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Cuadernos de antropología social

versión On-line ISSN 1850-275X

Cuad. antropol. soc.  no.50 Buenos Aires jun. 2019  Epub 19-Dic-2019

http://dx.doi.org/10.34096/cas.i50.7018 

Artículo Invitado

Metodologias. Nem contra, nem a favor, muito pelo contrario

Metodologías. Ni en encontra ni a favor, todo lo contrario

Methodologies. Neither for nor against, much to the contrary

1 Universidade de Brasília, Brasil. Correo electrónico: alcidaritaramos@gmail.com

Resumo

O espinhoso tema da metodologia tem perseguido muitos cientistas sociais, incluindo antropólogos. Método, de difícil definição, é muitas vezes confundido com técnicas de pesquisa. Com muita frequência tanto estudantes como profissionais afirmam, por exemplo, que a observação participante é seu “método” privilegiado. No entanto, há marcadas diferenças entre método e técnica. Basicamente, método é um guia, um organizador dos procedimentos de pesquisa. Ao mesmo tempo, revela as inclinações dos pesquisadores para com seus objetos. Este trabalho comenta sobre o uso de metodologia, apresenta casos excepcionais de seu uso apropriado e dá exemplos de metodologias indígenas como contraexemplos, enfatizando o modo indígena de fazer pesquisa, geralmente, permeada de histórias de submissão, humilhação, violência generalizada e desumanização infligidas aos povos não ocidentais que se atravessassem no caminho da expansão e conquista do Ocidente.

Palavras-chave: Pesquisa antropológica; Etnografia; Metodologias indígenas; Serendipity, Epistemologia

Resumen

El espinoso asunto de la metodología ha perseguido a muchos especialistas de las ciencias sociales, entre ellos los antropólogos. Difícil de definir, el método suele ser confundido con las técnicas de investigación; por ejemplo, tanto estudiantes como profesionales proponen con frecuencia que la observación participante es su “método” privilegiado. No obstante, hay grandes diferencias entre método y técnica. El método es, básicamente, una guía, un organizador de los procedimientos de la investigación. Al mismo tiempo, el método revela las inclinaciones de los investigadores hacia sus objetos. Este texto comenta sobre el uso de la metodología, presenta casos excepcionales de su uso apropiado, y propone contraejemplos de metodologías indígenas que subrayan maneras indígenas de hacer investigación, comúnmente permeadas por historias de subyugación, humillaciones, violencia generalizada y deshumanización infligidas a pueblos no occidentales que se cruzaron en el camino de la expansión y conquista occidental.

Palabras clave: Investigación antropológica; Etnografía; Metodologías indígenas; Serendipity; Epistemología

Abstract

The thorny issue of methodology has haunted many a social scientist, among them, anthropologists. Hard to define, method is often confused with research techniques; students and professionals alike very frequently propose, for instance, participant observation as their privileged “method”. However, there are striking differences between method and technique. Method is a guide, an organizer of research procedures. At the same time, it reveals the researchers’ inclinations towards their objects. This paper comments on the use of methodology, presents outstanding cases of its appropriate use, and gives examples of indigenous methodologies as counter examples, stressing the indigenous way of doing research, usually permeated with histories of subjugation, humiliation, generalized violence, and dehumanization inflicted on nonwestern peoples who happen to be in the way of western expansion and conquest.

Key words: Anthropological research; Ethnography; Indigenous methodologies; Serendipity; Epistemology

Não podemos negar que muitas das melhores descobertas da ciência resultaram de puro acidente (Whewell, em Merton e Barber 2004, p. 43)

Primeiramente

Com este título um tanto sardônico, quero chamar atenção para a complexidade que envolve a noção de metodologia nas ciências sociais em geral e na antropologia em particular. Termo de uso impreciso, difuso, muito utilizado para cumprir requisitos institucionais de projetos de pesquisa, ele tem sido objeto de muita discussão e reflexão na nossa disciplina. Ver, por exemplo, o último Handbook of Methods in Cultural Anthropology, volume de 816 páginas publicado em 1998, quase trinta anos depois de seu antecessor de 1970. H. Russell Bernard começa a introdução repetindo o refrão de sempre:

Método trata de escolha - a escolha de seguir a abordagem verstehen ou positivista; a escolha de coletar dados via observação participante ou em arquivos, via observação direta ou entrevistas; a escolha de fazer medições quantitativas ou coletar texto oral, escrito ou visual. (Bernard, 1998, p. 9)

A dificuldade de identificar o que os antropólogos têm chamado de método despertou-me a vontade de, pela primeira vez, me debruçar sobre esse problema, instigada pelo generoso convite para participar da Mesa Redonda Resituar la etnografía: Viejas y nuevas metodologías en el hacer antropológico, durante as IX Jornadas de Investigación en Antropología Social Santiago Wallace (JIASSW), da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, em novembro de 2018. Agradeço calorosamente pelo estímulo de encarar o tema da metodologia com olhos mais afiados.

Como parecerista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), recebo com mais frequência do que gostaria projetos de pesquisa de profissionais e de estudantes para avaliar o mérito acadêmico. Na esmagadora maioria, os autores desses projetos confundem método com técnicas de levantamento de dados. Como anuncia Russell Bernard na citação acima, está lá presente a ubíqua observação participante, a eterna condução de entrevistas, as consultas a arquivos e outras trivialidades de ordem prática, que também incluem o infalível “método etnográfico”. Sem dúvida, conhecer e aplicar as técnicas de pesquisa adequadas ao que se quer pesquisar é tão importante quanto identificar o caminho heurístico que se quer trilhar. Mas isso não justifica confundir técnicas com métodos. É o caso de nos perguntarmos sobre o conteúdo e a eficácia dos chamados cursos de métodos e técnicas, muitas vezes de caráter obrigatório na carreira dos alunos de antropologia, ou como se ensina um estudante a ser pesquisador. Lembro-me sempre da ironia de Edward Evan Evans-Pritchard quando, neófito, ouviu do mestre Bronislaw Malinowski o comentário talvez mais sensato de sua carreira: “ele me disse para não ser um maldito idiota, e então tudo iria bem” (Evans-Pritchard, 1976, p. 243).

Esse é o primeiro e mais banal equívoco sobre metodologia. Há outros que talvez sejam menos equívocos do que posturas ideológicas diante da atividade científica de investigação. O método serve, principalmente, para organizar os procedimentos de uma pesquisa, para domesticar o que pode ser um emaranhado aleatório de ideias e insights. Mas, ao organizar, ele também exclui, encobrindo outras tantas possibilidades. Selecionar implica sempre o descarte de alternativas. A busca por ordem pode obstruir a visão de uma desordem produtiva. Métodos são como faróis que nos conduzem aos caminhos que devemos trilhar para levar a cabo uma investigação. No entanto, a luz desses faróis pode ser tão potente que nos cega para ver outras rotas, criando o que Georges Devereux (1967) descreveu como pontos cegos, antolhos que levantam barreiras sobre paisagens empíricas possivelmente mais amplas e férteis.

Como declarou Devereux, também eu confesso que “quase nunca nomeio aqueles cujas atividades científicas me parecem indefensáveis” (1967, p. xiii). Portanto, limito-me a cotejar a posição de alguns autores que me parecem apropriados para discutir o assunto, por serem claramente críticos da rigidez, do formalismo e mesmo do positivismo de certas metodologias. São autores que se debruçaram sobre o que poderíamos chamar, à maneira de Malinowski, de imponderáveis da atividade de investigação. Além de Devereux, evoco, principalmente, Hans-Georg Gadamer (1975) e Paul Feyerabend (1975). Também chamo à discussão o sociólogo Robert Merton (Merton e Barber, 2004), o antropólogo Émile Durkheim d’As formas elementares da vida religiosa (1961), e o físico Jorge Wagensberg (2007). Evoco especialmente a intelectual Maori, Linda Tuhiwai Smith (1999), dentre outros indígenas, das Américas, que nos dão inúmeros exemplos de como a “boa” metodologia (Devereux, 1967) pode refinar a pesquisa antropológica e torná-la um instrumento sensível ao devir humano. Antes, porém, quero discorrer brevemente sobre um conceito desconhecido ou desprezado por antropólogos que sintetiza o quanto se pode ganhar com suspeita, curiosidade e ousadia e o quanto se pode perder com acomodação, conformismo e demasiada fidelidade a métodos restritivos. Trata-se do conceito de serendipity.

Serendipity

Fascinado por esse termo, Robert K. Merton (juntamente com Elinor Barber) chegou a escrever um livro inteiro sobre ele, intitulado The travels and adventures of Serendipity (2004). Com uma origem oriental antiga, glamorosa e exótica (Campa, 2008), serendipity, que podemos adaptar para serendípia, passou a significar o dado inesperado que não se harmoniza com a expectativa do pesquisador e pode levá-lo a mudar o curso da pesquisa, descobrir horizontes não imaginados e fazer avançar a ciência. É algo fora do lugar, anômalo e estratégico, cuja inconsistência provoca curiosidade e estranheza. No entanto, para ter a curiosidade despertada e transformar a estranheza em ímpeto de compreender, o pesquisador precisa estar preparado para ver nesse dado inusitado seu potencial de renovação. Estar preparado significa familiaridade plena com o campo de estudo, vocação para a pesquisa e uma saudável desconfiança de ideias estabelecidas. Um dos casos mais célebres de serendípia foi a descoberta da penicilina por Alexander Fleming. Depois de muito experimentar com o mesmo material, estafilococus, Fleming de súbito percebeu o valor daquele mofo azul -o fungo Penicillium notatum- que contaminara suas placas e agora invadia sua linha de visão. Foi assim, depois de uma ausência prolongada do laboratório, por acaso, que ele encontrou a penicilina. Mas não foi mais por acaso que ele deu azo à curiosidade e mudou a história da medicina no Ocidente. Em vez de jogar o material “estragado” na lata do lixo, ele se debruçou sobre aquela substância inesperada que “contaminara” suas amostras. Seu mérito foi acreditar na própria perplexidade e levá-la adiante. No entanto, é muito mais frequente que o pesquisador não dê atenção ao anômalo que observa, seja por distração, seja por formação deficiente, seja por seus olhos não transmitirem ao cérebro a mensagem inquietante. O próprio Merton lamentou: “Como era difícil para mim ver o que estava bem diante dos meus olhos!” (Em Campa, 2008, p. 75). Como é difícil para todos nós!

Para evitar a ansiedade descrita por Merton, é mais fácil seguir à risca uma rota já pronta, um método já testado e consagrado, fechar os olhos aos azares da serendípia e repetir ad nauseam modelos que acabam por se tornar modas passageiras. É algo semelhante que Devereux analisa em Anxiety and Method (1967). Embora se debruce sobre a psicanálise, sua formação em antropologia amplia o seu foco e pode nos ajudar a entender o que ele chama de “pseudo metodologia”. Pesquisas no campo do social sempre geram ansiedade advinda do fato de que a mera presença do observador altera a situação de pesquisa. Qualquer situação de pesquisa, seja de campo, seja de laboratório, interfere no contexto de estudo, mas é no social que a questão se acirra. Isto pode afetar a relação do observador com seus observados a ponto de provocar nele uma contratransferência, ou seja, ver-se afetado por eles. Quando isto ocorre, há a tendência de o pesquisador afastar o risco de perder o controle da situação, recorrendo à impessoalidade de métodos “objetivos”, formais ou, roubando a expressão de Clifford Geertz, “experience-distant” (1983, p. 57). São procedimentos que erigem um muro entre “sujeito” e “objeto”. Na minha interpretação do que diz Devereux, a pseudo metodologia seria então um recurso de autodefesa mais dirigido a criar “conforto mental” no pesquisador do que a maximizar o entendimento do fenômeno em estudo.

Mas então, o que seria um método genuíno? Além de alertar para os riscos da pseudo metodologia, Devereux parece confiar, acima de tudo, no bom senso e sensibilidade etnográfica do pesquisador, ou seja, enfrentar o problema da influência do observador sobre a situação observada “de maneira construtiva e procurar saber que insights positivos [...] podemos retirar do fato de que a presença de um observador (que é da mesma ordem de magnitude do observado) perturba o evento observado” (1967, p. 270). Simples assim! Para a década de 1960, não foi pouca coisa.

Método, para que te quero?

No início daquela mesma década, Hans-Georg Gadamer publicou Verdade e método. Como Devereux (1967), opõe-se a método, mas por outro motivo. Gadamer critica a subordinação das “ciências do espírito” às ciências naturais, especialmente, pela ênfase na lógica indutiva e na previsão como desiderato científico. Se o resultado era ver as ciências humanas como “ciências inexatas”, inferiores às ciências naturais, melhor seria não as chamar de ciência. Gadamer (1975) vai mais longe e afirma que as ciências humanas -que, ao contrário, ele considera superiores às naturais- “não têm um método especial” (p. 9) e seria um erro inadmissível tentar

captar o caráter das ciências humanas se as medirmos com os critérios de um crescente conhecimento da regularidade. A experiência do mundo sociohistórico não pode ser elevada a ciência pelo procedimento indutivo das ciências naturais. O que quer que ‘ciência’ signifique aqui, [...] a pesquisa histórica não busca captar os fenômenos concretos como exemplos de uma regra geral. (p. 6)

Assim sendo, Gadamer propõe resgatar uma série de conceitos do humanismo que a lógica indutiva abafara ao longo da história da ciência ocidental. Esses conceitos (Bildung, senso comum, juízo e gosto) constituiriam o polo oposto à indução própria da metodologia das ciências naturais. Seu famoso conceito de fusão de horizontes decorre desse apelo ao passado para compreender o presente, trazendo a história para o primeiro plano. “Compreender”, diz Gadamer (1975), “envolve sempre a fusão desses horizontes que imaginamos existirem sozinhos. [...] Numa tradição esse processo de fusão está em constate devir, pois o velho e o novo crescem sempre juntos” (p. 273). Desse modo, Gadamer criou uma base intelectual de caráter hermenêutico que iria influenciar o trabalho de Geertz e o que ficou conhecido como antropologia pós-moderna ou interpretativa, cuja ênfase está na busca da compreensão (verstehen), enquanto a questão de método não merece maior atenção.

Os quatro conceitos de sustentação do humanismo de Gadamer (1975) são os seguintes: Bildung, de difícil tradução, que poderia ser entendido como formação. “Bildung está intimamente associado à ideia de cultura [no sentido do Kultur alemão] e designa em primeiro lugar a maneira propriamente humana de desenvolver talentos e capacidades naturais” (p. 11). Transportando essa noção para o campo das ciências humanas, Gadamer acrescenta: “Bildung é uma ideia genuinamente histórica, e por causa desse caráter histórico de ‘preservação’, é importante para se entender as ciências humanas” (p. 12). Senso comum. Reminiscente do bom senso de Devereux, este conceito gadameriano evoca “a sabedoria dos antigos e seu cultivo da prudência e da eloquência. ... [S]ensus communis aqui obviamente não significa apenas uma faculdade geral de todos os homens, mas o sentido que funda comunidades” (p. 21). Gadamer prossegue, afirmando que senso comum é “um tipo de gênio da vida prática, [...] menos uma dádiva do que uma tarefa constante de ajustamento, [...] um trabalho de adaptar princípios gerais à realidade” (p. 25). Juízo (julgamento). Todos, diz Gadamer, têm suficiente “‘senso do comum’, ou seja, juízo como para esperar-se que demonstrem um ‘senso de comunidade’ [...] e uma preocupação com o ‘bem comum’” (p. 31). Gosto. A “ideia de gosto originalmente era mais moral do que estética [...] [e descrevia] um ideal de genuína humanidade” (p. 33), desvinculada de “critérios de nascimento e posição, mas simplesmente a natureza partilhada de seu juízo, ou melhor, de sua capacidade de se elevar acima da estreiteza de interesses e predileções privadas” (p. 34).

O filósofo alemão Paul Feyerabend (1975) declarava-se anarquista, mas com as sérias reservas que tinha sobre o anarquismo, preferia ser lembrado “como um dadaísta irreverente e não como um anarquista sério” (p. 21, nota 12). Começa seu ensaio Against method com a seguinte epígrafe: “A ciência é um empreendimento essencialmente anarquista: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais passível de promover o progresso do que suas alternativas lei e ordem” (p. 17). O que os autores aqui citados disseram com luvas de pelica, Feyerabend expõe sem rodeios e floreios. “Prescrições epistemológicas”, diz ele, “podem parecer esplêndidas se comparadas a outras prescrições epistemológicas [...], mas quem garante que elas são a melhor maneira de descobrir não apenas uns tantos ‘fatos’ isolados, mas alguns segredos profundos da natureza?” (p. 20). Feyerabend prossegue com sua crítica a métodos rígidos, denunciando a educação científica, que

‘mutila por compressão’, como os pés de uma dama chinesa, cada parte da natureza humana que se projeta de maneira saliente e tende a marcar a silhueta de alguém como diferente dos ideais de racionalidade que estejam de moda na ciência (Feyerabend, 1975, p. 20).

O antídoto para essa mutilação seria rejeitar “todos os padrões universais e todas as tradições rígidas. [Num parêntese, acrescenta:] (Naturalmente, isto também implica a rejeição de grande parte da ciência contemporânea)” (p. 20). Para Feyerabend (1975), o pensamento dialético seria uma maneira de dissolver a zero as “determinações do entendimento, incluindo a lógica formal” (p. 27). Com a ironia que o caracterizava, Feyerabend declarou:

Para aqueles que olham o rico material fornecido pela história, e que não pretendem empobrecê-la para agradar seus instintos mais baixos, suas ganas por segurança intelectual [lembra-se de Devereux?] na forma de clareza, precisão, ‘objetividade’, ‘verdade’, ficará claro que há só um princípio defensável em todas as circunstâncias e em todos os estágios de desenvolvimento humano. É o princípio: vale tudo, anything goes (Feyerabend, 1975, p. 28).

Voltamos ao Devereux do bom senso e ao Gadamer do senso comum, com suas luvas de pelica. Como estes dois, Feyerabend “não prega soluções, mas desafios a preconcepções amplamente difundidas” (Oberheim, 2011, p. vii). Seria mera coincidência Descartes começar seu Discurso do Método (1973, p. 37) com a expressão “bom senso”?

No entanto, precisamos de algum tipo de orientação de pesquisa para não cair numa completa indeterminação, perdidos num universo de possibilidades. Não é, porém, urdindo hipóteses ou seguindo receitas “teóricas” que chegamos à solução. A meu ver -inspirada nos autores citados aqui- um dos caminhos mais produtivos é perseguir a compreensão. Darei alguns exemplos de procedimentos que me são especialmente inspiradores.

Em primeiro lugar, temos a comparação como dispositivo privilegiado da antropologia, seja na forma de “comparação controlada”, como propôs Fred Eggan (1954), seja no que podemos chamar de comparação contrastiva, como fez, por exemplo, Alexis de Tocqueville (2003). Eggan vislumbrou uma comparação mais produtiva em situações de relativa uniformidade ou, melhor dizendo, em que há um denominador comum a uma série de realidades sociais. Focaliza os Pueblos do sudoeste norte-americano com suas diferenças internas, e eu evoco os Yanomami com seus quatro ou cinco subgrupos claramente delineados, principalmente, pela língua. Quanto a Tocqueville, aristocrata francês do século XIX, intrigado com a noção de democracia, passou nove meses nos Estados Unidos para entender o que era viver num regime democrático. Até hoje, seus achados contribuem para o autoconhecimento estadunidense.

Mas há também o meio termo entre a semelhança relativa e o contraste radical. Quando procurei entender o fenômeno do indigenismo no Brasil, rapidamente percebi a necessidade de o comparar a outros países da América do Sul. Obviamente, há algo em comum, por exemplo, entre o Brasil, a Argentina e a Colômbia, com uma história semelhante de invasão e colonização europeia. Porém, as semelhanças terminam aí. Trata-se, primordialmente, de um conjunto de realidades empíricas díspares, mas capaz de elucidar o que, no indigenismo, é comum ao continente e o que é particular de cada país. Procedendo comparativamente, cheguei à conclusão de que o indigenismo é uma espécie de orientalismo americano (Ramos, 2012a). É, em suma, uma ideologia da alteridade interna.

Ainda no âmbito da comparação, temos exemplos notáveis do uso de método. Por paradoxal que pareça, Émile Durkheim (1961) -o mesmo autor do rançoso As regras do método sociológico- exibe uma capacidade prodigiosa de perseguir seu “objeto” de pesquisa. Ao buscar as formas mais básicas da vida religiosa, Durkheim procede por exclusão. Todo o aparato eclesiástico, todo o panteão de divindades, todas as liturgias formais, tudo é descartado como acréscimos supérfluos ao que está no âmago mais profundo da religiosidade, ou seja, a íntima relação do ser humano consigo mesmo e com o meio ao redor. A famosa conclusão de Durkheim é o resultado de reduzir a vida religiosa ao mínimo absoluto: o objeto de adoração é a própria sociedade. No entanto, seu incansável trabalho de exclusão do supérfluo -seu método, afinal- possibilita interpretarmos de modo diferente essa matéria e, pace Durkheim, propormos que, afinal, o totemismo, a suposta forma elementar da vida religiosa, não é religião nenhuma - tão pouco defendo a análise alternativa de Lévi-Strauss, resultando num mundano e trivial sistema classificatório. Levando minha suspeita às últimas consequências, ouso dizer que religião, não sendo um universal humano, é uma categoria imposta pelas ciências sociais lá, onde ela não existe. Com grande acuidade intelectual, e apesar da sua persuasão positivista, Durkheim abre caminho para pensarmos o impensável.

Em outro registro, extraio inspiração do físico catalão Jorge Wagensberg (2007). Embora as ciências sociais operem em registro muito distinto daquele das ciências exatas, alguns procedimentos têm em comum o velho bom senso. O que Wagensberg propõe é simples como sói ser o bom senso. Simplificando até a sua forma elementar, entendo a sua proposta do seguinte modo: faz-se uma pergunta, elabora-se uma pesquisa para respondê-la, as respostas que surgem geram outras perguntas que, por sua vez, ensejam nova pesquisa, resultando em mais respostas que geram mais perguntas, e assim sucessivamente. É um procedimento que não está imune aos efeitos da serendípia. Algo tão óbvio, a rigor, nem precisaria ser dito. No entanto, constatamos que muitas pesquisas etnográficas atuais se contentam com apenas responder à pergunta inicial, já muito viciada pelos antolhos de uma pseudoteoria perspectivista que “viralizou” mundo a fora, atraiu os holofotes da fama e, como diz um ditado português, deitou-se a dormir. O resultado é uma mesmice interpretativa que, entre outras coisas, rouba a criatividade dos indígenas, que jazem submetidos a receitas prontas vindas de uma academia empobrecida e anêmica (Ramos, 2012b, 2018). Portanto, dizer o óbvio nem sempre é tão óbvio assim.

Um dos autores que cito com frequência é Georges E. Sioui, historiador Huron do Canadá, por apontar o que podemos qualificar como ignorância cultivada dos não indígenas com relação aos indígenas. Sioui se diz perplexo com a imensa dificuldade que têm os indígenas ao tentar sensibilizar os brancos sobre os seus valores tradicionais (Sioui, 1992, p. xxi). Fazer questão de exibir desconhecimento da história, sabedoria e modos de vida dos indígenas é uma maneira corrente, indecorosamente torpe, de os não indígenas se mostrarem superiores, por paradoxal que pareça. Seria como um método vulgar de suprimir o indígena. Seus olhos, como no filme de Stanley Kubrik, mantêm-se wide shut. O grande esforço dos intelectuais indígenas ao penetrar no mundo das letras e ciências ocidentais é, justamente, forçar os colonizadores brancos a abrir esses olhos escancaradamente fechados para realidades que lhes são extremamente incômodas, para não dizer abomináveis. Ver suas obras de vandalismo social e político sendo observadas por suas vítimas é um ato de imolação que não se coaduna com a já milenar vocação ocidental para conquistar e exterminar. Os métodos indígenas, combinando saberes próprios e acadêmicos, realçam a cegueira perversa do dominador.1

Em mãos indígenas

Um dos efeitos dialéticos da colonização é transformar a colonização da consciência em consciência da colonização, na feliz equação de Jean e John Comaroff (1991). De posse dos instrumentos acadêmicos de descrição e análise, um número crescente de intelectuais indígenas tem dado contribuições preciosas para as ciências sociais, ainda que a maior parte não se dirija diretamente à antropologia. Linda Tuhiwai Smith (1999) começa seu livro sobre a descolonização de metodologias com uma crítica curta, dura e muito pertinente: “Irrita-nos que os pesquisadores e intelectuais ocidentais presumam que sabem tudo que é possível saber sobre nós, baseados nos seus breves encontros com alguns de nós” (p. 1). Essa constatação assombra-me desde minha estada com os Sanumá, de 1968 a 1970, de modo que a ansiedade analisada por Devereux, por razões um pouco diferentes, não me é nada estranha. Ironicamente, meus pares acadêmicos surpreendem-se com a minha “tão prolongada” pesquisa de campo.

Sendo o colonialismo um marco capital ou, como diria Paul Ricoeur (1978), um acontecimento fundador na vida dos povos indígenas, a maneira indígena de fazer pesquisa, de entrar no domínio da ciência, é, necessariamente, permeada pela história de submissões, humilhações, violência generalizada e desumanização que todas as nações infligiram -e continuam infligindo- aos seus “outros” internos. A descolonização que Smith faz das metodologias científicas passa, obrigatoriamente, pela experiência colonial. No Pacífico, incluindo a Nova Zelândia, a eclosão do movimento indígena “desencadeou uma pletora de atividades e explosões de energia” (Smith, 1999, p. 115), muitas canalizadas para a pesquisa (Denzin, Lincoln e Smith, 2008). Seu foco estratégico tem sido a autodeterminação dos povos indígenas com uma agenda poético-política inspirada no ritmo das marés oceânicas. Esse esquema -método, se quisermos- compreende quatro marés: “sobrevivência, recuperação, desenvolvimento e autodeterminação”. Smith (1999) associa essa “metodologia” à prioridade de se assegurar territórios, porque “os tratores vão começar a destruir a qualquer momento” (p. 116). Mas onde a metodologia Maori mais difere da ocidental é na ênfase em conceitos como “cura, descolonização, espiritualidade, recuperação”. Ou seja, a ciência Maori nada tem de neutra, estando explicitamente voltada a beneficiar as gentes. Por contraste, os povos indígenas “são profundamente cínicos quanto à capacidade, os motivos ou as metodologias da pesquisa ocidental de trazer benefícios aos povos indígenas” (pp. 117-118).

Espiritualidade também está muito presente nos escritos de intelectuais indígenas da América do Norte. Gregory Cajete, indígena Tewa (Pueblo), por exemplo, afirma que espiritualidade, que nada tem a ver com religião, é a busca de verdades: “A ciência nativa, em seus níveis mais altos de expressão, é um sistema de caminhos que levam a essa verdade perpetuamente em movimento” (Cajete, 2000, p. 19). Margaret Kovach, da etnia Cree do Canadá, inclui o componente da espiritualidade ao analisar metodologias indígenas e afirma sua aproximação com a fenomenologia de Heidegger (Kovach, 2009). Também membro do povo Cree, Shawn Wilson considera que uma investigação científica deveria ter o caráter de cerimônia, como ocorre com as coisas importantes no mundo Cree. Acrescenta que parte integral desse mundo é a espiritualidade que nada mais é do que conectar o interior com o universo (Wilson, 2008).

O antropólogo Floriberto Díaz, da etnia Mixe do México, resume seu entendimento sobre como apreender o mundo indígena na seguinte passagem de seu livro póstumo, Escritos:

Não se entende uma comunidade indígena somente como um conjunto de casas com pessoas, mas sim com pessoas com história, passada, presente e futura, que não apenas se pode definir concretamente, fisicamente, mas também espiritualmente em relação com a natureza inteira. No entanto, o que podemos apreciar da comunidade é o mais visível, o tangível, o fenomênico. [...] [É o] espaço onde as pessoas exercem ações de recriação e de transformação da natureza, enquanto a relação primordial é a da Terra com a gente, por meio do trabalho. (Díaz, 2007, p. 39)

Embutido na mensagem de Díaz há um aviso metodológico: um pesquisador esperto interessado em compreender a vida indígena começaria sua investigação pela comunidade: o que significa, quais são seus múltiplos sentidos, sua coerência material e imaterial e, principalmente, seu congênere, comunalidade, conceito cunhado por Díaz para se referir à qualidade espiritual do viver socialmente.

***

E nós, antropólogos não indígenas, seríamos parte da solução ou do problema? No que concerne a metodologias, ao fim e ao cabo, talvez o procedimento mais sensato para uma investigação etnográfica produtiva e aberta ao inesperado seja jogar fora o projeto de pesquisa já no primeiro dia de campo.

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1Bagele Chilisa, professora titular da Universidade de Botswana, expressa sua revolta contra o desequilíbrio de forças intelectuais e políticas. Descreve como uma pesquisa médica sobre HIV/AIDS na África “ficou muito comprometida pelo emprego de linguagem e categorias de pensamento que são alheias às pessoas e comunidades infectadas; como uma hierarquia dicotômica informada pela colonização, imperialismo e globalização privilegia a posição de primeiro mundo como conhecedor e relega o terceiro mundo à posição de Outro como aprendiz” (Chilisa, 2012, pp. 73-74). É a arrogância ocidental pondo a perder uma preciosa oportunidade de avançar pelo diálogo equânime.

Nota de los editores Artículo elaborado especialmente para Cuadernos de Antropología Social a partir de la exposición de la autora en las IX Jornadas de investigación en Antropología Social Santiago Wallace. Noviembre de 2018. Buenos Aires, Sección de Antropología Social, Instituto de Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.

Sobre la autora

Es Profesora Titular Emérita de la Universidad de Brasilia e Investigadora senior del CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Entre 1968 y 2005 se dedicó a la investigación empírica entre los Sanumá, subgrupo Yanomami, en Brasil. Actualmente, se dedica al estudio de la trayectoria intelectual indígena en el contexto de la antropología y desarrolla el proyecto “Indigenismo Comparado”, focalizando en Brasil, Argentina y Colombia. Además de una centena de artículos, publicó, entre otros libros, Sanumá Memories: An Ethnography in Times of Crisis (1995), Indigenism: Ethnic Politics in Brazil (1998) y compiló el volumen Constituições Nacionais e Povos Indígenas (2012), publicado en español, Constituciones Nacionales y Pueblos Indígenas (2014).

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