constreñimientos del que no pueden escapar. Ese tipo de perspectiva termina por corroborar un ejercicio de dominación que en algunos casos se intenta aparentemente combatir. Aprendemos con las investigaciones en ciudades-satélites brasileñas y en townships sudafricanas que una forma de enfrentar ese modelo intelectual de análisis es asumir una postura mimética en relación al modo de investigación inventivo de nuestros anfitriones. En suma, adoptar como postura teórica y política la idea de etnografía popular.

Palabras clave: Etnografía; Brasil; África del Sur; Segregación; Pobreza.

Apresentação

Pessoas que a literatura, por diversas razões, convencionou chamar de grupos populares estão constantemente envolvidas em pesquisas, em avaliações minuciosas entremeadas por complexas formulações teóricas a respeito de problemas com que se deparam. A partir de dois contextos de pesquisa distintos (no Brasil e na África do Sul), desenvolvemos neste texto algumas reflexões sobre a noção de etnografia popular . Como veremos, este termo diz respeito, basicamente, a uma atuação etnográfica que busca fazer pesquisa junto/com as pessoas que nos recebem em campo, as quais compartilham conosco seu cotidiano de investigação constante. A exposição que se segue está dividida em blocos, formados a partir de questões suscitadas pela pesquisa etnográfica. A seqüência desses tópicos não diz respeito a sua ordem de importância. Todos os aspectos da discussão que trago para a apreciação estão encadeados e, nossa intenção é compreender a íntima relação entre essas partes de uma pesquisa.

Em primeiro lugar, esboçarei brevemente algumas reflexões sobre a necessidade de explicitarmos as condições de realização de nossa pesquisa como pressuposto sine qua non para compartilharmos de fato nossos problemas sob análise. Esse desvelamento dos bastidores da investigação assume atualmente inúmeras formas e se propaga por outras tantas fórmulas ou receitas sobre o bom fazer sociológico ou antropológico. Estarei esboçando somente mais uma alternativa. A apresentação dos bastidores das pesquisas, que estão sendo discutidas aqui, nos levará a dois universos espacialmente e historicamente distantes. O primeiro é uma cidade localizada na periferia de Brasília e, por isso, chamada de forma derrogatória de cidade-satélite. Esse lugar é o Recanto das Emas e foi lá que iniciei uma pesquisa em 2000. O outro campo de investigação é a cidade de Madadeni, localizada na periferia de um pequeno município, Newcastle, na província de Kwazulu-Natal, na África do Sul. Minha pesquisa nesta região começou gradualmente a partir de 2006, tendo prosseguido até hoje. Feita uma discussão sobre os lugares e sobre a perspectiva adotada na construção de alguns problemas teóricos, será tempo de, na terceira parte deste texto, discutir os próprios problemas teóricos em tela.

Os temas deste artigo nascem de um giro em torno de uma coluna mestra, ou melhor, uma espécie de poste totêmico onde estão entalhadas diversas faces de um fenômeno bastante complexo. A inspiração para os entalhes deriva de figuras esculpidas no Recanto das Emas, passa a outras observadas na África do Sul e, por fim, retorna ao Recanto das Emas. É por causa do movimento de observação desta "coluna" —circulando-a, olhando-a de cima para baixo e vice-versa, passando por uma imagem e a ela regressando depois— que alcançamos um painel sensível e dotado de sentido. Não é preciso explicitar em demasia que esse é um dos procedimentos mais desejáveis e recomendados em antropologia: a comparação.1 Nessas idas e vindas, assume forma uma reflexão a ser apresentada, já no final do artigo, sobre segregação espacial e racial a partir dos dois contextos. Lançando mão de argumentos teóricos etnográficos, desenvolveremos uma crítica a duas linhas de interpretação que tratam em particular de um tema derivado da discussão sobre segregação: a pobreza. Como cada passo encontra-se encadeado, torna-se mais recomendado fazermos paradas estratégicas e revisar o caminho percorrido, antes de prosseguirmos. Em suma, primeiro tratarei de discutir como chegamos e como permanecemos em nosso campo de pesquisa. Em seguida, falarei de cada um desses dois campos —no Brasil e na África do Sul. Mais à frente, apresento uma leitura crítica sobre os temas da segregação e da pobreza para, por fim, sugerir uma necessária mudança em nossa política teórica, que deve incidir sobre nossas práticas de investigação.

Como chegamos e como permanecemos em nossas pesquisas?

Se empreendo um retorno ao ano de 1999, quando comecei a esboçar meu interesse pelo Recanto das Emas e pela vida política local, uma série de eventos se encadeia, buscando entre si uma afinidade, alcançando, ex post facto, uma seqüência causal. Naquele ano, conhecia Brasília pessoalmente. Talvez não seja um universal, mas a experiência de estar em meio a um cenário modernista como aquele, causa, comumente, certo distúrbio em nossa percepção.

Muitos, por terem contato com a literatura brasileira, sabem que o topos narrativo da Nação surge como chave explicativa para fenômenos bastante diversos entre si. Entretanto, em Brasília, a não tão larga história brasileira (de pouco mais de 500 anos) não ecoa como em outras cidades do país. Localmente nasceu um mito próprio, que fala da construção da capital federal nos anos 50 e início dos 60, por visionários como Oscar Niemeyer, que buscavam erguer —em um lugar aonde "nada existia"— um novo espaço para a construção do governo nacional. Nesta narrativa, com tintas de cores fortes, se pinta a migração de trabalhadores da construção civil. Invariavelmente se reflete sobre o momento em que a capital foi inaugurada, em 1960, com a concomitante expulsão dessa mão-de-obra para a periferia da capital. Assim nasceram as cidades chamadas de satélites . A mais antiga delas, Ceilândia, levou este nome (um acrônimo) por resultar de uma Campanha de Erradicação de Invasões.

Apesar de o Distrito Federal ter sido construído em uma área aonde supostamente "não havia nada", qualquer um a ocupar essas terras, depois da demarcação feita pelo governo federal, passou a ser chamado de invasor . Quando fui morar em Brasília, me causou grande interesse a política do governo local de remoção de invasões, de cadastramento e hierarquização de famílias em busca de um lote para construir um lugar para morar. Este tema evocava pesquisas anteriores às quais eu havia me dedicado, entrecruzando novas concepções de grupos populares sobre política e, igualmente, novas práticas governamentais de distribuição de benefícios públicos.2 Paralelamente a essa afinidade pessoal, naquele momento, quando iniciava meu doutorado, estava em fase de consolidação um grupo de pesquisa que veio a se notabilizar no âmbito nacional, por seu investimento em estudos de antropologia política, o NuAP. A conjunção dos fatos me levou ao Recanto das Emas, sob os auspícios do NuAP e as discussões que emergiram num e noutro campo resultaram em minha tese de doutoramento, posteriormente publicada com o título Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política .

De tudo o que aprendi com meus anfitriões no Recanto das Emas, destaco esta noção de Tempo de Brasília, um conceito local que dizia respeito à diferenciação interna de uma população que um olhar desavisado e exterior poderia erroneamente classificar como homogênea. Deste trabalho, emanou uma crítica etnográfica aos conceitos vulgares sobre clientelismo e patronagem política, emergindo uma nova frente de pesquisa sobre os empregados na política . Os empregados na política, que investiguei com maior cuidado em outro campo, na cidade do Rio de Janeiro, eram pessoas cujos salários e posições estavam absolutamente dependentes de sua indicação por um político profissional eleito a um cargo no poder executivo ou legislativo local. Lado a lado, as duas pesquisas me permitiram pensar teoricamente sobre o Estado brasileiro em termos de governos que se sucedem. Fizeram-me compreender que as análises que apontavam para um Estado fraco ou vulnerável partiam de um ponto de vista normativo que pouco ou nada tinha a ver com a alta politização presente no cotidiano dos grupos populares considerados pelo senso comum como alienados e manipuláveis.

Como acontece frequentemente, movida pelo acaso , findo esse trabalho de pesquisa voltei para Brasília, aonde comecei a dar aula (Peirano, 1992). Entretanto, não regressei ao campo de investigação anterior. Acabei chegando a um grupo de pessoas interessadas na comparação entre o Brasil e a África do Sul. Uma ponta desse grupo era composta por ativistas de dois movimentos sociais que promoviam intercâmbios: o MST e o LPM (movimento dos trabalhadores rurais sem terra e o Landless Peoples Movement ). Marcelo Rosa foi para a África do Sul em 2005 com um casal de militantes do MST e lá conheceu os ativistas do LPM. O interesse de Marcelo, com quem sou casada, pelos percursos e transformações da militância política encontrou na África do Sul um terreno fértil. Sua narrativa sobre essa experiência despertou em mim uma curiosidade específica: gostaria de compreender a relação que aquelas pessoas tinham com a vida nas townships urbanas, aonde boa parte delas havia morado, antes de se engajarem em um movimento social de luta pela restituição de terras rurais. Além dessa porta de entrada, passamos a manter contatos regulares com um grupo de acadêmicos sul-africanos que vinham ao Brasil, interessados em discutir as políticas habitacionais do país —com colegas reunidos em torno de Carlos Vainer (Ippur-UFRJ) e Lygia Sigaud (PPGAS-UFRJ). Em suma, colegas voltados para a compreensão de um tipo de segregação que não se fizera —ao menos explicitamente, como política de Estado— sobre as pedras angulares do racismo e do apartheid . Posso afirmar que por meio dessas duas cadeias de amizades e afinidades dei início a um projeto de pesquisa que segue até aos dias de hoje, na África do Sul.

Os leitores devem imaginar algumas das diferenças mais gritantes neste campo de pesquisa. Pode parecer trivial —todos os antropólogos deveriam passar por experiências de campo marcadas pelo signo da alteridade não importando se fazem seus trabalhos de campo na cidade aonde moram ou em uma aldeia na Nova Guiné. Afirmo, entretanto, que, ao menos para o meu caso, foi desestabilizadora a experiência de ver cair por terra todos os pressupostos de ordem cotidiana que orientam nossas percepções em campo, quando fazemos pesquisa em nossas cidades, sobre temas que julgamos comuns a nós mesmos e aos nossos anfitriões: como política e estado. A lição mais avassaladora na África do Sul veio, obviamente, das duas fontes de minha própria entrada em campo, com os ativistas do LPM e com meus colegas acadêmicos. Com eles aprendi uma lição que intuía —com a qual assentia, mas que jamais havia colocado em prática. Aprendi com esses amigos que não existe possibilidade de fazermos pesquisa sem ser em equipe e que a equipe deve contar com pesquisadores dos locais aonde fazemos nossa investigação. A esse ponto voltarei mais adiante. Antes, porém, apresentarei outra rede a qual estamos conectados quando nos envolvemos em pesquisa em ciências sociais: a literatura sobre os temas e problemas que investigamos.

O inerente limite conceitual: acerca da pobreza e da segregação

Tanto no Recanto das Emas, quanto nos arredores da cidade de Madadeni, aonde faço meu trabalho de campo na África do Sul, aprendi lições distintas sobre temas que já conhecera por outros meios, ensinamentos preponderantemente sobre assuntos como segregação e pobreza. Defendo que a produção antropológica se assenta sobre um tríptico, a partir do qual se produz renovadamente o que podemos chamar de teoria etnográfica . Esse tríptico deve ilustrar a participação equânime de nossas próprias teorias, de teorias da disciplina e de teorias de nossos anfitriões. Por essa razão, passo agora a uma apreciação de algumas teorias sobre a pobreza e sobre a segregação que entram em diálogo com as minhas próprias percepções e também com a das pessoas com as quais tenho feito pesquisa no Brasil e na África do Sul.

Os caminhos para se recuperar a literatura sobre segregação e pobreza são invariavelmente longos, diversos e, sobretudo, controversos. Podemos lembrar do clássico texto de Georg Simmel para começar a delinear uma linha de argumentação que queremos defender. Nossa escolha deste "ponto zero" se deve ao fato de Simmel partir da relação entre indivíduos para tecer suas considerações sociológicas. Os modismos vão e vêm, as marés sobem e baixam, mas creio ser seguro afirmar que em antropologia a "sociedade", há mais de 20 anos pelo menos, já não serve mais como panacéia, como ordem englobante que explica a tudo e a todos. Neste aspecto, apesar de todas as críticas que possamos tecer ao seu argumento, Simmel parece trazer avant la lettre uma importante contribuição para nossa compreensão do corpus conceitual que trata dos temas da segregação e da pobreza; muito distinta e talvez mais esclarecedora que outras que se lhe seguiram, como as de Oscar Lewis, por exemplo.

A cisão nós versus eles dentro de uma sociedade sustenta-se no fato de, sem qualquer prurido, chamarmos a sociedade de "nossa" e não de "deles" —dos segregados, dos pobres. Tanto é assim que, no Brasil, investigações tratando do tema da segregação ou da pobreza, buscam conectar populações excluídas àquelas incluídas, por meio de propriedades que faltam às primeiras (eles) e sobram às últimas (nós). Ao promover esse tipo de tessitura, com os fios da destituição material e da exclusão (racial), tais estudos corroboram uma idéia de todo, de sociedade que pauta a definição deste outro —o pobre— pelo que ele (sujeito genérico) não possui (Reis, 2000). Sem propriedades particulares, sendo definido a partir do sistema classificatório da elite cum sociedade , como sepulta Simmel, ao "pobre" se nega o caráter de indivíduo —ele é um sujeito em relação com um outro que é superior, justamente por possuir algo que lhe falta. Com essa negativa, o pobre perde tudo o mais, que vem a reboque da noção de indivíduo, em especial, o livre arbítrio. Sem livre arbítrio, movidos pela necessidade, a ação dos grupos populares (sempre considerados como coletivos homogêneos) está fadada a ser reativa e, jamais, criativa. A lição de Simmel a esse respeito ecoa em críticas contemporâneas, segundo as quais, homogeneizar a pobreza revela uma condescendência das ciências sociais com a perspectiva da elite —que, de maneira alguma, "representa" a sociedade como um todo (Borges, 2004).

Feita essa breve alusão aos efeitos perniciosos que nossas mais sinceras intenções (de inclusão) podem produzir —tanto teórica quanto politicamente— passo agora ao desafio etnográfico que recentemente experimentei e que está diretamente relacionado ao debate teórico sobre a pobreza e a segregação.

O cenário (desolador) das townships

Minha volta ao Recanto das Emas —cidade localizada no DF, há aproximadamente 30 Km de Brasília— foi motivada pela experiência de pesquisa na África do Sul. Como disse anteriormente, em 2006 comecei um trabalho de campo neste país, levando na bagagem as considerações que eu tecera a respeito do Recanto das Emas, em minha tese de doutorado, concluída em 2003.

Na África do Sul, em lugares chamados de informal settlements (no Brasil seriam as invasões) ou townships , vivem pessoas que poderiam ser aproximadas dos moradores do Recanto das Emas, os quais eu conhecera no final dos anos 90 (ver Huchzermeyer, 2004). Para afirmar tal semelhança, bastaria adotarmos critérios afins àqueles das instituições cujo trabalho é quantificar e qualificar a "pobreza" . Ou seja, bastaria observarmos e compararmos esses lugares a partir do ponto de vista da privação de bens de consumo e serviços, ou da renda diminuta —em suma, para retomar o debate anterior, se os qualificássemos a partir do que lhes falta.

A marcante diferença entre um caso e outro —o do Brasil e o da África do Sul— está em serem os moradores das townships , negros apartados nesses bairros-cidades pela política explicitamente racista do apartheid.3 Em suma, o fato de a completa totalidade da população desses locais ser negra (ou, em certos casos, coloured ), remete a um só tempo ao racismo e ao regime do apartheid , findo em 1994. Poderíamos, daí, concluir: se atentarmos para a diferença e não para a semelhança, uma township não tem muito a ver com uma cidade-satélite. Entretanto, nesse jogo tenso, entre idas e vindas, o refrão "miséria é miséria em qualquer canto" torna-se plausível, se considerarmos desta feita o espaço, a partir do esquadrinhamento das ruas, do padrão retangular das casas, da "ausência" de natureza ou de história... Para quem não vive nesses lugares, traços comuns marcam a arquitetura e também o cotidiano das townships: sua localização remota (do centro), o precário transporte coletivo, a ausência de empregos estáveis, de equipamentos públicos suficientes para atender aos que diariamente precisam daquilo que lhes é de direito (como escolas, hospitais etc.).

Quando conhecemos os dois lugares, salta aos olhos a figura do modernismo orientador de uma segregação destinada ao fornecimento de mão-de-obra barata ao capital em expansão (Scott, 1998). "Salta aos olhos", vale insistir, daqueles que vêem nas diferenças traços menosprezíveis, que não impedem uma generalização acerca da pobreza como sinal "em comum" . Com essa mesma abordagem e forma narrativa —que trata da segregação espacial e homogeneização da população— é normalmente recuperado o caso de Brasília e de suas cidades-satélites, vistas como abrigos para migrantes (em seus primórdios, ver Ribeiro, 2008 e Holston, 1993), e que hoje precisaria ainda lidar com a questão do alojamento para os filhos da terra (um problema que remonta, no mínimo, a Engels).

Em minha tese, não pude deixar de afirmar que o Recanto das Emas tinha sido criado em 1993 para assentar pessoas que esperavam há anos por um lote. Entretanto, naquela época, para além da homogeneidade de um processo modernista de Estado, descobri com meus anfitriões a centralidade da categoria Tempo de Brasília para os que ali conseguiram fincar suas raízes. Com este conceito eles tornavam explícita sua história, a passagem dos anos e sua transformação como indivíduos, distintos uns dos outros, quebrando assim com a imagem de uma comunidade periférica homogênea, e, algumas vezes, pensada como intrinsecamente solidária em suas experiências. Olhando de perto, apesar do alto grau de arbitrariedade e violência estatal, não era possível deixar de concordar com os moradores da cidade: valera a pena esperar e apostar; afinal, aos poucos, depois do lote, viram chegar à cidade o saneamento, o asfalto e muitas outras intervenções que iam transformando a paisagem; demonstrando uma melhora —imperceptível para quem não vivera o passado naquele ou em outro lugar conhecido daquelas pessoas. Ao contrário de uma aparência similar para quem não experimenta a cidade, a paisagem alterada e heterogênea era sentida, por aqueles que ali viviam há mais tempo, como um ícone da heterogeneidade geral. Nem todos eram iguais no Recanto das Emas, apesar do discurso das elites a respeito da periferia. Os antigos moradores olhavam para seus vizinhos observando o grau ou quantum de conhecimento que cada qual possuía (Elias and Scotson, 2000 são uma referência ainda iluminadora a esse respeito). Obviamente esse conhecimento remetia às tramas e à plasticidade da política governamental, recompensadora, para muitos daqueles que dedicavam seu cotidiano a entender as artimanhas dos órgãos públicos, de seu funcionamento e de seus funcionários (ver Herzfeld, 1993).

Na África do Sul, pelo contrário, a construção das townships não obedeceu a uma demanda da população negra. Todos foram forçados a abandonarem suas casas urbanas (postas a baixo como no célebre episódio de Sophiatown), obrigados a venderem suas propriedades por valores irrisórios (no caso daqueles que eram proprietários) e a se mudarem compulsoriamente para uma casa popular —chamada criticamente de caixa de fósforo— em um loteamento feito sobre terra arrasada.

O assustador quadro das remoções que me era narrado, fazia-me lembrar que, no mesmo período (dos anos 50 aos 70), também no Brasil, aconteciam remoções desse tipo —porém, sem ter como força motora a ideologia do regime do apartheid . No Brasil, durante e após o regime militar, dizia-se que os deslocamentos forçados serviriam de meio para garantir à população removida o direito à propriedade (lembremos da Companhia de Habitação/Cohab, do Banco Nacional de Habitação/BNH e de outras instituições fortes durante o regime militar). Supunha-se que, para um gerenciamento público eficaz da cidade seria necessário limpá-la dos pobres que perturbavam a ordem (Valladares, 1978 e Zaluar, 1996 dentre outras, exploram essa ideologia que impregnava as políticas habitacionais). Ordem urbana era e ainda o é, sobretudo se tomarmos os discursos e medidas policialescas contra a violência e o crime, sinônimo de democracia, uma democracia que se construiu banindo do campo de visão da elite aquelas pessoas que perturbassem sua consciência, sua idéia de todo, de sociedade —espelho de seu estilo de vida estatisticamente insignificante, mas ideologicamente hegemônico.

Era preciso mandá-los para algum lugar remoto, de difícil acesso, seguramente distante a ponto de garantir à elite que a perturbação estética trazida pelo pobre não mais lhe causasse um mal-estar ético (penso aqui na definição de Leach, 1985 para quem "ética é estética" e no estudo de Sprandel, 2004 sobre a percepção dos intelectuais brasileiros sobre a pobreza como fonte ambígua de um caráter nacional a um só tempo "genuíno" e "indesejado").4 No Recanto das Emas, igualmente, as pessoas que chegaram à cidade a partir de 1993, não desceram do espaço sideral, não surgiram "do nada". Elas estavam em algum lugar próximo. Por definição, ou seja, pela exigência do Tempo de Brasília, para preencher os formulários, elas deveriam ser moradoras do Distrito Federal há ao menos cinco anos . Caso contrário, não teriam sequer a chance de entrar na árdua disputa pela contemplação com um lote.

Pois bem, mas onde de fato estavam essas pessoas antes da sua remoção?! Morando em fundos de quintal, em casas alugadas ou ocupando um barraco em uma "invasão" — modo como são conhecidas as ocupações de terra no Distrito Federal. Sob esta ótica, o assentamento no Recanto das Emas não poderia ser classificado como um deslocamento forçado —como acontecera na África do Sul. É exatamente sobre este ponto que gostaria de me deter daqui para frente. Sem ter levando em consideração os problemas em torno desta figura do deslocamento seguido de reassentamento —por um lado compulsório e, por outro, voluntário— comecei uma investigação que tinha por mote a comparação entre uma e outra situação —ou seja, entre um caso no Brasil e outro na África do Sul.

Recentemente, antes de dar início à pesquisa no Recanto das Emas, afirmei por diversas vezes, na África do Sul, que forced removals já não mais aconteciam em nosso país. Parte do conteúdo de minha afirmação emblemava uma atitude comum dentre antropólogos e antropólogas que se afastam da prática do trabalho de campo: passamos a tecer afirmações de senso comum, ancoradas não só em desejos (de como o mundo deveria ser), mas sobretudo em informações midiáticas e oficiais; em resumo, começamos a nos fiar em dados. Felizmente o trabalho do antropólogo não versa sobre dados, mas sobre construídos.

As minhas afirmações na África do Sul diziam respeito a uma interlocução muito pontual com meus anfitriões, envolvidos em lutas políticas que tinham como objetivo garantir a ocupação, a posse, a propriedade da terra em que viviam. A proposta deles —fosse em zonas rurais e/ou em townships— visava a garantir a manutenção de seus locais de moradia. Eles não aceitavam mais as reiteradas decisões do governo de deslocá-los para longe (como no caso de Joe Slovo na Cidade do cabo). Não somente não aceitavam as remoções porque a distância dos conjuntos habitacionais implicaria transtornos para conseguir empregos e transporte. Seu principal incômodo dizia respeito à segregação social. Eles não concebiam que ainda fosse admissível um governo declarar —no pós- apartheid — que a remoção se fazia necessária porque a zona em que moravam os shack dwellers (ou os farm dwellers ) estava sendo "desvalorizada" economicamente, com suas presenças (!).

Nesse contexto, vez que outra, quando eu era chamada a falar sobre a situação de pessoas que vivem no Brasil, em situações supostamente semelhantes, eu me vi afirmando —apesar de não ter qualquer evidência etnográfica para isso— que, no Brasil, esses processos de remoção eram já considerados ilegais e mais, obsoletos. Apesar da falta de referencialidade do que eu afirmava, minhas assertivas eram transformadas por esses amigos em mais uma confirmação da pertinência de suas teses e reivindicações.

Da aventura ao encontro com outros pesquisadores

Quando regressei da África do Sul, decidi que já era hora de retomar o trabalho de campo no Recanto das Emas. Sabia de antemão que não se tratava de "retomar" literalmente, ou seja, de recuperar um fio abandonado e continuar tecendo a mesma trama anterior como nos adverte, dentre outros, Manoela Cunha quando recupera seu retorno às prisões femininas em Portugal e reflete sobre a enorme diferença que lá encontrou (Cunha, 2002). De antemão eu esperava por mudanças que diziam respeito aos meus anfitriões, a mim mesma e, obviamente, à teoria antropológica. A idéia da etnografia como um evento que nasce por obra desse tríptico talvez fosse a única certeza do passado que eu carregava, quando voltei ao Recanto das Emas.

A experiência na África do Sul se descortinara à minha frente por meio tanto do trabalho das pessoas que mencionei quanto, igualmente, graças aos colegas que me acolheram em seus terrenos de investigação. Certa feita, numa de minhas incursões nos "campos alheios" fui surpreendida com o fato de que minha amiga e colega —Sophie Oldfield— não era única "proprietária" daquele terreno de investigação. Chegando em Valhala Park, um informal settlement na "periferia" da Cidade do Cabo, fomos diretamente à casa de algumas pessoas que, sob certa ótica, poderiam ser nomeadas com os derrogatórios termos informantes ou mesmo nativos. Ao invés disso, quando se apresentavam, as pessoas que eu acabava de conhecer diziam seu nome e seu papel naquela conversa: somos pesquisadores: "we are researchers". Mais do que isso, ao longo de nossa conversa era como se invertessem a expectativa usual de uma pesquisa. Naquele caso, os outrora nativos, nos devolviam algo que antes lhes era unilateralmente dirigido, afirmando para os acadêmicos da universidade: os seus problemas nos interessam.5

Acontecia aos meus olhos uma inversão absoluta das dinâmicas de pesquisa que a literatura canônica sobre a pobreza e sobre os pobres afirmava. E aqui não estou me referindo apenas aos clássicos (como Oscar Lewis), mas a autores contemporâneos que fazem suas pesquisas nos mesmos lugares em que estive (cito o fatalismo de classe de Bähre, 2007 ou de Auyero and Swistun, 2009, por exemplo). Tratava-se de uma surpresa que dizia respeito a uma alteração nas intersecções vividas pelo tríptico que mencionei anteriormente. Por um lado a teoria antropológica já não podia (ou não deveria) defender um conhecimento que se sustentasse numa relação sujeito/objeto, em que os parâmetros para o conhecimento sobre o outro eram a estética e a ética de uma classe dominante que se travestia de pesquisador (ver Smith, 1999 e Fonseca, 2005). Por outro lado, mas ao mesmo tempo, a agência política de meus anfitriões não deixava margem para uma pesquisa que não se ocupasse de colocar em diálogo os problemas teóricos que pautavam a ordem do dia de ambos os lados envolvidos naquela relação.

A intervenção urbanística nos Cape Flats —região construída como periferia no período do apartheid — visava a gentrificação do lugar e propunha a expulsão e a realocação daquelas pessoas em áreas ainda mais longínquas, em meio a dunas de areia, todavia sem interesse para a especulação imobiliária (ver Oldfield and Stokke, 2004). Não se tratava de uma instrumentalização política da antropologia —e, se fosse, também não veria problemas (afinal, quem de nós realmente acredita que a antropologia não se volta contra ou ao nosso favor, muitas vezes de forma independente de nossas vontades?!). Os pesquisadores da universidade e os pesquisadores do informal settlements tinham questões particulares que interessavam a uns e a outros (ver Flaksman, 2007 acerca do conceito de pesquisador entre os Mórmons). Na esteira da luta pelo fim do apartheid , ambos queriam que suas pesquisas garantissem conhecimentos novos e particulares, em um cenário que abrigasse a diversidade desses conhecimentos.

Ao longo dos anos, para além do trabalho de terreno, pude encontrar com os moradores de Valhala e outros settlements e townships em seminários acadêmicos e, igualmente, ver os seus trabalhos de pesquisa (publicados nos meios acadêmicos), por vezes sendo utilizados em tramitações jurídicas, especialmente como armas na oposição a remoções. Essa relação, dirão alguns, é absolutamente trivial (basta mencionarmos o caso de antropólogos brasileiros que fazem pesquisa em áreas indígenas ou com quilombolas, ou com gênero e direitos sexuais, por exemplo). Talvez seja realmente trivial, entretanto, penso que, especialmente no caso dos estudos de lugares cujo traço mais ressaltado é a pobreza, em especial a pobreza urbana, raramente se toma os interlocutores de campo como companheiros intelectuais (há exceções, bem sei). Não falo aqui daquelas pessoas que, como escrevi certa vez, "nos dão a mão em campo" (Borges, 2006b). Ou seja, pessoas que com sua sabedoria e disposição, saciam nossa sede de questionamentos (ver coletânea de Casagrande, 1960). O que aprendi na África do Sul, com essa experiência, foi uma outra coisa. Lá, as perguntas e o olhar não chegavam apenas de fora —e, não chegavam, porque a própria vida local impedia o método etnográfico próprio do antropólogo-aventureiro que ancora em uma ilha e passa a realizar a sua pesquisa particular, em meio aos nativos, cuja vida ordinária será apreciada como alteridade.

Com esta inspiração ecoando em minha mente, fui surpreendida por uma mensagem de uma professora do Recanto das Emas que me convidava a falar de minha tese na escola aonde lecionava. Embora acreditasse —a partir de mais um dos pressupostos comuns dentre aqueles que fazem pesquisa em lugares "pobres"— que meu livro jamais seria lido por alguém da cidade ou interessado na cidade, minha surpresa foi grande: fiquei ao mesmo tempo gratificada e apreensiva. Talvez algum leitor se identifique com a situação e imagine o calafrio que senti. A professora, Cristiane Portela, estava "trabalhando" partes de meu livro com seus estudantes no ensino médio. Para além da apreensão inicial, não demorei a perceber que havia algo de inusitado, mas muito bem-vindo, no que acabara de acontecer. Na verdade, Cristiane não me chamava como uma convidada especial, eu iria me juntar a outros intelectuais —cineastas, músicos, um filósofo— para participar de uma mesa redonda na escola.

Passei então a colaborar com um projeto de pesquisa desenvolvido por Cristiane Portela sobre o Recanto das Emas. Nossa intenção, sob inspiração do que eu vira na África do Sul, era constituir equipes mistas —formadas por estudantes da UnB e estudantes da própria escola— que se lançassem em frentes de pesquisa nascidas de temas contemporâneos, sugeridos pelos próprios moradores da cidade (em especial, por aqueles ligados aos próprios bolsistas participantes do projeto).

Faço uma pausa para destacar um aspecto importante desta pesquisa, ainda em seus primeiros passos. A "pobreza" e seus correlatos mais freqüentes —fome e violência, tão assíduos nos estudos sociológicos contemporâneos sobre esses locais— não surgiram como temas relevantes e, tampouco, como assunto nas conversas e observações feitas com os moradores da cidade. A recorrente afirmação "o Recanto mudou muito" ou "o Recanto melhorou bastante" é marcante em todas as apreciações que temos ouvido. E, como tenho aprendido, não diz respeito apenas ao incremento dos equipamentos urbanos em regiões que eu conhecera outrora completamente desprovidas de serviços públicos. Diz respeito à percepção e tolerância que as pessoas têm sobre um olhar distanciado e preconceituoso sobre a cidade em que vivem.

Dentre as pessoas com as quais tenho convivido agora —e que não são mais, em sua maioria, meus amigos de antes— a pobreza ou a carência material não surge como traço relevante para a produção de conhecimento sobre suas vidas. Aos seus olhos, não existe a possibilidade de se pensar a pobreza como panacéia capaz de apaziguar seus questionamentos acerca da diversidade de modos de vida presentes na cidade. Os pesquisadores envolvidos nessa empreitada não têm interesse em reiterar equivalências assimétricas, baseadas em um olhar distanciado que se fundamentava no pertencimento do pesquisador a uma "classe" diferente daquela do pesquisado. Para eles, não parece plausível "explicar" que alguém é dessa ou daquela associação, dessa ou daquela igreja, porque essa pessoa se dedica a uma estratégia para escapar de sua situação de dominado , ou porque não se dá conta de sua alienação e das malhas de poder que o enredam. Essas explicações não os satisfazem porque eles conhecem pessoas que —a despeito de propriedades sociológicas diferenciadas— compartilham de certos espaços, de certos engajamentos comuns. E, da mesma forma, conhecem pessoas de espaços sociais "aparentemente" idênticos, que se orientam de modo completamente distinto em suas vidas. Dentre o próprio grupo de estudantes, existem olhares absolutamente particulares sobre o presente e sobre o futuro. Alguns são contestadores e apostam na vida e nas ações coletivas. Outros acreditam e apreciam sua personalidade individual. Outros não vêem problema em se envolver de modo aparentemente paradoxal com questões que deveriam estar bem separadas umas das outras —de se vestir com roupas de surf, mesmo sem ir ao mar; de gostar de forró e ser evangélico— tudo ao mesmo tempo, e sem qualquer prejuízo.

Sendo assim, esses pesquisadores não imputam aos seus interlocutores em campo um enquadramento a priori ou sequer uma posição fixa construída ex post facto . Se eles não são fáceis de serem "explicados", por que razão os outros o seriam?! Tendo em vista que essa pesquisa encontra-se em curso, confesso ser difícil colocar um ponto final neste artigo. Por ora, ouso levantar duas questões que me parecem pertinentes. Por um lado, percebo que, se a pobreza não é vista como um problema central, certamente as soluções para se por fim à pobreza igualmente não fazem sentido. Ao menos do ponto de vista dos bolsistas engajados na pesquisa, os males do Recanto das Emas não se circunscrevem aos limites da cidade (Ferguson, 2006).

Ao aprender com as lições do Recanto das Emas em 2008, começo a vislumbrar também uma nova perspectiva para lidar com o caso sul-africano. Certamente essa outra forma de olhar já me havia sido anunciada por leituras que tenho feito de textos produzidos por alguns autores sul-africanos. Refiro-me especialmente a Njabulo Ndebele (2007) que em seus escritos critica a homogeneização causada pelas narrativas e performances do pós- apartheid . Vejo no objeto desse autor um paralelo com o que se chamou algum dia de "antropologia da pobreza". Para Ndebele, a necessidade de se narrar o que se sofreu durante o apartheid —sobretudo no âmbito dos TRC (comissões de verdade e reconciliação)— esmagou um terreno de experiências e emoções que fora acidentado e, por essa mesma razão, rico em sutilezas. Durante o apartheid , diz Ndebele, os negros eram vistos pelos brancos como "massa homogênea e inferior".

Essa declaração me faz pensar na forma como "os pobres" foram tratados em muitas etnografias e estudos sociológicos. Ainda seguindo seu argumento, para "por fim" ao apartheid , os discursos públicos nos referidos tribunais serviriam para dar conta de tornar todo o sofrimento e a heterogeneidade negras palatáveis ao gosto mundial. A homogeneização imputada aos discursos se traduziu em um padrão narrativo anódino, condição essencial para um processo de " esquecimento" ; esquecimento que era, por sua vez, condição sine qua non para a tolerância almejada pelo mundo que voltava seu olhar para a África do Sul. Em minha opinião, as etnografias que proclamam a pobreza como ordem englobante tinham por objetivo produzir efeito semelhante, isto é, fazer com que as diferenças e nuances não falassem mais alto do que a condição "encompassadora" de pobreza que marcava uma certa população.

Felizmente, como Ndebele, ouso dizer que, apesar de todos os estratagemas, o plano não funcionou. No caso dos estudos a que me dedico, não tenho "conhecido mais" do que as pessoas com quem faço pesquisa. Tenho meramente deixado de saber tão pouco. Tenho aprendido o quão recompensador é evitar as fórmulas canônicas da "suspeita". Aquelas que preenchem as lacunas de nossa ignorância com cadeias explicativas que estão "para além" ou "por trás" do que nos apresentam os "nativos", mas que nós conseguimos (onipotentemente) enxergar. Refiro-me às explicações para as quais tudo o que existe em lugares como aqueles em que faço pesquisa (periferia, base, massa) seria uma degeneração do que existe no centro (no pico, no cume). Ser contra essa forma narrativa palatável às elites —isto é, uma forma narrativa que usa a pobreza como topos discursivo e explicativo— significa propor uma antropologia atenta às pesquisas de nossos anfitriões. Como afirmei: pesquisadores, somos todos. E não somente um em relação ao outro. Nossos anfitriões pesquisam mais do que o mero visitante que chega à sua casa ou aldeia (como afirmado em certas posturas reflexivas dos antropólogos). São essas outras pesquisas que preenchem sua vida cotidianamente as que me parecem mais instigantes. E é com elas que creio ser importante aprender.

Novos rumos

Para encerrar, aludo mais uma vez ao que nos foi dito em Valhala Park: os seus problemas nos interessam. Essa afirmação veio também, em outra ocasião, de Mangaliso Khubeka, líder do Landless Peoples Movement , quando apresentávamos nossos problemas de pesquisa, em uma de nossas primeiras discussões, por assim dizer, epistemológicas. Ele fez uma pausa reflexiva e, por fim, invertendo por completo a fórmula canônica do trabalho de campo antropológico, em que os "nativos" não são considerados interessantes preponderantemente por sua estatura intelectual, e, concluiu dizendo: os seus problemas nos interessam . A partir desse dia, nosso trabalho de campo tomou um novo rumo: passamos a pesquisar com nossos anfitriões e a ter como objeto primeiro de reflexão suas práticas constantes de pesquisa, para as quais os nossos problemas pareciam pertinentes.

Por ora tenho plena convicção que devemos estar absolutamente atentos —quando envolvidos em uma etnografia popular— para o como e o quanto pesquisam nossos anfitriões. O trabalho de campo deve ser entendido, por esse principio, como um trabalho em equipe, no qual o acadêmico é apenas um —e talvez sequer seja o mais interessado, em compreender o que se passa à sua volta.

Notas

1 Em outra ocasião eu já explorei as conseqüências advindas da comparação entre meus trabalhos de pesquisa anteriores ao Recanto das Emas. Nesse texto anterior, tornou-se explícita a construção gradual de um interesse pelas formas de ação política que se constituem em espaços cotidianos, para os quais convergem tanto pessoas ditas "do povo" (as quais são normalmente apontadas como alheias ou como ludibriadas pela política profissional), como pessoas "do governo" —sendo ambos os grupos dedicados à distribuição e à compreensão da distribuição de benefícios públicos diversos (como terra, casa, alimentos etc.) que, ao fim e ao cabo, estabelecem os elos constitutivos de um Estado (para o caso brasileiro) em formação e em transformação (Borges, 2006a).

2 Eu já havia passado por algumas situações de investigação em que o tema da intervenção estatal, dos deslocamentos e dos reassentamentos tinham surgido. Brevemente posso aludir ao contexto das vilas em Porto Alegre, no início dos 90, quando a administração do Partido dos Trabalhadores promoveu despejos em nome da construção da cidadania, baseados no dispositivo dos Orçamentos Participativos. Ou, ainda, no estado do Paraná, conhecido por suas hidroelétricas, aonde pude acompanhar o processo de reassentamento de famílias cujas terras foram submersas pela construção de uma barragem.

3 No Brasil, o racismo e a segregação tomam outras formas na ação pública e privada, cujas controversas não poderei explorar neste momento.

4 Tomei consciência desse processo para o caso mais recente de Porto Alegre e da assepsia promovida pelos governos do PT, quando da leitura da dissertação de Martina Ahlert (2008).

5 Marcelo Rosa foi acordado, certa manhã, com um telefonema de nosso amigo Mangaliso Khubeka. O último, cioso de seu trabalho, perguntou-lhe em tom de reprovação: Ainda, em casa?! E a nossa pesquisa ("our research")?!

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