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Cuadernos de antropología social

versión On-line ISSN 1850-275X

Cuad. antropol. soc.  no.36 Buenos Aires ago./dic. 2012

 

ARTÍCULO

Feminismos e Prostituição no Brasil: Uma Leitura a Partir da Antropologia Feminista

Adriana Piscitelli*

 

* Doutora em Ciências Sociais. Pesquisadora nível A da Universidade Estadual de Campinas/ Unicamp. Núcleo de Estudos de Gênero PAGU. Correo electrónico: pisci@uol.com.br. Artículo elaborado especialmente para Cuadernos de Antropología Social a partir de la exposición de la autora en la Mesa Redonda 3 "La antropología feminista hoy: Desafíos teóricos y políticos en un mundo globalizado", X Congreso Argentino de Antropología Social, 29 noviembre - 2 diciembre de 2011, Buenos Aires.

 

Resumo

Neste texto exploro as possibilidades da antropologia feminista para refletir sobre um dos principais pontos de tensão no debate feminista contemporâneo. Baseando-me numa pesquisa sobre a relação entre feminismos e a discussão sobre a prostituição e o tráfico internacional de pessoas no Brasil, analiso essas tensões considerando as posições assumidas pelo feminismo e o lugar que ele tem ocupado nas discussões e ações voltadas para essas problemáticas nesse país. Realizo essa análise levando em conta as noções relacionadas à prostituição e o tráfico de pessoas presentes na história recente do feminismo brasileiro, situando essas conceitualizações no âmbito das relações entre o Estado e o movimento feminista e considerando as configurações de ambos numa leitura transnacional.

Palavras chave: Feminismos; Prostituição; Tráfico de pessoas; Antropologia feminista; Brasil

Feminismos y prostitución en Brasil: una lectura a partir de la antropología feminista

Resumen

En este texto exploro las posibilidades da la antropología feminista para reflexionar sobre uno de los principales puntos de tensión en el debate feminista contemporáneo. Basándome en una investigación sobre la relación entre feminismos y la discusión sobre prostitución y trata de personas en Brasil, analizo esas tensiones considerando las posiciones asumidas por el movimiento feminista y el lugar que él ha ocupado en las discusiones y acciones destinadas a esa problemática en ese país. Realizo ese análisis teniendo en cuenta las nociones relacionadas con la prostitución y con la trata en la historia reciente del feminismo brasileño, situándolas en el ámbito de las relaciones entre el Estado y el movimiento feminista y considerando las configuraciones de ambos en una lectura transnacional.

Palabras clave: Feminismos; Prostitución; Trata; Antropología feminista; Brasil

Feminisms and prostitution in Brazil: reading from a feminist anthropological perspective

Abstract

In this article I explore the possibilities offered by a feminist anthropology in order to reflect on one of the main tensions in the contemporary feminist debate. Basing myself on a research about the relationships between feminisms and the debate about prostitution and sex trafficking in Brazil, I analyze those tensions considering how feminists positioned themselves regarding these issues in this country. I perform this analyzes taking into account the notions related with prostitution and sex trafficking in the recent history of Brazilian feminism, situating them in the context of the relationships this movement established with the State and considering the configurations of both in a transnational approach.

Keywords: Feminisms; Prostitution; Sex trafficking; Feminist anthropology; Brazil


 

 

Apresentação

Neste texto dialogo com a problemática da antropologia feminista no momento atual, considerando um dos principais pontos de tensão no debate feminista contemporâneo: a discussão sobre a prostituição e tráfico internacional de pessoas com fins de exploração sexual. Baseando-me num estudo de caso, minha proposta neste texto é ir além dessa discussão, considerando as contribuições que a antropologia e, de maneira mais específica, a antropologia feminista, oferecem para compreender esse debate.

Neste artigo analiso essas tensões, baseados numa pesquisa que coordenei no Centro de Estudos de Gênero PAGU, na Unicamp,1 considerando as posições assumidas pelo feminismo e o lugar que ele tem ocupado nas discussões e ações voltadas para essas problemáticas no Brasil. Realizo essa análise levando em conta as noções relacionadas à prostituição e o tráfico de pessoas presentes na história recente do feminismo brasileiro. Situo essas conceitualizações no âmbito das relações entre o Estado e o movimento feminista, numa perspectiva que considera as configurações de ambos numa leitura transnacional. Refiro-me a uma abordagem que leva em conta a relevância de instâncias supranacionais na regulação da conduta dos Estados e a importância das redes de grupos de ativistas que, centrados em temas específicos, exercem pressão transnacional sobre estados nacionais e ativismos locais (Sharma e Gupta, 2006).

Meu principal argumento é que no Brasil o cenário feminista é heterogêneo em relação aos posicionamentos sobre a prostituição. Contudo, a particular configuração na qual as vozes abolicionistas estão inseridas, principalmente na sua relação com o Estado, vem tornando essas posições mais visíveis.

Na primeira parte do artigo apresento as discussões sobre as problemáticas presentes no feminismo no Brasil. Considero depois como algumas correntes se tornaram mais visíveis nesse debate, levando em conta a história do debate sobre tráfico de pessoas no país, as reivindicações e espaços de atuação do movimento feminista e suas articulações com o Estado, considerando como a transnacionalização afeta esses aspectos. Finalmente, reflito sobre as contribuições que a antropologia feminista, oferece para refletir sobre essas discussões.

 

Percepções sobre a prostituição no feminismo brasileiro

Quando, no mundo anglo-saxão, as feministas se debatiam nas "guerras do sexo" em torno da pornografia e prostituição (Rubin, 1984), a organização dos grupos feministas no Brasil girava em torno de outras questões (Piscitelli, 2008). Levando em conta depoimentos de diversas ativistas, durante as décadas de 1970 e 1980, a prostituição não parece ter integrado o leque de principais inquietações no movimento. Esse momento, identificado como uma "segunda onda" do movimento no país,2 é vinculado à oposição ao regime militar, a lutas pela democratização e pela anistia e também às "lutas específicas", contra a dominação masculina, a violência contra as mulheres e pelo direito ao prazer (Pinto, 2003, Matos, 2010; Corrêa, 1984; Shumaher, 1993).

De acordo com autoras que estudam a história do feminismo no Brasil, a circulação de idéias através das fronteiras e a articulação internacional entre feministas têm estado presentes nas diferentes "ondas". Na "segunda onda", segundo a narrativa de Albertina Costa analisada por Joana Maria Pedro (2006), duas vertentes influenciaram a formação do feminismo no Brasil, uma vinda da França e outra dos Estados Unidos. A influência do movimento feminista que se desenvolvia nesse país conduziu à tradução de livros que tratavam de temas como sexualidade, contracepção e aborto, à organização de grupos de reflexão sobre o corpo, a sexualidade e a reprodução, a saúde e os estereótipos na educação. Surgiram também grupos que se organizaram em torno à luta contra a violência contra as mulheres (Goldberg, 1982; Sorj e Montero, 1984) e, paralelamente, através de articulações inter-classes, com organizações femininas de bairro, se formulavam reivindicações ao acesso à infra-estrutura urbana básica e a creches (Rago, 2003; Sarti, 2001; Moraes, 1996; Teles, 1993).

As narrativas de feministas ativas nesse período, de prostitutas e de material documental sugerem que, embora a prostituição não constituísse um dos grandes temas do feminismo, ela gerava interesse. As discussões sobre o tema deram lugar a novas percepções sobre a sexualidade, mas também a ambivalências. O depoimento de uma feminista, na época ativista em São Paulo, destaca o aspecto inovador, em termos de sexualidade, presente nas reflexões sobre prostituição na época:3

No final dos anos 70, o elo fundamental no feminismo era a questão da ditadura, da Anistia, do trabalho, aquelas questões de mais consenso, a sexualidade estava meio submersa. Mas, você percebe o interesse. No Primeiro Concurso da Fundação Carlos Chagas,4 Cida Adair, do Nós Mulheres, propus a realização de um filme, que redundou num documentário, Mulheres da Boca.5 Acho incrível a abordagem desse filme, não há uma dupla moral, a puta e a outra. Não tem essa coisa da sexualidade da prostituta como desgraçada. Aquelas Mulheres da Boca tinham uma coisa de autonomia, de domínio do corpo, de gozar. É o que lembro como mais revolucionário. Outra figura inestimável era a Ruth Escobar, o espaço do teatro Ruth Escobar era um espaço de transgressão, e uma das mesas da Ruth foi sobre prostituição. Lembro também de uma passeata extraordinária, nós todas fomos e dizíamos "somos todas prostitutas". Tudo isso é antes de 80, era um estado de espírito, definitivamente libertário, criativo, inventivo, depois, já vem a institucionalização.

Esse espírito é registrado por Gabriela Leite, fundadora da primeira organização de prostitutas no Brasil e da Rede Nacional de Prostitutas, no final da década de 1980.6 Segundo ela: "A sociedade mudou e isso se reflete nos movimentos, que estão muito mais conservadores do que na década de 90, sendo que então já eram mais conservadores que na década de 70". De acordo com Gabriela, os primeiros contatos que teve com as feministas, durante a década de 1980, que redundaram em entrevistas para jornais e na realização de filmes, foram positivos. Em seus relatos, o quadro foi alterando-se ao longo do tempo, expressando-se, a partir da década de 1990 ora em aberta rejeição, por parte de feministas que se negavam a ouvir as vozes das prostitutas, ora numa relação ambivalente, em que feministas com importante atuação no cenário nacional afirmavam que a prostituição era uma explotação contra a mulher. Ao mesmo tempo, percebiam posições como as de Gabriela Leite, que afirma o exercício da prostituição como escolha e como direito, como inquietante, pois era a expressão de um conceito caro ao feminismo: a autonomia.

De acordo com as entrevistadas, as leituras ambivalentes e negativas sobre a prostituição se ampliam a partir do final da década de 1990. Compreender essa expansão requer considerar as re-configurações do movimento feminista no Brasil que, a partir da re-democratização do país em 1985, envolvem articulações com o Estado e a inserção do feminismo em organizações não governamentais que se disseminavam no Brasil. Essas ONGs obtiveram significativo apoio financeiro de agências multilaterais, particularmente na década de 1990, (Shumaher, 1993; Pinto, 2006).

Segundo diversas autoras, as décadas de 1980 e 1990 remetem a um terceiro momento do feminismo no Brasil, uma fase de intensas discussões sobre os processos de institucionalização, no que se refere à inserção do feminismo no Estado e em ONGs.7 Esse momento é considerado caracterizado pela "profissionalização do movimento", em um processo marcado pelas tentativas de reformas das instituições democráticas que abrange a inserção do feminismo no âmbito governamental. Ele levantou questões em relação à autonomia do movimento (Shumaher, 1993). A força adquirida pelas ONGs feministas suscitou outras questões.

Sonia Alvarez (2009) chama a atenção para as características, compartilhadas em América Latina, do fenômeno da "onguização". Na leitura dessa autora, esse processo envolveu a promoção e aprovação oficial, por parte do neoliberalismo nacional e global, de formas organizacionais particulares e de certas práticas entre as organizações feministas e outros setores da sociedade civil. Ao mesmo tempo, ela considera que essas organizações tiveram um importante papel ao articular campos feministas heterogêneos e em expansão nas décadas de 1990 e 2000, produzindo conhecimento e disseminando discursos feministas.

Neste contexto se difundem leituras sobre a prostituição que envolvem uma apreciação consensualmente negativa quando ela é vinculada ao turismo sexual e ao tráfico internacional de pessoas. A relação entre mulatas brasileiras, prostituição e turismo, está presente nos escritos da feminista negra Lélia Gonzalez (1982) já no início da década de 1980. A leitura dessa relação como turismo sexual e sua vinculação com o tráfico internacional de pessoas, porém, é realizada mais tarde, nas formulações de organizações não governamentais articuladas com o feminismo transnacional, voltadas para a atenção de mulheres de cidades do Nordeste tidas como alvo do turismo sexual. Contudo, essas leituras, assim como as percepções negativas sobre a prostituição, se intensificam a partir da virada do século, no âmbito da ampliação das articulações feministas transnacionais.

A década de 2000 que, segundo algumas autoras, corresponde a uma "quarta onda" feminista, é caracterizada pelo trabalho em arenas paralelas de atuação, no âmbito da sociedade civil e nas fronteiras entre ela e o Estado. Segundo Matos (2010), esse momento está marcado pela institucionalização das demandas das mulheres e do feminismo por intermédio da elaboração e o monitoramente de políticas, assim como pela busca de poder político. Ele se expressaria na criação de novos mecanismos de coordenação e gestão das políticas e na criação de fóruns e redes feministas sob a influência da agenda internacional das mulheres. Finalmente, um dos pontos mais relevantes seria a criação de um novo marco para a atuação do feminismo numa perspectiva transnacional.

Algumas dessas particularidades são analisadas por Sonia Alvarez (2009). Segundo a autora, esse período teria sido palco do surgimento de forças sociais contra-hegemônicas, os movimentos de solidariedade e de justiça global, que se articularam na oposição radical ao regime neoliberal. Essa reação suscitou movimentos de resistência com práticas inovadoras e dinâmicas, que envolveram um leque amplo de atores fora do estado, processos organizacionais nacionais, regionais e globais e redes como o Fórum Social Mundial e a Marcha Mundial das Mulheres contra a Violência e a Pobreza. Novas formas de feminismo popular permitiram que mulheres ignoradas no movimento transformassem sua posição nele mediante a vinculação com lutas globais a favor de justiça social, sexual e racial. Esses feminismos, conjuntamente com o protagonizado por mulheres jovens, que por primeira vez se apresentam como "feministas jovens", com uma agenda diferenciada em relação às gerações anteriores (Papa e Souza, 2009), teriam produzido correntes efervescentes no movimento.

As jovens feministas têm impulsionado uma das ações mais recentes do movimento, a Marcha das Vadias (slut walk) que, fortemente mediada pela web, se organiza em torno da luta contra a violência sexista. Trata-se de ações que têm lugar em vários países, organizadas por coletivos descentralizados, autônomos, à maneira de coalizões entre pessoas e não de agrupações. No Brasil, foram realizadas duas Marchas, em 2011 e em 2012, que adquiriram características específicas em diferentes cidades. Em algumas cidades do estado de São Paulo, de acordo com participantes/organizadoras, o perfil das/os participantes da Marcha é de pessoas na faixa, sobretudo, dos vinte e trinta anos, incluindo alguns homens, hetero e homossexuais, com significativa presença de pessoas que têm estudos superiores. Nelas têm participado integrantes de uma diversidade de agrupações, incluindo coletivos virtuais, como o de blogueiras feministas.

Esse é o contexto no qual, no Brasil, se intensificam a visibilidade de leituras feministas negativas sobre a prostituição e as vinculações entre prostituição e tráfico de mulheres.

 

Articulações: Tráfico de pessoas e feminismos

Em termos da sociedade civil organizada, na virada do milênio, no Brasil, a articulação contra o tráfico de pessoas esteve associada, sobretudo, à pressão dos movimentos de apoio aos direitos das crianças, e não das mulheres (Piscitelli, 2008). Na década de 2000, o movimento contra o tráfico de pessoas cresceu com o apoio financeiro e técnico das agências multilaterais supranacionais ao governo e a organizações não governamentais, em um processo que desembocou na elaboração, em 2005 e 2006, da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Esse processo, com participação da Secretaria Especial de Políticas Públicas para as mulheres, incluiu uma ampla consulta à sociedade (Ministério da Justiça, 2007) que, de acordo com integrantes de organizações de prostitutas, parece ter lhes concedido pouco espaço.

No país, diversos grupos organizados de prostitutas, estão integrados em redes, a Rede Nacional de Prostitutas e a Federação Nacional das Trabalhadoras do Sexo, com posições divergentes em relação à discussão sobre regulamentação/legalização da atividade (Olivar, 2010). Paralelamente, algumas prostitutas estão vinculadas à Pastoral da Mulher Marginalizada, vinculada à Igreja Católica, em cujo seio nasceu o Grupo Mulher, Ética e Libertação, GMEL,8 como proposta de uma organização social contra a proposta de regulamentação da prostituição (GMEL, s/d). De acordo com integrantes das duas redes, elas não foram chamadas para a consulta prévia à formulação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas (Piscitelli, 2008).

Nas discussões recentes, a relevância da articulação entre o governo e as agências multilaterais supranacionais, particularmente o Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e Crimes (UNODC) aparece mais diluída. A nítida força impulsionadora das entidades de apoio aos direitos da criança no debate também se diluiu por que diferentes causas históricas na agenda dos direitos humanos no Brasil passaram a utilizar a linguagem do tráfico de pessoas (Sprandel e Mansur, 2010). Finalmente, por meio da criação de comitês estaduais e municipais de enfrentamento a esse crime e da realização de inúmeros cursos de capacitação e de campanhas, no país e no exterior, foi se produzindo um processo de capilarização e de difusão que conduziu à incorporação da problemática por diversos setores da sociedade.

Ao longo deste processo o tráfico de pessoas se tornou um tema de trabalho de importantes coalizões de mulheres brasileiras. Refiro-me às leituras realizadas nas linhas que, nas grandes articulações feministas nacionais e transnacionais, reagem aos efeitos da globalização sobre as mulheres, escolhendo como um dos alvos preferenciais a mercantilização do corpo. Vale aqui mencionar a Marcha Mundial das Mulheres, que nasceu no ano 2000, vinculando-se ao movimento antiglobalização, reagindo à idéia de que não há alternativa ao neo-liberalismo (Nobre e Faria, 2003), como uma grande mobilização que reuniu mulheres do mundo todo em uma campanha contra a pobreza e a violência.

Nesse contexto, são realizadas vinculações entre prostituição e tráfico de mulheres. Reuniões das quais participei de Feministas Jovens, nos Foritos, em 2007 (Papa e Souza, 2009) e na Marcha Mundial de Mulheres, em 2010, oferecem exemplos da disseminação, entre feministas, dessas vinculações. O registro do painel Prostituição, realizado no 10 de março desse ano em Vinhedo, como parte da Programação, da uma idéia dessas associações e dos pressupostos presentes em posições contrárias à idéia de prostituição como trabalho no Brasil.

O grupo chegou a reunir 35 mulheres. As mediadoras eram uma representante da Marcha de Mulheres do Ceará, uma mulher branca, aparentemente universitária, de uns vinte e poucos anos; uma ex-prostituta do GMEL, grupo vinculado à Pastoral da Mulher Marginalizada, uma mulher negra, de uns 50 anos, de origem popular e uma representante da Pastoral da Mulher Marginalizada. Também estão presentes duas representantes da Sempre Vivia Organização Feminista (SOF) de São Paulo. Integrantes do Movimento de Mulheres Camponesas, de assentamentos de mulheres rurais, do movimento sindical, do movimento de metalúrgicos e do MST também participaram ativamente da atividade.

A ex-prostituta, em pé e no centro, inicia a atividade falando do GMEL, explicando que ele surgiu de um encontro da Pastora, no qual decidiram lutar pela não regulamentação. Ela explica que na visão delas a prostituição é a maior das violências contra as mulheres, que projetos de regulamentação facilitariam a vida dos exploradores, pois seriam descriminalizados, o que facilitaria o tráfico de mulheres. Afirma que o GMEL não é moralista, mas ela sabe do trauma psicológico que sofrem as prostitutas, que muitas precisam fazer isso para comprar leite, que a maioria é negra ou afro-descendente, o que fala de pobreza.

A fala dessa mulher é impactante. Ela tem a autoridade da experiência, de quem foi prostituta e está em contato com as prostitutas. As mulheres sentadas na roda concordam com ela. Em seguida a representante da Pastoral da Mulher Marginalizada e da SOF reforçam a fala da ex-prostituta. Elas afirmam que a prostituição é violência e não se regulamenta a violência, o que é necessário e fazer políticas públicas para melhorar a vida das mulheres. A prostituição, diz a representante da SOF, é uma das principais formas de opressão, inserida em um sistema mundial de prostituição. A regulamentação estimula a demanda e é mais uma engrenagem da violência contra mulheres. E dá exemplos de países que legalizaram a prostituição e não se livraram do tráfico de mulheres.

A representante do Ceará adiciona que a indústria do sexo é muito organizada. Falando a partir da realidade de Fortaleza, diz que não é possível olhar para ela desde um ponto de vista liberal, que não leva em conta o racismo, que as meninas entram na prostituição ainda menores e aos 25 anos estão esgotadas. As pessoas se incorporam na discussão oferecendo exemplos cada vez mais terríveis. Uma participante observa que em Parintins, na Amazônia, a prostituição é de meninas de 10/11 anos, e que aos 16/17 já estão esgotadas. Isso acontece nos barcinhos, uma menina contou a ela que sua virgindade foi vendida aos 11 anos por R$ 200,00.

Outras vozes afirmam que é complicado que as mulheres feministas defendam a regulamentação, pois as feministas devem ser anti-capitalistas e anti-mercantilistas e na prostituição, o mais importante para cada uma, que é o corpo, se torna uma grande mercadoria. E afirmam que a prostituição é violência, pois quem se prostitui não tem opção, essas mulheres vivem embaixo do nível de pobreza.

É colocada em discussão a moção de que a Marcha tenha uma posição contra a prostituição. Isto seria parcela de uma luta maior, que é a luta contra o capitalismo e não há socialismo sem feminismo. As mulheres de base dos diferentes estados se entusiasmam com isto e afirmam, levantando a voz e agitando os braços, que levarão essa moção para suas organizações e bairros.

Diário de Campo, 10/03/2010

Vale destacar alguns dos pontos levantados nesse painel: a identificação da prostituição como violência sexista, a negação ao direito a prostituir-se, com base no argumento da pobreza, da violência estrutural que atinge as mulheres pobres e negras. Outros pontos significativos são a idéia de trauma, sofrimento psicológico e dor vinculados à prostituição, que evocam os aspectos mais eficazes das sensibilizações vinculadas às políticas humanitárias (Fassin, 2007), a exigência de criminalizar o entorno da prostituição e a vinculação entre prostituição e tráfico de pessoas.

Esse trecho de diário de campo mostra como algumas articulações e organizações feministas estão defrontando-se com a discussão sobre prostituição. As tendências mais visíveis tendem a fazê-lo em termos que, evocando idéias abolicionistas, se opõem a considerá-la como trabalho.

 

Abolicionismo no feminismo brasileiro?

Pensar na presença do abolicionismo no feminismo brasileiro requer, antes que nada, considerar em que consiste esse modelo. A jurista Maria Luisa Maqueda (2009) oferece elementos para pensar nesse aspecto traçando as diferenças entre o abolicionismo da segunda metade do século XIX e o atual.

De acordo com a autora, a ideologia abolicionista, intimamente ligada aos primeiros movimentos feministas europeus, tinha como proposta abolir a regulamentação da prostituição presente em diversos países a partir da segunda metade do século XIX. A regulamentação estava organizada através de um amplo dispositivo de controle: pessoal; local; sanitário e policial. As abolicionistas lutaram contra a arbitrariedade médica, policial e religiosa à qual eram submetidas as prostitutas, considerando-se como libertadoras de escravas. Mas, a defesa das prostitutas, tidas como vítimas de um sistema imoral, estava associada à realização de cruzadas de purificação.

A partir de finais do século XIX, o abolicionismo foi alimentado pelas narrativas sobre o trafico sexual de mulheres. A Convenção das Nações Unidas contra o tráfico de pessoas e a exploração da prostituição alheia, de 1949, é considerada um dos documentos mais representativos desse movimento. Maqueda destaca os traços abolicionistas presentes nessa convenção: 1) considerar a prostituição como incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana, pondo em perigo o bem estar do indivíduo, da família e a comunidade; 2) a fusão entre prostituição e tráfico de pessoas; 3) a rejeição a qualquer indício que sugerisse tolerância legal em relação à prostituição; 4) o compromisso de criminalizar o entorno da prostituição e 5) o ponto mais definitivamente abolicionista: considerar quem exerce a prostituição como vítima e, portanto, fora do alcance de qualquer intervenção penal. De acordo com a autora, a criminalização do entorno da prostituição é compartilhada pelas linhas proibicionistas. Mas, a consideração das prostitutas como vítimas, específica do abolicionismo, está associada à idéia de que o consentimento delas é irrelevante, desconhecendo o princípio de autonomia da vontade.

A partir da segunda metade da década de 1970, na confluência entre uma ampliação, diversificação, transnacionalização e relativa normalização da prostituição e a modificação das idéias sobre sexualidade, os discursos abolicionistas se alteram, trocando os antigos argumentos vinculados à moralidade, o pecado e a lascívia por outros, associados à violência contra as mulheres. A prostituição passa a tornar-se símbolo dessa violência e as prostitutas, ainda são consideradas escravas que devem ser libertadas.

O abolicionismo contemporâneo mais radical considera a prostituição como violência sexista, que foram parte de um continuum que se inicia na publicidade, inclui espetáculos, o mercado matrimonial, a pornografia e culmina na prostituição. Nessa visão, a articulação entre patriarcado, estratificação social e a vulnerabilidade, resultado de carências afetivas e de violências físicas e sexuais vividas na infância, explica a prostituição das mulheres. Essa versão de abolicionismo nega qualquer forma de prostituição livre. Nesse contexto nasce outro grande princípio do abolicionismo radical, a negação do direito a prostituir-se tido como contrário aos direitos humanos universais. Nessa linha de pensamento, a prostituição é exploração sexual porque nela se obtém prazer sexual mediante a utilização abusiva da sexualidade de uma pessoa, anulando os seus direitos à dignidade, igualdade, autonomia e bem estar. Por esse motivo, o abolicionismo radical pretende penalizar ao cliente, culpável de violar os direitos humanos das mulheres na prostituição.

No que se refere ao feminismo no Brasil, Corrêa e Olivar (2010) afirmam que nele há uma diversidade de posições, misturando ambivalência e algumas abordagens abolicionistas. Essa diversidade está presente nos resultados desta pesquisa, considerando os depoimentos de feministas e as posições por elas assumidas em diversos encontros públicos presenciados durante o trabalho de campo.

As narrativas de integrantes de organizações feministas sediadas em São Paulo entrevistadas por Andreia Skackauskas (2011), mostram essa heterogeneidade. De acordo com a autora, algumas feministas reiteram idéias com ecos abolicionistas, principalmente na organização Sempre Viva Ação Feminista, SOF e na Marcha Mundial de Mulheres que, vinculada à SOF, extrapola essa organização. Outras manifestam um posicionamento intermediário, afirmando a impossibilidade de se opor às prostitutas organizadas que pretendem regulamentar sua profissão e, no entanto, expressando a dificuldade, como feministas com uma atividade que "torna as mulheres objetos". Outras, como as integrantes do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, afirmam terem separado a discussão sobre prostituição do trabalho com as prostitutas, considerando que o coletivo as atendeu em termos de saúde sexual, na linha de redução de danos, tentando "empoderá-las", sem importar a profissão escolhida. Não deixaram, porém, de disseminar, em cenas de teatro e grupos de discussão, a idéia de que os clientes usam as prostitutas, exercendo os seus poderes de machos.

Outras, finalmente, mostram uma posição, mais "aberta", afirmando a fortaleza e o "empoderamento" de mulheres que a exercem no Brasil, a consciência que elas têm da discriminação da qual são objeto e a percepção das vantagens dessa atividade em relação a outros serviços mal pagos nos quais elas podem estar ainda mais subjugadas. Nessas leituras, que consideram que há uma imensa dificuldade no feminismo em avançar nesse debate, também se incluem perspectivas que situam a prostituição no âmbito do direito de escolha das mulheres e rejeitam a idéia de que a prostituta esteja mercantilizando o corpo e as demais mulheres não: a diferença estaria no moralismo com que é percebida qualquer atividade sexual. E ainda consideram que as prostitutas no Brasil são imensamente controladas, pela Igreja e também pelas organizações não governamentais. De acordo com Skackauskas, porém, essas perspectivas não são necessariamente coincidentes com as dos grupos ou redes nos quais essas entrevistadas estão inseridas.

Essa heterogeneidade parece estar presente também nas novas expressões do feminismo, como a Marcha das Vadias e em publicações feministas alternativas na web. Se em passeatas anteriores à década de 1980, em São Paulo, feministas marchavam afirmando "somos todas prostitutas", slogans freqüentes em Marchas das Vadias realizadas em diferentes partes do país têm sido: "mulher não é mercadoria"9 e "nem santas, nem putas". Contudo, entrevistas realizadas com organizadoras/participantes dessas Marchas em diferentes cidades do Estado de São Paulo, mostram, no marco de uma ampla diversidade e de uma falta de consenso, certo cuidado com o tema. De acordo com uma participante na Marcha da cidade de São Paulo:

O cartaz "Nem santa, nem puta" foi removido após uma reflexão sobre os inconvenientes dessa polarização, [incorporando-se à discussão] que o trajeto da Marcha dever passar pela Rua Augusta (reconhecida como tradicional ponto de prostituição). [Também houve negociações prévias e no momento da Marcha para que palavras de ordem como "somos mulheres e não mercadorias" não fossem usadas ali em respeito às mulheres que ali trabalham, reconhecendo que não havia um acúmulo de discussão e posições coletivas acerca da questão da prostituição.

Segundo uma organizadora da Marcha de Campinas: "O tema da prostituição aparece com um tema a ser discutido, mas caminha para a idéia da importância do protagonismo das mulheres prostitutas dentre desse debate". A essas manifestações é necessário somar as idéias difundidas pela imprensa alternativa na web, na qual jovens feministas reconhecem a prostituição como trabalho.10

Levando em conta o conjunto do material, dois pontos a serem destacados é que as feministas entrevistadas, inclusive as que manifestaram posicionamentos contrários à prostituição, respeitam às associações de prostitutas, como grupos de mulheres organizadas. O segundo é que embora parte das entrevistadas que se integram em organizações e articulações estabelecidas considere urgente resolver o problema do tráfico de pessoas, várias afirmaram que nem o tráfico nem a prostituição são relevantes na agenda feminista brasileira atual. Essas opiniões coincidem com a percepção da pessoa que, em 2010, era Coordenadora-Geral de Acesso à Justiça e Combate à Violência da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Segundo ela, no que se refere ao tráfico de pessoas, a Secretaria encontrava poucas parcerias entre as feministas.11

A questão que se coloca então é como, no âmbito dessa heterogeneidade de posições entre as feministas, algumas vozes abolicionistas adquirem destaque no debate público? A experiência de participação numa reunião no âmbito governamental contribui para refletir sobre essa visibilidade.

 

Abolicionismo no Estado?

Em abril de 2008, a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres realizou um Workshop sobre Prostituição Feminina, com o objetivo de planejar posteriormente uma Conferência Nacional (Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, 2008a). Entre as pessoas convidadas havia técnicos de diversas áreas do governo, representantes de diferentes ministérios e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, de organizações feministas, de organizações de trabalhadoras sexuais, do Coletivo Nacional de Transexuais e acadêmicos/as. Apesar de ter sido convidada, a Rede Nacional de Prostitutas não participou, mas estavam presentes representantes da Federação Nacional das Trabalhadoras do Sexo, organização que se opõe à regulamentação da prostituição.

No que se refere às organizações feministas, havia representantes das grandes redes e articulações feministas, como a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB),12 a Marcha Mundial de Mulheres, a Rede Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos e algumas ONGs, como o Coletivo feminista de São Paulo. Nesse espaço governamental, no qual integrantes de ministérios e técnicos do governo tinham aparentemente posições abertas e moderadas no que se refere ao debate sobre prostituição, "as feministas" abolicionistas adquiriram destaque. Como isto foi possível?

As representantes do Coletivo Nacional de Transexuais consideraram que era necessário alterar o status da prostituição para que seja uma profissão escolhida como outras. A Federação Nacional de Trabalhadoras do Sexo se opôs a esta posição. Integrantes da Rede Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, independentemente de suas posições pessoais, declararam que, nesse âmbito, "preferiam ouvir", particularmente no que se refere à regulamentação da prostituição. E a Federação foi apoiada mais ou menos diretamente por todas as representações feministas.

As integrantes da Marcha Mundial de Mulheres explicitaram o apoio afirmando a noção de prostituição como exploração do corpo e da vida das mulheres, posicionando-se como anti-regulamentaristas e anti-mercantilização de todas as esferas da vida. Além disso, elas insistiram na preocupação na relação entre prostituição e tráfico de mulheres para exploração sexual e levantaram a questão da necessidade de punição para os usuários da prostituição. A representante da Articulação de Mulheres Brasileiras afirmou que essa organização não assumia diretamente a defesa de uma linha ou outra, porém, considerava que a prostituição está inserida num marco de opressão e exploração transnacional na indústria do sexo. E considerou ainda que as mulheres que optavam por essa atividade não têm condições reais para a opção nesse contexto de opressão.

No âmbito desse debate, a diversidade presente no feminismo brasileiro resultava apagada. As posições abolicionistas, coesas e utilizando como estratégia a vinculação entre prostituição e tráfico de pessoas, se tornavam mais visíveis. Do meu ponto de vista, essa visibilidade é possível porque esse posicionamento tem eco em outros análogos que, presentes no âmbito do Estado, extrapolam o debate feminista.

Considerando algumas posições do governo brasileiro em diferentes âmbitos das Nações Unidas e a formulação do (Primeiro) Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, Corrêa e Olivar (2010) afirmam que não é possível concluir que as políticas brasileiras estejam adotando uma posição abertamente abolicionista e criminalizante. Esses autores também afirmam que as posições abolicionistas, suaves e extremas, circulam no plano social, no Brasil, inclusive entre as feministas, contrastando com a neutralidade de um amplo leque de atores situados na alta arena política. Os resultados desta pesquisa, somadas a trabalhos realizados nos últimos anos acompanhando o desenvolvimento da discussão sobre prostituição/turismo sexual e tráfico de pessoas me conduzem a problematizar essas afirmações.

Um dos problemas presentes nas discussões e políticas do Estado sobre Tráfico de pessoas é a legislação brasileira. O governo brasileiro ratificou o Protocolo de Palermo em março de 2004. Contudo, o Código Penal Brasileiro no que se refere ao tráfico com fins de exploração sexual não é exatamente coincidente com o Protocolo. No Código Penal (Cap V, Art. 231, incisos 1, 2 e 3), afinado com a Convenção abolicionista das Nações Unidas de 1949, era considerado tráfico (de mulheres) promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro, prevendo multas e penas adicionais nos casos nos quais há emprego de violência, grave ameaça ou fraude e fins de lucro.

A Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005 modificou o Capítulo V do Código Penal, tratando de tráfico internacional de pessoas (e não mulheres) e adicionando disposições relativas ao tráfico interno de pessoas (isto é, no âmbito do território nacional). E as alterações legais mais recentes, Lei nº 12015, de 7/08/2009, modificaram essas disposições estendendo as penas para aqueles que agenciem, aliciem ou comprem a pessoa traficada assim como, tendo conhecimento dessa condição, a transportem, transfiram ou alojem. Essas modificações não alteraram o espírito abolicionista do Código Penal, no sentido de criminalizar todo o entrono da pessoa que se prostitui.

Segundo a promotora Ela Wiecko V. de Castilho (2006) o termo "facilitar" presente no Código Penal, abrange meios tais como fornecimento de dinheiro, papéis, passaporte, compra de roupas ou utensílios de viagem. E o Código Penal, seguindo outro dos princípios abolicionistas, não considera que o consentimento exclua o crime. Dessa maneira, considerando que, na prática, as/os migrantes e/ou a pessoas que se deslocam para exercer uma atividade requerem e recebem ajuda, quase qualquer estilo de deslocamento para trabalhar na indústria do sexo pode ser lido como tráfico. E diferentes pesquisas apontam para a utilização das alterações legais relativas ao tráfico de pessoas como instrumentos para reprimir a prostituição (Oliveira, 2008; Teixeira, 2008).

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas segue a definição do Protocolo de Palermo (cap 1, art. 2). No entanto, o art. 2-4, reitera a formulação do Código Penal remetendo à mera intermediação, promoção ou facilitação no deslocamento, alojamento ou acolhimento de pessoas para fins de "exploração" - termo não definido. Isto quer dizer que, embora siga o Protocolo de Palermo, essa Política incorpora aspectos abolicionistas evocados pelo Código Penal.

No plano de distribuição da justiça, em certas instâncias é operacionalizada a definição de tráfico de pessoas do Protocolo de Palermo, mas em outras impera a definição de tráfico de pessoas do Código Penal. Isto sucede em processos que não reconhecem a capacidade das mulheres de exercer o direito sobre o seu próprio corpo, negam a possibilidade de considerar a prostituição como trabalho, pensando-a como elemento que provoca a degradação moral e familiar e estigmatizam as prostitutas como forma de estabelecer o lugar das mulheres na sociedade (Castilho, 2008).

É importante observar que, até o momento, não tem tido sérios movimentos, no âmbito do Estado, em relação a medidas abolicionistas extremas, como a criminalização aos clientes, embora essa idéia não esteja ausente das discussões. Ela foi levantada por uma promotora no workshop realizado no âmbito da discussão da Política Nacional do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.13

Em encontros como o Workshop sobre Prostituição Feminina, os representantes do Estado aparecem em posições neutras, mais neutras que as de várias feministas. Porém, os procedimentos seguidos para escolher as feministas a serem interlocutoras nesse debate sobre políticas públicas voltadas para a prostituição, seguindo a idéia de critérios de representatividade, privilegiou apenas algumas vozes.

Paralelamente, no âmbito dessa aparente neutralidade, as iniciativas de alguns grupos feministas e de algumas prostitutas parecem ser privilegiadas pelo Estado. Nesse ponto, chamo a atenção para o material gráfico produzido pelo GMEL sobre "o marco legal em defesa das mulheres em situação de prostituição". Esse material foi produzido em parceria com a Pastoral da Mulher Marginalizada, com o apoio de uma organização holandesa e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. À maneira de uma história em quadrinhos, a través do diálogo entre duas prostitutas, ele apresenta 3 modelos legais relativos à prostituição, abolicionismo, regulamentarismo e proibicionismo. E, numa particular leitura do termo abolicionista, se posiciona abertamente como tal, afirmando que isso significa que "o governo tem que garantir alternativas para quem quer deixar a prostituição e prevenir a entrada de outras com políticas públicas adequadas. Mas, isso não aconteceu no Brasil, após sessenta anos da Convenção Abolicionista Internacional" (GMEL, s/d).

 

Considerações Finais

Concluindo, gostaria de refletir sobre as contribuições que a antropologia oferece para abordar este debate. Uma importante contribuição é oferecer ferramentas para mapear as noções e pressupostos presentes na arena política, articulando-os aos diferentes grupos de interesse. Essa tarefa, aparentemente neutra, exige uma posição das/os pesquisadoras/es. Porque se a antropologia contribui para relativizar noções, a saída não é um perspectivismo absoluto, no qual qualquer noção seja equivalente. A questão é, como assinalam Rapport e Overing (2000), contextualizar sem relativizar, analisando como noções de direito são produzidas, possuídas e transformadas. E, sem ignorar a trama de desigualdades permeadas por gênero no marco do qual se produzem essas discussões, é evidente que nesses embates prevalecem algumas narrativas sobre os direitos humanos. Aqui a antropologia feminista oferece importantes ferramentas para enfrentar esta discussão.

Sabemos que, em diferentes momentos e abordagens, a antropologia feminista enfrentou-se com o problema da diferença, começando com um questionamento ao androcentrismo presente na disciplina, continuando com uma leitura crítica da categoria universal mulher e finalmente propondo uma leitura do social a partir das intersecções entre gênero e outras categorias de diferenciação. E essas críticas foram formuladas no âmbito do questionamento às hegemonias culturais e aos problemas que resultam de impor os próprios pontos de vista a outras culturas. Esses elementos são importantes para pensar nas diferentes posições ocupadas nesta arena, na qual configurações políticas específicas contribuem para tornar menos visíveis algumas vozes, tanto de feministas como de prostitutas.

 

Notas

1 A pesquisa Tensões no feminismo contemporâneo, desenvolvida no Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/Unicamp, apoiada pelo CNPq, foi concluída em janeiro de 2011, na qual participaram Iara Beleli, Andressa Passeti de Moura e Andréia Skackauskas Vaz de Mello. Agradeço a elas as discussões que informaram muitas das idéias aqui presentes; a Alinne Tavares, Carolina Branco e Regina Facchini suas contribuições para pensar na Marcha das Vadias, a Ana Fonseca, José Miguel Olivar e Adriana Vianna pelos comentários e sugestões bibliográficas. No estudo foram entrevistadas 40 pessoas, incluindo agentes vinculados ao Estado e ativistas feministas em São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, foram realizadas observações em diversos encontros feministas e em encontros promovidos pelo Estado. 

2 O primeiro desses momentos remete, no século XIX, à luta pela abolição da escravatura, conjuntamente com propostas de educação e emancipação da mulher (Teles, 1993) e, posteriormente, nas primeiras décadas do século XX, à luta pelo voto feminino.

3 Entrevista realizada com Maria Lygia Quartim de Moraes em Campinas, em 2010.

4 Primeiro Concurso de Dotações de Pesquisa sobre Mulheres, 1978.

5 Filme Mulheres da Boca, de Cida Aidar e Inês Castilho, de 1981; outros filmes de feministas sobre o tema nesse período foi Beijo na Boca, dirigido por Jacira Melo, SP, em 1987 e, na década de 1990, Amores de Rua, Curta-metragem / Sonoro / Documentário, 1994, Rio de Janeiro, Direção: Eunice Gutman.

6 Entrevista realizada em Rio de Janeiro, em 2010.

7 Nela também se destacam as novas articulações dos movimentos de mulheres aglutinadas em torno das diferenças entre elas (Pinto, 2003; Matos, 2009; Iraci, 2005; Gonçalves, 1982; Goldberg, 1982; Carneiro, 1985; Facchini, 2005).

8 O grupo surgiu no XI Encontro da Pastoral da Mulher Marginalizada em 2005.

9 Entrevista realizada com Carolina Branco, setembro de 2012.

10 Ver Marília Moschkovich, O feminismo em disputa, in http/www.outraspalavras.net/2012/03/28/o-feminismo-em-disputa/

11 Entrevista com a Coordenadora-Geral de Acesso à Justiça e Combate À Violência. SPM, realizada em 2010.

12 A Articulação de Mulheres Brasileiras, criada na metade da década de 2000, articulando organizações de mulheres de todos os estados brasileiros e, posteriormente dos fóruns estaduais de mulheres, vinculada a diferentes partidos políticos, e integrada em redes internacionais SUL-SUL.

13 Realizado na Secretaria Nacional de Justiça, no 29 de junho de 2006.

 

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