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Cuadernos de antropología social

versión On-line ISSN 1850-275X

Cuad. antropol. soc.  no.49 Buenos Aires mayo 2019

http://dx.doi.org/10.34096/cas.i49.5291 

doi: 10.34096/cas.i49.5291

ARTÍCULOS ORIGINALES

A dívida e a circulação da confiança entre agricultores familiares da comunidade de São Lourenço, Nova Friburgo – Rio de Janeiro, Brasil

La deuda y la circulación de la confianza entre agricultores familiares de la comunidad de São Lourenço, Nova Friburgo – Rio de Janeiro, Brasil.

Debt and the circulation of trust. Economic relations between family farmers of the community of São Lourenço, Nova Friburgo – Rio de Janeiro, Brasil.

Natália Barroso Brandão1

 

1 Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Niterói, Brasil.
Correo electrónico: nataliabbrandao@gmail.com

Recibido: Octubre 2018
Aceptado: Abril 2019

 


Resumo

Este artigo trata-se das relações de créditos estabelecidas entre agricultores familiares da comunidade de São Lourenço, em Nova Friburgo – RJ. Estas relações, que muitas vezes substituem os empréstimos institucionais, são realizadas sem nenhum tipo de contrato ou formalização e são orientadas por valores e moralidades diferentes daqueles promovidos pelo direito positivo e pelo sistema econômico. Apresento então uma discussão a respeito das moralidades vigentes concomitantemente nestas relações: a moralidade representada como local, que diz respeito diretamente às pessoas envolvidas na relação e que se baseia em etiquetas particulares e pessoalizadas; e a moralidade relacionada à lógica do direito positivo e do sistema econômico, que diz respeito à promoção dos princípios igualitários de uma ideologia individualista, baseada em regras determinadas e impessoais. Analiso também como relações aparentemente não orientadas por valores econômicos permitem que estes agricultores figurem no "mercado", tornando-se competitivos.

Palavras-chave: Crédito; Moralidades; Contrato; Agricultura familiar; Mercado

Resumen

En este artículo analizo las relaciones de crédito establecidas entre agricultores familiares de la comunidad de São Lourenço, en Nova Friburgo – RJ. Estas relaciones, que muchas veces sustituyen los préstamos institucionales, son realizadas sin ningún tipo de formalización o contrato legal y son orientadas por valores y moralidades distintos de los promovidos por el derecho positivo o por el sistema económico. Hago una discusión acerca de las dos moralidades presentes al mismo tiempo en estas relaciones: la moralidad representada como local, relacionada directamente con las personas incluidas en la relación que se basa en reglas particulares y personalizadas, y la moralidad relacionada a la lógica del derecho positivo y del sistema económico, que se vincula con la promoción de los principios igualitarios de una ideología individualista, basada en reglas determinadas e impersonales. Analizo también cómo las relaciones que aparentemente no son orientadas por valores económicos, permiten que los agricultores figuren en el mercado, haciéndose competitivos.

Palabras clave: Crédito; Moralidades; Contrato; Agricultura familiar; Mercado

Abstract

This article addresses credit relations between family farmers of the community of São Lourenço, in Nova Friburgo – RJ. These relations, which often replace institutional loans, are established without any kind of formalization or legal contract, and are based in values and moralities that differ from those related to positive law and the economic system. I present a discussion about two moralities that are present at the same time in these relations: the morality represented as local, related directly to the people involved in the relation based on particular and personal codes, and the morality related to the logic of positive law and the economic system, associated to the promotion of the egalitarian principles of an individualistic ideology, based in impersonal and particular rules. I also analyze how relations apparently not oriented by economic values allow the farmers to become competitive in the market.

Key words: Credit; Morality; Contract; Family agriculture; Market


 

 

Introdução

No presente artigo proponho uma discussão a respeito das diferentes racionalidades que informam as práticas econômicas – principalmente envolvendo relações de crédito – estabelecidas entre agricultores familiares na localidade de São Lourenço,1 situada no distrito de Campo do Coelho, pertencente ao município de Nova Friburgo – RJ.

Acredito ser imprescindível para a construção desta discussão uma breve exposição a respeito do grupo de agricultores familiares com quem realizei a pesquisa e da localidade em que residem, assim como a região onde esta se encontra.

A região onde São Lourenço se encontra é conhecida como Salinas, nome de uma das localidades que a compõem. Salinas pertence a Campo do Coelho, terceiro distrito de Nova Friburgo, e está localizada entre este município e o município de Teresópolis, na região serrana do estado do Rio de Janeiro. É considerada uma das principais regiões produtoras de hortaliças do estado, abrange área onde vivem cerca de 4700 pessoas e 1570 famílias e é composta por 15 localidades denominadas São Lourenço, Fazenda Schuenk, Fazenda Campestre, Baixada de Salinas, Salinas, Alto de Salinas, Santa Cruz, Centenário, Patrocínio, Três Picos, Jaborandi, Barracão dos Mendes, Conquista, Florândia e Fazenda Rio Grande.

Praticamente todos os moradores da região se dedicam a agricultura ou a alguma atividade relacionada a esta, como o frete de produtos, a comercialização de insumos agrícolas e a prestação de serviços de maquinário, como trator e retroescavadeira. Aqueles que se dedicam à produção agrícola são reconhecidos legalmente como "agricultores familiares", a partir da Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (DAP). Em toda região predomina o trabalho familiar como modo de produção e a pequena ou média propriedade como forma de organização social, sendo a grande maioria das propriedades menores que 20 hectares. O caráter familiar da atividade econômica é fundamental para a definição operacional da categoria "agricultura familiar" proposta pelo Estado, a partir da implementação de uma política governamental que se dirige especificamente a este segmento, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF (Brasil, 1996) e da Lei 11.326/2006, que estabelece as diretrizes da formulação do programa, elencando seus destinatários. Os principais produtos cultivados na região são o tomate e a couve-flor, no verão e no inverno respectivamente, mas outros produtos como milho, brócolis, abobrinha, ervilha e pimentão também são cultivados em grande escala. Além da atividade agrícola, a região conta com um turismo incipiente, promovido principalmente a partir da criação do Parque Estadual dos Três Picos (PETP) em 2002.

Próximo a esta região está localizado o Centro de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (CEASA-RJ).2 É no CEASA-RJ que acontece a comercialização da maior parte da produção agrícola da região, assim como a compra de insumos e outros artefatos utilizados pelos agricultores na produção. As transações comerciais realizadas neste espaço ocorrem entre produtores, "atravessadores" e compradores cadastrados e acontecem principalmente às quartas-feiras e aos domingos, chamados de "dias de mercado".

Durante o tempo que realizei minha pesquisa residi na região de Salinas, mais especificamente na localidade de São Lourenço, que está localizada ao final da estrada de asfalto que liga a região de Salinas à rodovia RJ-130 – a 48 quilômetros de distância de Nova Friburgo – e onde vivem 215 famílias e 682 pessoas. A localidade é dividida em diversos "sítios", que são terrenos que abrangem a casa da família, a "lavoura" (área de cultivo destinada à produção para a comercialização) e a "roça" (área de cultivo de produtos destinados ao consumo familiar e à troca entre vizinhos e "parentes").

O cultivo da produção em São Lourenço é feito de forma "convencional", ou seja, a partir da utilização de "remédios",3 sendo praticamente inexistente a produção de orgânicos. O principal produto cultivado é o tomate, cuja lavoura é feita no verão (período de tempo que compreende os meses de outubro a abril). Embora o custo desta lavoura seja mais elevado que o de outras culturas, em função da quantidade e diversidade de "remédios" utilizados, esta representa a maior possibilidade de lucro. No inverno (de abril a outubro) são cultivados outros produtos, mas as principais culturas são as "de cabeça",4 como o brócolis e a couve-flor. Além dos produtos destinados para a comercialização, são cultivados outros exclusivamente para o consumo familiar e para a "troca" entre parentes e amigos, como a cebolinha, o feijão, o limão galego e ervas com propriedades medicinais. Alguns destes produtos não têm valor de mercado em virtude da "falta de boniteza", como é o caso da batata-doce, que tem a casca mais cheia de ramificações e é mais esbranquiçada que a geralmente comercializada. A "boniteza" é apresentada como um critério fundamental para a venda do produto no mercado: aquele que não se enquadra em um padrão imposto não pode ser comercializado, embora esteja perfeito para o consumo familiar.

Em geral, são os homens que se dedicam ao trabalho na lavoura e é comum que as mulheres trabalhem fora, sendo o trabalho destas na lavoura entendido como uma ajuda, uma vez que a principal atribuição feminina é aquela relacionada aos serviços domésticos, exercidos exclusivamente pelas mulheres. Uma parcela expressiva das mulheres exerce atividades não relacionadas com a agricultura, tais como professora, empregada doméstica, cabeleireira, manicure e agente de saúde. A venda da produção no CEASA-RJ e a compra e venda de insumos e materiais agrícolas é feita exclusivamente pelos homens, evidenciando uma diferenciação das atribuições femininas e masculinas.

O meu interesse em realizar a pesquisa na região de Salinas se deu a partir do contato com a pesquisa de doutorado que está sendo realizada pelo antropólogo e colega de programa Bruno Mibielli em uma outra localidade da região, denominada Três Picos. Os primeiros contatos que estabeleci na região, assim como a descoberta de uma casa disponível para locação, se deram a partir da rede de relações previamente estabelecida pelo referido colega. Durante o período do trabalho de campo residi em uma casa localizada no "sítio" de uma família, que outrora foi habitada por meeiros.5 Assim, a minha principal interlocução foi com a família que morava neste sítio e com as pessoas que faziam parte de sua rede de relações.

A etnografia se deu a partir da observação participante que empreendi no período de tempo que residi na comunidade. Realizei também entrevistas semi-estruturadas com os interlocutores, mas estas serviram mais como um pretexto para estabelecer uma relação do que como fontes de dados, uma vez que diversos interlocutores, no momento da entrevista, respondiam de forma lacônica às minhas perguntas, mas após estabelecida esta primeira relação se sentiam à vontade para conversar comigo em outras situações sobre assuntos diversos. Este trabalho consiste na textualização das interlocuções construídas no campo, ou seja, no exercício de escrever a respeito daquilo que vi e ouvi (Cardoso de Oliveira, 1998).

Em um primeiro momento, me interessei por pesquisar questões relacionadas a obtenção de empréstimos institucionais por parte dos agricultores familiares, na forma do financiamento oferecido pelo PRONAF. Entretanto, senti necessidade de alterar os rumos de minha pesquisa em seu decorrer ao perceber que, embora seja representado como um "bom negócio" no discurso dos interlocutores, o financiamento concedido pelo PRONAF raramente é solicitado por estes. Os principais motivos apontados para esta recusa foram a burocracia, a necessidade de ter que "levar muito documento, muita papelada" e o receio de ter seus bens "tomados pelo banco" (apreciações dos agricultores de São Lourenço durante o trabalho de campo, São Lourenço, 2016), caso não consigam quitar a dívida em tempo hábil, assim como a obrigatoriedade que o pagamento seja feito em dinheiro. Posteriormente, percebi que embora a obtenção do financiamento institucional não seja uma prática recorrente, o empréstimo de dinheiro entre os próprios agricultores ocorre com frequência, muitas vezes envolvendo grande somas.

A forma como se deu a interlocução com os agentes também foi determinante para a construção desta discussão. Ao me apresentar como pesquisadora, desenvolvendo pesquisa na área de antropologia, percebi que meus interlocutores eram tomados por um certo estranhamento. Alguns diziam já ter colaborado com pesquisas dando entrevistas, mas sempre a pesquisadores da área de agronomia ou engenharia ambiental. Como não tinham estabelecido, até então, qualquer relação com pesquisadores da área de ciências humanas, diziam não entender muito bem que tipo de "coisa" eu estava procurando e acabavam se limitando a responder de forma concisa às minhas perguntas. Ao comentar com alguns interlocutores a respeito da minha formação inicial em Direito, acredito que estes conseguiram me enquadrar melhor em algum lugar por eles conhecido e passaram a me relatar casos relacionados a relações jurídicas, em especial a respeito de empréstimos por eles concedidos – dos quais ainda não tinham recebido o referente pagamento – e tirar dúvidas a respeito das garantias legais que teriam na qualidade de credores (saber dos seus "direitos pela lei"), ainda que sem manifestar um real interesse na judicialização da questão. Tais empréstimos de dinheiro, embora não judicializados ou estabelecidos conforme as regras do direito positivado, são recorrentes e eficazes na localidade.

Essas duas situações, a recorrência dos empréstimos entre os agricultores e a recusa em contrair empréstimos com instituições governamentais, me instigaram a pensar a respeito de como se dão as relações de crédito entre estes agricultores, uma vez que estas acontecem em um plano que não aquele regido obrigatoriamente pelas regras do Direito ou do sistema econômico. Pretendo, então, discorrer a respeito da forma como estas relações acontecem neste contexto específico, mobilizando e sendo mobilizadas por valores e moralidades distintas daquelas acionadas em outros contextos, a partir da análise de algumas situações entendidas e representadas pelos interlocutores como fora do comum, em que houve a quebra da confiança, apresentada como elemento fundamental para que as relações econômicas ocorram sem maiores contratempos e como o principal valor a orientar as relações sociais.

A análise de situações envolvendo relações de crédito, principalmente os empréstimos e a compra de venda de produtos no "fiado",6 serve de subsídio para refletir a respeito dos valores e moralidades que são mobilizados nestas relações, determinando o modo como estas são estabelecidas e compreendidas pelos interlocutores. Assim, busco desenvolver uma discussão a respeito de duas moralidades vigentes ao mesmo tempo nestas relações: de um lado, a moralidade representada como local, que diz repeito a agentes e situações específicas, relacionada necessariamente às pessoas envolvidas na relação; de outro, e a moralidade relacionada a lógica do direito positivo e do sistema econômico, que diz respeito a promoção dos princípios igualitários de uma ideologia individualista, baseada em regras determinadas e impessoais.

 

As práticas econômicas

A comercialização da produção ocorre de diferentes formas, dependendo principalmente do tipo de produto que está sendo comercializado. A venda dos produtos realizada na "própria roça" implica na venda para um "atravessador" ou "panhador"7 no próprio sítio da família. Os produtos geralmente vendidos na "própria roça" são os chamados "de cabeça" e "de molho". A venda dos produtos "de cabeça" é feita, na maioria das vezes, para "atravessadores grandes", como é o caso do Tuti-Frutti, que compra os produtos na região com o intuito de abastecer as lojas da rede Hortifruti no estado do Rio de Janeiro. Nesta modalidade, o atravessador entra em contato por telefone com o agricultor no início da semana dizendo os dias que estará na localidade e a quantidade que deseja comprar. Os agricultores cortam a quantidade acordada e anotam a quantidade levada pelo atravessador no dia. O pagamento é feito de 15 a 30 dias após a entrega do produto ao atravessador e o preço varia de acordo com o valor que o produto foi vendido no mercado. Desta forma, no momento que a venda é realizada, o agricultor ainda não sabe o valor a ser recebido pelo produto entregue, embora tenha uma certa expectativa baseada no preço que foi praticado no mercado nos dias anteriores. Poucos agricultores vendem sua produção para panhadores. Geralmente, os produtos assim vendidos são os "de molho", como o coentro e a salsa. Por serem muito perecíveis, estes devem ser vendidos no mesmo dia que são cortados, de forma que os agricultores cortam e fazem os molhos ainda de madrugada e os "panhadores" os "panham" de manhã bem cedo, para que possam ser vendidos no mercado no mesmo dia. O pagamento, assim como no caso dos produtos "de cabeça", é feito de 15 a 30 dias após a venda. Os produtos "de caixaria" são vendidos pelos próprios agricultores no CEASA-RJ e o preço é estipulado por caixa do produto. Esta modalidade é considerada a mais vantajosa porque assim os produtores têm a oportunidade de negociar o preço.

Quando a venda é feita no CEASA-RJ, o comprador emite uma "nota branca" – que consiste em um pedaço de papel onde anota a quantidade de produtos e o preço do dia – e o pagamento só é feito cerca de um mês depois. Como o pagamento nunca é feito no ato de compra e venda, a única garantia que o produtor tem é esta nota. Desta forma, a confiança é essencial para a realização das transações comerciais. Muitos interlocutores enfatizaram em seus discursos a importância desta: tanto o "atravessador" quanto o "panhador" e mesmo o comprador no CEASA-RJ são pessoas com as quais os produtores mantêm algum tipo de relação que não a meramente comercial, são pessoas descritas como "de confiança", "conhecidas" ou que "eles sabem muito bem quem são e de onde vem" (Dona Ruth, conversa informal, São Lourenço, agosto 2016).

Muitas vezes o pagamento é feito através de cheques de terceiros. Estes, em sua maioria, são de outros atravessadores, que são endossados e repassados entre atravessadores, agricultores e estabelecimentos comerciais da região. A importância da confiança na relação de compra e venda é aqui também evidenciada, uma vez que os agricultores aceitam estes cheques apenas dos atravessadores ou panhadores em quem confiam e os quais acreditam que se responsabilizarão do pagamento do cheque, ou seja, daqueles que são "honrados", que "possuem boa índole", que são "gente séria" (Apreciações de agricultores de São Lourenço durante o trabalho de campo, São Lourenço, agosto 2016).

A compra de insumos e outros materiais agrícolas pelos agricultores também é feita na confiança, sendo a prática do fiado ou pendura muito comum na região. Tal prática consiste na venda de uma mercadoria ou prestação de um serviço mediante uma promessa de pagamento no futuro. O prazo para o pagamento nas lojas do CEASA-RJ geralmente é de 90 dias, prazo que se aproxima do tempo de duração da lavoura da maior parte dos produtos cultivados na região. O prazo na AgroFri, loja de insumos localizada em São Lourenço, é ainda maior, o que faz com que muitos agricultores optem por realizar suas compras neste estabelecimento, ainda que este pratique preços mais altos que outras lojas do ramo. Outros estabelecimentos comerciais da localidade, como a padaria e o mercado, também costumam vender no fiado.

Embora seja uma prática comum, percebi que alguns interlocutores se gabam de "não dever nem um centavo" (apreciações dos agricultores de São Lourenço durante o trabalho de campo, São Lourenço, setembro 2016). O fato de um agricultor não dever dinheiro para ninguém ou não precisar realizar suas comprar no fiado o colocar em uma posição hierárquica superior em uma cadeia de confiança, que faz com que ele consiga mais facilmente um empréstimo grande com outro agricultor, caso necessite. Conforme me disse Seu Antônio: "Se a pessoa é bom pagador ela consegue dez mil reais emprestados em cinco minutos aqui. Se num for, pode rodar São Lourenço que não consegue nem um real" (Entrevista Seu Antônio, São Lourenço, setembro 2016).

Este mesmo interlocutor me relatou uma situação que não transcorreu como desejada pelas partes (considerada por ele excepcional) em que quase houve a quebra da confiança. Ele me contou a respeito de um caso envolvendo seu filho Almir, que trabalhou por um tempo para um atravessador grande de Cabo Frio realizando a compra dos produtos dos agricultores de São Lourenço "na roça" para este atravessador revender posteriormente no mercado e recebendo um valor fixo por produto comprado, independentemente do preço obtido pelo atravessador com a venda. Comentou que, por ser nascido e criado em São Lourenço, todos agricultores da localidade vendiam para ele, o que não aconteceria se a compra fosse feita pelo próprio atravessador, pessoa de fora da comunidade. Algum tempo depois este atravessador faliu e não pôde pagar aos agricultores de quem comprou os produtos. A cobrança recaiu sobre Almir e a forma que ele encontrou para sanar a situação foi convidando para um almoço feito por sua mãe, pessoa muito estimada na comunidade, todos os credores e também o atravessador, para que este explicasse a situação e assumisse a dívida como sua. Como resultado, Almir manteve sua reputação e boas relações com os agricultores que ficaram sem receber o pagamento, uma vez que estes tiveram conhecimento de que não era ele o responsável pela dívida. Atualmente, Almir é dono do mercado da localidade, onde a prática mais recorrente é a venda no fiado.

Em uma outra ocasião um interlocutor me procurou para saber se eu podia ajudá-lo com um problema de dívida. Explicou que, há cerca de 2 anos e meio, emprestou a quantia de R$90.000,00 a um amigo seu que mora na localidade, tendo efetuado um depósito neste valor na conta deste amigo e recebido dele um cheque no mesmo valor, assinado e não datado. Embora tenha se comprometido a pagar o valor total em um ano, até o momento o dinheiro não tinha sido devolvido. Este interlocutor me perguntou a respeito da possibilidade de redigir um contrato para deixar "gravado" isso, o qual me coloquei a disposição para redigir. Nas ocasiões seguintes em que nos encontramos, embora ele reclamasse não ter "visto nem cor do dinheiro" (Ronan, conversa durante trabalho de campo, São Lourenço, setembro 2016), negou com veemência a possibilidade de que um contrato fosse feito: ele não poderia envolver uma outra pessoa nessa situação, muito menos uma advogada, porque mesmo que fosse encontrada uma solução e a dívida fosse sanada, a relação entre eles teria prejuízos, uma vez que ele teria demonstrado desconfiança, o que era inadmissível por se tratar de um amigo muito próximo, quase parente.

Como assinalado nas situações descritas, as relações de crédito se dão entre pessoas que se conhecem "desde sempre" e que se consideram pertencentes a um mesmo grupo. Os empréstimos, assim como os "acordos" quanto a forma de pagamento,[8]são feitos sem nenhum tipo de registro escrito, servindo como garantia apenas a palavra dos contratantes e sendo a confiança o principal valor subjacente a estes contratos. Ao que perguntei se, nas situações em que a dívida foi sanada, o valor restituído era o mesmo que foi emprestado, obtive a resposta de que "é mas não é, né? É quase a mesma coisa. Se a pessoa puder paga até mais, se num puder paga menos" (Ronan, conversa durante trabalho de campo, São Lourenço, setembro 2016). Esta enunciação demonstra que não há a obrigatoriedade que o pagamento seja feita integralmente e sim que seja feito quando possível. O dinheiro não ocupa uma posição centra nesta relação, mas o pagamento da dívida sim: a dívida deve ser "honrada" para que a confiança continue circulando, aquele que não honra as suas dívidas não é confiável, não é considerado uma boa pessoa. O não-pagamento é considerado um problema porque atinge a esfera moral: aquele que podendo soldar a dívida não o faz, está desrespeitando aquele que o emprestou dinheiro, querendo "dar de esperto", "se aproveitar da confiança" (apreciações dos agricultores de São Lourenço durante o trabalho de campo, São Lourenço, dezembro 2016). O problema do não pagamento, então, diria respeito a um aspecto da relação que não pode ser resolvido através da ação judicial, por exemplo, porque mesmo que está seja um instrumento hábil para que a dívida seja paga, a ofensa moral não deixa de existir.

 

A coexistência de diferentes racionalidades

Pretendo, então, demonstrar a coexistência de diferentes racionalidades econômicas a orientar as relações econômicas em São Lourenço, analisando as trocas realizadas no âmbito da comunidade, os motivos apresentados pelos interlocutores para a recusa da obtenção do crédito institucional e os discursos a respeito destas práticas.

Pude perceber que a troca de bens (alimentos, em sua maioria) são constantes entre os agricultores de São Lourenço, principalmente entre mulheres. Estas trocas ocorrem como forma de estabelecer vínculos e de promover um certo tipo de sociabilidade, as visitas, situação em que conversam acerca de assuntos variados. Nas situações que acompanhei Dona Ruth em visitas a alguma amiga ou parente, esta era justificada a partir da troca: "vamos lá na casa de Tânia de Antônio levar essa cocada que eu fiz" (Dona Ruth, conversa durante trabalho de campo, São Lourenço, abril 2016). Esta troca é chamada pelos agentes de "agrado", termo empregado para denominar tanto a ação quanto o objeto.

Carneiro da Silva (1976), dentre outros autores, entende as trocas como ações sociais que expressam regras das relações sociais que integram o grupo ou "comunidade", buscando compreender – a partir do estudo de transações que aparentam ser puramente econômicas – o caráter extraeconômico das trocas, interpretando-as como um ponto de partida para a compreensão da estrutura social, uma vez que refletem e são orientadas por regras sociais decorrentes de ligações anteriores entre os agentes envolvidos no intercâmbio. A autora entende como doação a troca de bens ou serviços onde a retribuição não ocorre sob a forma do pagamento. Esta modalidade de troca, embora não se oriente para uma finalidade estritamente econômica, promove o aprovisionamento social, satisfazendo necessidades desta ordem.

As doações, embora aparentemente livres, geram obrigações ao serem realizadas. Estas se baseiam em uma modalidade de reciprocidade que pode ser representada pelo que Mauss (2003) chama de dádiva, que consiste nas obrigações de dar, receber e retribuir. A dádiva promove obrigações no sentido que cria "direitos e deveres de consumir e retribuir, correspondendo a direitos e deveres de dar e de receber" (p. 202), obrigações estas que devem ser observadas para que as relações sociais ocorram de forma harmônica a produzir a unidade e integração do grupo.

A troca de serviços também ocorre, principalmente entre parentes. Esta troca é denominada ajuda e consiste na realização de um determinado serviço sem que se espere um pagamento em retorno, diferindo de um outro tipo de ajuda, realizada geralmente entre amigos, mas não entre "parentes", cujo pagamento (mesmo que não em dinheiro) é esperado.

Os gestos recíprocos presentes tanto na "ajuda" quanto no "agrado", essencialmente orientados por considerações de ordem social, "são por nós geralmente considerados como não econômicos, qualitativamente diferentes da direção principal da troca propriamente dita e limitada a uma esfera onde quem quer que queira realizar negócio baseado no princípio de obter o lucro máximo se daria mal" (Sahlins, 1970, p. 127). Entretanto, conforme Sahlins, a troca não existe separada de relações não-econômicas, existindo um aspecto econômico para toda relação social (Sahlins, 1970).

Pude perceber, nos discursos a respeito dos empréstimos envolvendo instituições governamentais ou não-governamentais, que estes raramente são solicitados, muito embora os agricultores conheçam e enunciem os benefícios destas modalidades de empréstimo, principalmente o que diz respeito ao "seguro-colheita", que pode ser acionado em caso de perda de 30% ou mais da produção em virtude de intempéries climáticas ou doenças provocadas por "pragas". Embora representado como positivo, não é suficiente para que os agricultores recorram ao empréstimo institucional.

Dentre as justificativas para esta recusa está a obrigatoriedade que o pagamento do empréstimo seja feito em dinheiro. Esta justificativa demonstra que, no âmbito interpessoal, a dívida pode ser sanada de outras formas que não a realização do pagamento em dinheiro. Tal afirmação demonstra a coexistência de diferentes formas de resolver as dívidas contraídas entre os próprios agricultores: através do pagamento em dinheiro, seguindo a lógica da economia monetizada, ou através de outras formas que não o pagamento em dinheiro. Dentre estas estão a prestação de serviços, o arrendamento de terras, o empréstimo de maquinário e a transferência de bens, entre outros.

Leomir, ao discorrer sobre as possibilidades de formas de pagamento de dívidas, disse ser comum arrendar a terra para tal fim: "se você tá me devendo um dinheiro, você dá um pedaço da terra sua pra uma lavoura minha, aí eu planto a terra e o lucro fica pra mim só, nada pra você" (Entrevista Leomir, São Lourenço, outubro 2016). Ao que perguntei sobre a possibilidade desta lavoura "não dar nem pro empate", obtive como resposta que "aí vê outro jeito né? Faz outra lavoura ou vê outro jeito" (Entrevista Leomir, São Lourenço, outubro 2016).

Para além da coexistência de circuitos econômicos que se diferem quanto à obrigatoriedade do pagamento monetizado da dívida, pude perceber a coexistência de diferentes racionalidades econômicas: a racionalidade pautada por lógicas pessoalizadas, que tem como base as relações sociais preexistentes às práticas econômicas, e a racionalidade econômica pautada pelas lógicas de mercado, que vigora nas relações entre agricultores e instituições governamentais. Estas racionalidades expressam diferentes sentidos de economia, no sentido da existência de diferentes variáveis a orientar o que é entendido como econômico.

David Graeber (2011) entende que o dinheiro e a dívida são contemporâneos e aponta para a falácia economicista baseada no mito de que em um determinado momento histórico (antes do advento do dinheiro) as relações econômicas se estabeleciam a partir do sistema de escambos. Aponta para o fato de que nunca foi comprovada a existência de sociedades que tenham adotado de fato este sistema, o que não foi levado em consideração pelos economistas uma vez que esta ideia possibilitou a criação da economia como a disciplina que pressupõe uma divisão entre as diferentes esferas do comportamento humano. O autor analisa, então, a relação histórica da dívida com instituições sociais, tais quais casamento, amizade, vizinhança, religião e governo, entendendo-a como uma atividade que permeia o tecido social, sendo a dívida o meio de comércio mais antigo. Entende que a dívida geralmente manteve o seu primado, estando o dinheiro e a troca limitados a situações de baixa confiança envolvendo pessoas que não se conheciam previamente ou não consideradas dignas de crédito.

Na situação por mim observada, como os interlocutores interagem com órgãos que pensam as relações econômicas como uma esfera separada do tecido social, estes operam a partir de racionalidades diferentes de acordo com os agentes envolvidos nas relações de crédito, muitas vezes optando pela racionalidade orientada pelas moralidades locais e baseada na confiança.

A existência de meios para a realização do pagamento dos empréstimos que não o dinheiro vai de encontro, de certo modo, ao que Simmel (1998) apregoa para as relações econômicas na modernidade, no sentido que:

Estas conexões entre personalidades e relações objetivas – conexões típicas nestes tempos de economia natural – desfaziam-se na economia do dinheiro. Esta última, interpõe em cada instante, entre pessoa e coisa definitivamente qualificada, a instância totalmente objetiva e não qualitativa em si mesma do dinheiro e do valor monetário. Ela impõe uma distância entre pessoa e posse, tornando a relação entre ambas mediada. Ela diferenciou, com isso, a relação anteriormente tão íntima entre elementos pessoais e locais. (Simmel, 1998, p. 2)

Tal questão é também apresentada por Zelizer (2005), ao discorrer sobre "previsões clássicas que apontem para um mundo onde o dinheiro iria homogeneizar, empobrecer e despersonalizar a vida social" (p.137). Este mundo, como podemos perceber, não existe desta forma, e os exemplos etnográficos demonstram justamente o contrário: apontam para uma economia onde o dinheiro circula de forma personalizada, hierarquizando pessoas e criando correspondentes não monetários.

Kula (1966), em crítica aos sistemas econômicos propostos por Godelier, aponta que mesmo em nossa sociedade existem bens não precificáveis e relações econômicas que não são estabelecidas em termos monetários:

We would only like to point out that even in the developed capitalist countries, economic decisions are far from being based on those elements only that are measurable and commensurable with others, that is, in a word, on elements expressable in money terms. (Kula, 1966, p. 10)

Considero o contexto em que realizei a pesquisa como um contexto de "economia do dinheiro", muito embora esta predominância do dinheiro e da objetividade das relações não seja observada em todas as ocasiões. Entendo, então, tal contexto como híbrido, uma vez que o dinheiro assume diferentes pesos e significações de acordo com as relações sociais no qual é empregado e à racionalidade econômica em que está inserido.

Polanyi (1971) analisa as implicações da supressão de um sistema econômico por outro – a economia de mercado – entendido como ideal e pautado na negação do status social do ser humano (Maclver, 1971), propondo a análise da transformação história que possibilitou o surgimento da figura do mercado autorregulável e do estado liberal, criação deste tipo de mercado. O autor percebe que o advento da economia de mercado implica a transformação de uma forma de troca específica em esfera autônoma da sociedade, que inexistia como tal. Esta transformação implica em um esvaziamento das relações econômicas, ignorando o sentido social destas, uma vez que alcance heurístico das categorias de análise do campo econômico são limitadas, versando apenas a respeito das relações que podem ser mediadas dentro do próprio campo da economia. Sobre tal transformação, Polanyi entende que:

a ideia de um mercado autorregulável implicava uma rematada utopia. Uma tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a subsistência humana e natural da sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto. Inevitavelmente, a sociedade teria que tomar medidas para se proteger, mas, quaisquer que tenham sido essas medidas elas prejudicariam a autorregulação do mercado, desorganizariam a vida industrial e, assim, ameaçariam a sociedade em mais de uma maneira. Foi esse dilema que forçou o desenvolvimento do sistema de mercado numa trilha definida e, finalmente, rompeu a organização social que nela se baseava. (Polanyi, 1971, p. 18)

Tal transformação implicou em uma racionalidade econômica específica, pautada pelas noções de raridade e escassez, que orientam as ações do homo economicus. A partir desta razão, toda a ação não pautada por estes critérios e pela mão invisível de Adam Smith, objetivando a maximização dos lucros e a minimização dos custos, são entendidas como não-racionais ou mesmo economicamente irracionais.

Godelier (S/D) aponta que a noção de racionalidade se encontra no centro de toda reflexão econômica e propõe uma ampliação do entendimento do que seria economicamente racional, abarcando também o caráter social das relações econômicas, no sentido de abordar o econômico não somente a partir do aspecto econômico das relações, mas levando em consideração os outros elementos da vida social presentes nestas.

Neste mesmo sentido é o entendimento de Sahlins (1972), ao discorrer sobre uma razão simbólica, criticando o entendimento de que as pessoas se orientariam apenas por uma razão prática, utilitarista e objetiva e as ideias de natureza e razão instrumental que orientam os princípios econômicos.

É possível dizer que o grupo com quem realizei a pesquisa orienta suas relações econômicas conforme o capitalismo e o mercado, não estando desvinculado ou às margens de tal sistema. O discurso de Seu Antônio de que "Se a pessoa é bom pagador ela consegue dez mil reais emprestados em cinco minutos aqui. Se num for, pode rodar São Lourenço que não consegue nem um real" (Entrevista Seu Antônio, São Lourenço, setembro 2016), se assemelha ao discurso de Benjamin Franklin apresentado por Weber (2004) em "A ética protestante e o espírito do capitalismo" de que:

O bom pagador é dono da bolsa alheia. Aquele que é conhecido por pagar exata e pontualmente na data prometida pode, a qualquer momento e em qualquer ocasião, levantar todo o dinheiro de que seus amigos possam dispor. Isso, por vezes, é de grande utilidade. Além da industriosidade e da frugalidade, nada contribui mais para a subida de um jovem na vida que a pontualidade e a justiça em todos os seus negócios; por isso, nunca mantenha dinheiro emprestado uma hora sequer além do tempo prometido, para que o desapontamento não feche para sempre, à bolsa de teus amigos. (Franklin, em Weber, 2004, p. 19)

Este discurso é apresentado por Weber como ilustrativo de um "espírito capitalista", espírito este que também está presente no discurso de Seu Antônio. Esta semelhança evidencia a vinculação das relações às quais direciono meu olhar neste trabalho à lógica capitalista e de mercado, que as orientam obrigatoriamente. A particularidade é tão somente que estas relações não são orientadas apenas por estas lógicas que se pretendem monetariamente objetivas, mas sim por esta combinada com outras relacionadas a aspectos morais e sociais. Hirschman (1979) traz uma outra perspectiva a respeito do surgimento do capitalismo:

Weber pretende que o comportamento e as atividades capitalistas eram o resultado indireto (e originalmente não pretendido) de uma busca desesperada da salvação individual. Minha pretensão é de que a difusão das formas capitalistas devera muito a uma igualmente desesperada busca de um modo de evitar a ruína da sociedade, ameaça permanente na época devido aos precários arranjos no que se referia à ordem interna e externa. (Hirschman, 1979, p. 113-114)

O referido autor ainda aponta que mesmo a racionalidade econômica clássica, representada como puramente utilitarista, é moralmente construída, ao considerar que este sistema foi considerado, em um primeiro momento, como uma virtude capaz de impor restrições aos governantes.

A expansão do comércio e da indústria nos séculos XVII e XVIII foi por nós considerada como uma tendência bem acolhida e fomentada não só por alguns grupos sociais marginais, ou por uma ideologia rebelde, porém por uma corrente de opinião que surgiu no próprio centro da "estrutura de poder" e do "establishment" da época, a partir dos problemas que enfrentavam o príncipe e particularmente seus conselheiros e outros notáveis interessados. Desde o fim da Idade Média, e particularmente como resultado da crescente frequência das guerras civis e das guerras entre nações nos séculos XVII e XVIII iniciara-se a busca de um equivalente comportamental para o preceito religioso, de novas regras de conduta e soluções que imporiam a necessária disciplina e restrições tanto nos mandantes quanto nos mandados; e a expansão do comércio e da indústria foi considerada como muito pronússora a esse respeito. (Hirschman, 1979, p. 113)

As situações que descrevi anteriormente também demonstram esta vinculação ao capitalismo como um "cosmos" (Weber, 2004) no sentido de que os agricultores realizam transações comerciais e de crédito caras às práticas capitalistas, com a única diferença de que não o fazem necessariamente de acordo com a forma prevista por uma lógica formal de mercado, mas a partir de valores próprios.

Weber entende, ainda, que no que tange às relações comerciais, são exigidas éticas sociais diversas em situações diferentes: entre pessoas próximas (parentes ou amigos) a regra do lucro e da exploração não é observada, diferentemente do que ocorrem em transações entre pessoas estranhas. Esta seria uma característica da sociedade tradicional e que, na passagem deste tipo de sociedade para o capitalismo, exigiu-se o estabelecimento de uma ética única que possibilitou que o comércio se tornasse universal. Neste sentido, o contexto que observo apresenta as duas formas de estabelecer relações comerciais, estando presentes as lógicas do capitalismo e da sociedade tradicional.

A coexistência dessas racionalidades econômicas diversas pode ser percebida também nas outras relações econômicas descritas, como a compra e venda. Estas relações, embora orientadas por uma lógica ou racionalidade de mercado, não se esgotam em seu caráter meramente econômico funcional-utilitarista, uma vez que são orientadas por relações sociais preexistentes ao mesmo tempo que constroem novas relações. Este caráter social de tais relações não é ignorado na prática e nos discursos dos interlocutores, que ressaltam a importância da intimidade nestas relações, contrariando a

crença comum de que a racionalidade econômica e os laços íntimos contradizem-se, porque cada uma dessas interseções suscita questões delicadas sobre a natureza dos relacionamentos envolvidos, e porque as atividades econômicas compartilhadas estabelecem direitos e obrigações fortes entre os participantes. (Zelizer, 2011, p. 20)

Esta outra racionalidade, orientada para a manutenção de uma ordem social e moral, prezando as relações pessoalizadas anteriores à relação econômica, demonstra a importância da "pessoa" enquanto unidade moral e valorativa, em cujo ânimo se encerra a "confiança", valor máximo que orienta e se reproduz nestas relações.

Os empréstimos, dessa forma, figurariam como o crédito observado por Arensberg e Kimball (1973), no sentido de que se prestam a manter a estabilidade das relações sociais:

"O crédito é muito mais que uma prática comercial: é um mecanismo através do qual se realiza uma função importante para a sociedade – a estabilização das relações entre o comerciante e seus compradores". (p. 86)

Os discursos dos interlocutores a respeito dos empréstimos demonstram ainda que estes, além de promoverem a estabilidade das relações e da ordem social, operam como uma forma de atribuição de prestígio na comunidade. As pessoas que quitam suas dívidas antes ou ao fim do período de tempo acordado, figuram com devedores preferenciais, uma vez que para elas todo mundo quer emprestar, porque além de existir uma suposta garantia de pagamento baseada na fama de bom pagador, esta goza de prestígio na comunidade, sendo interessante tê-la como parte do círculo de amigos mais próximos.

Neste sentido, mantidas as devidas proporções, os empréstimos podem ser comparados ao observado por Labronici (2019) a respeito das apostas entre jogadores de turfe, em que as relações de proximidade estabelecem mecanismos de prestações e trocas de dinheiro que reforçam os laços entre os participantes, fazendo que as posições de devedor e credor sejam constantemente alternadas. Assim, a dívida institui e consolida a continuidade de relações sociais previamente estabelecidas, estando o capital material e simbólico utilizado na relação de crédito estreitamente ligado a uma moral específica que tem na confiança seu principal valor.

 

Conclusão

O "mercado" como uma categoria genérica aparece na fala dos interlocutores em diversos momentos. Os produtos que são plantados para a venda são produtos que tem mercado, ou se planta convencional, em oposição ao orgânico, porque o primeiro tem mercado. Se entendido como uma categoria sociológica/econômica a imagem que vêm a mente é de uma entidade impessoal e autorregulada. Contudo ao que os interlocutores se referem é ao circuito e seus agentes que torna possível que os cultivos se tornem "produtos" e cheguem até o consumidor final.

O CEASA-RJ é também representado como o "mercado", por ser o local por excelência de uma sociabilidade relacionada às transações comerciais, sendo o este o correspondente ao que Bohannan e Dalton (1962) entendem por "market place", ou seja, o lugar onde as transações econômicas ocorrem com mais frequência. Entretanto, estas não ocorrem apenas neste espaço, sendo comum a venda da produção "na própria roça", por exemplo. A categoria "mercado", então, é mais ampla, envolvendo diferentes espaços e circuitos.

Uma das formas que garantem e intermedeiam as trocas e a produção é a relação de crédito que é estabelecida. Na base desta está o que os produtores descrevem como "confiança", ela só é adquirida através de relações próximas, muitas vezes de parentesco. De qualquer forma os laços de alianças são feitos para poder se inserir neste mercado. É possível perceber, então, que a lógica do mercado, ou a racionalidade econômica clássica, não impera em todas as relações econômicas, embora não esteja ausente. Estas ocorrem conforme diferentes circuitos de trocas, que são articulados em diferentes eixos e que são orientados por diferentes princípios, que podem ser estabelecidos não só de acordo com os objetos que são trocados (Godelier, S/D), mas também de acordo com as relações sociais existentes entre aqueles que trocam (Silva, 1976).

É possível perceber, então, que a dinâmica econômica à qual estamos nos referindo se funda, majoritariamente, na lógica da reciprocidade, apresentada por Sahlins (1972), e é possível perceber a coexistência das três modalidades de reciprocidade apresentadas pelo autor. O "mercado" exterior à região é representado como aquele em que impera a lógica da "reciprocidade negativa", onde as relações são "conduzidas em direção a claras vantagens utilitárias" (Sahlins, 1972, p. 130). No que diz respeito às relações que têm lugar dentro de uma família nuclear é possível perceber a "reciprocidade generalizada", no sentido que as transações são "supostamente altruístas, baseadas em linhas de assistência gratuita e, se possível e necessário, assistência retribuída" (Sahlins, 1972, p. 129). Esta modalidade é percebida, no campo, a partir do discurso dos interlocutores a respeito da "troca", do compartilhamento da terra e dos meios de produção e do empréstimo de quantias de dinheiro sem que seja cobrado juros sobre estas. Nas relações entre os agricultores familiares e os diferentes agentes que operam no mercado, como os panhadores, os atravessadores e até mesmo os comerciantes da região, é possível perceber a predominância da "reciprocidade equilibrada", no sentido de que é possível perceber que esta acontece "onde bens de valor ou utilidade comensurável devem ser dados em retribuição dentro de um período de tempo costumeiro finito ou muito rapidamente" (Sahlins, 1972, p.130).

Neste sentido, percebemos que para que o mercado aconteça na região, é necessária a presença desta "reciprocidade equilibrada", uma vez que para que a produção seja comercializada no mercado exterior à região, é imprescindível que relações baseadas na pessoalidade e em afetos e afinidades sejam acionadas. Esta reciprocidade implica, no sentido apresentado por Mauss (2003), a obrigação de dar, de receber e retribuir, obrigação esta que possibilita a circulação dos produtos.

Desta forma, a perspectiva aqui adotada se aproxima da perspectiva substantivista da economia, considerando o sistema econômico "embebido" (Polanyi, 1971) no sistema moral e nas relações sociais gerais, no sentido de abordá-lo não somente a partir do aspecto dito econômico das relações, mas levando em consideração os outros elementos da vida social que estão presentes nestas relações.

 

Sobre la autora

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos – InEAC.

 

Notas

1 Durante os meses de abril de 2016 a janeiro de 2017 residi na localidade com o intuito de desenvolver a pesquisa que resultou na dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense – PPGA/UFF em julho de 2017. Além de observação participante, realizei entrevistas estruturadas e não estruturadas com os interlocutores, em sua maioria agricultores familiares residentes na comunidade.

2 Centro de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro, empresa vinculada a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Abastecimento e Pesca (SEDRAP).

3 São chamados de "remédios" pelos interlocutores todos os defensivos agrícolas químicos utilizados na manutenção da lavoura, como herbicidas, inseticidas e fungicidas, cuja função é consertar ou prevenir algum dano a esta.

4 Os produtos que são comercializados na região se dividem em três tipos, que variam de acordo com a forma como estes são dispostos para a venda: os "de cabeça", os "de molho" e os de "caixaria". São chamados "de cabeça" aqueles cujo valor é pago por unidade, tais como o brócolis americano e a couve-flor. Os produtos "de molho" são aqueles vendidos em talos agrupados e amarrados com fios de nylon. São considerados "de molho" a salsa, o coentro e a cebolinha. Os produtos "de caixaria" são aqueles vendidos em caixas e cujo preço é pago por caixa do produto. Os produtos "de caixaria" comumente produzidos em São Lourenço são o tomate, a abobrinha, o nabo, o milho e a ervilha.

5 Os interlocutores apontam que no passado era comum a presença de meeiros trabalhando na lavoura, mas que é cada vez mais difícil encontrar quem queira trabalhar como meeiro, uma vez que as pessoas preferem trabalhar "de carteira assinada" ou como parceiros ou arrendatários.

6 Compra e venda realizada a crédito.

7 "Atravessadores" são as pessoas que compram os produtos para vender diretamente para algum estabelecimento comercial e, em sua maioria, são considerados "de fora" da região. Os "panhadores", por sua vez, são pessoas consideradas "da região", que compram dos produtores para vender para algum "atravessador".

8 Não há a obrigatoriedade que a dívida seja paga em dinheiro. Em muitas situações o pagamento é feito através da prestação de serviços (de maquinário ou diária de mão de obra) ou do arrendamento de terras.

 

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Legislação citada

BRASIL, Lei nº 11.326, de 24 de Julho de 2006. Dispõe sobre a Agricultura Familiar.

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