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Revista electrónica de investigación en educación en ciencias

versão On-line ISSN 1850-6666

Rev. electrón. investig. educ. cienc. vol.14 no.1 Tandil jul. 2019

 

ARTICULOS ORIGINALES

Ensino de biologia celular por meio de modelos concretos: um estudo de caso no contexto da deficiência visual

 

Alessandra Françoso da Silva Costa1, Airton José Vinholi Júnior2, Shirley Takeco Gobara3

afrancosocosta@gmail.com , vinholi22@yahoo.com.br, stogobara@gmail.com

1Universidade Federal de Mato do Sul, Campo Grande, Brasil.

2Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Brasil.

3Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Brasil


Resumo

A pesquisa apresenta uma experiência realizada no contexto da educação inclusiva, na disciplina de biologia, realizada com um estudante cego, em que foi elaborada uma sequência didática com o objetivo de analisar se a construção e utilização de modelos concretos podem facilitar a aprendizagem de conceitos da disciplina, especialmente biologia celular.  A pesquisa ocorreu no segundo semestre do ano 2017, em seis encontros com duração de 50 minutos, realizados no contraturno de aula do aluno. A elaboração das atividades fundamentou-se em concepções da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, a partir das ideias de Vygotsky, e no desenvolvimento delas, buscando propiciar e acompanhar a evolução dos conceitos iniciais do estudante. A aplicação da sequência foi gravada, transcrita e analisada qualitativamente por meio da Análise Microgenética. Na análise das concepções iniciais, verificou-se que o aluno sabia afirmar que existem diferenças entre um ser vivo e uma matéria bruta e que todos os seres vivos são formados por algum tipo de célula. Porém, ele não soube explicar essas diferenças e nem citar as três partes básicas de uma célula. No levantamento da apropriação do conhecimento, após a pesquisa, foi possível analisar que o aluno conseguiu diferenciar os seres formados por células, bem como suas partes básicas, os tipos de células animais e vegetais, as terminologias e denominações das estruturas internas da célula e as características dos vírus. Conclui-se que a construção dos modelos concretos possibilitou a interação do aluno com o material, criou oportunidades de diálogo entre aluno e professor, favoreceu a troca de conhecimento e promoveu maior aprendizagem sobre os conteúdos biológicos.

Palavras-chave: Biologia celular; Alunos cegos; Modelagem didática.

Enseñanza de la biología celular a través de modelos concretos: un estudio de caso en el contexto de la discapacidad visual

Resumen

La investigación presenta un experimento realizado en el contexto de la educación inclusiva en la disciplina de la biología, realizado con un estudiante ciego, en el que se elaboró ​​una secuencia didáctica con el objetivo de analizar si la construcción y el uso de modelos concretos pueden facilitar el aprendizaje de los conceptos de La disciplina, especialmente la biología celular. La investigación se llevó a cabo en el segundo semestre de 2017, en seis reuniones de 50 minutos, en la contraparte de la clase del estudiante. La elaboración de las actividades se basó en las concepciones de la perspectiva histórico-cultural del desarrollo humano, a partir de las ideas de Vygotsky y su desarrollo, buscando proporcionar y acompañar la evolución de los conceptos iniciales del estudiante. La aplicación de la secuencia fue registrada, transcrita y analizada cualitativamente por Análisis Microgenético. En el análisis de las concepciones iniciales, se verificó que el estudiante sabía afirmar que hay diferencias entre un ser vivo y una materia burda y que todos los seres vivos están formados por algún tipo de célula. Sin embargo, no pudo explicar estas diferencias ni citar las tres partes básicas de una celda. En la encuesta sobre la apropiación del conocimiento, después de la investigación, fue posible analizar que el estudiante fue capaz de diferenciar los seres formados por células, así como sus partes básicas, los tipos de células animales y vegetales, las terminologías y denominaciones de las estructuras internas de la célula y Características de los virus. Se concluye que la construcción de modelos concretos permitió la interacción del estudiante con el material, creó oportunidades para el diálogo entre el estudiante y el profesor, favoreció el intercambio de conocimientos y promovió un mayor aprendizaje sobre los contenidos biológicos.

Palabras clave: Biología celular; Alumnos ciegos; Modelado didáctico.

Teaching of cell biology through concrete models: a case study in the context of visual impairment

Abstract  

The research presents an experiment carried out in the context of inclusive education in the discipline of biology, carried out with a blind student, in which a didactic sequence was elaborated with the objective of analyzing if the construction and use of concrete models can facilitate the learning of concepts of the discipline, especially cellular biology. The research was carried out in the second semester of 2017, in six 50-minute meetings, held in the counterpart of the student's class. The elaboration of the activities was based on conceptions of the historical-cultural perspective of human development, starting from Vygotsky's ideas, and their development, seeking to provide and accompany the evolution of the initial concepts of the student. The application of the sequence was recorded, transcribed and analyzed qualitatively by Microgenetic Analysis. In the analysis of the initial conceptions, it was verified that the student knew to affirm that there are differences between a living being and a gross matter and that all living beings are formed by some type of cell. However, he could not explain these differences or quote the three basic parts of a cell. In the survey of the appropriation of knowledge, after the research, it was possible to analyze that the student was able to differentiate the beings formed by cells, as well as their basic parts, the types of animal and plant cells, the terminologies and denominations of the internal structures of the cell and the characteristics of viruses. It is concluded that the construction of the concrete models allowed the interaction of the student with the material, created opportunities for dialogue between student and teacher, favored the exchange of knowledge and promoted greater learning about biological contents.

Keywords: Cellular biology; Blind students; Didactic modeling.

 I’enseignement de la biologie cellulaire grâce à des modèles concrets: une étude de cas dans le contexte de déficience visuelle

Résumé

La recherche présente une expérience réalisée dans le contexte de l'éducation inclusive dans la discipline de la biologie, réalisée avec un élève aveugle, dans laquelle une séquence didactique a été élaborée dans le but d'analyser si la construction et l'utilisation de modèles concrets peuvent faciliter l'apprentissage des concepts du langage. discipline, en particulier la biologie cellulaire. La recherche a été effectuée au second semestre de 2017, au cours de six réunions de 50 minutes, qui se sont déroulées dans la classe homologue de l'étudiant. Les activités ont été élaborées à partir des conceptions de la perspective historico-culturelle du développement humain, à partir des idées de Vygotsky, et de leur développement, en cherchant à fournir et à accompagner l'évolution des concepts initiaux de l'étudiant. L'application de la séquence a été enregistrée, transcrite et analysée qualitativement par analyse microgénétique. Dans l'analyse des conceptions initiales, il a été vérifié que l'étudiant savait affirmer qu'il existe des différences entre un être vivant et une matière grossière et que tous les êtres vivants sont formés par un type de cellule. Cependant, il ne pouvait pas expliquer ces différences ni citer les trois parties fondamentales d'une cellule. Dans l’étude de l’appropriation des connaissances, il était possible d’analyser, après les recherches, que l’étudiant était capable de différencier les êtres formés par les cellules, ainsi que leurs parties fondamentales, les types de cellules animales et végétales, les terminologies et dénominations des structures internes de la cellule et les caractéristiques des virus. Il est conclu que la construction de modèles concrets a permis l’interaction de l’élève avec le matériel, créé des opportunités de dialogue entre élève et enseignant, favorisé l’échange de connaissances et favorisé un plus grand apprentissage des contenus biologiques.

Mots clés: Biologie cellulaire; Étudiants aveugles; Modélisation didactique.


1. INTRODUÇÃO

O processo de inclusão do aluno com necessidades educacionais especiais exige um replanejamento do espaço escolar, para que ele possa aprender na mesma condição de igualdade que os demais alunos (Viveiro e Camargo, 2011). Preocupados com esse processo, esse artigo tem como foco a aprendizagem de alunos cegos e ou com baixa visão que frequentam a escola regular juntamente com os demais alunos.

A visão é um dos meios de comunicação dos indivíduos com o mundo exterior, sendo este sentido responsável por captar registros do meio externo e permitir a organização das informações cerebrais (Brasil, 2000). A deficiência visual (DV) é identificada como a perda total (cegueira) ou parcial da visão (baixa visão subnormal).

Para Vygotsky (1997), a cegueira cria nova e peculiar configuração da personalidade, cria novas forças, modifica as indicações normais de funções, reestruturando criativamente e organicamente a psique do homem. Esse autor ainda salienta que a orientação sobre a psicologia dos cegos é destinada a superar a falta de visão, por meio da incorporação da experiência de videntes, de outros sentidos e da linguagem, em que a palavra venha superar a cegueira.

Ensinar biologia para alunos com deficiência visual é um dos desafios para o professor, uma vez que a disciplina envolve imagens, símbolos e bastante imaginação, sobretudo por conta de estudos microscópicos relacionados com a vida. Assim, as deficiências não podem ser ignoradas, e atribui-se ao professor o papel de buscar formas que facilitem ou que tornem possível o aprendizado para o aluno cego (Santos e Manga, 2009). Cabe ao professor, de Ciências ou Biologia, buscar metodologias que sejam eficientes, atrativas e que despertem o interesse dos alunos (cegos ou videntes), como o uso de objetos, maquetes, áudios, etc.

Perante as várias reflexões que abordam o ensino de ciências, destaca-se o papel dos modelos e modelagens didática como suporte nos processos de ensino e de aprendizagem para a construção do conhecimento. Na perspectiva construtivista adotada por Vinholi Junior (2015), os alunos participam como sujeitos ativos no processo de construção do conhecimento ao elaborarem os modelos concretos relacionados às temáticas abordadas, os quais possibilitam também a identificação dos conhecimentos prévios dos alunos e a reflexão destes a partir dos modelos que são organizados ou revisados.

De acordo com Della Justina et al (2003), um modelo didático corresponde a um sistema figurativo que reproduz a realidade de forma esquematizada e concreta, representa uma estrutura que pode ser utilizada como referência, uma imagem que permite materializar a ideia ou o conceito, tornando-os assimiláveis.
Neste sentido, considerando a potencialidade da estratégia de modelagem no ensino de ciências apontadas por esses dois autores, esta pesquisa teve como objetivo verificar se o desenvolvimento de uma sequência didática, por meio de construção de modelos concretos pelos alunos, pode facilitar a aprendizagem de conceitos de biologia celular de um aluno cego matriculados na rede de ensino regular do município de Campo Grande, MS.

2. DEFICIÊNCIA VISUAL E ENSINO DE BIOLOGIA: BREVE PANORAMA

A necessidade de investigar e discutir a participação de estudantes com deficiência na educação escolar e, especialmente, a inclusão de estudantes cegos pressupõe que esse processo não está completamente institucionalizado nas escolas brasileiras. Há a crescente necessidade de buscar os pontos elementares que possam contribuir para que uma efetiva organização escolar neste sentido seja, de fato, implementada na maioria das instituições de ensino.  

O debate que concerne a inclusão de estudantes cegos demanda uma intensa revisão da literatura voltada para alguns aspectos relacionados ao objetivo geral deste trabalho, de forma mais específica, para materiais didáticos no contexto biológico que sejam relevantes ao aprendizado do estudante com deficiência visual. Corroborando neste sentido, Cerqueira e Ferreira (2000) salientam a importância da utilização de recursos didáticos na educação especial de estudantes com deficiência visual devido, especialmente, à carência de materiais adequados que possibilitem o aprendizado e uma melhoria na percepção tátil por meio do manuseio de diferentes materiais.

De acordo com Silva et al (2014), os recursos didáticos e tecnologias assistivas são elementos de fundamental importância no ensino de estudantes com deficiência visual, principalmente no âmbito do ensino de ciências, em que o uso de imagens, tais como fotos, tabelas, e até mesmo vídeos, contribuem para o entendimento dos alunos sobre os conceitos que estão sendo ensinados.

Assim, Cardinali e Ferreira (2010) comentam que essa lacuna, no ensino de biologia, necessita ser preenchida com o uso de materiais concretos que forneçam ao estudante uma representação mental mais significativa ao que lhe é oferecido para tatear, fator fundamental para que obtenham maior compreensão dos conteúdos. Dessa forma, a utilização de modelagem didática, por meio de modelos concretos, pode contribuir na formação de imagens mentais próximas das estruturas reais (Nascimento e Bocchiglieri, 2019), o que facilita as condições de acesso para um aprendizado mais efetivo de alunos com deficiência visual.

No objetivo de apresentar um breve panorama sobre materiais e estratégias didáticas envolvendo ensino e/ou aprendizagem de estudantes com deficiência visual, apresenta-se a seguir contextos e resultados de pesquisas e experiências vivenciadas neste âmbito.

Vaz et al (2012) buscaram entender as especificidades de aprendizagem de alunos com deficiência visual (com cegueira e baixa visão) no que concerne ao ensino de biologia. O estudo teve por objetivo a elaboração de materiais inclusivos para o ensino de biologia celular - modelo de tradução, célula eucariótica e núcleo celular, com características que respeitam as necessidades de alunos com deficiência visual. Os autores concluíram que os materiais possibilitaram o uso satisfatório não somente de alunos videntes, mas também de alunos com deficiência visual, foco da pesquisa. Portanto, mostraram-se como todos podem fazer uso significativo de um mesmo material seguindo um dos conceitos básicos para a educação inclusiva.

A pesquisa desenvolvida por Silva et al (2014) teve como objetivo analisar como tem sido o processo quanto à utilização de recursos didáticos para alunos cegos em escolas da rede pública de ensino em Sergipe. Para isso, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três alunos cegos do Ensino Fundamental e suas docentes da disciplina Ciências. As dificuldades apontadas por estes concentram-se, basicamente, na necessidade de utilização de referências visuais e no fato de que os recursos didáticos utilizados pelas professoras não são considerados adequados por elas.

Visando promover estratégias de acessibilidade pedagógica aos estudantes com deficiência visual no ensino de Biologia em relação ao estudo dos Vertebrados, Nascimento e Bocchiglieri (2019) elaboraram modelos tridimensionais utilizando materiais diferenciados para representar aspectos da anatomia e morfologia de representantes das classes dos répteis e das aves. As autoras elaboraram legendas em braille objetivando complementar a interpretação dos recursos didáticos produzidos. Para a validação da eficiência dos modelos foram realizadas entrevistas semiestruturadas com estudantes com deficiência visual do curso de Ciências Biológicas de uma universidade pública do estado do Sergipe. As percepções dos estudantes foram positivas em relação aos recursos produzidos, ressaltando a importância do uso de materiais didáticos como facilitadores na aquisição do conhecimento, destacando-se ainda a importância do papel docente no processo de inclusão.

A partir das inquietações dos docentes acerca da inclusão de pessoas com deficiência visual em salas de aulas regulares, Oliveira (2018) buscou aprofundar o conhecimento sobre o ensino de Ciências e Biologia para alunos deficientes visuais. Para isso, realizou amplo levantamento nacional sobre a produção e utilização dos recursos didáticos táteis adaptados a esses alunos, realizou entrevistas com professores e atuou na produção de material didático. Procedendo-se todas as etapas, a autora constatou a importância dos recursos didáticos no processo de inclusão escolar ao ensino de Ciências e Biologia, mostrando-se motivadores e facilitadores no processo de ensino e aprendizagem tanto para alunos deficientes visuais quanto para aqueles com visão normal, bem como identificou despreparo dos professores ao lidar com tal realidade, fato que a levou a planejar uma oficina de formação continuada para futuras oportunidades neste sentido.

Na pesquisa supracitada, a autora realizou amplo estado da arte visando apresentar um panorama contendo indicativos das tendências da produção acadêmica com a temática produção de materiais adaptados à deficientes visuais para o ensino de Ciências e Biologia. Os resultados apontam a importância de materiais didáticos dirigidos aos alunos com deficiência visual, sobretudo em conteúdos das disciplinas de Ciências e Biologia, que demandam grande apelo visual. Entretanto, a autora reforça que o recurso didático não seja visto como uma simples montagem e um conjunto de resultados, mas como um trabalho que leve a reflexão, análise, que gera questionamentos viabilizando a construção do saber também no docente.
Corroborando neste sentido, a pesquisa aqui apresentada vai ao encontro da importância da criação e da utilização de modelos concretos voltados aos estudantes cegos. Ademais, ao revisar as perspectivas teóricas de Vygotsky sobre o desenvolvimento e educação de cegos, infere-se que as ideias do autor possibilitam entendimentos de implementação de experiências educacionais que venham a favorecer a autonomia e a cidadania das pessoas com deficiência.
 

3. REFERENCIAL TEÓRICO

A pesquisa foi fundamentada na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, baseado nos pensamentos de Vygotsky, que foi um dos únicos pesquisadores de sua época que se interessou em investigar a educação especial e refletir sobre a aprendizagem das pessoas com deficiência, analisando os aspectos que envolvem a construção do sujeito a partir de suas experiências adquiridas pela interação com o outro.

A mediação é um conceito central para a compreensão da concepção de Vygotsky sobre o pensamento psicológico. A relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas sim uma relação mediada (Oliveira, 1993). No ambiente escolar, o professor é o mediador socialmente escolhido para essa interação do aluno com os conceitos científicos acumulados ao longo da história da civilização humana (Silva, 2013).

Segundo Vigotski (2000), os instrumentos são ferramentas mediadoras entre o indivíduo e o mundo, que foram criados para aperfeiçoar o trabalho do homem e modificar seu meio. É do trabalho que nasce a coletividade e a relação social. Os animais também utilizam instrumentos, porém não são capazes de produzi-los para funções especificas, nem de conserva-los e repassa-los a outros grupos sociais. O autor ainda comenta que

Os signos são “instrumentos psicológicos”, orientados para o próprio sujeito e tem por função o controle de ações psicológicas, seja do próprio indivíduo, seja de outras pessoas, são marca que auxilia o homem em tarefas que exigem memória ou atenção. A memória mediada por signos é mais poderosa que a memória não mediada (Vigotski, 2000, p.77).

Ainda de acordo com esse autor, os conceitos são formados pela criança a partir das relações que esta estabelece com o ambiente social e cultural que a cerca, cuja mediação é feita por meio dos signos. Os conceitos identificados como espontâneos são aprendidos nas experiências rotineiras vividas pela criança a partir das interações com os adultos e com outras crianças, e são construídos fora do ambiente escolar. Este tipo de conceito não é formado de modo organizado pela criança, e pode não ser usado de maneira consciente por ela. Já os conceitos científicos são aprendidos na escola, envolvem uma atitude mediada em relação aos objetos e são mediados por outros conceitos. Percorrem um caminho descendente que vai do abstrato para o concreto, fazendo com que a criança, em um primeiro momento, reconheça melhor o próprio conceito do que o objeto que ele representa (Vigotski, 2000). 

O professor tem um  papel relevante  no processo de aprendizagem e a responsabilidade de provocar avanços nos alunos; De acordo com  Vygotsky, o professor deverá atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) do aluno e que está diretamente relacionada com pelo menos dois outros níveis de desenvolvimento identificados por ele:  a Zona de Desenvolvimento Real, que é aquilo que a criança já é capaz de fazer por si própria, e a Zona de Desenvolvimento Potencial, que é a capacidade de aprender com outra pessoa.
A distância entre essas duas zonas forma a ZDP, que é a distância entre aquilo que a criança faz sozinha e o que ela é capaz de fazer com a intervenção de um adulto. Nesse sentido, a potencialidade de aprender não é a mesma para todas as pessoas (Vigotski, 2000).

O estudo das funções psicológicas superiores (FPS) foi um dos pilares dos pensamentos de Vygotsky. Ela se caracteriza como o uso de estímulos artificiais como os signos para desenvolver habilidade de memória, imaginação, percepção, pensamento abstrato e linguagem (Vygotsky, 2007). Envolvem controle consciente do comportamento e são produto do desenvolvimento histórico da humanidade. Diferem, assim, das funções psicológicas elementares, que são aquelas presentes na criança pequena e nos animais, como, por exemplo, as reações automáticas, ações reflexas e associações simples, que são de origem biológica. O desenvolvimento das funções psicológicas superiores depende, essencialmente, das situações sociais em que o sujeito participa (Vygotsky, 1931/2006).

A linguagem tem um papel fundamental na organização e formação das funções psicológicas superiores. Para Vygotsky, a linguagem é um sistema de signo, mediadora das interações, na qual ocupa um papel central para o desenvolvimento do sujeito. É importante para o ser humano, pois existia a necessidade da comunicação até para realizar simples tarefas, e a partir da utilização desse signo que os processos de socialização ficaram evidentes. É por meio do desenvolvimento cognitivo que o indivíduo se torna capaz de socializar, e é na socialização que se dá o desenvolvimento dos processos mentais superiores.

Já a internalização é a capacidade de lidar com representações e que possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo presente, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter interação com o meio social (Oliveira, 1993).

A Defectologia que é o estudo que busca compreender a aprendizagem e o desenvolvimento de crianças com algum tipo de deficiência física ou intelectual, foi descrita por Vygotsky no início do século XX, na chamada União Soviética, e trouxe enormes contribuições aos estudos sobre a Educação Especial. Para esse autor, as pessoas com deficiência podem obter progressos em seu processo de aprendizagem desde que sejam inseridas precocemente em um ambiente receptivo, com materiais adequados de ensino. Ele ainda destacou que é por meio de ação sobre o ambiente e da comunicação social que o aluno cego pode dominar as habilidades mentais que os permitem o conhecimento da realidade, porém a interação social não é tudo, o desenvolvimento também é direcionado e adaptado pelo recursos, sinais e artefatos culturais (Vygotsky, 1997).

4. METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi qualitativa, do tipo estudo de caso. É qualitativa, porque aplica-se ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produto das interpretações que os seres humanos fazem sobre como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos (Fontanella et al, 2008). Configura-se como um estudo de caso, pois envolve-se em um estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que se permita o seu amplo e detalhado conhecimento (Gil, 2007), centrando-se na compreensão da dinâmica do contexto real.

A pesquisa foi desenvolvida em três fases. A primeira consistiu na busca de produções acadêmicas relacionadas às temáticas de estudo para conhecer e mapear as publicações descritas. A segunda se pautou na construção da sequência didática e, a terceira, foi a intervenção propriamente dita.

O ponto de partida desta pesquisa foi a tese de doutorado realizada por Vinholi-Júnior (2015), intitulada “Modelagem Didática como estratégia de ensino para a Aprendizagem Significativa em Biologia Celular”, em que o autor apresentou resultados da realização de um estado do conhecimento acerca do uso de modelagem em estudos baseados em dissertações, teses e artigos entre 1997 e 2011.

4.1. Sujeitos da pesquisa, instrumentos de coleta de dados e local da pesquisa

Conforme a autorização da Secretária de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul (Anexo I), foi realizado um levantamento do número de alunos com deficiência visual matriculados no ensino médio da rede pública, em que foi possível constatar 11 alunos. Desses, somente um aceitou a participar desta proposta.

A pesquisa foi realizada em uma Escola Estadual1, no município de Campo Grande/MS, entre os meses de novembro e dezembro de 2017, com a autorização da direção escolar (Apêndice 1). A Escola foi construída com a participação da comunidade em regime de mutirão. Iniciou as suas atividades com cinco salas e, atualmente, possui 14 salas, oferendo aulas para o ensino fundamental e ensino médio. 

A escola possui biblioteca, laboratório de ciências e informática, quadra de esportes e sala de atendimento especial. As dependências da escola não são acessíveis aos portadores de deficiência, contudo, possui sanitários adaptados.

O aluno, que participou voluntariamente, tem 16 anos e em 2018 estava cursando o segundo ano do Ensino Médio no período matutino. Possui cegueira total desde do ano de 2016. Os motivos da perda de visão foram o rasgamento da retina e o glaucoma congênito. Ele possui ótima mobilidade, pois realiza o trajeto para a escola sozinho, por meio de transporte coletivo.
Na escola, ele conta, desde 2016, com a auxílio da professora de apoio. Segundo o seu relato, em casa ele também não tem maiores dificuldades com a locomoção, devido à memória visual, pois cresceu na mesma residência. No período vespertino, o aluno frequenta o Instituto Sul-Mato-grossense para Cegos Florivaldo Vargas (I.S.M.A.C), onde estava aprendendo o Sistema Braille, o uso de programas de informática, orientações sobre mobilidade e práticas desportivas.

A professora de apoio possui 43 anos, é graduada em Pedagogia, com pós-graduação em Educação Especial e especialista no Sistema Braille. Ela relatou ter pouca experiência com alunos cegos, uma vez que este foi o seu primeiro aluno nessa condição. Ela acompanha o aluno em todas as aulas e avaliações do Ensino Médio, uma vez que o aluno não possui o domínio de leitura em Braille e a escola não possui o material adaptado ao mesmo. Entretanto, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), o Estado tem o dever de prestar o apoio pedagógico especializado.

Foram utilizados questionários, entrevistas e filmagens com o intuito de registar as ações do aluno durante os encontros e buscar indícios das possíveis evoluções dos conceitos científicos dos alunos. Segundo Marconi e Lakatos (1999), entrevistas são como o “encontro entre duas pessoas, afim de que uma delas obtenha informações a respeito de um determinado assunto”. Como ferramenta de orientação, foi utilizado o questionário estruturado, que serve como roteiro, evitando que se mude, adapte ou elabore outras perguntas.

A videogravação serviu como instrumento fundamental para registrar movimento das ações mentais e corporais. Assim sendo, essa técnica permite perceber nas ações corporais do sujeito (ao interagir com materiais) um possível movimento do pensamento acontecendo (Pallatieri e Grando, 2010). Transcrever vídeos é o meio de converter o que se ouve (palavras, músicas, sons, etc.) em textos escritos. Essa técnica vem sendo usada frequentemente como método de pesquisas na área da educação (Planas, 2006).

A Sequência Didática (SD) foi organizada em quatro etapas. Na etapa I da sequência didática, foi aplicado oralmente e registrado em vídeo um questionário estruturado, contendo cinco perguntas abertas com o objetivo de levantar os conhecimentos espontâneos e os conceitos científicos do aluno cego sobre a célula. Na etapa II, foi aplicado, novamente e por meio da fala e registros em vídeo, um novo questionário estruturado, contendo cinco perguntas de múltipla escolha com cinco alternativas de respostas e com um campo para a descrição de qual critério o aluno utilizou para chegar a determinada resposta. O objetivo foi analisar se o aluno conseguia diferenciar células procarióticas, eucarióticas e seres acelulares, após a explicação do conteúdo pelo professor/pesquisador.

Já nas etapas III e IV, foram registradas em vídeo as interações verbais e de conteúdo entre o aluno e a professora de apoio, para que, posteriormente, fossem transcritas, questões acerca da escolha, construção e explicação dos modelos concretos. O aluno contou também com a ajuda do Programa DOSVOX, criado pelo Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trata-se de um sistema para computadores que se comunica com o usuário pela síntese de voz em português e outros idiomas, permitindo ao aluno com deficiência visual independência no estudo e no trabalho (Projeto Dosvox, 2002).

Por fim, na etapa V, foi aplicado um questionário geral contendo dez perguntas abertas, com o objetivo de analisar a ocorrência da aprendizagem do conhecimento científico a partir das atividades de modelagem realizadas pelo pelo aluno cego.

4.2. Análise de dados

Os questionários aplicados nas etapas I, II e V da sequência didática foram analisados de acordo com os critérios propostos por Vazquez-Alonso et al (2008). Esses autores classificam as respostas com os seguintes critérios:  adequada (quando apresentar sentido com o conteúdo) plausíveis (parcialmente aceitáveis) e inadequadas (respostas que não têm sentido com a pergunta realizada). Os questionários tiveram uma abordagem bastante simples em suas terminologias e aprofundamento de conceitos científicos e concepções espontâneas, uma vez que a intenção foi verificar os conhecimentos iniciais básicos acerca da biologia celular e de aspectos elementares que abordam os conceitos celulares. Dessa forma, justifica-se o fato das questões estarem apresentadas, nos questionários, com uma linguagem muito similar às que são abordadas em livros didáticos de ciências e biologia.
As gravações de vídeo foram analisadas por meio de análise Microgenética, fundamentada em uma perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, que privilegia o processo e não o produto (Silva, 2013), em que se analisa a evolução conceitual e as articulações dos conceitos científicos.

Wertsch (1985), com base nos tópicos e pesquisa de Vygotsky, define a análise microgenética como aquela que precisa de uma supervisão detalhista da formação de um processo, descrevendo as ações dos sujeitos e as relações interpessoais, em um curto intervalo de tempo. Essa duração corresponde a um ou poucos encontros, em confinamentos planejados ou a pequenos fragmentos participativos, em circunstâncias naturais.

Segundo Góes (2000), esse tipo de análise favorece as relações intersubjetivas, enfocando as interações verbais entre os sujeitos, para que se registre não apenas as interações verbais, mas também toda a linguagem não verbal que envolve as complexas interações entre sujeitos e também as formas de interação com o conteúdo, por mediação do professor.
O uso da análise Microgenética na escola é, sobretudo, bastante interessante, pois concede a observação sobre como é conduzido o processo ensino-aprendizagem, quais são os atributos do contexto escolar, podendo, assim, identificar as capacidades comunicativas essenciais para o processo de interação que auxilia ou interfere na aprendizagem (Branco e Salomão, 2001).

5. RESULTADOS

5.1. Etapa I - Levantamento dos conceitos espontâneos e dos conceitos científicos dos alunos sobre célula.

As concepções (maneira pessoal de entender algo) investigadas por meio da aplicação do questionário inicial foram: a diferença entre a matéria viva e a bruta; a diferença ente um ser acelular e celular e os diferentes tipos de classificação das células segundo sua organização estrutural. Os resultados obtidos estão indicados no quadro 1.
As respostas observadas nas concepções 1 e 2 foram classificadas como adequadas, pois o aluno conseguiu expressar a diferença entre um ser vivo e uma matéria bruta e que todos os seres vivos são formados por algum tipo de célula.
Já as concepções 3, 4 e 5 foram classificadas como inadequadas, pois embora o aluno tenha afirmado que existem diferenças entre seres celulares, seres acelulares e a morfologia de células, ele não soube explicar essas diferenças.

Quadro 1: Levantamento dos conceitos espontâneos ou concepções e conceitos científicos.

 O estudante também não soube dizer as três partes básicas da célula (membrana plasmática, citoplasma e o núcleo), além de confundir partes com os tipos de células (cartilaginosas). Após o término do questionário, a professora/pesquisadora leu e respondeu todas as perguntas com o aluno, descrevendo que todo ser vivo é formado por pelo menos uma célula e que a célula é a menor parte do ser vivo. Na questão a, comentou que a bactéria é formada por uma única célula (organismos unicelulares) e que o cachorro, a galinha, o peixe e a árvore, são formados por várias células (organismos pluri/multicelulares). Comentou, também, que a célula realiza todas as funções de um ser vivo, como nutrição, produção de energia e reprodução e que só conseguimos observá-la por meio do aparelho de microscópio (instrumento formado por lentes que amplia a imagem), em outros termos, que ela não é visível a olho nu. Na questão b, comentou que os seres vivos diferem da matéria bruta (ser não vivo), como pedra, tijolo e metal, porque são constituídos por células. Na questão c, comentou que as células dos seres vivos não são iguais ou seja existem células muito simples em organização do núcleo (presença da membrana nuclear ou carioteca) como a bactéria (célula procariota) e as muito mais complexas, como o cachorro, a galinha, o peixe (célula eucariota animal) e a árvore (célula eucariota vegetal).  Na questão d, comentou sobre o vírus que são organismos acelulares (sem células), muito simples, conhecidos como parasitas intracelulares obrigatórios, o que significa que eles somente se reproduzem pela invasão e posse do controle da maquinaria de uma célula. Os vírus não têm qualquer atividade metabólica quando estão fora da célula hospedeira (eles não podem captar nutrientes, utilizar energia ou realizar qualquer atividade) e são formados apenas por um tipo de ácido nucléico (ou DNA ou RNA), capsídeo (capa proteica envolvendo o material genético), sendo que alguns vírus possuem um envelope (proteínas codificadas que envolvem o capsídeo). E, por fim, comentou sobre a questão e, explicando as três partes básicas da célula: a membrana plasmática responsável pelo controle de entrada e saída de substâncias do interior da célula para o meio externo e vice-versa; o citoplasma, que é composto por um material gelatinoso à base de água com diversas substâncias dissolvidas, onde se encontram várias estruturas (organelas) e o núcleo, que é uma estrutura que “comanda” as atividades celulares e que regula o mecanismo de reprodução celular (Amabis e Martho, 2004).

5.2. Etapa II – Diferenciar as características morfológicas e fisiológicas das células procariótica, eucariótica animal, eucariótica vegetal e seres acelulares.

Esta etapa foi dividida em dois passos, em que, no primeiro, a professora/pesquisadora descreveu detalhadamente, por meio da fala, as diferenças estruturais de uma célula procariota e eucariota, as principais funções e localizações das organelas citoplasmáticas presentes em cada tipo de células, os formatos e a composição estrutural de um vírus
A professora/pesquisadora iniciou a entrevista discutindo alguns conceitos de célula, como: as principais diferenças entre uma célula procariota e eucariota, enfatizando as três partes que constituem uma célula (membrana plasmática, citoplasma e núcleo). Nesse momento, foi relembrado sobre a presença e a função da membrana plasmática em ambos os tipos de células (procariota e eucariota), em seguida comentou sobre o citoplasma (citosol), onde está presente várias estruturas com funções diferentes, no caso da célula procariota existe apenas os ribossomos, responsáveis pela síntese de proteínas e o sobre o núcleo, pois na célula procariota o material genético (DNA) fica disperso no citoplasma devido à ausência da membrana nuclear ou carioteca.

Foi apresentado um modelo concreto pronto, confeccionado a partir de isopor, massa de modelar e plástico de uma célula eucariota animal, para que o aluno tivesse uma noção tátil dos assuntos apresentados. A professora/pesquisadora foi direcionando a mão do aluno para que ele tivesse o contato com as diferentes formas estruturais de componentes construídos no modelo. Após o contato, a professora/pesquisadora realizou a descrição de cada parte, iniciando pela membrana plasmática, comentando sobre a sua constituição de lipídios e proteínas, responsável pelo controle de entrada e saída de substâncias o interior da célula para o meio externo e vice-versa. Em seguida, ela falou sobre o citoplasma, que é composto por um material gelatinoso à base de água com diversas substâncias dissolvidas, onde se encontram várias estruturas, como: mitocôndrias (responsáveis pela respiração celular), lisossomos (responsáveis pela digestão celular), ribossomos (responsáveis pela produção de proteínas), peroxissomos (responsáveis pela desintoxicação celular), retículo endoplasmático (responsável pelo transporte de proteínas e lipídeos)  e complexo de Golgi (responsável pela secreção celular). Por fim, a professora/pesquisadora descreveu o núcleo, que é uma estrutura que “comanda” as atividades celulares e que regula o mecanismo de reprodução celular. O núcleo possui, em seu interior, moléculas muito especiais, chamadas de ácidos nucléicos (DNA e RNA). São essas moléculas que basicamente organizam o material genético, que comandam as diversas atividades celulares e regulam os mecanismos de reprodução.
Já sem o auxílio do modelo concreto, a professora/pesquisadora retomou novamente o assunto sobre os vírus, relembrando que esses seres são organismos acelulares (sem células), muito simples, conhecidos como parasitas intracelulares obrigatórios, o que significa que eles somente se reproduzem pela invasão e posse do controle da maquinaria de uma célula. Os vírus não têm qualquer atividade metabólica quando estão fora da célula hospedeira (eles não podem captar nutrientes, utilizar energia ou realizar qualquer atividade) e são formados apenas por um tipo de ácido nucléico (ou DNA ou RNA), capsídeo (capa proteica envolvendo o material genético), sendo que alguns vírus possuem um envelope (proteínas codificadas que envolvem o capsídeo). 

Após o término da explicação, foi aplicado um novo questionário (segundo passo dessa etapa da SD), com perguntas de múltipla escolha, descritas a seguir, com o intuito de analisar se o aluno realmente conseguiu entender a diferença entre os seres vivos e a matéria bruta, tipos de células animais e vegetais, características de um vírus e partes básicas de uma célula. Os resultados obtidos estão indicados no quadro 2.

Quadro 2: Perguntas e respostas do questionário diagnóstico 2.

As respostas foram classificadas como adequadas, pois o aluno conseguiu diferenciar os seres formados por células, tipos de células animais e vegetais, características de um vírus e partes básicas de uma célula.
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5.3. Etapa III - Pesquisa sobre tipos de modelos concretos da célula

Nesta etapa, o aluno cego, com ajuda da professora de apoio, realizou uma pesquisa por meio da internet e de livros didáticos por meio do programa DOSVOX sobre o formato e possíveis materiais para a construção de um vírus, uma célula procariota e células eucariotas animais e vegetais.

Após a pesquisa sobre os temas, o aluno cego e a professora de apoio optaram pelos seguintes materiais para a construção dos modelos concretos: bolas de isopor de diferentes tamanhos e formatos (ocas e maciças); massa de modelar, papel EVA e cola quente.

5.4. Etapa IV - Construção e apresentação dos modelos concretos.

Esta etapa foi dividida em dois momentos: a construção e a apresentação.

1º Momento - a construção
 A professora/pesquisadora modelava o formato de uma organela e a descrevia por meio da fala, em seguida, solicitava que o aluno cego reproduzisse a mesma com a massa de modelar
As figuras 01, 02, 03 e 04 representam imagens de células animais, vegetais, procariotas e vírus, respectivamente. Além das estruturas isoladas, o aluno atuou na confecção da estrutura celular ampla, perfazendo todas as organelas e as estruturas internas das células e principais estruturas dos vírus.

Figura 01. Modelo de célula eucariota animal construída por meio de massa de modelar, bola de isopor, EVA e cola quente.

Fonte: Própria autora

Figura 02. Modelo de célula eucariota vegetal construída por meio de massa de modelar, bola de isopor, EVA e cola quente.

Fonte: Própria autora

Figura 03. Modelo de célula procariota construída por meio de massa de modelar, bola de isopor, EVA e cola quente.

Fonte: Própria autora

Figura 04. Modelo de um vírus construído por meio de massa de modelar, bola de isopor e cola quente.

Fonte: Própria autora

2º Momento - a apresentação 

Após a construção dos modelos, foi realizada a apresentação deles pelo aluno cego. Ele iniciou com um modelo de vírus, em que o aluno respondeu adequadamente a parte do material genético, porém respondeu inadequadamente sobre as proteínas receptoras, dizendo que eram os vírus. A professora/pesquisadora o auxiliou, explicando que a estrutura inteira é o vírus e que essas “bolinhas” representam as proteínas receptoras do vírus que ficam na capa que o envolve. Em seguida, o aluno apresentou o modelo de célula procariota (uma bactéria), respondendo adequadamente sobre o nome, a função do material genético e a membrana plasmática, porém respondeu inadequadamente sobre os ribossomos; ele disse que eram as proteínas. A professora/pesquisadora ajudou-o novamente, dizendo que se tratava de uma organela que fabrica proteínas (os ribossomos). Nessa mesma estrutura, o aluno não conseguir tratar sobre os flagelos (estruturas responsáveis pela locomoção). Quando a professora/pesquisadora realizou uma nova pergunta sobre qual a principal diferença entre uma célula eucariota e procariota, o aluno também não conseguiu responder.

Após, a atividade foi realizada com um modelo da célula eucariota animal. A professora/pesquisadora foi direcionando a mão do aluno para as organelas e perguntava sobre o nome e a função de cada uma. O aluno conseguiu responder adequadamente o nome a função do ribossomo e do retículo endoplasmático; parcialmente sobre o centríolo e o complexo golgiense, pois não lembrou o nome, mas acertou a função e respondeu inadequadamente sobre o núcleo, nucléolo, carioteca, citoplasma, mitocôndria, peroxissomos, lisossomos e a membrana plasmática.

Por fim, foi apresentado o modelo de uma célula eucariota vegetal, em que a professora/pesquisadora realizou a mesma pergunta sobre as três estruturas que diferenciam a célula eucariota animal da célula eucariota vegetal (parede celular, cloroplasto e vacúolo). O aluno respondeu adequadamente sobre a parede celular, lembrando o nome e a função, de forma parcial respondeu sobre o cloroplasto, pois não lembrava o nome da organela, mas lembrou a sua função na participação da fotossíntese e respondeu inadequadamente sobre o vacúolo, não lembrando o nome e nem a função.

Para finalizar a apresentação, a professora/pesquisadora redirecionou novamente a mão do aluno por todas as organelas, revisando nome e função de cada uma. Cabe ressaltar que na célula vegetal não há lisossomos, pois essa célula não necessita fazer a digestão celular.

Etapa V - Verificação da apropriação dos conhecimentos científicos.

Para esta etapa, foi aplicado um terceiro questionário, com o objetivo de analisar a apropriação dos conhecimentos científicos. Os resultados estão transcritos a seguir.

  • Concepção 1:  A diferenciação entre a matéria viva e matéria bruta.
  • Concepção 2: A definição de célula.


Quadro 03: Perguntas e respostas do questionário geral das concepções 1 e 2

  • Concepção 3: A diferença de um ser celular e um acelular
  • Concepção 4: As diferenças morfológicas e funcionais entre as células

Quadro 04: Perguntas e respostas do questionário geral das concepções 3 e 4.

Quadro 05: Perguntas e respostas do questionário geral da concepção 5.

Para a pesquisa dos modelos e materiais relacionados à construção, o aluno contou com a mediação da professora de apoio e a ajuda do Programa DOSVOX, que lhe permitiu uma independência no estudo e no trabalho. Já para a construção dos modelos, o aluno contou com a mediação da professora/pesquisadora, que modelava o formato das estruturas/organelas e descrevia-as por meio da fala e, em seguida, solicitava para que o aluno cego reproduzisse o mesmo modelo com a massa de modelar. Essa forma de reproduzir o modelo concreto foi testado com o intuito também de promover o desenvolvimento de diversas funções psicológicas superiores, tais como: memória, imaginação, emoção, atenção, criatividade, abstração, generalização, pensamento e linguagem.

6. CONCLUSÕES

O propósito desta investigação foi dar início a uma discussão sobre o uso de modelos concretos no ensino de Biologia Celular para alunos cegos e com baixa visão, fundamentada em uma teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano. Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo exploratória, de intervenção, desenvolvida no ano de 2017, com um aluno cego matriculado na rede de ensino regular do município de Campo Grande/MS.

Nosso objetivo foi analisar se o desenvolvimento de uma sequência didática, por meio de construção de modelos concretos, pode facilitar a aprendizagem de conteúdos de Biologia Celular de alunos cegos e com baixa visão. Devido à dificuldade e à indisponibilidade de encontrar alunos cegos matriculados em turmas regulares do primeiro ano do Ensino Médio, a SD foi adaptada e aplicada na sala de recursos, somente com um aluno com cego auxiliado pela professora de apoio e pela professora/ pesquisadora. Primeiramente, realizamos um levantamento dos conceitos espontâneos sobre a célula, por meio de um questionário estruturado; em seguida, ocorreu uma explicação das principais diferenças da organização do núcleo e das organelas celulares presentes nas células procariotas e eucariotas, Posteriormente foi proposta a construção de modelos concretos de uma célula procariota, eucariota e um vírus, em que  o aluno teve a oportunidade de explicar cada estrutura criada, e, por fim, foi aplicado um novo questionário estruturado, para a  verificação da apropriação do conhecimento pelo aluno cego.

Os estudos levantados sobre a temática apontam que o uso de modelos concretos contribui para aprendizagem e favorece o processo de construção de conhecimento.
No levantamento das concepções, foi possível constatar que o aluno sabia que existem diferenças entre um ser vivo e uma matéria bruta e que todos os seres vivos são formados por algum tipo de célula. Porém, ele não soube explicar essas diferenças e nem citar as três partes básicas de uma célula.

Já no levantamento da apropriação do conhecimento, após a pesquisa, foi possível verificar que o aluno conseguiu diferenciar os seres formados por células, tipos de células animais e vegetais, características de um vírus e partes básicas de uma célula, assim como a maioria dos nomes e funções das organelas celulares, errando somente a função do complexo golgiense e vacúolo. 

Como parte fundamental da SD, foi desenvolvido com o aluno estratégias colaborativas, como a mediação da professora de apoio na tomada de decisão sobre os materiais utilizados para a construção dos modelos, o uso do programa DOSVOX que se comunica com o usuário pela síntese de voz em português e outros idiomas, isso permitiu ao aluno uma certa independência no estudo e no trabalho, que segundo Vygotsky é uma mediação relacionada aos instrumentos. A estratégia usada na prática da professora/pesquisadora, de modelar as estruturas e as descrever por meio da fala solicitando ao aluno que as reproduzissem conforme o seu entendimento com massa de modelar, promoveu uma troca de conhecimentos na construção dos modelos concretos. 

Por fim concluímos que essa estratégia de ensino aliado à construção dos modelos concretos pelo aluno possibilitou a interação dele com o material, criou oportunidades de diálogos entre ele e o professor, favoreceu a troca de conhecimento e promoveu uma melhor aprendizagem. Porém como a SD foi desenvolvida apenas no atendimento no contra turno, não foi possível desenvolver uma situação de interação entre o aluno cego e seus colegas de sala e o professor de biologia. Como continuidade do trabalho sugere-se desenvolver a modelagem com a participação de um colega não cego e pesquisar e desenvolver cada vez mais recursos didáticos para que o aluno cego consiga atribuir mais o significado aos conceitos de Biologia.

Notas al pie

O nome da escola foi mantido em sigilo, tendo como base os pressupostos de Lüdke e André (2018), que recomendam o anonimato em relação ao informante.

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