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Revista Iberoamericana de Tecnología en Educación y Educación en Tecnología

versión impresa ISSN 1851-0086versión On-line ISSN 1850-9959

Rev. iberoam. tecnol. educ. educ. tecnol.  no.23 La Plata jun. 2019

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

Percursos entrelaçados na configuração do campo acadêmico de Sistemas de Informação no Brasil

Interleaved paths in the configuration of the academic field of Information Systems in Brazil

Isabel Cafezeiro1, Leonardo Cruz da Costa1, Ivan da Costa Marques2, Ricardo Kubrusly2

1 Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

isabel@dcc.ic.uff.br, leo@dcc.ic.uff.br, imarques@nce.ufrj.br, risk@hcte.ufrj.br

Recibido: 26/10/2017 | Corregido: 23/11/2018 | Aceptado: 14/03/2019

Cita sugerida: I. Cafezeiro, L. Cruz da Costa, I. da Costa Marques, R. Kubrusly, "Percursos entrelaçados na configuração do campo acadêmico de Sistemas de Informação no Brasil," Revista Iberoamericana de Tecnología en Educación y Educación en Tecnología, no. 23, pp. 7-13, 2019. doi: 10.24215/18509959.23.e01

 

Resumo

Este artigo retoma momentos do percurso de construção dos cursos de terceiro grau em computação no Brasil e no exterior. O objetivo é compreender e questionar a caracterização dos cursos de graduação em Sistemas de Informação como cursos que têm a computação como "atividade-meio" em contraposição a outros que são classificados como cursos que têm a computação como "atividade-fim". Em particular são abordadas duas tensões: a escolha por um caminho brasileiro em contraposição ao modelo estrangeiro e a opção por um curso interdisciplinar em contraposição a um curso centrado nas ciências exatas.

Palavras chave: Sistemas de informação; Ensino superior; Técnica; Sociedade.

Abstract

This article resumes moments of the path of construction of third-level courses in computer science in Brazil and abroad. The aim is to understand the characterization of undergraduate courses in Information Systems as courses that have "computation as a means" in contrast to other that are classified as courses that have "computation as an end". In the analysis of this division we address the following two tensions:  the option for a Brazilian path in opposition to a foreign model and the option for an interdisciplinary course in opposition to a course centered in the exact sciences.

Keywords: Information systems; Higher education; Technology; Society.

 

1. Introdução

Esquivando-nos de fazer um levantamento histórico completo da formação do campo de Sistemas de Informação no Brasil, o que pretendemos aqui é trazer momentos que foram relevantes no fortalecimento de alguns preceitos que ainda hoje dominam o campo no Brasil: a concepção de que Sistemas de Informação se enquadra nas ciências exatas, e de que o campo da computação se divide em "atividades-meio" e "atividades-fim". Pretendemos mostrar que estas duas concepções aderem a um modelo de Ciência da Computação onde a universalidade e neutralidade se impõem sobre questões de cada localidade. Mostramos aqui que ocorreram, tanto Brasil quanto no exterior, diversas iniciativas que se fundamentavam numa compreensão do campo da computação que valorizava o desenvolvimento local. No Brasil, a formação de uma indústria nacional de computadores foi possível pelo reconhecimento da capacidade de desenvolvimento a partir de demandas locais [1]. Em contrapartida, no âmbito acadêmico, a criação da Ciência da Computação no Brasil na década de 1960 acompanhava essas demandas, mas já na década seguinte, passou a seguir o modelo estrangeiro [2, 3, 4] a despeito de algumas vozes que defendiam a configuração da formação em computação a partir da realidade local [5]. O argumento que conduzimos aqui é que a concepção universal e neutra da ciência certamente atende aos anseios de países dominantes que ditam os rumos das tecnologias sugerindo que seus "grandes desafios da pesquisa" são desafios de todo o mundo. Porém questões urgentes e incômodas aos países que estão fora dos grandes centros de produção de conhecimento nem sempre figuram dentre estas "demandas universais", mantendo estes países sempre em posição desfavorável. A História da Ciência ajuda nestas reflexões porque permite deixar à mostra os jogos de forças que determinam a configuração dos campos de saber, desnaturalizando as fronteiras do conhecimento. Perceber que as fronteiras da ciência se configuram de maneira a atender as demandas de certos grupos em determinado tempo e local nos leva a pensar na possibilidade de reconfigurações dos campos de saber de modo a atender à nossa conjuntura (do Brasil ou dos países fora dos grandes centros) em nosso próprio tempo. Daí, argumentamos em favor de uma compreensão interdisciplinar do campo de Sistemas de Informação, e para isso, problematizamos a separação da computação em "atividades-meio" e "atividades-fim".

2. Primeiros passos: Entre um caminho brasileiro e um modelo estrangeiro  

No Brasil, os cursos de terceiro grau em computação começaram a surgir na década de 1970, com duas exceções: o curso de Ciências da Computação da UNICAMP na cidade de Campinas, São Paulo e o curso de Processamento de Dados da UFBA na cidade de Salvador, Bahia. Estes entraram em operação em 1969. Nesta época, o país ainda iniciava o seu percurso no estabelecimento de uma indústria de software e hardware [6]. A partir de 1964, em decorrência do golpe militar, passou a vigorar no país um governo ditatorial, que impunha fortes restrições à circulação de ideias. Atores importantes da construção da ciência no Brasil foram expulsos, obrigados a buscar exílio no exterior. Acompanhando essa dispersão de pesquisadores, fortalecia-se no país a concepção de que o desenvolvimento viria a partir da adesão aos modelos praticados no exterior, em países desenvolvidos [7]. Ao final da década de 1960, a agência responsável pelo financiamento da pesquisa no Brasil, o CNPq (Conselho Nacional de Ensino e Pesquisa) [8], passou a adotar mecanismos de formação de pesquisadores através do financiamento de doutorados em universidades renomadas do exterior. Mais tarde, retornando ao Brasil, estes novos mestres ou doutores se depararam com um panorama pouco acolhedor à sua capacitação:

Jovens, viajados e irrequietos, com pouquíssimas exceções, tinham cumprido a etapa de aperfeiçoamento em universidades estrangeiras, passado pela euforia de se descobrir em pé de igualdade com os pesquisadores e professores norte-americanos e pela frustração de constatar que tal competência de pouco servia no Brasil. Venceram o complexo de inferioridade e subdesenvolvimento, perceberam-se capazes e bem preparados, mas não se viram com oportunidade para aplicar seus conhecimentos, a não ser dando aulas para alunos pouco interessados no que ensinavam. [9]

Estes jovens se empenharam na organização de seminários1 onde discutiam possibilidades de educação em computação no Brasil, e de onde surgiram propostas de novos cursos de graduação. Muitas destas propostas eram redigidas em Inglês e discutidas em congressos no exterior, o que demonstra a aderência ao modelo estrangeiro na área da computação [2, 3]. Por outro lado, algumas propostas de cursos de graduação não mereceram menção nestes artigos. O curso de Processamento de Dados da UFBA, criado em 1968 é um exemplo. Essa omissão pode ter decorrido do fato de tratar-se de uma universidade nordestina, região brasileira castigada pelo subdesenvolvimento e desigualdade social, e que portanto, escapava do eixo de visibilidade da computação: Rio - São Paulo - Rio Grande do Sul. Pode também ter sido pela aderência do curso à dinâmica do mercado: o curso baiano objetivava cobrir demanda imediata do mercado de trabalho. Esta função parecia ser destinada aos cursos de extensão ou formação técnica, mas não a um curso de graduação, do qual se esperava uma formação dita "científica".

Vemos aqui um percurso embaraçado na configuração dos currículos: de um lado uma pressão pela aderência aos modelos internacionais considerados científicos, por outro lado a demanda interna urgente pela formação de profissionais capazes de conduzir a construção do aparato computacional do país. Nessa disputa, ganhou força no âmbito acadêmico a tendência em favor da coerência ao modelo estrangeiro, embora fosse clara para um certo grupo de pesquisadores brasileiros a inevitável imbricação entre os processos sociais e as ciências e tecnologias, ou seja, a inadequação da cisão entre demanda local e ciência. Nessa perspectiva, estes pesquisadores se manifestavam em favor de desenvolvimentos locais de ciência e tecnologia:

O pesquisador brasileiro sentia-se obrigado a orientar seus trabalhos para uma meta pelo menos discutível: conseguir publicação em periódicos estrangeiros. Considerando-se a posição do Brasil no campo da tecnologia, uma tal opção implicava não apenas a dependência à "última palavra" da pesquisa internacional no setor, como ainda, em última análise, a importação dos próprios problemas a serem resolvidos. Faltava, como se vê, uma conscientização do papel do pesquisador na comunidade em que vive. [5]

Como decorrência do fortalecimento da aderência ao modelo estrangeiro vemos que mais tarde, o curso da UFBA acabou cedendo às pressões no sentido de tornar a formação "mais acadêmica":

O curso de Computação da UFBA foi autorizado em 09/11/1968 com o nome de Bacharelado em Processamento de Dados pelo Conselho Universitário, iniciando as suas atividades em 03/03/1969. Foi o primeiro curso de graduação no Brasil nesta área ao lado do curso de Ciência da Computação da UNICAMP. O curso era voltado para a formação de analistas de sistemas tendo a área de sistemas de informação como o foco central do currículo. Em 24/07/1978 passou por uma reformulação curricular e teve o reconhecimento do MEC. Ainda com o objetivo de formar analistas de sistemas, começou a enfocar aspectos mais teóricos, incluindo disciplinas de fundamentação da área, buscando uma formação mais acadêmica. Teve o currículo atualizado com pequenos ajustes até 1996, ano em que passou a se chamar Bacharelado em Ciência da Computação, parecer 020/96 aprovado pela Câmara de Ensino de Graduação em 09/01/1996. [10]

3. A cena internacional: entre processos sociais e matematização

Pouco antes, no cenário internacional, a passagem dos anos 60 para 70 já dava sinais de que a imbricação entre os processos sociais e o desenvolvimento científico e tecnológico eram inevitáveis na conformação do campo da Computação, e a disputa entre a caracterização estritamente como ciências exatas ou a abertura para a interdisciplinaridade se fazia evidente. Nas famosas conferências da OTAN (Organização Militar do Atlântico Norte), marco inaugural da institucionalização do campo da computação, os cientistas acusavam o abismo entre aquilo que se esperava de um sistema e o que realmente se conseguia, suspeitas de que questões de ordem social se misturavam às técnicas:

Numa conferência deste tipo, quando os presentes são tecnicamente competentes, tende-se a acelerar a comunicação ao não declarar o óbvio. Naturalmente 99% dos computadores trabalham satisfatoriamente, isso é o óbvio. (...) Nós todos sabemos isso! A questão que nos preocupa é o limite sensível, que é socialmente desesperadamente significativo [11].

Para alguns dos importantes pesquisadores da conferência, era clara a participação de questões sociais na computação, e daí a necessidade de conhecimentos humanísticos na conformação do campo da computação. Por exemplo, Alan Perlis, que proferiu a fala de abertura e coordenou os trabalhos afirmou: "Vemos surgir a necessidade de sistemas que permitam a cooperação, por exemplo, entre engenharia e gestão de informações."  [11]. Nos relatórios da conferência Perlis se mostrava reticente em aceitar a configuração do campo da computação em bases estritamente matemáticas. Na conferência da OTAN do ano seguinte, Perlis se mantém na contra-mão do domínio da matematização. É em resposta a seus argumentos a favor dos testes empíricos que o então renomado pesquisador Edsger Djkstra insistiu teimosamente na defesa das provas formais: "Testes mostram a presença de bugs, mas não a ausência" [11]. Com uma clareza supreendente, Perlis considerava a relação entre humanos e computador como uma dependência simbiótica, a mesma imbricação percebida por ele entre a sociedade e a ciência. Alguns anos mais tarde foi bastante criticado pela frase: "Para entender um programa você precisa ser tanto máquina quanto homem" [12]. Porém nas disputas da conferência, a tendência à matematização se mostrou mais forte do que os apelos aos processos sociais, resultando no esforço declarado por parte de um grupo acadêmico de renome em posicionar a computação (em particular, a programação) como Ciências Exatas:

Programação de computadores é uma ciência exata em que todas as propriedades de um programa e todas as consequências de executá-lo em um dado ambiente podem, em princípio, ser descobertas a partir do texto do próprio programa por meio de raciocínio puramente dedutivo. [13]

Pouco tempo depois, o artigo denominado "Processos Sociais e Provas de Teoremas e Programas" atiçou um debate fervoroso na seção das cartas da ACM2, despertando entusiasmadas manifestações a favor e contra o entrelaçamento de processos sociais e matematização [14]:

- Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso! Refiro-me, naturalmente, a "Processos Sociais e Provas de Teoremas e Programas" de DeMillo, Lipton e Perlis, nas Comunicações da ACM de Maio de 19793.

- A ACM parece ter ido longe demais em sua ânsia de reafirmar DeMillo, Lipton e Perlis4.

Os autores de "Processos Sociais e Provas de Teoremas e Programas" argumentavam que as provas matemáticas se sustentam em processos sociais e insistiam:

[N]ossa aposta é que o estudo de algoritmos e programas se desenvolverá assim como qualquer outra atividade matemática, principalmente por mecanismos sociais informais, e muito pouco, se é que algum, por mecanismos formais. [15].

Apesar das manifestações em favor da formação de um campo híbrido, os currículos matematizados se tornaram referência no campo, e embora reconhecendo a importância de saberes diversificados na formação curricular, a comunidade da computação frequentemente se absteve de refletir sobre a organização desses saberes no currículo e seu relacionamento com a computação. Esta foi a direção apontada a partir do seminal relatório "Curriculum 68" [16], produzido por um comitê de 12 membros de universidades americanas, e publicado na edição de março de 1968 da revista Communications of the ACM:

[A]s implicações sociológicas, econômicas e educacionais dos desenvolvimentos na ciência da computação não são discutidas neste relatório. Estas questões são, sem dúvida, importantes, mas não são a exclusiva, nem mesmo a maior responsabilidade da ciência da computação. Na verdade, outros setores como a filosofia e a sociologia devem ser instados a cooperar com cientistas da computação no desenvolvimento de cursos ou seminários sobre esses tópicos, e os estudantes de ciências da computação devem ser encorajados a fazer esses cursos. [16]

Esse relatório seria utilizado como base para organizar os primeiros currículos dos cursos de graduação plena em Computação nas principais universidades do Brasil, na década de 1970 [17].

4. A formação dos currículos na década de 1970: Forte cisão entre sociedade e técnica

Nos anos setenta, ao propor uma política educacional para o desenvolvimento da computação no país, Lucena [2] se apoiou em uma forte separação entre sociedade e o conhecimento técnico (matemático), identificando no domínio da técnica o que é exato, verdadeiro e correto. Lhe pareceu portanto razoável que a técnica se pusesse a serviço da sociedade, fornecendo explicações sobre suas dinâmicas e propondo políticas que herdariam da exatidão matemática a corretude e certeza necessárias para bem conduzir os rumos educacionais na formação do campo da computação:

Achamos confortável pensar na solução do problema educacional da mesma forma que pensamos ao resolver numericamente uma equação diferencial. O que precisa ser feito é construir um procedimento através do qual forneçamos pessoas, tanto a curto quanto a longo prazo, para a universidade e sistemas industriais. Se pensarmos na educação como um bem econômico, podemos observar que, com relação ao presente problema, existem dois tipos de bens a serem considerados: bens de consumo e bens de investimentos. De fato, nossa indústria vai ansiosamente consumir técnicos, como programadores e analistas de sistemas, para fazer funcionar os presentes e futuros centros de computação. Mas o nosso país também necessita investir no desenvolvimento de professores que serão capazes de treinar os usuários e instrutores do futuro. Assim, vamos subdividir a discussão sobre o estabelecimento das condições iniciais [para o desenvolvimento da computação no país] em duas partes. [2]

A partir desse trecho, o autor desenvolve um argumento que termina por separar "cursos de extensão" e "programas de ciência e engenharia" na formação em computação, os primeiros visando atender diretamente ao mercado e os segundos visando contribuir no desenvolvimento da ciência e tecnologia.

Esta concepção evoluiu para uma proposição mais explícita na separação dos cursos de computação. Em 1975, em artigo publicado no Congresso Internacional de Processamento de Informação, IFIP, Lucena [3] apresentam uma classificação que foi abraçada pela Sociedade Brasileira de Computação e se tornou fundamental na organização dos currículos. Ele sugeriu chamar de "atividades-fim" tarefas diretamente relacionadas com as máquinas: codificação e perfuração, preparação de dados, operação de computadores, programação de sistemas e aplicações, representação técnica, manutenção e fabricação, projeto de sistemas, ensino e pesquisa. As "atividades-meio" seriam aquelas relacionadas à gerência tanto no âmbito das tecnologias quanto no âmbito geral. O primeiro grupo assumiu uma identidade estritamente "técnica e científica", onde computadores e sistemas computacionais são enfocados por si só, como entidades autônomas. O segundo grupo admitiu uma aproximação entre sistemas e sociedade, já que as atividades que o sistema gerencia se efetuam no âmbito de uma empresa ou organização.

Esta divisão de tarefas recebeu um acolhimento forte na comunidade da computação, chegando ao ponto de embasar a categorização dos cursos de graduação. No currículo de referência da Sociedade Brasileira de Computação em 1999 [18], os Bacharelados em Ciência da Computação ou Engenharias de Computação são exemplos de cursos que têm a computação como "atividade-fim". Nesse sentido, a Ciência da Computação ocupa o lugar da técnica, justificando seu posicionamento como ciências exatas, conforme consta hoje na tabela de áreas de conhecimento do CNPq5, assumindo um papel de destaque na produção de ciência e tecnologia:

Os cursos que têm a computação como atividade-fim devem preparar profissionais capacitados a contribuir para a evolução do conhecimento do ponto de vista científico e tecnológico, e utilizar esse conhecimento na avaliação, especificação e desenvolvimento de ferramentas, métodos e sistemas computacionais [18, grifo nosso].

Por outro lado, o segundo grupo teria a computação como "atividade-meio". Organiza-se em torno da compreensão de que computadores e sistemas computacionais operam na sociedade (organizações, instituições, escolas) e portanto, sua construção e uso satisfatórios requerem a compreensão do ambiente onde serão postos em operação. Para isso torna-se necessária a presença de um conjunto de conhecimentos que escapam ao âmbito da técnica, envolvendo campos de saberes como Sociologia e Política, Psicologia, Ciência da Informação, Meio ambiente, Direito, Administração, dentre outros (conforme expresso por Alan Perlis nas conferências da OTAN). Esta classificação abrange os antigos cursos da década de 1970 que visavam a formação de analistas de sistemas (como o mencionado curso da UFBA) e os atuais Cursos de Bacharelado em Sistemas de Informação. A Sociedade Brasileira de Computação não destaca claramente a contribuição desses cursos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia:

Os cursos que têm a computação como atividade-meio preparam profissionais capacitados a aplicar a computação em outros domínios de conhecimento. Os profissionais devem ser aptos a desenvolver e utilizar sistemas de informação para solução de problemas organizacionais ou administrativos de diversos tipos de empresas: industriais, de prestação de serviços, de consultoria, empresas públicas e estatais, empresas produtoras de software, etc. [18]

Embora possa passar despercebidamente na caracterização destes dois grupos, se estabelece aqui uma divisão de papéis que posiciona o segundo grupo como uma formação de menor prestígio, como uma pseudo-ciência prestadora de serviços, destituída de um caráter científico.

5. A configuração dos currículos em Sistemas de Informação e Ciência da Computação

Os embates que nos referimos na seção 1 entre a construção de um caminho brasileiro ou a opção por seguir o modelo internacional não são dissociados das disputas abordadas na seção 2 sobre o reconhecimento da participação de processos sociais no campo da computação ou a adoção por um modelo de ciências exatas. A adesão ao modelo internacional se ampara na suposição de que a ciência seria universal, ou seja, os mesmos critérios poderiam ser adotados tanto no Brasil quanto nos centros hegemônicos como os Estados Unidos e Europa, ou em qualquer outro lugar. Assim, as diretivas curriculares produzidas lá, deveriam ser adotadas aqui, de maneira a permitir que os nossos currículos seguissem um suposto "caminho correto" na formação profissional. Para isso se faz necessário afastar dos currículos as questões sociais, pois elas aproximam os conteúdos curriculares da localidade onde o currículo se aplica, provocam a remodelação de conteúdos, abordagens e ideias conforme as demandas de cada lugar. Ao tornar os currículos aderentes às necessidades locais termina-se por enfraquecer uma divisão internacional de tarefas que indica quem determina os rumos das ciências e tecnologias e quem segue estes rumos a despeito de suas próprias demandas.

Essa divisão internacional de tarefas apoia-se no mito fortalecido ao longo da era moderna de que fatos científicos ou artefatos tecnológicos teriam uma existência independente das questões sociais, ou seja, não seriam parte componente de uma intrincada rede de tensões sociais da qual participam fatores das mais diversas configurações.  Sendo independente das questões sociais e humanísticas, haveria então uma natureza intrínseca, inerente da técnica, sobre a qual se estabelecem as noções de correção ("a técnica certa"), de universalidade ("a técnica se aplica do mesmo modo, em  qualquer lugar, independentemente das condições locais"), de neutralidade (a técnica não carrega em sua construção as condições de onde foi concebida), linearidade (a técnica é fruto de uma evolução livre de interferências e retrocessos) e de essencia (a técnica é pura, independente e separada da sociedade). É precisamente essa suposta "natureza intrínseca da técnica" que é enfocada na abordagem da computação como "atividade-fim", e dá sentido a considerar computadores e sistemas de maneira desvinculada do mundo onde operam.

Interessa, portanto, à ciência hegemônica (aos grandes produtores mundiais de ciência e tecnologia que ocupam o lugar almejado por nós, e que nos empenhamos em alcançar repetindo seus procedimentos, e critérios) [19] fortalecer a ideia de que sociedade e ciência não se misturam.

Consolida-se aqui uma dicotomia entre ciência e trabalho que estabelece uma forte separação entre mente e corpo, pensar e fazer, objetividade e subjetividade, raciocinar e sentir, técnicas e humanidades. Nesta dicotomia, o lado trabalho-corpo-fazer-subjetivo-sentir-humano é inquestionavelmente desprestigiado. Assim, a divisão entre cursos de "atividade-fim" e "atividade-meio" situam os cursos classificados como de "atividades-meio" em posição de desprestígio já que priorizam o trabalho, a sociedade e as demandas locais.

Conclusões

Como foi dito na introdução deste artigo, a História da Ciência nos ajuda na desnaturalização das fronteiras do saber, na medida em que deixa claro que as configurações dos campos de saber são socialmente construídas (historicamente situadas). Abre portanto a possibilidade de admitirmos reconfigurações de disciplinas e áreas de formação de modo a atender à nossa conjuntura em nosso próprio tempo. Sob este ponto de vista, argumentamos em favor de uma compreensão interdisciplinar do campo de Sistemas de Informação e questionamos a separação da computação em "atividades-meio" e "atividades-fim", uma vez que esta divisão não se mostra produtiva para o campo de Sistemas de Informação.

Notas

1 Os Seminários de Computação na Universidade, SECOMU, que a partir de 1980 foram incorporados ao congresso da Sociedade Brasileira de Computação, terão, neste ano de 2018 a sua 44ê edição.

2  ACM, Association for Computing Machinery, é a sociedade internacional de maior reconhecimento com relação ao ensino da computação. É amplamente respeitada e seguida na área. Foi fundada em 1947.

3 Esta carta publicada no fórum da ACM de Novembro de 1979 é assinada por Leonard F. Zettel, Jr., que não fornece indicações sobre cargo, profissão ou local de  trabalho. Ao que parece, Leonard F. Zettel Jr. é engenheiro químico de formação, envolvido com computadores desde 1962.

4 Carta de Leslie Lamport para o fórum da ACM de Novembro de 1979. Leslie Lamport é atualmente conhecido pelo desenvolvimento do processador de texto LaTex, muito difundido dentre matemáticos e cientistas da computação. Fez grandes contribuições à área de sistemas distribuídos, e é atualmente Doutor Honoris Causa em quatro universidades. À época desta carta, trabalhava no Stanford Research Institute, na Califórnia, EUA.

5 http://www.cnpq.br/documents/10157/186158/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf

Referências

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[2] C. Lucena, "Computer Education in Developing Countries: The Brazilian Experience", in Proceedings of the IFIP World Conference on Computer Education, Amsterdam, 1970, pp II.369-II.373.         [ Links ]

[3] Lucena, C. "A multilevel national approach to computer education", in O. Lecarme, R. Lewis, (Eds.) Computers in education: proceedings of the IFIP 2d World Conference, International Federation for Information Processing. Amsterdam: North-Holland Publishing Company,1975, pp 145-150.         [ Links ]

[4] M. Jonathan, "A Evolução da Formação em Computação no Brasil". Monografia de Qualificação de Doutorado, HCTE/UFRJ, 2017.         [ Links ]

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[7] V. Dantas, "Engenheiros que não queriam vender computadores: a comunidade acadêmica de informática e a reserva de mercado". Dissertação de mestrado, HCTE-UFRJ, 2013. Disponível em: http://www.hcte.ufrj.br/index.html?arq=dissertacoes_teses.htm&flag=expand        [ Links ]

[8] Brasil, (1951, Jan. 15), Lei nº 1.310. Cria o Conselho Nacional de Pesquisas e dá outras providências, 1951. Disponível em: http://cnpq.br/lei-1310        [ Links ]

[9] V. Dantas, Guerrilha tecnológica: a verdadeira história da política nacional de informática. Rio de Janeiro, RJ: Livros Técnicos e Científicos, 1988.         [ Links ]

[10] UFBA, Proposta de projeto pedagógico para o curso de bacharelado em ciência da computação, 2011.         [ Links ]

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[12] Perlis, A. "Epigrams on programming", ACM SIGPLAN Notices, vol. 17, no. 9, pp. 7-13, 1982. Transcrição em: http://www.cs.yale.edu/homes/perlis-alan/quotes.html        [ Links ]

[13] Hoare, T. "An axiomatic basis for computing programming", Communications of the ACM, vol.12, no.10, pp. 576-583, 1969.         [ Links ]

[14] ACM Forum, "Comments on Social Process and Proofs", Communications of the ACM, vol. 22, no. 11, pp. 621-629,1979         [ Links ]

[15] De Millo, R., Lipton, R. e Perlis, A. "Social Process and Proofs of Theorems and Programs", Communications of the ACM, vol. 22, no.5, pp.271-280, 1979.         [ Links ]

[16] Atchison, W.F., et al. "Curriculum 68: Recommendations for academic programs in computer science: a report of the ACM curriculum committee on computer science", Communications of the ACM, vol.11 no.3, pp. 151-197, 1968.         [ Links ]

[17] Jonathan, M. "Um breve histórico da formação em Computação no Brasil", in: Anais do Scientiarum Historia IV, HCTE-UFRJ, 2011.         [ Links ]

[18] SBC, "Currículo de Referência da SBC para Cursos de Graduação em Computação", Sociedade Brasileira de Computação.  Bento Gonçalves – RS, 1999

[19] Marques, I. da C., "História das Ciências, Estudos CTS e os Brasis", Palestra de abertura do Congresso Scientiarum História XIX, UFRJ, Rio de Janeiro, 2016         [ Links ]

 

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