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Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  n.11 Posadas jul. 2007

 

ARTÍCULOS

Aguerra implacável dos Munduruku: elementos culturais e genéticos na caça aos inimigos

José Sávio Leopoldi*

*Prof. dr. do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF-Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. E-mail: Jsleopoldi@uol.com.br

Resumo

As verdadeiras razões das guerras no mundo primitivo constituem uma questão que merece maior atenção dos estudiosos. Um motivo óbvio dessas guerras no mundo primitivo era a disputa pela exploração do meio ambiente, mas isso geralmente não ocorria entre os indígenas brasileiros, devido à vasta extensão territorial do país. Mesmo no caso dos guerreiros Munduruku, a "razão beligerante" da tribo permanece pouco explorada. O que mais se encontra são descrições dos ataques aos inimigos, do valor social atribuído aos guerreiros, do objetivo imediato da guerra - a caça às cabeças - e das festas em que essas peças eram enfeitadas tornando-se os mais valiosos troféus. Sua importância se devia ao fato de que, de acordo com as crenças indiígenas, elas propiciavam sucesso às atividades de caça, coleta e agricultura, tornando-se então necessárias ao bem estar da tribo. Nossa proposta é considerar a guerra como o elemento central da vida Munduruku, ou seja, a razão mesma de sua existência. Nessa atividade se ancoravam os valores culturais por excelência do grupo, bem como os elementos básicos da sua organização social. Independentemente de vinganças, de disputas ou de qualquer outro motivo "justo", a guerra tinha que acontecer para os Munduruku: a vida da tribo dependia da morte dos inimigos e de suas valorizadas cabeças. Nossa hipótese é que uma explicação de base genética pode explicar mais coerentemente essa radical "necessidade" da guerra perpetrada pelos Munduruku.

Palaras-chave:  Índios; Guerra; Caçadores-de-Cabeça; Genética.

Abstract

The fundamental reasons of war in the aboriginal world constitute a subject that deserves greater attention from anthropologists. One obvious reason of those wars was dispute over environmental exploitation, but that didn't usually happen among Brazilian natives because of the vast territory available to them. Even in the case of the Munduruku warriors, the reasons for belligerence of the tribe remain little explored. One usually finds descriptions of the attacks on enemies, of the warriors' social value, of the immediate objective of the war - headhunting - and of the ceremonies in which the captured heads were decorated and became the most valuable trophies to be owned by warriors who took them home. Their importance was due to the fact that, according to the Indians' belief, they propitiated success in hunting, gathering and agriculture, therefore becoming necessary to the well-being of the tribe. We propose to consider war as the central element of the Munduruku life, that is, the core reason of the tribe's existence. War anchored the cultural values and social organization of the tribe. Independently of revenge, of disputes or of any other "just" cause, the war had to happen for the Munduruku: the life of the tribe depended on the enemies' death and on their valued heads. Our hypothesis is that an explanation of genetic basis can explain more coherently that radical "need" of the war perpetrated by Munduruku.

Key-words: Amerindians; War; Head-Hunters; Genetic.

Fecha de recepción: Noviembre 2006
Fecha de aprobación: Febrero 2007

A emergência dos Estados nos tempos modernos, as alianças formalmente concertadas entre as nações no que tange a assuntos de interesse comum e, particularmente em tempos mais recentes, a criação de organismos internacionais como a ONU, consolidaram uma visão "civilizada" sobre os conflitos bélicos entre as nações, ou seja, as guerras. As constantes discussões nacionais e internacionais sobre a ameaça ou deflagração de conflitos, a marcante presença da mídia em todas as etapas da preparação e evolução dos acontecimentos belicosos que colocam as populações a par dos mais variados detalhes do que está ocorrendo, configuram um quadro em que se destacam as causas dos conflitos armados. Uma "razão bélica", uma causa sensível, portanto, tem que estar presente para que uma nação legitimamente reivindique seu direito de ir à guerra contra outra nação ou um grupo inimigo, seja a ação belicosa ofensiva, como é o caso da reparação de antigas perdas territoriais, seja ela "defensiva", geralmente enunciada como "ataque preventivo".

As razões defensivas são freqüentemente as mais proclamadas, uma vez que no mundo moderno, onde nações civilizadas devem conviver de forma pacífica, é impensável alguém justificar uma declaração de guerra simplesmente alegando necessidade de expansão territorial, exploração de riquezas minerais e de lençóis petrolíferos ou de submissão de um povo visando à sua exploração econômica. Cada vez mais, portanto, uma forte "razão moderna" tem que estar na base dos conflitos internacionais, por mais que tal razão esconda, na realidade, interesses e justificativas menores, irracionais ou despropositadas. As alianças são inescapáveis no mundo globalizado da atualidade e as partes que as integram - sob os olhares do mundo todo, instigados pelos sempre presentes meios de comunicação - devem explicitar claramente os motivos das ações belicosas e convencer o maior número de nações da justeza dos seus propósitos. Portanto, há sempre uma "razão bélica" para explicar, justificar, em suma, legitimar o ataque a outras nações ou grupos inimigos.

"Razões bélicas" sempre estiveram também motivando as guerras promovidas pelas chamadas sociedades primitivas, que se apoiavam numa "lógica guerreira" para explicar a necessidade do empreendimento belicoso. Como cada tribo, de modo geral, percebia todas as outras como inimigas e, portanto, como potenciais agressoras, justificavam os ataques preventivos contra elas pelas ameaças que óbvia e invaria-velmente constituíam. Tribos vizinhas que tendiam a disputar territórios de caça e coleta evidentemente se colocavam com mais freqüência nessa situação de "reciprocidade belicosa". Algumas referências a guerras indígenas realçam a questão territorial como um fator decisivo dos conflitos, visando a um equilíbrio entre o crescimento populacional de uma dada tribo e a adequada extensão da terra sob seu controle tendo em vista as necessidades de alimentação. Marvin Harris, nessa linha de argumentação, observou que "os grupos que adotaram instituições de controle de crescimento sobreviveram por mais tempo do que aqueles que deixaram ultrapassar sua capacidade limite de sustentação. As guerras primitivas não resultam de caprichos, nem de necessidades instintivas; são simplesmente um dos mecanismos de regulação que ajudam a manter as populações humanas num estado de equilíbrio ecológico, com respeito aos seus territórios. (...) A guerra primitiva [é] um mecanismo de adaptação ecológica" (Harris, 1978:58-59). 

Florestan Fernandes, entre outras razões, não deixa de apontar também a questão ecológica como fator importante para os conflitos belicosos envolvendo os Tupinambá. "Em virtude dos conhecimentos que possuímos sobre as formas de adaptação dos Tupinambá ao meio natural circundante, sabe-se que a guerra desempenhava um papel relevante na estratégia tribal da 'luta pela vida' " (Fernandes, 1970:21). Não há muitas controvérsias sobre a necessidade de adaptação das popu-lações primitivas ao meio ambiente, a busca por terras mais férteis e a ampliação do território face a um crescimento demográfico,1 mas gue-rras indígenas proliferaram mesmo quando não havia razões aparentes para disputas envolvendo territórios.

No caso dos índios do Brasil, por exemplo, dada a vasta extensão territorial, poder-se-ia pensar que vários grupos teriam podido conviver pacificamente com vizinhos distantes, cada qual dominando amplas porções de território, apenas tendo ciência, devido a encontros fortuitos, da existência de outros grupos que percorriam terras contíguas às suas ainda que aldeados em áreas longínquas. Mas isso nunca ocorreu. As diferentes tribos indígenas - às vezes diferentes grupos de uma mesma tribo - viam-se como inimigas, portanto, como potenciais agressoras, de modo que invariavelmente uma delas tomava a iniciativa para a realização de "ataques preventivos" contra outra. Fazendo alusão à filosofia de Thomas Hobbes, freqüente e superficialmente condensada na idéia da "guerra de todos contra todos" que teria prevalecido no estado de natureza, ao aludir aos confrontos indígenas movidos pelo medo do ataque preventivo que um grupo pode sempre sofrer, Steven Pinker lembra que "como somos uma espécie social, as armadilhas hobbesianas mais comumente jogam grupos contra grupos. A união faz a força, e assim os humanos, ligados por genes que têm em comum ou por promessas recíprocas, formam coalizões para proteger-se. Infeliz-mente, a lógica da armadilha hobbesiana implica que a união também faz o perigo, pois os vizinhos podem ter receio de ser superados numeri-camente e formar alianças, por sua vez, para refrear a ameaça crescente. (...) Chagnon relata que as aldeias ianomâmis são obcecadas pelo perigo de ser massacradas por outras aldeias (e com toda a razão) e ocasionalmente desferem ataques preventivos, o que dá às outras aldeias boas razões para empreenderem seus próprios ataques preventivos e impele grupos de aldeias a formar alianças que deixam seus vizinhos mais nervosos" (Pinker, 2004:439).

Obviamente do ponto de vista nativo o significado dos ataques preventivos entre os indígenas devem ser remetidos ao consagrado modelo inconsciente da antropologia estruturalista. A "razão indígena", vale dizer, o modelo consciente evocava outros motivos, evidentemente mais do que justos aos olhos nativos, para a iniciativa belicosa e, portanto, com mais fortes apelos morais a empolgarem os guerreiros, sempre preparados para se sacrificarem pelas necessidades e demandas - concretas ou simbólicas - da sua tribo. Portanto, o que para o antropó-logo surge como um ataque preventivo de um grupo contra outro, era então objetivado pelos grupos agressores em termos de uma "razão moral" ou "necessidade fundamental" que demandava uma única resposta possível à presença de outros grupos: a guerra. Era isso que acontecia, por exemplo, com as tribos envolvidas em "guerras de vingança", como acontecia com os Tupinambá. Ter alguém morto por inimigos em qualquer circunstância exigia apenas um procedimento, a vingança; ou seja, matar alguém do grupo ofensor. Vingança, porque em guerras anteriores qualquer tribo inimiga já havia matado um Tupinam-bá. A questão da vingança, portanto, remete, de fato, à consideração de que qualquer integrante de outro grupo é considerado inimigo e deve ser morto. "A regra estabelecida nessas ações como ideal de comportamento guerreiro e como modelo da conduta masculina pode ser formulada da seguinte maneira: em nenhuma circunstância favorável deveriam permitir que um inimigo conservasse a vida ou a liberdade pessoal. (...) O motivo aberto das incursões guerreiras contra os grupos locais inimigos circun-vizinhos consistia na retaliação. Um fator de ordem religiosa (a crença na necessidade do 'derramamento de sangue com êxito fatal', para vingar os parentes e amigos mortos nas mesmas circunstâncias pelos inimigos), intervinha, pois, igualmente no desencadeamento e na regulamentação social das atividades guerreiras nas áreas ocupadas e sujeitas ao domínio dos Tupinambá" (Fernandes, 1970:43, 65). Justificativas morais e religio-sas como essas alicerçavam as guerras intertribais, implicando uma "reciprocidade belicosa" que na prática significava uma situação de conflito permanente. Daí as guerras indígenas constituírem sempre um ingrediente importante, senão, fundamental da vida primitiva.

Por trás do cenário moral que justificava a guerra indígena em termos de modelos conscientes, no entanto, há que se buscar uma razão última, digamos, uma razão científica, com resultados práticos, para explicar o fato de a guerra ter estado sempre presente na história da humanidade, a despeito de algumas posições que ainda associam a emer-gência dos primitivos grupamentos humanos a períodos relativamente pacíficos. Nossa posição com relação às guerras indígenas é de conciliação entre as explicações de perfil ecológico e aquelas que remetem a questões genéticas associadas ao processo evolutivo da espécie humana. A "guerra ecológica" diz respeito às necessidades de adaptação ao ambiente natural, bem como à preservação dos territórios sob controle de uma dada tribo. A esse quadro se associam também disputas por territórios limítrofes que visam à conquista de tais territórios em período de crescimento populacional ou de escassez de produtos naturais na área mantida sob controle pela tribo. Limitar as guerras intertribais apenas à disputa pelo controle do ambiente natural tendo em vista assegurar melhores condições de existência parece deixar fora do quadro explicativo as tribos que viviam em amplos e férteis territórios, como é o caso da maior parte da região amazônica, algumas das quais - pela eficácia bélica por que eram conhecidas - não consti-tuíam alvos prioritários de ataques preventivos de tribos inimigas. Ao contrário, infundiam tanto medo aos inimigos que um ataque preventivo destes beiraria ao suicídio coletivo.

É o caso dos índios Munduruku, que constituem o ponto focal do presente trabalho, que não só dispunham de enormes territórios sob seu domínio como normalmente espantavam quaisquer tribos de outras etnias para além do seu alcance bélico. Dificilmente em casos como esse se pode sustentar a razão ecológica como motivo maior, senão exclusivo, dos ataques perpetrados contra outros grupos indígenas. Parece-nos, pois, adequado acrescentar às razões ecológicas a questão genética que proclama como objetivo básico da existência a multiplicação dos genes, ou melhor, dos códigos genéticos carregados pelos genes de cada indivíduo. O corolário dessa idéia é a violência, percebida como uma característica geneticamente constituinte do ser humano. Neste ponto, grandes divergências se estabelecem particularmente entre grupos extremistas no campo científico que, ou percebem a violência como um dado que conduz inevitavelmente a uma ilimitada voracidade criminosa se inscrita nos códigos genéticos e que fariam dos homens verdadeiras máquinas assassinas ou, por outro lado, sustentam que a violência é produto da cultura, ou seja, um dado exclusivamente social que os homens, pacíficos por natureza, têm que aprender para fazer face às necessidades de sua existência bem como de sua sociedade no enfrentamento que pode acontecer com outros grupos. A posição mais cautelosa que defendemos é que a violência é geneticamente instituída, mas se coloca sob o domínio dos padrões socioculturais que conformam sociedades e indivíduos. Assim, uma sociedade menos belicosa é aquela que mantém as tendências agressivas individuais sob um controle maior do que aquelas que estimulam a violência dos seus agentes sociais, glorificando o desempenho agressivo e guerreiro. Este último caso se evidencia com mais contundência entre as sociedades primitivas, já que não se submetiam a um acordo abrangente para viabilizar uma convivência pacífica como acontece com a maioria das nações do mundo moderno.

A guerra dos Munduruku

Os Munduruku sempre foram apontados como a grande tribo guerreira da Amazônia, desde que  surgiram na história da região na segunda metade do século XVIII. As notícias que envolviam esses índios via de regra diziam respeito aos seus ataques às populações luso-brasileiras que se fixavam às margens dos rios das regiões percorridas pelos grupos de guerreiros, notadamente a Mundurucânia - território limitado ao norte pelo rio Amazonas, ao sul pelo Juruena, a leste pelo Tapajós e a oeste pelo rio Madeira. Mas suas expedições de guerra excediam largamente esses limites, ultrapassando a leste o rio Xingu e chegando mesmo às proximidades de Belém do Pará. O objetivo era perpetrar uma série de ataques tanto a outras tribos indígenas quanto às comunidades não-índias do vale amazônico. O período preferido para o início das expedições guerreiras era o começo do período seco e as jornadas mais curtas se encerravam antes do período chuvoso. Mas, freqüentemente, a caça de inimigos se prolongava por vários meses, período que podia chegar a um ano e meio. Essa dedicação à atividade belicosa evidencia a importância da guerra para a sociedade Munduruku.

Os grupos guerreiros Munduruku se compunham de índios de diferentes aldeias, que, no entanto, mantinham sempre um contingente masculino em cada uma delas face à necessidade da continuidade da provisão alimentar e à defesa de suas respectivas comunidades. Cada expedição era chefiada por dois experientes guerreiros que discutiam estratégias de luta com outros chefes de aldeia e com os índios mais velhos, que conheciam bem o assunto. Uma trombeta de guerra acom-panhava cada expedição sob a guarda de dois homens que, orientados pelos líderes, davam o sinal de ataque. Sobre a estratégia bélica, Robert e Yolanda Murphy (1954) observam que o modo mais comum de ataque consistia em promover um cerco impercebido pelos inimigos à sua aldeia durante a madrugada, cujas malocas eram então alvejadas por flechas incendiárias atiradas pelos Munduruku em suas coberturas de palha. Donald Horton (1948) registra que os ataques dos Munkuruku se davam ao clarear do dia com o incêndio das malocas dos inimigos por flechas incandescentes. Depois, seguia-se o assalto propriamente dito sob o som tonitruante de gritos aterradores dos guerreiros que emergiam em correrias da floresta circundante para o ataque final. Surpreendidos pela manobra ofensiva, os índios atacados - sem condições de organizar qualquer tipo de defesa - procuravam abandonar rapidamente suas malocas, tornando-se presas fáceis para os agressores.

Em sua obra Viagem pelo Brasil, os naturalistas alemães Spix e Martius, após extensa viagem por várias regiões do país em 1817-1819, observaram que para os Munduruku "a guerra é uma ocupação agradável, mais ainda do que para a maioria das tribos; tudo, desde o princípio parece calculado para eles se fazerem valer na guerra. Mostrando que também praticavam a guerra durante o dia, aqueles naturalistas registraram que "no ataque, distribuem-se os Mundurucús em extensas linhas; esperam a carga de flechas do inimigo (...) e só então desferem instantaneamente as suas flechas apresentadas pelas mulheres, quando o inimigo, em bando cerrado, já não dispõe de muita munição" (Spix e Martius, 1938:409). Aí se vê como, diferentemente do que acontecia com a maioria das outras etnias no que concerne à guerra, para os Munduruku essa não era uma atividade exclusivamente masculina, já que um papel, ainda que secundário, era reservado às mulheres. Devido ao largo período em que os grupos guerreiros se mantinham em campo, elas acompanhavam as expedições, perfazendo algumas tarefas necessárias ao bom desempenho da missão. Encarregavam-se de preparar os alimentos e de carregar redes e demais utensílios, liberando, portanto, os homens dessas atividades para permanecerem em constante estado de alerta contra possíveis investidas de inimigos. Elas participavam também do ataque por flechas antes do assalto final à aldeia inimiga, municiando os arqueiros com uma sucessão de flechas, o que reduzia o tempo do lançamento entre cada uma delas e tornava mais eficaz a máquina de guerra Munduruku.

Uma atividade guerreira como a desenvolvida pelos Munduruku e que se evidenciava de suma importância para sua sociedade não se mostra muito transparente às razões que a valorizavam. Em outras palavras, um motivo para a incomum belicosidade dos Munduruku não é de fácil discernimento, mas um ponto sobre o qual convergem as infor-mações e evidências é a caça a cabeças humanas, que se revestiam do mais alto significado naquela sociedade.  Segundo Aires de Casal (1976), os Munduruku eram chamados pelos indígenas de outras tribos de paiquicé, que significava "corta-cabeça", prática essa de que não se tem notícia em qualquer outra tribo indígena do Brasil. Todos os inimigos homens adultos eram mortos, enquanto as mulheres e crianças eram levadas para as aldeias Munduruku; aquelas mais tarde se casavam com homens deste grupo, enquanto estas eram adotadas e tratadas como crianças comuns. As cabeças dos homens eram decepadas, preparadas por um processo que ficou conhecido como mumificação e, depois, mantidas como troféus de inestimável valia para os Munduruku.  

As cabeças dos inimigos - e, nesse caso, por inimigo se entende qualquer outra etnia, pelo menos antes dos Munduruku encetarem relações pacíficas com os "brancos" e com vários grupos indígenas ainda no período colonial - adquiriam poderes mágicos uma vez que se tornavam elementos indispensáveis à própria sobrevivência da tribo. Isto porque se ligavam à sua permanência e bem-estar uma vez que, segundo os índios, constituíam o elemento propiciador de uma grande caçada ou uma farta colheita. Eram, portanto, indispensáveis à vida Munduruku. Daí não se estranhar o fato de que a figura mais valorizada da tribo era exatamente o guerreiro, em particular aquele que se apropriava da cabeça do inimigo e a mantinha - depois de devidamente mumificada e enfeitada - como o mais valioso troféu que se podia exibir. Ela simbolizava o feito máximo a que qualquer homem podia aspirar, o que resultava em orgulho extremado e respeito - provavelmente também inveja - dos seus pares. O dono da cabeça - exuberante em prestígio e glória - conduzia-a implantada em uma estaca e se tornava o elemento central de uma série de festividades e cerimônias celebrantes da cabeça-troféu, que, segundo Murphy, se estendia por três estações chuvosas após a guerra em que havia sido conquistada.

O inimigo, depois de morto, tinha sua cabeça decepada pelo captor com o auxílio de uma lâmina de bambu que lhe cortava o pescoço e a vértebra. Depois, retiravam-se os músculos internos, os miolos, os olhos e a língua para se proceder à mumificação que se fazia pela exposição continuada da cabeça à fumaça do óleo de copaíba, posto a ferver e, em seguida, pela lavagem em azeite de urucu. O crânio não era retirado, de modo que a peça mantinha o tamanho próximo ao original; era preenchido com algodão e depois se colocavam nele olhos de resina, processo que se completava com o implante de dentes de animais e um enfeite de penas que fazia da cabeça um belo troféu que permanecia por um largo período inseparável do seu possuidor. É interessante notar que não se registram cabeças de não-índios tomadas como troféus pelos guerreiros Munduruku, apesar dos incontáveis ataques e mortes infligidas aos colonos luso-brasileiros que habitavam as paragens por eles per-corridas.

Os índios Munduruku apareceram nos registros históricos por volta de 1770, quando fizeram uma série de devastadores ataques aos povoados localizados à beira do rio Tapajós. Nessa época o território da "Mundurucânia" já era objeto de exploração de colonos luso-brasileiros e algumas aldeias missionárias já haviam sido estabelecidas pelos padres jesuítas. Em 1773 aqueles índios chegaram a iniciar um assalto à fortaleza de Santarém, mas não tiveram sucesso na empreitada. No último quartel do século XVIII os Munduruku estiveram particularmente ativos, atacan-do não só os povoados ao longo do Tapajós (seus alvos mais comuns face à proximidade das áreas por eles habitadas e à facilidade propiciada pelo deslocamento por barcos, que manobravam com incontestável maestria), mas também fustigando toda a vasta região a leste do Madeira até o rio Tocantins. Em 1786, seus ataques chegaram a assolar o povoado de Portel, próximo a Belém, capital do Pará, onde fizeram várias vítimas. Nesse período a população Munduruku já havia se es-palhado por boa parte da região amazônica. Em 1788 o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, numa viagem de exploração do rio Madeira em que os Munduruku chegaram a atacar as canoas de escolta da expedição, registrou a presença de grande número desses índios ao longo de quase todos os tributários da parte leste daquele rio. Em 1793 os Munduruku fizeram arrojadas campanhas guerreiras contra os povoados que se espalhavam ao longo dos rios Madeira, Tapajós, Xingu, Pacajás, Jacundá e Tocantins. Deslocando-se para leste, cruzaram ainda este último rio chegando às cabeceiras do rio Moju, cuja proximidade de Belém fez os habitantes desta cidade sentirem-se ameaçados. Atacaram, então, os povoados de Portel, Melgaço e Oeiras, cujos moradores só foram salvos pela chegada de uma expedição enviada do Governador do Pará que conseguiu expulsar os índios daquela área.

A ultima década do século XVIII, devido a ataques cada vez mais constantes e ousados, bem como à insegurança que se ia estabelecendo nos povoados da  vasta região assolada pelos Munduruku, presenciou um movimento progressivo das tropas coloniais para dar combate aos guerreiros indígenas. Em 1794 uma força com cerca de 500 soldados chegou a ser formada em Santarém para perseguir e atacar os Munduruku até as aldeias do Alto-Tapajós. Mas a expedição foi suspensa devido à notícia de que um acordo de paz havia sido estabelecido entre os índios Munduruku que habitavam a região do rio Madeira e os colonos da capitania do Rio Negro. Alguns índios que haviam sido aprisionados em combate foram - por estratégia de militares e políticos da sede da capitania do Grão-Pará - bem tratados pelos seus captores e em seguida libertados, levando presentes para parentes e líderes da sua aldeia. Atraídos, então, pela posse de bens (roupas, facas, machados, miçangas e os mais variados utensílios) que a economia indígena não produzia, bem como pela possibilidade de um relacionamento pacífico com os colonos, grupos de Munduruku se dirigiram à Barra do Rio Negro (hoje cidade de Manaus), tendo sido bem recebidos pela população, aliviada do temor que lhe causava a conhecida belicosidade dos índios Munduruku. Também estabeleceram algumas aldeias entre aquela cidade e o povoado de Serpa, objetivando manter contato freqüente com seus novos aliados. No ano seguinte, os Munduruku do Tapajós, influenciados pelos acontecimentos que tinham envolvido seus pares do rio Madeira, tomaram a iniciativa de estabelecer relações pacíficas com os habitantes da região. Visitaram, então, a Vila do Pinhel para conversar com o tuxáua (chefe), e foram acompanhados até a fortaleza de Santarém, onde selaram um pacto de paz com os colonos.

No período que se seguiu à cessação do estado de guerra entre colonos e índios Munduruku, estes estabeleceram várias aldeias - Tupinambarama, Maués, Canumá, entre outras - ao norte da "Mundu-rucânia", onde se juntaram também índios Maués. Da mesma maneira, aldeias Munduruku se ergueram no Baixo-Tapajós, como as de Curi, Uxituba e Santa Cruz. E, à medida que grupos Munduruku continuavam a se deslocar para esta região, observou-se a fixação de várias comunidades em ambas as margens do rio. Vários grupos de índios acabaram também por morar nas vilas de colonos próximas ao Tapajós. O comércio constituía o principal motivo da relação entre índios e régio-nais. Farinha, cacau, salsaparrilha e cravo-do-maranhão eram trocados com os brancos por cachaça, roupas, instrumentos de metal e vários outros itens que já se iam tornando material de necessidade entre os índios. Esse quadro foi consolidado no século XIX, com aldeias Munduruku se espalhando cada vez mais pela Amazônia. Além da Mundurucânia e das margens dos tributários a leste do Alto-Tapajós, onde se encontrava a maior parte da tribo, aqueles índios passaram também a se estabelecer nas regiões que haviam percorrido nas guerras contra os colonos e outras tribos indígenas. Registrou-se então a presença de aldeias na região da confluência dos rios Tocantins e Araguaia, bem como em áreas próximas ao rio Madeira, Amazonas e Xingu.

Já em 1817 Aires de Casal registrava que quase todos os grupos Munduruku estavam aliados aos portugueses e alguns já convertidos à fé cristã. Mas, continuavam uma implacável perseguição a outros grupos indígenas. "A desumanidade das hordas Mundurucanas que ainda vagueiam pelos matos, porquanto não dão quartel a sexo, nem a idade, tem obrigado grande parte das outras nações a refugiar-se junto das povoações dos cristãos, onde à sua sombra e de paz vivem seguros daquele desalmado inimigo" (Casal, 1976:237). As guerras intertribais beneficiavam também os portugueses, que viam com bons olhos o enfraquecimento da resistência indígena ao seu domínio, favorecendo - através de uma espécie de escravidão dissimulada - uma utilização cada vez maior da mão-de-obra indígena nas vilas dos colonizadores. Ainda naquele período, os naturalistas Spix e Martius que visitaram a região do Tapajós em 1819-1820, relataram que "atualmente são os mundurucús os espartanos, entre os índios bravios do norte do Brasil. Avalia-se a tribo em 18.000, mesmo até 40.000 indivíduos que  vivem no rio Tapajós, a leste e oeste dele em parte nos campos e perseguem as diversas tribos, como os Jumas, Parintintins e Araras (habitam estes as nascentes dos rios Maués, Canomá e para os lados do Madeira), com tão inexorável furor, que as duas primeiras tribos, mais fracas serão em breve completamente exterminadas" (Spix e Martius, 1938:409).

Antes de estabelecida a paz com os colonizadores, os Munduruku eram seus implacáveis inimigos e os enfrentavam com o destemor e a bravura que os distinguiam dos demais grupos amazônicos. Em muitos enfrentamentos, acabada a munição das forças governamentais, estas batiam em retirada uma vez que sem o poder que lhes ofereciam as armas de fogo os soldados se tornavam presas fáceis dos Munduruku. Mas a máquina de guerra da tribo acabou por curvar-se à força colonial, cujo arsenal bélico produzia uma destruição em massa e tornava frágeis os arcos e flechas manipulados pelos indígenas. Mas os colonizadores reconheciam a perseverança e a capacidade bélica dos Munduruku e sempre procuraram um caminho para o estabelecimento de relações pacíficas e de alianças na expectativa de cooptar o ânimo guerreiro daqueles índios para colocá-los a seu serviço. Pois acabaram conseguindo tal intento.

O poder guerreiro dos Munduruku acabou sendo aproveitado pelas tropas coloniais após o estabelecimento de relações pacíficas desses índios com os colonizadores, particularmente com o objetivo de submeter as tribos que continuavam hostis à dominação luso-brasileira. Com esse propósito os Munduruku - mas não só eles, diga-se de passa-gem - começaram a ser convocados para o serviço militar, atividade esta muito rejeitada pelos índios, mas a que se submetiam devido o temor de maiores represálias. A notícia da chegada da embarcação de Karl von Martius a uma aldeia Munduruku, por exemplo, aterrorizou os índios "supondo eles que eu os vinha prender para o serviço público. Havia-se ultimamente começado a recrutar um certo número de mundurukús para a milícia, motivo pelo qual os índios, já descontentes, ameaçavam voltar às matas" (Spix e Martius, 1938:407). Era comum, no entanto, a fuga de vários índios - seguida pela tentativa de captura por militares que os acompanhavam - durante a longa jornada das expedições com índios recrutados, que se destinavam à capital do Pará onde se fazia a adaptação deles aos tipos de empreendimentos requeridos pela força militar. Segundo o historiador F. Jorge dos Santos, "depois de 'pacificados', os Munduruku tornaram-se 'aliados' dos portugueses, que os usaram na redução, isto é, no descimento de outros grupos tribais que ainda resistiam ao domínio colonial. No século XIX, desenvolveram atitudes guerreiras mercenárias, além do papel de perseguidores dos rebeldes cabanos, principalmente na região que ficaria conhecida na época por Mundurucânia" (Santos, 1995:21). Por "cabanagem" ficou conhecido o levante popular que agitou o Pará de 1835 a 1840, levado a efeito pelas classes populares e marginalizados em geral (inclusive índios explorados pelos colonos) contra os desmandos do grupo dominante, que atuava com a complacência do governo.

Por volta da metade do século XIX, guerreiros Munduruku já acompanhavam grupos de soldados para destruir aldeias de índios insubmissos ou de negros fugitivos da escravidão, como consta do Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial pelo Presidente da Província do Pará, que menciona ataques daqueles índios aos mocambos do Rio Trombetas, cujos sobreviventes eram então levados como escravos às povoações dos colonizadores.  Também segundo a historiadora portuguesa Ângela Domingues, "os Mundurucú, após a sua pacificação em 1795, foram incorporados às forças luso-brasileiras, que souberam aproveitar a vocação guerreira da etnia e a sua inimizade tradicional com outras etnias pra 'desinfestar' o Madeira de grupos hostis à presença colonial" (Domingues, 2000:292). A esse respeito o etnólogo Expedito Arnaud, em sua obra O índios e a expansão nacional, já observara que os índios Munduruku, "após terem sido atingidos por uma expedição de represália, enviada pelo Governador da Província do Pará, tornaram-se amigos dos colonizadores e, como seus mercenários, continuaram hostilizando outros grupos indígenas" (Arnaud, 1989:218).

O estímulo ao ânimo belicoso dos Munduruku continuou ren-dendo frutos aos colonizadores que sabiam tirar partido dele. João Barbosa Rodrigues, que visitou a região do Tapajós em 1872 integrando comissão científica organizada pelo governo imperial, registrou que ela havia sido anteriormente habitada por vários grupos indígenas hoje extintos, como os Tapajós, Apanuariás, Amanajás, Marixitás, Apicuricus, Moquiriás, Anjuariás, Jararéuaras, Apecurias, Canecuriás, Motuari, Uarupás, Periquitos e Suariranas. Em seu relato sobre a ocupação indí-gena da região Barbosa Rodrigues destacou que além do desapa-recimento dos índios Tapajós, atacados por infecções provavelmente resultantes do contato com os não-índios, os demais grupos "fugiram para outros pontos da província" ou "foram exterminados pelos Mutirucus, hoje Mundurucus". Considerada "a mais numerosa e a mais guerreira do Vale do amazonas" a tribo dos Munduruku tinha uma população então estimada entre 18.000 a 20.000 índios, "sendo 5.000 já civilizados" (Rodrigues:126).  Henry Coudreau, incumbido de realizar missão científica na região cortada pelo rio Tapajós, relata que em 1895 um grupo de moradores resolveu vingar o massacre de alguns negociantes provavelmente perpetrado por índios Ipurinãs. "Não imaginaram nada melhor do que procurar os mundurucus, mercenários de uma nova espécie, conhecidos por alugarem a quem quiser pagar seu valor militar, que talvez seja um pouco superestimado" (Coudreau, 1977:45). Darcy Ribeiro também destaca a aliança guerreira entre os Munduruku e as forças governamentais ao observar que "Devido à grande combatividade desses índios, eles foram recrutados pelos brancos para fazer face a tribos hostis. Com isso os Mundurukú conseguiram manter, por um longo período, certa integridade e autonomia tribal e o poder político dos seus chefes alcançado pelo relevante papel que exerciam na guerra. Assim, os padrões guerreiros passaram a ser desempenhados tanto pelas antigas motivações tribais, como por razões mercenárias" (Ribeiro, 1979:40).

Guerra e evolução

Já nos reportamos passageiramente no início do trabalho à nossa posição no que concerne às guerras tribais. Por um lado, há a necessidade indiscutível de garantia de provisão alimentar que permite a sobrevivência física dos indivíduos, e essa foi sem dúvida um poderoso motivo para a irrupção de guerras - preventivas ou não - entre inúmeros grupos tribais ao longo da história da humanidade. Esse motivo, freqüentemente inacessível à consciência social nativa era, via de regra, recoberto por razões que obedeciam a outra lógica priorizada pela "razão indígena", fosse ela associada à vingança, à caça à cabeça do inimigo, as motivações religiosas ou a outras razões. De qualquer maneira, a questão ecológica está presente nesses procedimentos e pode-se dizer que há um certo consenso a esse respeito, ou seja, da importância da adaptação ecológica e do papel da guerra associada a ela. Segundo Florestan Fernandes, "do êxito das atividades guerreiras dos Tupinambá dependia extensamente o funcionamento 'normal' dos sistemas econômicos e organizatório tribais. Em torno delas giravam todas as possibilidades de preservação do domínio e usufruto de áreas territoriais ocupadas e de conservação da iniciativa nos movimentos de invasão de áreas territoriais dominadas por outros grupos tribais" (Fernandes, 1970:21).  Mas, alguns casos, como o dos Munduruku, parecem exigir uma consideração mais abrangente para explicar as atividades belicosas dos indígenas, uma vez que nem o mais preventivo dos ataques parece justificar a caça e o extermínio de inimigos que viviam a centenas de quilômetros de distância das aldeias Munduruku. Mesmo que não se desconsidere completamente a razão ecológica para essas incursões - afinal, ela não deixaria de colocar incertezas aos grupos indígenas quanto a um futuro mesmo distante - ela parece insuficiente para sozinha explicar a impor-tância, o alcance e a permanência da guerra entre as sociedades primi-tivas.

Neste ponto parece então adequado complementarmos as razões das lutas tribais associando ao aspecto ecológico, amplamente aceito, a questão relativa à "guerra genética". A questão reprodutiva das matrizes genéticas é mais do que complicada, já que é impossível vincular-se concretamente um gene específico à atividade belicosa. De qualquer maneira, pode-se adotar a perspectiva que associa ao aspecto ecológico a questão genética, no sentido de que esta contribui poderosamente para a emergência da agressividade e dos conflitos bélicos que não visam apenas a assegurar condições favoráveis de exploração do meio ambiente por uma dada sociedade. Tais ações acontecem também, e princi-palmente, objetivando à supressão dos seus inimigos, cujos genes não carregam sua configuração genética, de modo que, na luta egocentrada pela vida, aquele grupamento humano não vacilará em colocar um fim à vida daqueles que lhe são antagônicos, se isso for possível.

O caso Munduruku parece ressaltar a insuficiência da questão ecológica quando colocada como a base por excelência da qual emerge o ímpeto guerreiro da tribo. Não há referência nas várias fontes históricas, naturalistas ou antropológicas de disputas envolvendo aquela tribo com grupos vizinhos por controle de qualquer território. Concentrados inicialmente, isto é, no período em que se registraram suas primeiras aparições no contexto colonial, na região do alto-Tapajós, as aldeias Munduruku funcionavam como arcos metafóricos que lançavam grupos de guerreiros como flechas desesperadas em busca de um único alvo: as cabeças de inimigos, entendidos estes como quaisquer outros indivíduos não-Munduruku. As tribos que tiveram a infelicidade de habitar terras vizinhas foram, como já se viu, peremptoriamente exterminadas. Mesmo que uma eventual razão ecológica pudesse colocar-se firmemente como estímulo aos ataques aos grupos vizinhos, uma outra causa deve ser buscada para explicar o prosseguimento das expedições guerreiras que visavam a atacar grupos que habitavam regiões muito distantes das aldeias Munduruku.

A peculiaridade da guerra Munduruku consistia no fato de que ela não se satisfazia com o medo e a fuga dos inimigos, como seria o caso se a disputa fosse apenas uma questão de conquista territorial. Também não se saciavam os guerreiros com a morte de um ou alguns inimigos para compensar a morte de um ou mais parentes ou amigos, como acontecia nos casos tipificados como guerras de vingança, que impeliam variados grupos tribais, particularmente os Tupinambá. A guerra Munduruku não cessava com a extinção de um grupo inimigo; havia sempre outros ini-migos a serem caçados, vencidos, decapitados e, mesmo, exterminados. Vencidos, nesse caso, significava mortos e a conseqüente apropriação pelos vencedores de suas cabeças que eram transformadas nos mais valiosos troféus de guerra. Não bastava, portanto, apenas atemorizar, vencer e afugentar as outras tribos; seus guerreiros precisavam deixar de existir. Suas cabeças transformadas em enfeitados e cobiçados objetos que simbolizavam a vitória e a vida Munduruku constituíam a condição mesma da existência da tribo, pois tinham o poder de lhe dar o devido sustento graças às exuberantes caçadas, e colheitas que propiciavam. A morte dos outros era, portanto, condição necessária à sobrevivência dos Munduruku; ou ainda, a existência destes índios dependia, na lógica nativa, da morte do outro, de qualquer outro, de quaisquer outros ou, mesmo, de todos os outros. Metaforicamente pode-se, então, afirmar que a morte do outro constituía o verdadeiro alimento dos Munduruku; o que significa dizer que a guerra era para eles, como a caça, a pesca, a coleta e a colheita, uma tarefa sem fim. Eles não iam então à busca de inimigos ou de suas cabeças mágicas; na realidade iam, sim, em busca da própria vida.

Aqui se vislumbraria um interessante paradoxo se prosseguisse num raciocínio como esse, apoiado numa lógica formal, pois se o objetivo Muduruku fosse realmente alcançado, isto é, se a guerra chegasse ao seu final com a morte de todos os inimigos, então não haveria mais cabeças a serem caçadas e mumificadas e, conseqüen-temente, uma situação de risco à vida Munduruku sobreviria, senão o próprio fim dela. Daí se depreende, então, que inimigos vivos eram mais do que necessários aos Munduruku, pois só assim poderiam contribuir decisivamente, depois de mortos, com suas cabeças transformadas em troféus, para o bem estar de quem os havia matado e da sociedade de guerreiros que havia produzido seus matadores, garantindo sua existência. Assim se compreende mais facilmente a razão dos enormes deslocamentos feitos pelos grupos de guerra Munduruku, que perco-rriam milhares de quilômetros de distância em períodos que se estendiam até um ano e meio à caça de inimigos e de suas preciosas cabeças. Qual teria sido o destino das populações amazônicas se não tivesse ocorrido a intrusão colonial e a máquina de guerra Munduruku não tivesse sito progressivamente desmontada? A questão não deixa de ser instigante, mas estaria aberta às mais variadas suposições baseadas numa "lógica cultural". Se aquele tivesse sido o caso e os Munduruku tivessem exterminados todos os seus inimigos, ou seja, todas as outras tribos que estivessem ao alcance de suas expedições guerreiras, poder-se-ia supor que fatalmente começaria a haver fortes distinções entre subgrupos da própria tribo Munduruku e a conseqüente gestação de "inimigos internos", cujas cabeças talvez passassem a desfrutar do status das cabeças-troféus dos antigos inimigos pertencentes a outras etnias. Mas,  antes que se recoloque a questão "e quando se extinguissem também os inimigos internos?", seria mais adequado supor que a cultura Munduruku teria modificado a significação das "cabeças dos inimigos", já que prosseguir naquela postura levaria a um processo de auto-extermínio, caminho impensável para qualquer coletividade, humana ou mesmo não humana. De qualquer maneira, a história mostrou que o rolo-compressor Munduruku começou a ser desativado como resultado do estabe-lecimento de relações amistosas com os colonizadores e perdeu sua razão de ser com a pacificação geral a que gradativamente se submeteram todas as outras etnias desde então.

Retornando à explicação da amplitude geográfica da guerra Munduruku, parece-nos, pois, adequado recorrer à questão genética como propulsora dos grupos de guerreiros que iam à caça de inimigos distantes. Num período em que a cooperação não fazia ainda parte de um quadro pintado com as cores dos ideais pacíficos que mais tarde empolgariam as nações de modo geral, a guerra, a destruição do outro, emergia como a estratégia mais eficiente, apesar dos óbvios riscos que implicava, para a criação de melhores e mais seguras condições de existência e reprodução dos grupamentos humanos. A teoria genética diz respeito, antes de tudo à competição que os indivíduos levam a efeito para reproduzirem suas matrizes genéticas. Dessa perspectiva, portanto, os indivíduos podem ser vistos como máquinas reprodutoras para benefício dos genes que carregam. A "guerra genética" em última instância se estabelece no nível puramente individual. Segundo Richard Dawkins, autor do clássico O gene egoísta, nós "somos máquinas de sobrevivência - veículos robôs programados cegamente para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes. (...) O indivíduo [é] como uma máquina egoísta, programada para fazer o que for melhor para seus genes como um todo. (...) Para uma máquina de sobrevivência outra máquina de sobrevivência (que não seja da própria prole ou outro parente próximo) é parte do seu ambiente, como uma rocha, um rio ou uma porção de alimento. É alguma coisa que atrapalha ou que pode ser explorada. (...) A seleção natural favorece os genes que controlam suas máquinas de sobrevivência de tal forma que estas façam o melhor uso de seu ambiente. Isto inclui fazer o melhor uso de outras máquinas de sobrevivência, tanto da mesma espécie como de espécies diferentes" (Dawkins, 2001:17, 91).

Mas, indivíduos com matrizes genéticas compartilhadas fazem alianças para construírem situações favoráveis à sua reprodução e levarem vantagem sobre portadores de outros genes. Grupos que fazem alianças mais fortes e mais duradouras constituem aquilo que se chama família, ou seja, indivíduos ligados por laços de parentesco, vale dizer, que compartilham quantidades de genes idênticos. A solidariedade que se observa entre os membros de uma família é provocada, em termos da ciência genética, por um "altruísmo recíproco", uma espécie de pacto entre indivíduos que carregam genes idênticos, no sentido de criarem situações de vantagens recíprocas, visando à sobrevivência dos seus genes: é a chamada "seleção de parentesco". Segundo ainda Dawkins, "somos máquinas criadas por nossos genes [e] uma qualidade predominante a ser esperada em um gene bem sucedido é o egoísmo implacável. Esse egoísmo do gene geralmente originará egoísmo no comportamento individual. No entanto, existem circunstâncias especiais nas quais um gene pode atingir melhor seus próprios objetivos egoístas cultivando uma forma limitada de altruísmo ao nível dos animais indi-viduais" (Dawkins, 2001:22).

Esse mecanismo é a base das relações familiares consangüíneas, mas se estende, ainda que com menor eficácia, a parentes por afinidade e indivíduos que mantêm estreitas relações de amizade. Como a relação de parentesco sempre constituiu a base sobre a qual emergiram as estruturas sociais primitivas, pode-se inferir que a questão da reprodução genética se coloca como um imperativo que se espraia pelos diferentes grupos que compõem a tribo. De um nível mais elevado de reflexão, percebe-se que o egoísmo individual é acobertado por ações coletivas, solidárias e altruísticas, que interessam à tribo como um todo, como é o caso da guerra que visa, então, num primeiro momento a destruir o perigo mais evidente para sua existência, ou seja, os seus inimigos, ou melhor, os outros genes embutidos nas máquinas de sobrevivência consideradas inimigas.

Violência, guerra e genes constituem, portanto, elos de ligação entre cultura, sociedade e biologia, mais fáceis de serem percebidos nos grupos primitivos do que nas sociedades modernas, cujas guerras, no entanto, não deixam de reproduzir, em alguma medida, os motivos, objetivos e estratégias que se observam nas atividades bélicas do mundo tribal. Apesar das aparências "civilizadas", expressas, acima de tudo, pela eficácia destruidora de seus armamentos, as guerras da modernidade não escondem do olhar científico atento suas vinculações com o "fator genético", exatamente como ocorria com a guerra dos "primitivos" Munduruku ou de qualquer outra tribo indígena.

Notas

1 Cf. Harris: "a pressão demográfica passa a existir no momento em que as populações começam a aproximar-se do ponto em que haverá deficiência de caloria e de proteínas, ou logo que começam a crescer e a consumir numa proporção em que, cedo ou tarde, acabará por degradar e exaurir a capacidade de subsistência do ambiente" (1978, p. 58).

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