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Cuadernos de antropología social

versión On-line ISSN 1850-275X

Cuad. antropol. soc.  no.44 Buenos Aires dic. 2016

 

ARTÍCULOS

Feira, forma, dom. Assimetrias da sociação numa feira de Belém

 

Market, Form, Gift. Asymmetries of sociation in a market in Belém (Amazon)

Mercado, forma, don. Asimetrías de la sociación en un mercado en Belém (Amazonia)

 

Marina Ramos Neves de Castro* y Fábio Fonseca de Castro **
* Doutoranda em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil. Correo electrónico: mrndecastro@gmail.com.
** Doutor em Sociologia, Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil. Correo electrónico: fabio.fonsecadecastro@gmail.com.

 


Resumo
O artigo descreve os processos de socialidade presentes numa feira de Belém, capital do estado do Pará, na Amazônia brasileira, buscando refletir sobre práticas de reciprocidade e processos de assimetria ali presentes. O trabalho é resultado de uma investigação etnográfica de oito meses. A perspectiva etnográfica do artigo nos leva a uma exposição interpretativa da interação social e à sua descrição como dinâmica intersubjetiva. Observando as estratégias de troca e sociação entre feirantes, fregueses e os demais indivíduos presentes na feira, procura-se compreender a reciprocidade nos seus aspectos assimétricos e a própria feira enquanto forma social. Procuramos um diálogo com as reflexões de Georg Simmel e de Marcel Mauss percebendo que esses autores priorizam, em suas análises, a dinâmica relacional do fato social. Acompanhando as sociações dos sujeitos sociais presentes no espaço da feira -comerciantes, fregueses e outros agentes, dentre funcionários públicos e transeuntes- procuramos entrever a complexidade do processo intersubjetivo. É em função dessa dinâmica de intersubjetividade que refletimos sobre as formas da reciprocidade e do dom na vida quotidiana da feira.

Palavras-chave: Feira; Dom; Reciprocidade; Sociação; Intersubjetividade

Abstract
The article describes sociability processes in a market in Belem, Para state's capital, in the Brazilian Amazon, seeking to reflect on reciprocity and asymmetry processes present there. The article is the result of an eight-month ethnographic investigation. It's ethnographic perspective leads to an interpretation and description of social interaction as intersubjective dynamics. By observing the trading strategies and associations between merchants, customers and other individuals present at the market, we seek to understand reciprocity in its asymmetric aspects and the market itself as a social form. We aim to establish a dialogue with the reflections of Georg Simmel and Marcel Mauss, who in their analysis prioritize the relational dynamics of social reality. Looking into the relations of social subjects within the fair -traders, customers, public officials, among other stakeholders- we seek to glimpse the complexity of the inter-subjective process, reflecting on forms of reciprocity and gift in everyday life of the market.

Key words: Fair; Donation; Reciprocity; Sociation; Intersubjectivity

Resumen
El artículo describe los procesos de sociabilidad presentes en una feria de Belém, capital del estado de Pará, en la Amazonia brasileña, y trata de reflexionar sobre las prácticas de los procesos actuales de reciprocidad y de asimetría de allí. El trabajo es el resultado de una investigación etnográfica de ocho meses. La perspectiva etnográfica del artículo conduce a una exposición explicativa de la interacción social y su descripción como dinámicas intersubjetivas. A partir de la observación de las estrategias comerciales y de las relaciones entre comerciantes, clientes y otras personas presentes en la feria, tratamos de entender la reciprocidad en sus aspectos asimétricos y a la propia feria como una forma social. Buscamos un diálogo con las reflexiones de Georg Simmel y Marcel Mauss, creyendo que estos autores dan prioridad, en sus análisis, a la dinámica relacional de la realidad social. Mirando las relaciones de los sujetos sociales presentes en la feria -comerciantes, clientes, funcionarios públicos y otros-, tratamos de vislumbrar la complejidad del proceso intersubjetivo. Desde esta dinámica intersubjetiva se reflexiona sobre las formas de reciprocidad y de la dádiva en la vida cotidiana de la feria.

Palabras clave: Feria; Donación; Reciprocidade; Sociabilidad; Intersubjetividad


 

Introdução

Este artigo resulta de uma observação de campo de oito meses, tempo em que convivemos com o cotidiano da feira do Guamá, em Belém. Esse período se divide em dois momentos: cinco meses em que a feira funcionou de forma provisória, durante a reforma do seu prédio principal, e três meses posterior à conclusão dessa obra. Os dois períodos foram separados por um intervalo de três meses e a observação se deu entre os anos de 2011 e 2012. O método utilizado foi o da etnografia, pois compreendemos que ele, juntamente com o suporte da observação participante, das entrevistas formais e informais, assim como de conversas coloquiais, junto aos feirantes -estas gravadas, em suporte digital, com um pequeno gravador de mão, muitas vezes mantido pendurado no pescoço do pesquisador, conferindo naturalidade e versatilidade no uso do equipamento para que o mesmo, apesar de visto pelos entrevistados, não causasse nenhum incômodo- nos propiciavam um olhar "de perto e de dentro" (Magnani, 2002) mais sensível e perceptível para o desenvolvimento do estudo proposto.

Não vivenciamos o momento da passagem do provisório ao "definitivo", mas acompanhamos a experiência dos feirantes e do universo da feira: os fornecedores, fregueses, frequentadores cotidianos, comércios da proximidade e os entrepreneurs de rues como Bazabas (1997) identifica os trabalhadores que atuam no espaço público, sem terem estabelecimento fixo, ou seja, os vendedores e prestadores de serviços ambulantes, de toda sorte, que vendem comida, roupa e qualquer forma de utensílio e prestam pequenos serviços, atuando como amoladores de facas, carregadores, etc.

O que nos motivou foi a proposição de compreender a cadeia de socialidades estabelecidas nesse espaço na sua "forma social" e por meio dos procedimentos de troca na sua dimensão simbólica, enquanto dom e enquanto interação assimétrica.

Nessas proposições se reconhecerá o pensamento de Simmel e de Mauss. Não é evidente a aproximação desses dois autores, pois seus trabalhos se produzem em planos epistemológicos diferentes. Porém, se o ensaiamos, é porque percebemos que os dois autores priorizam, em suas análises, a dinâmica relacional do fato social. Partilhamos essa compreensão com Papillaud (2002), que afirma que ambos, seguindo uma inspiração análoga, sugerem que, em ciência social, o estudo porta menos sobre o indivíduo e o grupo, que sobre a sua existência enquanto processo sociocultural (Papilloud, 2002).

O artigo procura fazer uma descrição dos processos de sociação1 presentes na feira do Guamá, discutindo, em seguida, a maneira como as relações sociais aí presentes ilustram a forma social da feira e, também, os usos da troca enquanto dádiva - ou seja, numa perspectiva de que, embora o dom não seja sem interesse, nem tudo, no interesse, é redutível ao ganho, superando o "utilitarismo da compra e venda de mercadorias" (Golçalves e Abdala, 2013: 12). A perspectiva etnográfica do artigo nos leva a uma exposição compreensiva, senão mesmo interpretativa e, nesse sentido, à tentativa de valorizar a dimensão endógena dessa experiência social que é a troca, numa feria urbana.

A feira do Guamá é um espaço territorial complexo, formado por um prédio "antigo", hoje destinado à venda de farinhas, de um prédio "novo" -o espaço mais amplo do lugar, no qual transcorreu a lenta reforma referida, comumente conhecido como mercado de carne- e pelo comércio de vizinhança, que envolve calçadas e prédios nas ruas próximas, onde estão abrigados pequenos vendedores formais e informais e comércios importantes, que agregam farmácias, lojas de materiais de construção, de roupas e mesmo um supermercado, assim como aqueles entrepreneurs de rues, já referidos acima. Essa feira é o ponto de convergência do bairro de mesmo nome, o mais populoso de Belém, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), e um referencial urbano que remonta ao início do século XX.

Embora nossa observação tenha tido um caráter etnográfico, de imersão, e tenha recorrido a procedimentos fenomenológicos de interpretação da experiência social vivencial dos sujeitos observados, o que desejamos discutir, aqui, é uma dinâmica que julgamos universal, posto que perceptível, supomos -ainda que com as óbvias variações- ao espaço universal ao qual chamamos feira.

Pessoas, trocas, dom

Percorrendo a feira se ouvirá, a todo instante, um apelo comunicativo comum, cordial e respeitoso, que demonstra a disponibilidade para servir e para interagir (Castro, 2013). Esse apelo tem variações, mas uma de suas formas parecia se destacar. Por todos os lados ouvíamos: "Diga freguesa", "Diga freguês". Partimos dessa expressão corriqueira, cotidiana e basilar de toda interação na feira para refletir sobre o que, nesse ambiente, significa a associação das pessoas. Com efeito, a observação das interações sociais que ocorrem na feira nos reporta a duas categorias principais às quais pertence a maioria dos indivíduos que por lá circulam: a dos feirantes e a dos fregueses. Os feirantes são distribuídos em relação à sua especialidade: açougueiros, peixeiros, farinheiros, verdureiros, erveiros, etc, com suas especificações de gênero e com seus distintos processos de identificação, comunicação, interação.

Já os fregueses se dividem em duas outras categorias, igualmente amplas e numerosas, a dos fregueses habituais do lugar -ou seja, os fregueses propriamente ditos- e a daqueles eventuais, ou ao menos não tão habituais, que aqui chamaremos, com intuito de distingui-los dos primeiros, de consumidores. Os primeiros são bem conhecidos dos feirantes e participam da vida comum de maneira peculiar, contribuindo para a intensificação das trocas, da circulação e, igualmente, da instituição do crédito. Eles tendem a permanecer mais tempo no espaço e a trocar informações, dialogar com mais vagar e, eventualmente, trocar conteúdos afetivos, como carinhos e palavras de conforto, incentivo e, também de jocosidade. Os segundos, os fregueses eventuais, trocam menos. São trazidos pela intenção de comprar alguma coisa e o fazem com mais objetividade, mas muitas vezes acabam integrando com os comerciantes e reproduzindo as formas da socialidade. Como foi observado por Vedana (2004, 2008), Gonçalves e Abdala (2013), Castro (2013), Silva e Rodrigues (2014), Souza e Rodrigues (2014) e Santos e Leitão (2014), há certa trivialidade nas formas de sociação que se estabelecem nas feiras, mesmo porque, como dizem Gonçalves e Abdala, "esta modalidade de comércio prima sempre pela pessoalidade nas relações" (Gonçalves e Abdala, 2013: 4). Leitão, a propósito do mercado do Ver-o-Peso, observa essas formas de socialidade, com seus tecidos de impessoalidade, observando que as feiras conformam redes que ajustam as assimetrias presentes nas relações (Leitão, 2010).

Os feirantes do Guamá tratam a todos os seus clientes com o vocativo "freguesa/freguês", independente do grau de fidelidade, proximidade ou mesmo intimidade que haja na relação. É uma forma de cortesia, associada ao ritual da venda e ao desejo de vender: para vender é preciso usar da cortesia. Porém, como percebemos, mesmo tratando a todos com esse vocativo, há uma diferenciação entre eles que sempre está presente e que reporta, justamente, as gradações de fidelidade, proximidade ou intimidade que os unem a seus clientes. Por isso, aqui, fazemos a distinção entre os fregueses propriamente ditos -quando indagamos aos feirantes sobre estes, eles foram representados de maneira variada: "freguês de verdade", "freguês antigos", "freguês nem sei de quando", "freguês de sempre"- e os consumidores eventuais, que mesmo recebendo o tratamento vocativo, são percebidos de maneira diferenciada.

As duas categorias se misturam, se superpõem: os fregueses dos peixeiros podem ser consumidores das erveiras, por exemplo. São categorias tipificadas ocupadas por sujeitos sociais em suas interações -e, assim, processos de identificação-, e não condições inerentes a esses sujeitos, ou seja, identidades, na acepção tradicional do termo.

Na sua cotidianidade esses indivíduos, eventualmente, praticam infidelidades de compra, que são acompanhadas à distância, mas atentamente, pelos feirantes e, não raro, denunciadas por outros feirantes, geralmente por meio do espírito de galhofa, de deboche, de brincadeira, onipresente entre os feirantes. Em nossa observação, nos surpreendemos com esse processo, mas percebemos o quanto ele está presente no cotidiano da feira. Afinal, o que lá não escapa desse ciclo complementar de fidelidade e infidelidade que é o comércio? São categorias paralelas e complementares, que se desviam e se reencontram a todo instante.

Essa dualidade nos remete ao uso que Simmel faz das assimetrias sociais no seu método analítico. Lembrando que a ideia de uma "doutrina simmeliana da assimetria" é um rótulo criado por Levine (1989) para entender a variedade de abordagens que o autor utiliza em seus trabalhos (Backhaus, 1998), podemos perceber que sua percepção do processo social não se faz sem a percepção das dinâmicas de polarização assimétrica por meio das quais os indivíduos mediam suas relações.

Segundo Vandenberghe (2005) a sociologia simmeliana das formas começa a ser feita por meio da percepção das polaridades presentes em uma relação social (Vandenberghe, 2005). Inventariar essas polaridades constitui a pista fundamental para a percepção do processo de sociação que envolve os indivíduos e, assim, das formas sociais. Essa percepção é partilhada por Deroche-Gurcel (1998) em sua discussão sobre o método simmeliano e, com efeito, esse procedimento está presente em vários momentos na obra de Simmel; por exemplo, no seu estudo sobre a moda (Simmel, 1995), no qual ele observa como o sentido de "moda" agrega a tendência a imitar o grupo com o desejo de se distinguir dele. Backhaus discute como essa "doutrina simmeliana da assimetria" procede do pensamento de Kant sobre a polaridade forma-conteúdo, considerando que "Simmel maintains that both form and content are presentational moments (only separable through abstraction) by which the sociological observer is put in a relationship with 'the things themselves', the interrelations of associates" (Backhaus, 1998: 261-262).2

Quando olhamos para a interação entre os feirantes e entre estes e toda a variedade de seus fregueses, percebemos como toda a vida social da feira está construída sobre essas e outras assimetrias, que compreendemos como práticas de tipificação da vida social, ou melhor, como interações que se produzem a partir de formas sociais.

As duas categorias tipificadas gerais dos interagentes da feira se completam por meio de outros grupos de indivíduos que ocupam um lugar híbrido entre feirantes e fregueses: os fornecedores, os marreteiros da economia informal, os ambulantes e os "ficantes", que são as pessoas que, no falar da feira do Guamá, referem os indivíduos que vêm à feira sem objetivo específico de compra; simplesmente para interagir fora de uma prática de comércio, como conversar com amigos ou pedir esmolas. Dentre os ficantes, há uma relativa riqueza de tipos humanos: os ficantes propriamente ditos, que são aqueles que param na feira para conversar, comer e beber e também os mendigos, os "bêbados" frequentes, as prostitutas etc. Não faltam também, dentre os ficantes, os "loucos", categoria localmente usada para referir os indivíduos que sofrem de algum distúrbio mental e que perambulam pela feira, tem-na como sua casa e lá dormem, comem, relacionam-se. Todos os mercados e feiras tendem a possuir essas categorias e a produzir categorizações desse tipo para identificar os seus sujeitos. Silva e Rodrigues observam essa peculiaridade em relação à feira de artesanato realizada na Praça da República, também em Belém (Silva e Rodrigues, 2014). Correa e Leitão assim como Campelo, observam a mesma dinâmica no mercado do Ver-o-Peso e seu "universo" constituinte particular (Correa e Leitão, 2010; Campelo, 2010).

É preciso, também, referir os funcionários dos pequenos e grandes comércios e aqueles que desempenham funções públicas, como o administrador do mercado, os policiais, os guardas de trânsito e os fiscais de comércio.

As interações desses indivíduos, aliás, também produz identificações sociais, qualificativos e vocativos que, por vezes, convergem em categorias eventuais, usadas pelos feirantes para nomear alguns de seus colegas, alguns fregueses e alguns dos outros indivíduos presentes no território da feira, tal como os "Tufões", as "Carminhas",3 as "sul-americanas-da-América-do-Sul", os "anormais-do-brega", os "cornos" de toda sorte, as "Xakiras" de toda graça e os incluídos, desgraçadamente, nas infames categorias das "chupadoras-de-pica", das "cavalas-de-feira", dos "cu-sem-dono", dos "corno-flash". Uma classificação que se produz a partir dos programas das rádios locais, da cultura musical do circuito bregueiro de Belém, das mensagens evangélicas, da umbanda e da mina, das telenovelas nacionais e da música pop internacional. Uma troca, enfim, que segue o mesmo pressuposto do ciclo complementar de fidelidade e infidelidade da troca, desse comércio nem sempre centrado no dinheiro, ou na vantagem, e que também se dissemina no dar, no dom, na dádiva.

A feira é algo que ultrapassa o espaço físico do mercado. É o espaço de troca por excelência, o que é óbvio, mas que não dispensa compreender que se trata de trocas que não se fazem, exclusivamente, contra o dinheiro: quem vai à feira o faz para trocar algo -dinheiro por mercadoria, mercadoria por mercadoria, serviço por mercadoria, serviço por dinheiro, serviço por serviço- o faz para trocar, para estabelecer uma relação cuja objetividade está na troca. Porém, o ato de trocar não pode ser reduzido à sua dimensão econômica. É mais que isso, porque envolve a dimensão da própria interação social: por meio dos objetos trocados (o dinheiro, a mercadoria, o serviço, etc.) ocorrem as permutas mais amplas da relação, do pertencimento comum e da comum identificação que constituem o ser social intersubjetivo. Como diz Papilloud,

l'échange renvoi concrètement au processus de circulation qui caractérise la relation humaine. Il ne trouve pas sa place entre les hommes et les choses. Il est ce entre même dont la fonction revient à concrétiser le caractère relationnel des rapports humains en leur donnant la vivacité des Wechselwirkung (Papillaud, 2002: 87).4

Ou seja, para que a relação humana se realize, é preciso que esteja colocada a possibilidade da reciprocidade. E é assim que uma troca envolve mais que o objeto trocado, pois pressupõe a continuidade das interações sociais, tanto daqueles envolvidos na troca propriamente ocorrida como nas trocas possíveis em todo o grupo. A vivacidade das interações (Wechselwirkung) que Simmel procura observar constituem, analogamente, a vivacidade do dom descrita por Mauss, que o considera do ponto de vista de seu "caractere voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, mas em verdade obrigado e interessado" (Mauss, 1991: 147). O dom, aqui, equivale à troca intersubjetiva: à continuidade da relação e à generalização de uma dada relação em direção à totalidade das relações sociais presentes num dado grupo. Segundo Mauss, o dom estabelece "graus de obrigação" (Mauss, 1991), ou seja, padrões de reciprocidade. Tal como Simmel, essas interações se dão, igualmente, num plano intersubjetivo e se estendem para além de uma dada materialidade (o objeto trocado) para alcançar o conjunto das relações sociais.

Nossa sublimação, ou mesmo superação, da função e do caráter econômico, presentes nas relações sociais, baseia-se na percepção de que se pode refletir sobre os fenômenos sociais sem, necessariamente, interpretá-los a partir de suas dinâmicas econômicas, pois, como afirma Michel Henry, a economia não constitui uma realidade última, "o fundamento", "a determinação em última instância" - sendo mesmo uma forma de "alienação da vida real" (Henry, 1976). Nessa perspectiva, os fenômenos de socialidade presentes numa feira, ainda que possuam a sua dimensão econômica, evidentemente, podem ser pensados sem serem tomados como uma conseqüência delas. Tratá-los a partir de um viés econômico seria, como colocou Homs "prendre la forme d'une anthropologie des divers fétichismes sociaux" (Homs, 2012: 144).5 Nesse sentido, cabe lembrar, também, o que diz Collin a esse propósito, quando afirma que "l'économie est le lieu de l'irrealité ou plus exactement un dédoublement inversé de la réalité… l'économie n'est pas le fondement, la réalité ultime, la 'détermination em dernière instance'… l'économie est au contraire l'aliénation de la vie réelle" (Collin, 2011: 1).6

Com efeito, encontramos no pensamento de Maurice Godelier um paralelo com o de Homs, quando este observa que não é o sistema econômico que engendra a sociedade, mas sim as relações político-religiosas (Bert, 2007; Godelier, 2003, 2010), pois o poder, imaterial conformador de uma sociedade, "n'est pas toujours lié à l'argent. Il est d'abord lié au prestige, à la connaissance mystique, c'est-à-dire à celles des initiations… L'autorité d'un individu ne vient pas forcément de la richesse, mais vient d'autre chose, que l'on appellerait, nous, 'l'immatériel'" (Bert, 2007: 7).7  

Nessa mesma direção, analisando as relações que se estabelecem no mercado do Ver-o-Peso, em Belém, entre os pescadores e balanceiros e os demais agentes que lidam com o pescado, Corrêa e Leitão observam que

há uma relação além da economia, chegando as relações de amizade, parentesco e à solidariedade, lealdade, parceria, confiança e informalidade. […] Os recursos envolvidos nas negociações acabam , assim, passando de mão em mão, numa relação de dependência entre todos os que compõe a rede (Corrêa e Leitão, 2010: 125-126).

Efetivamente, no contexto de uma interpretação dos processos de sociação, nos parece importante, senão mesmo necessário, uma superação do caráter econômico da feira, pois entendemos que ele limitaria nossa análise, além de, eventualmente, distorcê-la, provocando equívocos em nossa percepção e interpretação.

Retornemos, a um sábado qualquer na feira, para pensar essas questões. Nas manhãs de sábado a feira do Guamá é particularmente agitada. É o dia em que a maioria das pessoas costuma fazer suas compras. Ali, a balbúrdia impera: as vozes altas e estridentes das mercadorias sendo oferecidas, o diálogo constante entre os feirantes e deles com os fregueses, os risos, gracejos, galhofas, jocosidades e, por fim, os múltiplos sons de rádios, músicas gravadas, do fluxo de automóveis e ônibus naquela esquina engarrafada pelo sinal de três tempos e do apito dos guardas de trânsito tentando disciplinar algo daquele fluxo contínuo e caótico, aquilo que podemos compreender como imagem sonora (Vedana, 2008) que contribui para a conformação da sociação.

E, em meio ao caos de ruídos, um caos comunicativo, se assim se pode dizê-lo, era também possível prestar atenção em interações mais amenas que se estabeleciam entre todos, mas particularmente na interação da feira, na sua autoprodução simbólica: o diálogo entre feirantes e clientes. Uma interação cordial, doce e com palavras bem aparadas, com palavras sempre repetidas no trato cotidiano: "Diga freguesa", "Diga querida", "Diga amô", "Posso ajudá?". Recuperamos essas palavras para entender como, nelas, o dom e a reciprocidade estão presentes.

Possível perceber o tom mais sóbrio dessas palavras; sóbrio e cordial, baseado na construção social de uma gentileza, de uma polidez, que está na raiz da troca simbólica vivenciada no caos da feira. Essas palavras gentis, repetidas à exaustão, pareciam romper a polifonia paralela dos adendos da feira. Eram como um diálogo a dois, quase num tom confessional: "Diga, freguesa". Ouvindo essa frase centenas, milhares de vezes, por todos os lados, percebemos que havia nela uma troca de intimidade que ritualiza a relação entre essas duas pessoas que estão na raiz da feira, os polos básicos que são feirante e freguês. Repetidas milhares de vezes com suas variações, era como se, cada vez, houvesse uma propriedade, uma unicidade, uma inequivocalidade nessas palavras.

Na prática, elas conformam o momento ritual da relação humana fundamental que dá sentido ao lugar. Essa, em nosso entender, seria justamente a forma social de Simmel (1983), e também o fenômeno da interação, estuado por Maffesoli (1990). O "Diga freguesa" ao mesmo tempo objetivo, prático, pragmático, banal, comum, mas, paradoxalmente, também doce, delicado, suave, capaz de varar a polifonia, a cacofonia dos ruídos adjacentes, é o elo relacional que dá sentido a tudo, que vincula essas duas figuras.

Podemos caracterizar essa relação como o polo simbólico original, a forma social, que fundamenta a feira. É em torno dele que as interações sociais se ordenam no espaço. É o polo simbólico presente, naturalmente com enorme riqueza de variações, em todas as feiras, da história e do mundo.

Seguindo nosso caminho pela mal ajambrada feira do Guamá logo, também, escutamos: "Alcatra fresquinha"… Uma expressão que poderia continuar o esquema interativo feirante-freguês referido, porque nela também se encontra algo doce, ainda que no pragmatismo da oferta. Porém, nem bem em nossa mente, a alcatra se formava como uma imagem "fresquinha" e já uma outra fala, produzida por um feirante vizinho, cortava aquela oferta: "A minha está mais…".

Era um feirante que "derrubava" a oferta do outro, rompendo a relação feirante-freguês, a relação simbólica fundadora da feira, para dar lugar a um outro padrão de interação que conformava aquela forma de estar junto, e que somente lá tinha sentido e se realizava. Tratava-se de outra relação: a interação feirante-feirante. O segundo polo simbólico estruturador do lugar. Menos importante que o primeiro, mas igualmente pleno de sentido, de tradição, de elementos cogniscentes, ou seja, de elementos pertencentes a uma forma de estar junto. Igualmente histórica e universal e, curiosamente, constituído sobre uma base diferente daquela percebida no primeiro polo: não exatamente doce e nem exatamente objetiva, mas carregada de sarcasmo e ironia, provocativa, instigante e, também, plena de uma intersubjetividade que não era fácil de interpretar.

A "contra-oferta" também fazia parte do jogo. Compreendida e aceita como elementar, como normal, entre os feirantes, ela demonstrava um extrato particular na sua intersubjetividade. Não levava a um conflito, embora esteja claro que conflitos possam ocorrer a todo o momento, inclusive em decorrência dessa "contra-oferta". Em fim, eles vivenciavam a disputa com bom humor, como uma troca. E a galhofa com que era feita era apenas um instrumento que assinalava esse estrato intersubjetivo.

Entre eles, entre os feirantes, a simpatia reinava; muitos risos e muitos gracejos. Muita provocação. Muita "derrubada" dos produtos adversários. Procurando perceber esse segundo polo simbólico estruturador da feira, ou melhor, perceber enquanto tal a relação que eles mantinham uns com os outros, nos perguntávamos o quanto levavam a sério aquelas provocações que todos permanentemente se faziam. Outras pessoas, em outras circunstâncias, poderiam "romper relações" diante de certas coisas que, entre si, à plena voz, eles se diziam. Mas não, isso não se dava porque havia uma imunidade geral às ofensas ditas. Um pacto, um acordo, uma tolerância. Uma dimensão do dom.

Algumas falas mais jocosas, em outro contexto, seriam ofensivas. Porém, ali, elas não comprometiam o pacto relacional entre os feirantes. Ao contrário, reforçavam o vínculo entre eles e, talvez também o vínculo deles com o lugar. Era uma relação intensa: a galhofa entre os feirantes conformava o outro padrão de fala, de troca, presente e característico do lugar, o outro polo simbólico estruturador da forma social que é a feira.

Interessante lembrar que tanto Le Goff (1992) quanto Bakhtin (2008) observam o modo burlesco como são tratadas as "questões de atualidade" na Idade Média: igualmente com jocosidade, dentro de um espírito que, descrito por ele como burlesco, acaba sendo uma encenação da atualidade.

Podemos dizer, pensando nos autores citados acima, que essa forma social, medieval, perdura de certa forma até nossos dias. Os risos, deboches, piadas, anedotas, as trocas simbólicas sempre burlescas, por assim dizer, estruturavam a relação entre eles e, ao mesmo tempo, deles com o mundo.

Mas prossigamos no nosso trajeto e retornemos ao corredor das carnes, lá onde se disputavam as alcatras. Na área de venda da carne, não há mulheres feirantes. Todos os açougueiros eram homens. Uma interdição? Um costume de origem simbólica religiosa? Uma ancestralidade na sociedade pós-moderna? A pergunta ficará feita para os antropólogos. Imagino que, na maioria das feiras, é assim, talvez em todas.

Mas havia uma exceção. Perguntamos a um açougueiro por que não havia mulheres trabalhando ali. E ele disse que havia uma: a Meire, mas que ela trabalhava junto com os irmãos. O fato de trabalhar junto com os dois irmãos, bem como o fato de que ela, como mais tarde compreendemos, não talhava a carne, apenas ajudava na manutenção do lugar, parece ser a circunstância simbólica que autoriza essa exceção. Meire, enfim, não era muito visível. Tivemos oportunidade de conhecê-la no segundo momento da pesquisa, embora soubéssemos da sua existência desde cedo. Essa invisibilidade de Meire enunciava também um extrato intersubjetivo presente entre os feirantes: o fato de que nem tudo está disponível para ser trocado, ou melhor, comunicado.

Em fim, por múltiplos caminhos, as interações sociais existentes na feira remetem a uma troca desse tipo que Mauss, dentre outras evidências do dom, sinaliza como sendo a troca como veículo da liberdade e da continuidade da vida social.

A feira como forma social

Podemos perceber a assimetria entre feirantes e fregueses -ou entre quaisquer outras categorias tipificadas das inter-relações da feira- na sua dimensão contratual e conflitiva. Isso nos permite indagar o que seria, nesse caso, intersubjetivamente falando, um conflito - tal como o conflito de interesses que se produz entre feirante e freguês, ou entre dois feirantes, na disputa de um freguês-. Podemos dizer que um conflito, nessas relações, seria uma interposição de estruturas apriorísticas por meio das quais a relação é mediada. Um conflito, assim, não significa, exclusivamente um confronto direto, explícito, mas um processo de negociação que, pressupondo um potencial confrontivo, constrói as próprias margens de negociação e transposição de posições. Um conflito não é um fato social simples e isolado nas condições de um embate, mas um fato social complexo, um fato social total, com diversas dinâmicas intersubjetivas.

A forma social do conflito evoca o processo do dom, conforme a discussão de Mauss, no qual a atitude dos sujeitos -dos intersujeitos, diríamos- não pode ser reduzida a um mero interesse por um dado conteúdo, como um ganho pessoal, por exemplo (Mauss, 1991). Nesse processo, mais que o ganho pessoal, está em jogo a própria continuidade da interação -e, assim, da relação-, e não apenas da relação entre os envolvidos mas, também, da relação das categorias sociais apriorísticas com as quais os intersujeitos se atribuem identidades.

Um conflito, por assim dizer, é uma forma da interação social. Um processo ritualizado por meio do qual os sujeitos se constituem em intersujeitos e, ilustrando suas posições identitárias fluidas, negociam a posição dos conteúdos em questão. Aqui se vê com clareza a dicotomia entre forma e conteúdo, tematizada por Simmel (1991, 1999). A forma não se realiza sem os conteúdos, numa relação cíclica e assimétrica. Parsons e Buxtor (1998) descrevem essa relação da seguinte maneira:

Simmel distinguished form from "content", which rather consists of the "motives" or "interests" of individuals. The latter are then classified in relation to the differentiation of human activities, as "economic", "religious", "political", etc. It is clear on the one hand that what is ordinarily called the "motivation" of action is not involved in the analytical concept of social form, on the other that a motive or an interest is for Simmel an integral unit which for his purposes he does not attempt to subject to any further analysis (Parsons e Buxtor, 1998: 41). 8

Um conteúdo pode ser o objeto disputado no jogo: o dinheiro, o freguês, a fidelidade do freguês, a relação entre os feirantes, o espaço, a visibilidade, a ideia de belo, a fala final da discussão, etc. A forma é a estrutura ritualizada que permite que esses conteúdos sejam negociados; a maneira, por assim dizer, de fazer a negociação desses conteúdos. A própria interação.

A forma é a cortesia, o dinheiro é o conteúdo. Mas, no jogo assimétrico que transforma coisas em vínculos o dinheiro, ao ser dado, se transforma em forma e o objeto comprado se torna conteúdo, no sentido em que passam a significar uma coisa outra que não significavam antes: dado, o dinheiro não é apenas poder de compra, é o ciclo do vínculo concluído; e, igualmente dado, o objeto comprado sinaliza essa mesma aliança. Nessa inversão há uma transposição de categorias apriorísticas. Eis aí o dom.

A análise simmeliana das formas sociais tem por pressuposto que a interação se produz por meio de estruturas apriorísticas de pensamento. Uma estrutura apriorística é uma abstração, mas, para Simmel, ao contrário de Kant, não uma abstração produzida numa dada subjetividade e sim uma abstração que se produz intersubjetivamente e que se acumula e consolida no processo social. Assim, embora parta do pensamento kantiano, Simmel ultrapassa o subjetivismo do filósofo constituindo uma abordagem que podemos chamar de ontológica.

Com Lévinas podemos entender que uma categoria de pensamento, tal como as categorias da forma simmeliana, constituem um material ontológico (Lévinas, 1973). A expressão do nosso autor para isso é "práxis da cognição" (Praxis des Erkennens), processo que se faz possível por meio do entrelaçamento entre o ideal e o material, numa dinâmica de interposição de princípios epistêmicos conceitualmente opostos (Simmel, 1991). Discutindo o método fenomenológico simmeliano, Goodstein observa que esse movimento cognitivo de alternância entre explicação ideal e o material é a própria unidade ontológica que constitui a realidade como uma totalidade relativista (Goodstein, 2002).

Podemos dizer que esse método reproduz, no ato de compreensão do cientista social, o próprio ato de compreensão de qualquer indivíduo na sua vida cotidiana, um processo naturalmente intersubjetivo e feito por meio de associação categorial e -aqui evocamos Schutz (1967)- também por meio da sedimentação dos sentidos socialmente partilhados na experiência temporal.

Simmel evoca a figura da sinédoque para representar esse processo. A sinédoque, essa figura de linguagem que consiste na atribuição da parte pelo todo, ou do todo pela parte, se assemelha ao processo intersubjetivo pelo qual se compreende um sentido por meio de seus fragmentos, ou o contrário. Goodstein observa que a fenomenologia da cultura elaborada por Simmel -e ao contrário de Hegel, que pensa por meio de uma dialética unidirecional- associa sinédoques e interações (Wechselwirkungen) num processo dinâmico por meio do qual "culture only exists, properly speaking, in the lived tension of reciprocal causation between the dimensions that he called objective and subjective culture" (Goodstein, 2002: 219).9

Aprofundando essa questão, podemos perceber que Simmel faz uma distinção entre duas estruturas de pensamento apriorísticas: o a priori cognitivo e o a priori interacional. A primeira delas se refere à intersubjetividade produzida por meio dos sentidos acumulados das interações sociais anteriores ao momento vivido, num recorte interacional temporalizado. A segunda possui uma dinâmica mais dialógica, referindo-se à intersubjetividade sendo produzida num recorte interacional imediato. Para Simmel, as duas estruturas -cogniscência e interação- são construções intersubjetivas, por meio das quais os sentidos são acordados. As duas estruturas também caracterizam os objetos da observação sociológica. Nesse sentido, não são estruturas inerentes às condições subjetivas do observador (Backhaus, 1998), mas sim estruturas dinâmicas e interacionais.

Backhaus observa que essas duas estruturas são frequentemente confundidas atribuindo o engano à perspectiva kantiana de que o conhecimento apriorístico é naturalmente formal (Backhaus, 1998). Assim, conforme esse autor, "the attempt to fit Simmel's a priori structures of the forms of association into a Kantian formal a priori is not possible" (Backhaus, 1998: 262).10 Segundo esse autor, a concepção de uma sociologia das formas transgrede a noção de que a mente cognitiva (seja a observação do cientista, seja a interação social cotidiana) fornece, sozinha, a forma (a estrutura conceitual cognoscível) para a identificação da realidade em curso (Backhaus, 1998).

Retornando à feira e às suas interações, tentemos qualificar a experiência dos feirantes, de seus fregueses e clientes e dos demais indivíduos que gravitam no entorno como processo intersubjetivo. A intersubjetividade está, primeiramente, na interação social, pois o sentido elementar de intersubjetividade consiste na relação dialógica e assimétrica entre os indivíduos. Porém, é preciso superar toda percepção de que intersubjetividade é o encontro de subjetividades: é mais que isso, porque é um processo ontológico. Assim, um indivíduo é, efetivamente, de antemão, um ser intersubjetivo, que se constitui ontologicamente como sujeito. A ilusão de ser sujeito, a ilusão de ter identidade, toda ilusão, enfim, de pertencimento, constitui, simplesmente, o plano ontológico de uma realidade ôntica. Isso nos remete ao que seria um terceiro plano da intersubjetividade, um plano basicamente temporal e que se representa por meio das estruturas apriorísticas de pensamento. A intersubjetividade, veículo interacional, se produz enquanto experiência social acumulada, mesmo se contraditória. Isso ocorre porque ela se faz, temporalmente, por meio do acúmulo das interpretações que se superpõem na experiência social. É por isso que evocamos as estruturas de pensamento apriorísticas e os processos de tipificação enquanto conformadores dos conteúdos sociais. Num último plano, por fim, podemos dizer que, além de interacional, ontológica e temporal, a intersubjetividade é, também, formal, no sentido de que, apriorística, ela pressupõe a acomodação da ação social dos interagentes em padrões de experiência que gerando uma forma de se estar junto, em si mesmos, possuem sentido interacional, ontológico e temporal.

Por fim, podemos concluir referindo o dom, a interação assimétrica que, no mundo como na feira, se produz como fato social intersubjetivo. A troca entre feirantes e fregueses, dentre as demais trocas possíveis numa feira, reproduz esse mecanismo universal de negociação das assime trias. O dom pressupõe uma assimetria, uma assimetria que, no caso aqui analisado, sustenta a forma feira, ou seja, sustenta a sociação que é a própria forma-feira, a feira enquanto forma.

Notas

1 .  Orientados pelo trabalho de Georg Simmel, compreendemos sociação (Vergesellschaftung) como uma relação social estruturada sobre polarizações -objetivação/subjetivação, simetria/assimetria, interioridade/exterioridade, mediado/imediato- que, com a sua consequente complexidade, se constitui como engrenagem de processos sociais, reproduzindo padrões (formas) presentes na experiência coletiva e produzindo, por meio deles, práticas sociais.

2 .  "Simmel sustenta que ambos, forma e conteúdo, são momentos presentacionais (apenas separados por meio da abstração) por meio dos quais o observador sociólogo é colocado em relação com 'as coisas em si mesmas', a interrelação dos associados" (tradução nossa).

3 .  Tufões e Caminhas fazem referência à telenovela Avenida Brasil, em exibição na Rede Globo de televisão, na época da pesquisa, em 2012.

4 .  "A troca reenvia concretamente ao processo de circulação que caracteriza a relação humana. Ela não encontra o seu lugar entre os homens e as coisas. Ela é o entre mesmo, da qual a função retorna para concretizar o caráter relacional das relações humanas em lhes dando a vivacidade dos Wechselwirkung" (tradução nossa).

5 .  "assumir a forma de uma antropologia de vários fetiches sociais" (tradução nossa).

6 .  "A economia é o lugar da irrealidade ou mais exatamente uma duplicação invertida da realidade... a economia não é o fundamento, a realidade última, a 'determinação em última instância'... a economia é, ao contrário, a alienação da vida real" (tradução nossa).

7 .  Não está sempre relacionado ao dinheiro. Ee é primeiro ligado ao prestígio, ao conhecimento místico, ou seja, àquelas das iniciações... A autoridade de um indivíduo não vem, necessariamente, da riqueza, mas vem de outra coisa, que chamamos, de imaterial" (tradução nossa).

8 .  "Simmel distinguia a forma do 'conteúdo', que consiste dos 'motivos' ou 'interesses' de indivíduos. Estes últimos são então classificados em relação à diferenciação das atividades humanas, como 'econômica', 'religiosa', 'política', etc. É claro, por um lado, que aquilo que ordinariamente se chama 'motivação' da ação não está envolvido no conceito analítico de forma social, por outro lado, um motivo ou interesse é para Simmel uma unidade integral que, para seus propósitos, não tenta submeter a qualquer análise posterior" (tradução nossa).

9 .  "A cultura só existe, propriamente falando, na tensão vivida da causalidade recíproca entre as dimensões que ele chamou de cultura objetiva e subjetiva" (tradução nossa).

10 .  "a tentativa de ajustar, a priori, as estruturas de Simmel das formas de associação em um formal kantiano, a priori, não é possível" (tradução nossa).

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