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Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  n.11 Posadas jul. 2007

 

ARTÍCULOS

Origem  Migrante

Virgínia Ferreira da Silva*

* Doutora em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Brasil.E-mail: virginiafes@gmail.com

Resumo

A partir de experiência de pesquisa com migrações internas no Brasil contemporâneo, o presente artigo faz questionamentos sobre a origem e pertencimento de migrantes, articulando à discussão pressupostos teóricos e suas implicações. No caso de pessoas que já nasceram imersas num processo migratório intenso, a origem ganha novo sentido, e o lugar que ela ocupa, na análise, deve ser repensado.

Palavras-chave: Migrantes; Migrações Internas; Pertencimento; Origem.

Abstract

Through the experience in research with internal migrations in the contemporary Brazil, this article raises questions about migrant's origin and belonging, articulating to theorical assumptions and their implications. For people who were born in an intense migratory process, the origin acquires a new sense and its place could be reconsidered.

Keywords: Migrants; Internal Migrations; Belonging; Origin.

Fecha de recepción: Noviembre 2006
Fecha de aprobación: Febrero 2007

Introdução

Uma das premissas que comumente informa pesquisas que abarcam o fenômeno migratório em sua análise, é a de que esse fenômeno se realiza por meio de processos sociais, os quais evidenciam que os indivíduos migram inseridos num conjunto de relações sociais específicas. Que mesmo tendo migrado, eles não deixam de pertencer a um grupo social específico e ao conjunto de suas relações sociais funda-mentais. Mesmo que existam mudanças, a ligação com sua origem não deixa de existir, e a migração não pode ser considerada como desagre-gadora de grupos sociais (Thomas e Znaniecki, 1974; Sayad, 1998; Queiroz 1973; Menezes 1996; Garcia, 1990; Seyferth, 1990 entre outros).

No presente artigo, discuto esta assertiva e algumas de suas implicações, aliando à discussão teórica os resultados de minha pesquisa de doutorado1 - na qual trabalhei com migrações internas do Brasil contemporâneo, tomando como lócus de estudo o bairro Cidade Aracy, sito na periferia urbana da cidade de São Carlos, interior do estado de São Paulo. A pesquisa tem como objeto as redes de relações sociais em que estão envolvidos migrantes e, ao longo de seu desenvolvimento, alguns dados geraram questionamentos importantes que envolvem espe-cialmente a questão da origem e do pertencimento de grupos sociais mi-grantes.

Fui para o bairro sem ter decidido estudar uma procedência especí-fica, ou seja, não sabia se iria estudar migrantes paranaenses, baianos, mineiros, etc. Pesquisas quantitativas como o Censo (2000) me indica-vam algo sobre a população migrante de São Carlos: das pessoas que lá residiam e que vieram de outros estados nos últimos cinco anos (a partir do ano 2000, data de realização do Censo), 24,4% vieram do Paraná, 16,5%, da Bahia e 10,3%, de Minas Gerais. O mesmo Censo (2000) dizia que dos 192.998 habitantes de São Carlos, 31.873 não eram naturais do estado de São Paulo, e que desses, 31% eram do Paraná, 19,8% de Minas e 15,4% da Bahia.

Uma vez no bairro, me pareceu que a maioria dos moradores era composta por paranaenses, não apenas pelo fato deles dizerem que lá havia muitos paranaenses, mas também por eu ter conhecido muitos que se apresentavam como tal. No contato com esses moradores, surgiu um dado que deu início à problematização da realidade social observada: muitos dos que se diziam paranaenses haviam nascido em outros estados brasileiros, sendo os principais deles Bahia e Minas Gerais. Foi a primeira contradição com a qual me deparei, pois esses sujeitos que se diziam paranaenses, depois de uma conversa mais longa, em que surgiam mais detalhes sobre sua vida, explicavam que não haviam nascido no Paraná e algumas vezes nem mesmo possuíam um histórico familiar nesse estado.

Considerei contraditório o fato de que, ao mesmo tempo em que se diziam paranaenses e se afastavam de uma origem baiana ou mineira, apresentavam-me, por outro lado, dados que indicavam uma ligação intensa com algum desses estados, embora essa ligação não fosse muitas vezes assumida explicitamente. Diante disso, o que parecia claro deixou de ser: Quem eram aqueles migrantes? Paranaenses? Baianos? Como essas pessoas que se dizem paranaenses assimilam seu contato com outros estados que constituem sua trajetória?

Se a questão da origem parecia-me um ponto de partida importante para pensar a manutenção e a reconstrução das relações sociais dos migrantes, constatar que ela não poderia mais ser tomada como um dado, me levou a rever meu raciocínio. A própria noção de origem deveria ser questionada - já que ela me indicava a aparência de múltiplos pertencimentos.

Na bibliografia sobre migração, geralmente perpassa a idéia de que existe uma 'origem' do migrante, a qual pode ser pensada em termos de uma 'origem social' - que nos permite entender o pertencimento - que é, por sua vez, atrelada a uma 'origem regional' - associada a um espaço físico.2 Esses fatores - pertencimento, origens regional e social - são comumente tratados como intrinsecamente relacionados.

Por exemplo, quando Menezes diz que vai analisar as cartas dos migrantes: "as cartas de indivíduos distantes de sua terra natal para familiares no local de origem foram a principal ferramenta para a análise da reciprocidade familiar entre os membros que permanecem e os que se ausentam" (Menezes, 2002: 16). O pertencimento a um grupo, expresso pelas cartas, aparece remetido a uma origem do migrante, e seu grupo social de origem é associado a local de nascimento e origem regional comum. Isto se adequa à realidade social por ela encontrada, mas não pude conduzir minha pesquisa com as mesmas premissas.

Conforme disse, estas pesquisas consideram que mesmo distante geograficamente de sua comunidade, de sua origem, o migrante continua pertencente a ela, continua socialmente próximo de sua origem, uma idéia com a qual concordo. Mas, o que permanece não questionado nessas pesquisas é o fato de o migrante ser visto como pertencente a um grupo que, em última instância, associa-se a uma origem regional única, que por sua vez é atrelada a local de nascimento e local onde a família possui sua história. Assim, o migrante é visto como pertencente a uma origem social, mas também a uma localidade geográfica ditada pela origem régio-nal: assim são enunciados como paranaenses, paraibanos, etc.  

Na pesquisa de campo, logo detectei que a origem que me enunciavam os migrantes não era determinada - pelos próprios - segun-do o local de nascimento ou local em que a família possuía grande parte de sua história. Primeiro ponto a ser questionado: o que significava ser paranaense ali? Diante da pergunta 'de onde você é?', o que os fazia res-ponder 'do Paraná'? Não era por terem nascido lá. Além disso, ao se identificarem paranaenses, não deixavam de demonstrar sua ligação com a Bahia ou qualquer estado que compusesse sua trajetória. A origem desses migrantes não poderia, por princípio, ser tomada pela origem regional que enunciavam.

Como os próprios entrevistados disseram, encontrei no bairro "paranaenses da Bahia", "paranaenses de Minas", "paranaenses de São Paulo", assim como paranaenses que vieram do Mato Grosso. Então, não seria suficiente dizer que trabalho com paranaenses em São Carlos, pois uma multiplicidade de trajetórias esconde-se nessa simplificação. Não encontrei um único processo migratório envolvendo as famílias, mas vários que se entrelaçavam. A migração fazia parte da vida deles.

Como exemplo, cito a família que saiu da Bahia, foi para o Paraná e hoje está em São Carlos. Nem todos os membros fizeram esse trajeto; alguns irmãos passaram por outros estados, outros vieram direto da Bahia para São Carlos, outros continuam vivendo no Paraná. Nas palavras de Helenice, membro da família, eles continuam "indo e vindo igual serrote". A migração compõe a dinâmica da vida dessas famílias.

Assim, diferente de muitas análises, não me atento ao estudo de uma migração específica, por exemplo, baianos ou nordestinos em São Paulo. Não analiso um momento que inaugura um tipo específico de migração, mas trato de uma geração de migrantes que nasceu em meio ao processo migratório já estabelecido.

Por esse motivo, falar de paranaenses em São Carlos tornou-se algo não muito simples, pois passou a envolver uma discussão sobre a origem do migrante que será feita adiante. Discussão esta que prati-camente inexiste na bibliografia sobre o tema, que considera migrantes 'paranaenses', 'paraibanos' ou 'nordestinos', classificações que, para minha análise, não se mostraram suficientes ou esclarecedoras; de forma diferente, encobriam trajetórias e pareciam simplificar o universo desses migrantes.

A construção da origem e do pertencimento na bibliografia

Destaco inicialmente a obra dos autores Thomas e Znaniecki (1974), que são referência com a obra ThePolishPeasant in Europeand America, publicada pela primeira vez em 1918, e que trata especialmente da migração de camponeses poloneses para os Estados Unidos em fins do século XIX.3

Ao definirem esse camponês, os autores levam em conta aspectos da vida comunal e da organização familiar. Deixam claro que a comunidade - ou qualquer grupo social estudado - deve ser definida se-gundo o conjunto de suas relações sociais significativas. Assim, descrê-vem o grupo de camponeses poloneses conforme os 'sentimentos famí-liares', nos quais está envolvida, especialmente, a 'solidariedade familiar', que por sua vez se manifesta por meio da 'assistência' e 'controle' internos. Dentro dessa lógica, os autores mostram a importância dos casamentos, da formação de novas unidades familiares, da educação dos filhos, da autoridade dos pais, etc. (Thomas e Znaniecki, 1974: 89).

Ao incluírem em sua análise o fenômeno migratório, evidenciam de que forma tais aspectos continuam existindo, e que a migração não significa a ruptura imediata deles. Mesmo tendo o indivíduo passado por uma mudança, esta não seria suficiente para fazer desaparecer o 'sentimento familiar', porém o caráter de sua manifestação poderia mudar (Thomas e Znaniecki, 1974: 102). Por exemplo, ao falarem de jovens que deixaram suas famílias na Polônia e migraram para os Estados Unidos, analisam de que forma esse jovem, operando uma forma de adaptação, continua fazendo parte da família. Isso acontece por meio de uma conduta social sobre a qual ele não reflete - mesmo tendo migrado, continua não colocando em questão a natureza de sua obrigação para com seus pais e família: envia para ela todo dinheiro possível, constituindo essa responsabilidade a condição para continuar fazendo parte dela (Thomas & Znaniecki, 1974: 103):4

"When the boy leaves his family in Poland and comes to America, he at first raises no questions about the nature of his duties to his parents and family at home. He plans to send home all the money possible; he lives in the cheapest way and works the longest hours. He writes: 'Dear Parents: I send you 300 roubles, and I will always send you as much as I can earn'." (Thomas e Znaniecki, 1974: 103).

Assim, por meio da remessa de dinheiro fica clara a manutenção de seu pertencimento à família e à comunidade, que mesmo tendo migrado e estando distante da família, ele não está sozinho, mas inserido no conjunto de relações sociais fundamentais de sua comunidade de origem. Além de evidenciarem que o migrante não é desgarrado socialmente de sua origem, os autores mostram que sua mudança não é necessariamente desestruturadora de suas relações sociais. Deve-se acrescentar o fato de que a própria decisão de migrar faz parte de um processo que acontece no interior do grupo social a que pertencem: não optam sozinhos pela migração. Mesmo que existam processos sociais "mais amplos" como o próprio modo de desen-volvimento nacional, que cria dificuldades de permanência do grupo num espaço físico e que os atrai para outros, a migração só se concretiza na vida dessas pessoas por meio de processos mais "íntimos", como é o caso do incentivo da família: geralmente a migração acontece a partir da recomendação de parentes ou de amigos.5 Isso pode ser percebido no texto de Sayad (1995) que trata de favelas francesas ocupadas majoritariamente por argelinos. Ao falar do nascimento dessa favela - bidonville - escreve que:

"À partir de là, un phénomène de contagion se s'instaure. Chacun des locataires incite ses parents, amis et connaissances, à venir le rejoindre, à venir se 'bidonvilliser', et se construire une baraque (...) Le bidonville est une création d'immigrés pour les immigrés... (Sayad, 1995: 32) O autor afirma que um fenômeno de contágio se instaura, como uma forma de solidariedade, "chacun s'autorise de la présence de l'autre pour trouver une raison et une consolation à as prope présence au bidonville" (Sayad, 1995: 32).

Ou seja, a decisão de migrar não deve ser pensada apenas segundo condições materiais e objetivas que "expulsam" as pessoas do campo - por exemplo, pela falta de emprego - mas tam-bém segundo outros condicionamentos sociais relacionados à comunida- de à qual o migrante pertence (Sayad, 1995).

São as redes sociais, recomendação de parentes e amigos, que fazem as pessoas migrarem, e a migração acontece segundo algumas regras. No caso dos argelinos (Sayad, 1995), os homens sozinhos - sem sua mulher e família - partem e vão morar em alojamentos, constituídos de quartos coletivos que marcam uma transitoriedade na cidade, já que não supõe família. Depois, com a família, vão morar numa "casa". Há então uma ordem de vinda, enfim, fatos que dizem algo da própria organização da família argelina, que reproduzem, no novo lugar, suas redes e relações de uma maneira própria.6

Em um de seus trabalhos, o mesmo autor enfoca especialmente uma aldeia da Cabília, Argélia (Sayad, 1998). Devido a um forte processo de proletarização dos trabalhadores rurais, a emigração para a França surge como a única possibilidade de romper com esse círculo. O estatuto de todo indivíduo, na aldeia, passa a se definir com relação à emigração (Sayad, 1998: 41). O próprio ingresso à vida adulta não se faz mais por meio das normas tradicionais que definiam a excelência camponesa (trabalho na terra do camponês, agricultor - fellah), mas a própria emigra-ção torna-se fator de emancipação por excelência de jovens cabiles.

Assim, a migração torna-se importante não como fator de desintegração da aldeia, mas como fator fundamental de sua per-manência - embora inclua mudanças. Os cabiles emigram como mem-bros da aldeia, e esse pertencimento é mantido ao longo de todo o processo migratório; os emigrantes não deixam de ser contados como homens da aldeia, mesmo que morem na França por muitos anos e que lá terminem os seus dias (Sayad, 1998:31). É como se a comunidade à qual pertencem se estendesse pelo espaço físico, e o migrante continuasse fazendo parte dela.

Como fica claro por meio dessa bibliografia, migrantes já entram no processo migratório envolvidos em redes sociais que não apenas os mantêm próximos de sua origem, mas que também permeiam o modo como vai se dar a recriação de suas redes de sociabilidade. Foi ancorada em pressupostos teóricos que caminham nesse sentido que fiz a primeira construção de meu problema de pesquisa, que busca analisar em que redes de relações sociais os migrantes estão envolvidos.

Ao mesmo tempo em que me ajudou, esse pressuposto me levou a importantes questionamentos e direcionamentos de pesquisa. Ele implica uma noção de pertencimento que, no estudo da migração, aparece muito associado a uma "origem" específica. Essa origem, por sua vez, associa-se a um espaço físico definido, seja ele um estado, cidade, vila, etc. Mesmo que a comunidade em foco nas pesquisas seja devidamente traçada segundo suas relações sociais fundamentais, os migrantes não deixam se ser definidos, a priori, como associados a um lugar, como, por exemplo, uma vila argelina.

São, portanto, os 'argelinos' na França, ou 'poloneses' na América. Embora o grupo social não se limite a uma localidade geográfica, seja Argélia ou Polônia, eles são referidos como 'argelinos' ou 'poloneses', o que não deixa de ser uma categorização tomada desde o princípio como dada. Não apenas no que diz respeito a estado-nação, mas também quando nos referimos a vilas, bairros rurais ou o que quer que seja. Por exemplo, quando falamos em 'nordestinos', 'paraibanos', 'mineiros', etc., para o caso da realidade social brasileira.

No caso da bibliografia nacional, essas referências são comuns em qualquer pesquisa que trate do fenômeno migratório. É o caso, por exemplo, do trabalho de Silva (1999), que desenvolveu um extenso estudo sobre trabalhadores rurais na região de Ribeirão Preto (que abrange São Carlos, cidade em que fica o bairro estudado). Ao inserir em seu estudo os migrantes, identifica-os como tendo vindo dos estados de Minas Gerais (Vale do Jequitinhonha) e do sul da Bahia. Embora ela trabalhe com os migrantes sazonais, não coloca em questão: sabe estar trabalhando com 'mineiros' e 'baianos', e desenvolve sua análise a partir disso.

Também no trabalho de Menezes (2002), não há questionamentos sobre pertencimentos que remetem a uma origem regional ao analisar as diversas questões envolvidas no recrutamento de trabalhadores migran-tes da região agreste da Paraíba para a Zona da Mata Norte de Pernam-buco, eles são migrantes 'paraibanos'. Não estou criticando tais pés-quisas, apenas procurando mostrar como tive dificuldade em encontrar, na literatura sobre o tema, discussão que desse conta da realidade que eu observava no bairro no que diz respeito à questão da origem.

Diante do universo de análise que se apresentava para mim, não pude, do mesmo modo, definir com que migrante eu trabalhava, se eram "paranaenses", "mineiros" ou "baianos". O uso dessas categorias tor-nou-se insatisfatório e parecia simplificar o que eu observava. Eram "paranáenses da Bahia", uma novidade com a qual eu teria de lidar. Eram pessoas que nasceram em famílias migrantes e que em suas vidas continuaram a migrar.

A origem, para os próprios migrantes, parecia assumir uma outra importância, parecia ser traçada segundo outras variáveis, determinada na interação estabelecida com o interlocutor. Era algo definível na própria trajetória, algo contextualizado, podendo variar ao longo da vida do sujeito e do processo migratório. Assim, continuo essa discussão abaixo, somando à análise os dados de meu campo de pesquisa.

Origem e identificação segundo dados do campo de análise

Esclareço que levei em consideração as representações dos próprios agentes sociais, e somente a partir delas desenvolvi minhas análises, confrontando meus referenciais teóricos com as formulações que me apresentavam.

Farei algumas considerações sobre a identificação paranaense, à medida que foi uma contradição notar que, ao mesmo tempo em que se diziam paranaenses, apresentavam ligação intensa com outros estados brasileiros. Ao investigar essa contradição aparente, observei que os próprios moradores do bairro, apesar de terem se referido a eles como "paranaenses de Minas" ou "paranaenses da Bahia", não colocavam isso como um problema.

Paranaenses não tinham sua identificação questionada no bairro, a comtradição estava sendo construída por mim, segundo o que eu espe-rava encontrar. Inicio descrevendo a contradição que eu via inicialmente, o que eles me diziam acerca do Paraná e de outros estados. Antonio, "paranaense da Bahia", me contou de sua mudança da Bahia para o Paraná:

Antonio - Muita gente de lá começou a ir para o Paraná na época. Esse seu Jairo, que hoje mora aqui, foi para o Paraná e voltou na Bahia e falou, "ó, lá é muito bom, lá produz bem milho, produz bem feijão..." Aí praticamente levou meu pai né.

E nós fomos para lá, isso em 72...                  

Em 72, e você já tinha nascido?

Antonio - Já, eu nasci em 67, tinha 5 anos. Aí ficamos lá...       E você nem lembra lá da Bahia?

Antonio - Não, nunca mais voltei na Bahia, não conheço nada da Bahia, então praticamente eu me considero paranaense, fiquei 25 anos lá no Paraná.

Ele e sua família foram da Bahia para o Paraná segundo indicação de uma outra família, a qual foi também para São Carlos antes deles, e continuaram muito próximos entre si no Cidade Aracy. Consideram-se inclusive da mesma família, justificando que no passado a mãe de Antonio fora ama de leite dos filhos dessa família amiga. E os pais foram todos criados juntos num passado mais remoto. Assim como Antonio, os membros dessa outra família, cujo pai viaja constantemente para a Bahia, também se consideram paranaenses, e os filhos são donos do "Mercadinho Paraná", em São Carlos.

Dei-me conta de que o processo de mudança (baiano ® para-naense) não ocorria individualmente, era um processo socialmente moti-vado: o grupo continuava existindo, embora não mais como "baianos", mas como "paranaenses". Esse fenômeno foi notado não apenas no caso dessas famílias, pude percebê-lo em diversos casos. Cito mais um exemplo. É o caso do dono do Depósito (de construção) Paraná, conhecido no Cidade Aracy como "Paraná", identifica-se como para-naense porém não nega, por outro lado, sua ligação com Minas:

Paraná - Olha, os meus parentes eu tenho muitos em Minas, gosto muito de lá, inclusive tenho vontade de voltar, porque lá é um lugar mais, mais... Fácil para a gente viver, assim... Que a gente, depois de certa idade, a gente vai querendo assim um lugar mais sossegado, então lá é muito assim, a região de Três Pontas [em Minas], é uma região muito boa.

Assim, cada paranaense que eu conhecia acabava, depois de uma maior proximidade, revelando-me uma trajetória especialmente ligada à Bahia, Minas ou São Paulo, sendo que muitas vezes eles próprios haviam nascido num desses estados, e se não eles, seus pais certamente. O vínculo forte com algum desses lugares transparecia em suas falas, tal como aconteceu também com Antônio:

- O contato com a Bahia ou com as pessoas de lá, você não manteve depois que você foi para o Paraná?

Antonio - Contato a gente tem até hoje, inclusive meu pai tem terra lá na Bahia. Meu pai tem um irmão que mora lá... Meus avós por parte da minha mãe moravam lá, faleceram... A gente sempre tem contato através de carta, telefone... Tenho minha tia que mora lá, inclusive esses dias ela mandou umas coisas pra mim de lá, coisas que eu gosto.

- O que ela mandou?

Antonio - Ela mandou uns bolos que ela faz, que ela tem uma lanchonete, um requeijão baiano que ela sabe que eu gosto, um requeijão, doce de coco que ela faz, caseiro...

- Mas como que ela manda, por alguém?

Antonio - É, pessoas daqui que foram para lá. Esse senhor que eu falei para você que foi da Bahia para o Paraná e depois veio pra cá, ele tem uns parentes que moram lá também, e sempre, ele sempre vai lá. Uma ou duas vezes por ano ele vai lá, tem uns irmãos que moram lá. Aí minha tia manda por ele.

- Ah, então você tem contato com a Bahia... Tem família lá ainda...

Antonio - Tenho família lá ainda. - Agora, ir para lá sem chances?

Antonio - Não, nunca mais voltei. Tenho vontade de ir lá ainda, não para morar, mas passear, rever os parentes...

- E eles falam que lá está como, está bom?

Antonio - Ah, melhorou bastante com relação à época que eu estava lá, hoje tem irrigação, na época você ficava dependendo da chuva, hoje você depende dos rios, que você irriga a água, dos rios para a terra. Então melhorou nesse sentido. Trabalha com a irrigação para produzir, quando está seco, eles produzem assim mesmo.

Por intermédio de Antonio conheci outras situações similares, como a da outra família amiga da dele. Apesar de também estarem ligados à Bahia, possuem no bairro o "Mercadinho Paraná" e são por todos ali conhecidos como paranaenses. Não faltam exemplos de "paranaenses de Minas", "paranaenses da Bahia".7 Segundo eles próprios me explicaram, entre os anos de 1940 e 1950, foram muitos migrantes para o Paraná, época em que era ainda era um "estado novo", em que as pessoas que recebiam terras doadas pelo INCRA eram os proprietários originários. Uma época de muito desmatamento especialmente do lado norte do Paraná. Para lá foram paulistas, mineiros, cariocas, baianos. Seria a primeira leva de migrantes para o Paraná.

Na segunda leva havia também muitos mineiros, paulistas e baianos. Trata-se dos que foram, por volta das décadas de 60 e 70, para a agricultura paranaense, trabalhar no café. Muitos adquiriram seus sítios ou arrendavam suas terras, e lá ficaram até os anos em que o Paraná começou a ser tomado pelas grandes fazendas. Isso levou migrantes das duas levas a empreenderem migração para o Mato Grosso e para cidades como São Carlos, em São Paulo. No bairro Aracy encontrei muitos que haviam ido de Minas para o Paraná, alguns de São Paulo e alguns da Bahia. Alguns haviam ainda ido para o Mato Grosso antes de virem para São Carlos.

Era especialmente com esses fluxos migratórios que eu estava lidando. Era interessante notar que para grande parte desses migrantes, o Paraná não era mais uma possibilidade, ao menos não a área de sítios em que moravam, não havia mais espaço para o trabalho, como me disseram. Ana, que saiu pequena do Paraná para o Mato Grosso com seus pais, ao me contar que sua mãe resolveu ir embora do Mato Grosso para São Carlos, perguntei por que ela não voltou para o Paraná. Explicou que sua mãe era mineira (apesar de dizer-se paranaense) e que no Paraná não havia mais para onde voltar, todas as famílias haviam saído de lá, e a região já tinha sido tomada pelas grandes fazendas.

Mesmo os migrantes que fizeram trajeto de passar pelo Mato Grosso antes, dizem ter encontrado em São Carlos pessoas que eram suas vizinhas no Paraná, que algumas haviam ido também para o Mato Grosso e outras não. Portanto, não é por terem feito duas ou três mudanças que as redes sociais deixam de estar presentes em cada uma dessas mudanças. O curioso é que, para todas essas famílias, mesmo que tenham migrado para o Paraná, mesmo que este estado não exista mais como local possível (a não ser que se mudem para cidades como Curitiba, por exemplo, mas já não se trata do mesmo Paraná de antes), eles se consideram paranaenses em São Carlos.

Muitos dos migrantes com quem conversei no Aracy tiveram os pais na primeira leva de migrantes. Estes foram geralmente novos para o Paraná e lá foram criados, assim consideram-se paranaenses. É o caso de Ana, de Valter, seus pais foram pequenos para o Paraná. Conversei com eles e, além de dizerem que foram criados lá, explicam que seus pais se consideram paranaenses porque foram abrir o Paraná na foice, consideravam-se os fundadores de cidades como Maringá. Talvez o fato de terem ido construir cidades contribua para a construção de uma identificação paranaense, mas não levo isso às últimas conseqüências porque eles, da mesma forma, foram construir o Mato Grosso, e não se dizem mato-grossenses.

Todas as negociações da identificação paranaense não são, de forma alguma, condição objetiva para que as pessoas possam dizer-se paranaenses. Trata-se de negociações e disputas simbólicas que acionam quesitos variados. Por exemplo, no caso de Antonio, é eficiente dizer que se criou lá, o mesmo não acontece para o caso de Clarice e dos que foram para o Mato Grosso, ainda pequenos com seus pais, antes de irem para São Paulo. Se o que diz Antonio para construir-se paranaense fosse uma condição objetiva para ser paranaense, Clarice deveria dizer-se mato-grossense.

Assim, vários quesitos são acionados o tempo todo. Sobre os migrantes que foram para o Paraná na década de 60 ou 70, trabalhar no café, a dona de uma casa de frios, paranaense, conta que muitos iam acreditando que iriam juntar dinheiro "de rastelo", como se fazia para juntar o café. Conta dando risada, mostrando que era uma ilusão de quem ia, que muitos mineiros foram para o Paraná com esse entusiasmo, mas que acabavam voltando. Uma volta significando fracasso, o fim dos sonhos no Paraná. Isso não apenas no caso dos mineiros que foram para o Paraná; a volta é geralmente expressão do fracasso para qualquer migrante.

Para se dizer paranaense, reafirmo, não bastava ter ido para o Paraná, mas ter permanecido lá. Para os que permaneceram no Paraná e não voltaram para Minas, São Paulo ou Bahia, era um sinal de sucesso; portanto, terem se transformado em paranaenses é assim sinal de vitória, sinal que não foram um dos que tiveram que voltar. Seguiram adiante em sua trajetória, especialmente indo para o Mato Grosso e outros estados. No Paraná muitos mineiros se casaram com baianos, com paulistas, enfim, nem sempre os paranaenses que estão em São Carlos hoje possuem pais que vieram da mesma região, cidade ou estado.

Assim, em São Carlos eu encontrava uma geração de paranaenses fruto da primeira leva, que geralmente haviam nascido no Paraná, e que tinham pais mineiros, paulistas ou baianos que foram criados no Paraná e que se consideram paranaenses - algumas vezes estes pais estavam no Aracy. Entre os migrantes da mesma geração, porém envolvidos na segunda leva, era mais fácil encontrar paranaenses nascidos em Minas e Bahia, que foram pequenos com seus pais e foram criados no Paraná; os pais destes últimos foram mais velhos para o Paraná.

Quando pergunto se seus pais e eles eram considerados paranaenses no Paraná, eles dizem que não. Foi o caso, por exemplo, dos donos do Mercado Paraná, e o mais notável o do dono do Depósito Paraná, que diz apesar de ter ido para o Paraná já grande, é conhecido por todos no Aracy como "Paraná". Antonio também me dissera que seus conterrâneos do mercado eram conhecidos em São Carlos como "os Paraná", e que, portanto, ninguém acreditava quando eles diziam que eram da Bahia. Dessa forma, era completamente possível que eles fossem baianos e mineiros, estando no Paraná e que, uma vez em São Carlos, passassem a ser paranaenses:

Paraná - Não, porque eu fui para o Paraná e já fui grande.

- Quantos anos?

Paraná - Eu fui para o Paraná com uns 11, 12 anos já.

- Para os paranaenses que nasceram lá você não era considerado paranaense?

Paraná - Não, porque aqui eles me chamam de Paraná porque eu fui para o Paraná, lá eles me chamavam de mineiro porque eu era mineiro, não é verdade?

- E você, você se sente mais o quê?

Paraná - Ah, eu não tenho preferência não.

Os do Mercado, da mesma forma, disseram que no Paraná eram considerados baianos e em São Carlos, paranaenses. Ao interrogar por que eles dizem isso, respondiam que era porque tinham vindo do Paraná e por isso eram paranaenses em São Carlos. Esta questão não parecia ser polêmica para eles ou entre eles, pois não questionavam de um modo geral a identificação paranaense, ao menos não da forma que eu considerava que seria possível. O dono Mercado me explicou que, falando que era paranaense poderia ser melhor identificado pelas pessoas, que dizendo que eram paranaenses ficava mais "fácil para as pessoas localizarem" quem eles eram.

Diante disso compreendi, finalmente, que toda uma trajetória, ou a possibilidade de algumas trajetórias estavam incluídas na identificação paranaense. Quando se diziam paranaenses estava claro para todos ali que eram mais alguns dos vários migrantes que um dia foram para o Paraná e que têm famílias mineiras ou baianas. Quando eles falam que são paranaenses de forma alguma as pessoas do bairro supõem que se trata de alguém que nasceu e que tenha história familiar longa naquele estado. Essa concepção de fato era mais minha, por isso esperava encontrá-la nos paranaenses. Mas uma trajetória migrante já estava incluída na identificação paranaense; de modo que não se incomodariam em chamar um homem nascido em Minas ou Bahia de paranaense em São Carlos, mesmo que no Paraná ele fosse baiano ou mineiro. Ser paranaense ali era ser justamente o que eles eram: mineiros, paulistas e baianos que um dia foram para o Paraná.

Quando estava o dono do Mercado me falando que de todo modo se sentia mais paranaense que baiano, seu pai, passando por ali naquele momento, ouve a conversa e com seu jeito bem arredio diz apenas "eu nem sei de onde eu vim", e dá uma risada e sai. Ele passava meses na Bahia, meses no Paraná, meses em São Carlos. Saber de onde vieram não era de fato o que mais importava na vida desses migrantes, não se tratava disto, e não era isso que eu teria de buscar. Seu filho se sentia mais paranaense, embora ser paranaense não significasse negar seu passado na Bahia, para estes migrantes, uma trajetória estava implícita.

*          *          *

Gostaria de chamar a atenção para o fato de não ter encontrado na bibliografia sobre o tema discussão que caminhe nesses termos. Quando se fala em migrantes e mesmo quando se fala em migrantes inseridos em suas redes de relacionamentos sociais, eles quase sempre são remetidos à construção de uma origem regional comum, à conterraneidade. Os exemplos são inúmeros, Lyra (2004), analisa circuitos de ônibus clandestinos que consolidam uma "rede entre nordestinos do Agreste de Pernambuco e moradores do sul e sudeste do Brasil" (Lyra, 2004: 64). Compreende que "as mais importantes relações nas redes sociais são baseadas no parentesco, amizade, conterraneidade".

Nesse caminho cita outros exemplos, como Rigamonte (1997 apud Lyra, 2004), que trata dos encontros aos domingos na Praça Sílvio Romero em São Paulo que reúne migrantes nordestinos que esperam caminhões para trocar mercadorias, e explica que essa convivência estreita laços de amizade, motivados pela conterraneidade (Rigamonte, 2007: 68 apud Lyra, 2004). Pois bem, segundo o que encontrei no Cidade Aracy, pensar na conterraneidade dos migrantes, ou numa origem comum associada a espaço físico, limitaria as possibilidades de análise.

Em primeiro lugar, a origem enunciada pelos migrantes não se relaciona à naturalidade comum, a maioria dos paranaenses encontrados em São Carlos não era nascida no Paraná e sim em diversas regiões, cidades e estados do Brasil, embora todos se identificassem como paranaenses em São Carlos. Por isso faço uso do termo "identificação" para me referir ao modo que migrantes se apresentavam. Identificavam-se como paranaenses e essa identificação não se associava à local de nascimento, conforme eu esperava. Desse modo, dissocio a "origem dos migrantes" - muito associada a uma concepção de naturalidade/ conterraneidade, espaço físico - da "identificação", que era o que eles me apresentavam e que incluía a possibilidade de diversas trajetórias.

Na bibliografia sobre migração essa distinção não aparece, sendo os migrantes sempre referidos como `nordestinos´, ´paranaenses` ou `paraibanos`, numa clara associação dessas categorias com lugar de origem, de nascimento ou naturalidade. Além disso, as redes de relações sociais encontradas no bairro da mesma forma não puderam ser compreendidas segundo recorte baseado na naturalidade, conterraneidade, ou origem regional comum; e nem mesmo segundo a identificação que me apresentavam. Havia migrantes com as mais diversas trajetórias e identificações relacionando-se entre si.

Trata-se de uma discussão delicada, pois não quero dizer que a origem regional comum não perpasse a constituição das redes, mas que essa associação deve ser tomada com cautela, especialmente nos estudos que tratam de pessoas inseridas num processo migratório intenso. Por exemplo, o que encontrei no bairro foram duas redes de relaciona-mentos, e o que fazia os migrantes se aproximarem no espaço social não era a origem regional comum expressa pela idéia da conterraneidade e nem a identificação enunciada, até mesmo porque paranaenses ou nordestinos nem sequer indicavam unidades homogêneas.

Inclusive tornou-se difícil me referir a migrantes como `para-naenses`, `paraibanos`, etc. Soava como um recorte artificial, imposto. Conforme citei no início, é certo que muitos estudos preocupam-se muito mais em traçar a comunidade de origem dos migrantes segundo suas relações sociais fundamentais, com o que concordo plenamente, porém, todo meu esforço de análise concentrou-se no fato dessa comunidade, em última instância, estar sempre associada à origem regional, conforme venho falando e conforme expliquei no início. Acredito então que o pertencimento a um grupo social deve estar menos associado à concepção de uma origem regional comum, à noção de conterraneidade.

Acredito na idéia de que migrantes estão inseridos num jogo de relações sociais específico que definem a comunidade a qual pertencem, acredito também que é por meio das redes de relacionamentos que a migração se efetua, e que as redes continuam a operar mesmo depois de terem migrado: "as redes de parentes e amigos na localidade de origem atuam como pré-requisitos, entre os migrantes, para a fixação na cidade, facilitando a busca de moradia e de ocupações para os que chegam, com base em compromissos morais sedimentados pelas proximidades dos laços afetivos" (Costa, 2001: 25).

Porém, também acredito que quanto mais o processo migratório se intensifica na vida de homens e mulheres, mais difícil fica associar a constituição das redes a um local de origem comum dos migrantes. Os locais de se multiplicam ao longo da migração empreendida por essas famílias, as comunidades se estendem pelos espaços físicos que se acumulam nas trajetórias, e nesse sentido a identificação quanto à origem é construída e varia ao longo do percurso, não podendo mais se associar à naturalidade.

Cada vez mais deve ser levada às últimas conseqüências a assertiva de que comunidades se estendem pelo espaço físico. Isso remete à compreensão de que cada vez mais a origem regional comum não deve ser tomada a priori nos estudos da migração, sem maiores análises e reflexões. No caso analisado, migrantes não poderiam ser referidos apenas como ´paranaenses´, sem que essa identificação e seu significado estivessem claramente definidos.

Conclusão

Pensar a migração inclui considerar que muitas vezes as pessoas não foram direto de um lugar para outro, mas que passaram por mais de um lugar, percorrendo caminhos que muitas vezes não são percebidos, incluídos ou analisados nas pesquisas. O Brasil se constitui por levas migratórias, e nele é gerada uma série de trajetórias que se misturam, não se encerrando num percurso único, retilíneo e findo.

A própria identificação paranaense fora construída ao longo do processo migratório intenso em que estavam inseridas essas famílias. Deve ser pensada, portanto como algo em processo, e não como algo estático, dado por local de nascimento, ou local em que possuem grande parte de sua história familiar.

Notei que essa reflexão esteve pouco presente na bibliografia, assim, acredito que essa discussão contribua para questionamentos que caminhem nesse sentido, o que me parece relevante dada a intensidade e diversidade do fenômeno migratório, uma vivência intensa para muitas famílias que continuarão migrantes.

Notas

1O texto deste artigo baseou-se na tese de doutoramento Migrações e Redes Sociais: trajetórias, pertencimentos e relações sociais de migrantes no interior de São Paulo, sob orientação de Beatriz Heredia, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.

2Faço essa separação entre origem regional e origem social apenas para fins analíticos.

3Trata-se de um dos primeiros trabalhos que abordam o fenômeno migratório como um problema sociológico. Até então era incluído nas análises como uma conseqüência do processo de desenvolvimento capitalista, da urbanização e industrialização - especialmente nos clássicos da sociologia. Porém, dada a crescente mobilidade populacional da Europa para países do Novo Mundo, especialmente Estados Unidos, a migração passa a ser objeto de análise, sendo que uma das obras pioneiras é essa de Thomas e Znaniecki (1974), a qual iria influenciar a produção da Escola de Chicago sobre migração internacional (Sasaki, Assis, 2002).

4Esses autores também falam da manutenção da solidariedade familiar reforçada pela 'bowing letter', carta que deixa a solidariedade implícita e permanente ao ser escrita por ou para o membro da família que está ausente (Thomas e Znaniecki, 1974: 303-308).

5A importância do desenvolvimento nacional é inegável, mas torná-lo absoluto e determinante nos processos que fazem uma pessoa ou família optar pela migração, seria omitir uma série de processos sociais nos quais se produz a decisão de deslocamentos, como "o papel da família na saída e na chegada, e os diferentes pontos e atores que compuseram a trajetória" (Garcia e Heredia, 1997: 77). Esses grandes processos sociais podem até mesmo indicar a abrangência do fenômeno migratório, explicá-lo em alguma medida, mas jamais seriam suficientes para sua compreensão quando se está preocupado com a trajetória dos migrantes.

6Não se está dizendo que a migração não provoca mudanças, ou que ela mesma não aconteça por meio de alterações ocorridas na estrutura maior da sociedade, com a qual os indivíduos, em seus grupos ou aldeias, precisam lidar. O estudo do fenômeno migratório esteve inclusive atrelado ao estudo de sociedades camponesas, uma vez que modos de desenvolvimento urbano e rural contribuíram para que houvesse um movimento de saída do campo para as cidades. O próprio Sayad (1995, 1998), ao estudar a emigração argelina, analisa transformações ocorridas na antiga ordem social camponesa, em que tarefas agrícolas tradicionais vão sendo abandonadas assim como a própria mentalidade camponesa e antigos valores. Portanto, o fenômeno migratório não inclui apenas continuidades, mas também mudanças.

7Estas expressões não são corriqueiramente usadas no bairro, surgiram apenas em algumas conversas que tive com alguns moradores, mas que se adequaram perfeitamente ao que eu via, por isso as utilizo.

Bibliografia

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