SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número13Historia y narrativa en procesos de auto reconocimiento étnicoMestizos o indios puros? El valle Calchaquí y los primeros antropólogos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  n.13 Posadas jul. 2008

 

ARTÍCULOS

Mundar o sertão: ou quando o Jaguaribe virou açude no Ceará

Roberto Lima*

* Doutor em antropologia, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFG. E-mail:  nadanacuca@gmail.com

Resumo

Partindo dos conflitos gerados pela implementação da barragem do Castanhão no rio Jaguaribe, sertão do Ceará-BR, proponho uma leitura do relocamento da população de 20.000 pessoas que ali moravam, a partir dos significados associados ao termo mundar, cunhado por Gayatri Spivak, confrontado-o a entrevistas realizadas com moradores de várias comunidades às margens do rio Jaguaribe que tiveram suas terras alagadas pela barragem do Castanhão. Isso implicará discutir o processo de silenciamento de vozes que se deu em paralelo à desocupação da área e construção da referida barragem, e, ao mesmo tempo, tentar pensar nas possibilidades levantadas por um movimento social atuante no local - o Movimento de Atingidos por Barragens, MAB - de produzir outra versão dessa história através das falas e cartografias locais, que foram violentamente demolidas, desmatadas e submersas em nome de uma estranha entidade chamada progresso.

Palavras Chave: Mundar; Represa do Castanhão; Movimento de Atingidos por Barragens-MAB; Sertão

Abstract

Starting form the conflicts for the implementation of the Castanhão dam in Jaguaribe river, sertão of Ceará-BR, I propose a reading of the displacement and resettlement of the population of 20.000 people who used to live there, beginning from the associated meanings to the term worlding, coined by Gayatri Spivak, confronting it to interviews carried through dwellers of many communities along Jaguaribe river margins that had their lands submerged by Castanhão dam. This is going to implicate the discussion of the process of silence of voices that happened parallel to the evacuation of the area and construction of the referred dam, and at the same time, try to think in the rising possibilities by an active social movement in this region - the "Movimento dos atingidos por Barragens, MAB" - to produce other version of this history through speeches and local cartography, that were violently demolished, deforest and submersed in name of a strange deity called progress.

Keywords: Worlding; Castanhão Dam; Movimento de Atingidos por Barragens-MAB; Sertão

Fecha de recepción: Septiembre 2008
Fecha de aprobación:  Octubre 2008

Introdução: o sertão está mundado?

Esse texto é uma tentativa de alinhavar uma série de depoimentos colhidos em várias viagens curtas pela região impactada pela barragem do Castanhão1 no período de 2003 a 2006 e é também uma reflexão sobre o conceito de mundar, criado por Gayatri Spivak.

Uma barragem como esta é um Projeto de Grande Escala. Ele possui as conhecidas três características indicadas por Lins Ribeiro: "1) el gigantismo, pues son proyectos que implican grandes movimientos de capital y mano de obra; 2) el aislamiento, ya que em general están ubicados em zonas aisladas, por lo que relacionan esas zonas com sistemas econômicos más amplios, y 3) la temporalidad, es decir, el acotamiento temporal" (Ribeiro, 1985 apud Catullo, 2006:25).

Contudo, para o caso das grandes represas, essa definição deixa de fora seus aspectos mais perversos, que são (a) a desestruturação radical e duradoura dos modos de vida das pessoas que viviam do rio, na região alagada pelo lago da represa, e acima e abaixo dele pelas alterações que surgem no regime de cheias, eutrofização da água e estoques de peixes; e (b) o lugar especial que as barragens exercem nas ideologias desenvolvimentistas de todas as inclinações. Esse fascínio fáustico talvez ajude a explicar o por quê do presidente Nkrumah, um ícone da luta pós-colonial africana, ter dado lugar central em sua administração à construção da represa de Akosombo apesar das condições extremamente desfavoráveis impostas a seu país pela corporação norte-americana encarregada de realizar a obra (McCully,2004).

No caso específico do Brasil, devem-se acrescentar ainda o jogo político que une o papel das agências multilaterais - através de investimentos e condicionalidades - e o colonialismo interno fundador do discurso nacional. No cruzamento de ambos fatores, as duas regiões historicamente alvo dos PGE no Brasil são o sertão e a Amazônia.

Para começar, gostaria de colocar uma longa citação, a tradução livre de um verbete do Key Concepts in Post-Colonial Studies sobre o termo, afinal, o sertão tem um lugar imaginado na construção do que é o Brasil, como um lugar de insurreição. Então talvez seja interessante pensar por que a região chamada de "sertão dos Inhamuns" no interior do estado do Ceará, que é estigmatizada como um dos lugares mais violentos daquele estado, de repente tem parte de seu território afogado.

Worlding - Mundar2

"Termo cunhado por Gayatri Spivak para descrever o caminho no qual o espaço colonizado é trazido para dentro do "mundo", ou seja, feito existir como parte de um mundo essencialmente construído pelo eurocentrismo:

se... nos concentramos documentando e teorizando o itinerário da consolidação da Europa como sujeito soberano, de fato soberano e sujeito, então nós podemos produzir uma narrativa histórica alternativa do "mundar" (worlding) disso que é hoje "chamado terceiro mundo" (Spivak 1985:128)

Aludindo ao ensaio de Heidegger, "A Origem da Obra de Arte", Spivak descreve o processo como o "mundar do mundo numa terra não inscrita", que pode ser descrito em outros termos como a "inscrição" do discurso imperial sobre o "espaço" colonizado. Este tipo de inscrição é mais obviamente executado por atividades como o mapeamento, tanto por colocar a colônia no mapa do mundo e por mapeá-la internamente, quanto ao nomeá-la, conhecê-la e, portanto, controlá-la. Mas, o processo de "mundar" também ocorre em caminhos muito mais sutis: Spivak oferece exemplos dos caminhos pelos quais o imperialismo trabalha para sobrescrever o lugar colonizado pelo simples estar lá, apontando o exemplo do solitário soldado britânico que atravessa caminhando a zona campestre da Índia no início do século XIX:

Ele está realmente engajado na consolidação do self da Europa, pela via de obrigar o nativo a catexizar o espaço do Outro em seu próprio lugar de morada [isso é , ele está obrigando o nativo a experienciar seu próprio lugar de morada como espaço imperial]. Ele está mundando o mundo próprio deles, que está longe de ser uma mera terra não inscrita. [...]
[Ele] está, efetiva e violentamente, deslizando um discurso sob o outro. (Spivak 1985: 133)

Esse é um dos muitos processos diferentes de criação de outros [othering] que caracteriza o contato colonial. O ponto central que Spivak mostra aqui é que o projeto imperial em si está longe de ser monolítico, que sua "composição de classes e posições sociais é necessariamente heterogênea" (133). Essa "transformação cartográfica" não foi alcançada apenas pelos criadores de políticas administrativas, mas também, e mais importante, por pessoas comuns como o solitário soldado - e os milhares de colonos que seguiram pessoas como ele para lugares que são colonizados por uma sociedade imperial." (Ashcroft et alli 1998: 241-242)

Mundar o sertão.

Esse verbete está colocado para pensarmos os vários processos de reapropriação do espaço que estão em jogo na região impactada pela barragem, em especial no caso da cidade de Jaguaribara que teve sua sede totalmente alagada e um reassentamento rural, o Alagamar, que teve as terras originalmente ocupadas por seus moradores parcialmente submersas e que agora está num longo processo de transição rumo a um futuro em que eles tentam bravamente intervir3. A região em questão tem a história pontilhada por lutas sangrentas entre famílias poderosas e por relações clientelísticas, de jagunçagem e acoitamento4. Algumas das feições características dessas relações tiveram alterações nos últimos 40 anos em decorrência do asfaltamento das estradas, da melhoria dos armamentos e da própria barragem. Contudo, o lugar relegado na ideologia nativa para a violência física tem continuado bastante grande.

O processo de mundar é importante também por colocar em relação processos que são macro-estruturais e processos localizados. Assim, a barragem do Castanhão, por sua localização em uma região semi-árida tem por objetivo principal a acumulação de água para abastecimento humano urbano, industrial, irrigação e piscicultura. Contudo, como veremos na seqüência, os estragos ambientais e humanos, assim como a forma ditatorial de implementação são os mesmos das grandes represas para geração hídrica que, para Vainer (2002) constituem fonte do deslocamento forçado de 4 milhões de pessoas por ano no mundo, no que ele chama de "a guerra do desenvolvimento"

Este texto é fragmento de um futuro texto coletivo mais longo. A idéia é, através de falas de jaguaribanos, documentar como eles viveram e estão vivendo esse contínuo desfazer e refazer que têm sido suas vidas desde que comecei a conhecê-los e também antes.

Jaguaribara e Alagamar: intervindo no sistema sígnico

Embora a chegada à cidade de Jaguaribara já venha sendo anunciada 100 km antes através de outdoors - com a frase irônica "a 100 km está nascendo uma nova cidade: Jaguaribara, é assim que se muda" - a primeira coisa que salta aos olhos quando se chega a Nova Jaguaribara é a falta de marcos de apoio, referências espaciais para caminhar.

Vista aérea da cidade de Jaguaribara. Esta cidade, como se percebe na foto, tem seu projeto "perfeitamente adaptado" às condições climáticas locais, cujas temperaturas raramente são inferiores a 38 graus Celsius. Fato que sua parca arborização, como se vê na foto, não ajuda a suportar.

Foto: Governo do estado do Ceará. 2002

Colocada sobre uma chapada plana, sem acidentes quaisquer de relevo, todos moradores com quem conversei foram unânimes em dizer que se perdiam na cidade nova: "tem dia que eu me perco até em casa. Acho que eu fiquei assim... meio avoada, porque tem hora que eu vejo, eu procuro as coisas e não acho" (D. Rosa, setembro de 2003).

O sentimento a que D. Rosa alude é uma decorrência direta da violência epistêmica envolvida no processo de mudança vivido por todos. Spivak (2003) discute essa violência como a negação e apagamento dos rastros das formas altamente heterogêneas d@s subaltern@s de pensar seus mundos:

"na constituição daquele Outro da Europa, teve-se muito cuidado em obliterar os ingredientes textuais com o quais esse sujeito [subalterno] poderia categorizar (cathect), poderia ocupar - investir? - seu itinerário - não somente mediante produção científica e ideológica, mas também por meio da instituição da lei [...] este projeto [de constituir o sujeito colonial como Outro] é também a obliteração assimétrica do traço desse outro em sua precária Subjet-ividade. (2003: 316-317)

Ao visitar a cidade à primeira vez, as primeiras entrevistas realizadas mostravam que houve um esforço bastante minucioso por parte dos responsáveis pela obra para apagar as marcas da cartografia sentimental e cotidiana a partir da qual esses agentes se orientavam no mundo, aliás nos mundos, pois o processo de apagamento de rastros modificou relações com o além:

Agora o cemitério, eles fizeram o cemitério [na cidade nova], mas aquilo ali me marcou muito, porque a minha avó tinha um dizer, um dizer assim "onde acabou as carnes que se acabe os ossos": a matéria orgânica daqueles entes queridos acabou-se ali né! Eles tiraram os ossos fizeram as comparação, porque não foi tirado tudo direitinho: eles tiraram os ossos dos que já tinham e trouxeram para cá, fizeram umas gavetas ossárias no cemitério colocaram isso aí. Mas que a gente sabe que a matéria principal desses corpos da família da gente que se foi, a matéria foi destruída mesmo aquele canto, a gente tinha uma preservação muito grande por aquilo ali e que a gente, a cidade mudou...
[Os túmulos] Eram bem cuidados, muitos túmulos bonitos no cemitério, muito túmulo bonito bem zelado, a família tinha aquele negócio[.]. A cidade mudou pra cá aí e o pessoal [estava] fazendo plano no dia dos finados, que é dia dois de novembro, todo mundo ir lá. Quando foi em outubro demoliram o cemitério [da cidade velha]... aí quer dizer que estragou todo aquele plano do povo porque eles podiam muito bem ter deixado...
Não fazia nada mal ter deixado aquele ano ali para deixar pelo menos matar a saudade. Que quando o povo acostumasse [com] os sepultamentos aqui, os ossos estavam aqui, por aí e esquecia de lá. Mas isso aí, com isso aí o povo se revoltou porque machucaram eles, trituraram, demoliram, ficou tudo trituradinho ficou nada. Inclusive...(d. Rosa)

Como argumenta Spivak (1985), a própria elaboração da nova paisagem como parte do mundar é uma das performances do estado colonial. Para o Estado trata-se da inscrição dessa região no discurso daquele, algo que dentro da forma violenta de constituição da relação self/Outro formulada acima é perfeitamente possível/imaginável de ser realizada dentro das salas com ar condicionado dos técnicos das agências estatais na capital (a 270 km de distância). Uma entrevista posterior, realizada com um engenheiro aposentado do estado foi sintomática: "eu projetei pelo menos três barragens que foram construídas e que eu nunca fui lá. A gente trabalhava numa equipe pequena, três engenheiros, e fazia em cima de mapas e fotos aérea" (M. entrevista em 2006).

Assim como no gesto aludido acima em que três ou quatro engenheiros colocam o dedo sobre um mapa e nisso tornam-se demiurgos coloniais, o evento da destruição dos cemitérios é recorrente em vários relatos de barragens. Em troca os técnicos oferecem um mapa com coordenadas geo-referenciadas, como se a representação cartográfica substituísse a espacialidade constituída pelo longo fazer do tempo que se mostrava nas coisas, lugares e edificações da vida.

No estado do Ceará há um dito conhecido na comunidade acadêmica de que "a agencia de fomento à pesquisa do estado só libera verbas para pesquisas que falem bem do estado". A consulta realizada durante o levantamento bibliográfico da pesquisa mostrou que a totalidade das dissertações e teses escritas sobre a barragem (com exceção de Araújo 2006) foram, em grande medida a construção de um discurso legitimador das ações estatais acerca da obra e retomaram sempre os ideologemas5 da "seca no nordeste" e do "progresso". Em entrevista concedida a Araújo, uma engenheira do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca/DNOCS que escrevera uma dissertação de mestrado sobre o Castanhão descreve da seguinte maneira os atingidos: "eles [os moradores que tiveram suas terras alagadas] deviam nos agradecer por tirarmos  eles de lá. Aquelas casas deles não eram casas, eram quichós".6

A violência epistêmica a que se refere Spivak, ao esvaziar de significados os sujeitos subalternos, prefigura, permite, prescreve e justifica outras formas de violência, incluindo o uso da força sobre os corpos. Então, alem do artifício bastante conhecido da animalização discursiva dos sertanejos, o entrecruzamento das várias violências na performance do estado pode ser ainda exemplificado em um outro relato bastante denso, a explicação que um amigo, ex-morador da cidade, forneceu-me para o primeiro de três assassinatos cometidos pelo marido de sua irmã:

"Ela, [a irmã] estava andando na cidade velha com o filho pequeno [de dois anos] e um engenheiro da barragem fez uma brincadeira com o menino e deu um tapinha na bunda dele [uma brincadeira que é relativamente comum quando se tem intimidade com a família da criança]. Aí o G. [cunhado] foi lá e matou o engenheiro. [Justificou:] 'meu filho é macho, ninguém pega na bunda'. As outras duas mortes foram decorrência dessa. Mas todo mundo gosta muito dele. Ninguém o vê como um bandido." (A. entrevista em 2003)

Quando ouvi essa história a primeira vez, fiquei assustado com a aparente desproporção entre causa e efeito. Assim, contei a história uma socióloga amiga minha e ela respondeu:

"Eu acho estranho é acontecer pouco disso [esses assassinatos]. Eu trabalhei no IDACE [Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará] e o que a gente fazia era uma violência muito grande, a gente entrava nas casas e mexia nas panelas que estavam com comida no fogão, entrava nos banheiros e nos quartos do casal" (C. entrevista em 2004)

Ou seja, o que C. e A. estavam dizendo é que viver em Jaguaribara durante o período de construção da barragem foi um espécie de estupro continuado. Uma constante penetração forçada na intimidade das pessoas. Em situações assim de brutal colonização da vida, reações que poderiam ser chamadas de surtos psicóticos são muito comuns7

Tratava-se da violenta sobreposição de um discurso sobre o espaço e sobre o viver por outro. As agências estatais recrutavam os jaguaribanos na tarefa de criar, na (quase?) totalidade das vezes de forma impositiva, novos espaços de sociabilidade sobre os escombros que marcavam as mentes: seus lugares eram apagados sob a água do lago e no processo de reassentamento forçado precisavam criar marcos para levar a vida adiante debaixo da propaganda governamental que incessantemente era veiculada nos canais de televisão (o principal deles é propriedade do político que propôs a obra) e jornais (serve aqui a mesma referência às emissoras de TV) que constantemente invadiam as vistas dos que eram ironicamente chamados "beneficiários"8, os que foram forçadamente relocados para aquelas ruas retas e amplas de moderna cidade, a primeira planejada no estado e que bem poderia ter saído da prancheta do barão Haussman, responsável pelas reformas na Paris do Séc XIX que visavam principalmente, pelo traçado e largura das ruas, impedir manifestações semelhantes à da famosa comuna.

O investimento na criação de um discurso do progresso que tem entre seus objetivos o esforço de apagar os rastros criados pelos moradores no espaço atinge situações dramáticas na vida de cada morador e em cada pequeno pedaço de terra onde é investido sentimento9:

Aqui tem um exemplo do velho pai do Geso, [...] chamava-se Vicente Morais, ele era o jardineiro da praça [da igreja na cidade velha], ele era quem aguava aquelas plantas da praça, amanhecia o dia e ele aguando, cuidando daquela praça. Aí ele, com todo aquele movimento, quem quisesse ver ele brigar, falasse na construção da barragem, todo mundo já sabendo mas ele não se dava por vencido, ele dizia que isso aí não era feito, Deus ajudasse que isso aí não era feito. Ele tinha tanta raiva e tinha muita gente que já fazia assim pra ver ele revoltado como ali tava na praça "aí seu Vicente vão começar tal tempo e vão terminar tal tempo." E ele já começava a brigar. Deu um AVC nele, e de repente ele morreu, e todo mundo dizia que ele morreu brigando por Jaguaribara.

O prédio da igreja é emblemático porque fizeram uma "cópia idêntica" dele na nova cidade. Contudo para todos os moradores aquilo é um simulacro no melhor significado do termo: uma cópia tão perfeita do original que dificilmente se distingue dele (Baudrillard,1991), só que esse simulacro, como cópia que é, não tem aura, e o lembrete maior disso para os moradores são algumas de suas portas, que são falsas! São "ornamentos" da fachada, falsas portas num duplo de uma igreja que virou pó.

Praça central e igreja da Nova Jaguaribara.
As "portas" fechadas na fachada frontal, na verdade, não existem.

Foto: Governo do Estado do Ceará

Na época da realização dessas primeiras entrevistas, a cidade velha ainda não tinha sido submersa (fato que veio a ocorrer em janeiro de 2004), de forma que foi possível visitar o que restava dela. Para irmos lá, eu e Araújo convidamos dois amigos que moram na cidade nova, Agnelo, filho de d. Rosa e aluno à época de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Ceará, e Corrinha, sua prima, formada em história pela Universidade do Vale do Acaraú - para nos guiarem na cidade antiga.

O que vimos foi algo impressionante. Como as casas tinham sido derrubadas recentemente, a sensação de desmantelo era muito grande, principalmente no "centro", onde os restos que haviam da antiga igreja eram particularmente pequenos. "Eles fizeram questão de derrubar a igreja e passar o trator por cima do cemitério [houve um transporte dos ossos dos mortos, mas muitos ficaram], eles justificavam dizendo que se não fizessem assim o povo voltava" (Agnelo, 09/2003)

Agnelo andava, com o olhar meio perdido e volta e meia pegava um pedaço pequeno de madeira de alguma janela quebrada e andava um certo tempo carregando aquele fragmento na mão, evocando de forma pungente o anjo da história de Walter Benjamin.10

Dali descemos para a margem do rio, para a "passagem molhada", espécie de ponte semi-submersa, que ali havia. Foi a primeira e última vez que vi aquele rio em seu leito. Naquele momento eu tinha certeza de que a represa nunca encheria e eu veria repetido o mesmo drama que documentei em Pilão Arcado (Lima, 2004), cidade que foi parcialmente demolida em decorrência da represa de Sobradinho11, mas, por causa de um erro imenso de projeto, nunca chegou a ser submersa, tornado-se um lugar para onde voltaram vários moradores que não se adaptaram à nova cidade que foi construída a quase 20 km da margem do lago.

Essa foi a última vez que nossos amigos também viram o rio ali, em seu leito. Ali se despediam. Uma constante nas entrevistas dos que foram para a cidade nova foi a recusa em retornar ao lugar aonde moraram. Corrinha e Agnelo conversavam sobre uma pedra que dava uma ótima vista para o por do sol, e de onde eles, crianças, pulavam no rio para tomar banho. "Quanto cabaço aquela pedra viu se perder" pensou Corrinha em voz alta.

Saímos dali, cada um com seu desconserto, lembranças e interrogações que preenchiam um pesado silêncio dentro do carro12 e voltamos para a cidade nova, com seu quadriculado perfeito, aonde tivemos o primeiro alento de que o sertão é mais. Encontramos dois senhores, passados dos 60 anos: Chico Melado e um amigo, "um de boca aberta e um de boca torta" no dizer da esposa de Chico, ambos recuperando-se de AVCs (daí a alcunha que a mulher de Chico colocou neles) estavam queimando um pedaço pequeno de terra dentro da cidade, sintomaticamente atrás do cemitério, para fazer uma roça, num claro trabalho de simbolização sertaneja daquele espaço que falava uma língua diferente. Afinal eles sempre haviam trabalhado (na agricultura) e agora, na nova cidade, não conseguiam se pensar sem essa prática. Atrás da cidade dos mortos, dois velhos faziam seu clandestino protesto contra o apagamento de seu modo de vida.

Conversando com a irmã de Agnelo, na cidade nova, sobre o que tínhamos visto, ela relatou que nunca mais voltara na cidade velha, mas que havia um sonho recorrente que, desde que chegara à nova cidade, a  assombrava:

Eu falava com o moço do trator ele me dizia que só não ia derrubar as casas brancas, que tivessem com a frente branca. Eu saia correndo atrás de um pintor para pintar a frente da minha casa. Não encontrava e quando vinha voltando ele dizia: "Olhe já estou terminando vai chegar a sua." Eu dizia: "Ô, espera um pouquinho!" [Então] Eu mesma ia pintar, subi a escada e quando eu tava começando a pintar eu acordei, só isso. (...) [Eles iam destruir sua casa]  Com as máquinas dos dentões. Uns dentões medonhos, e o meu medo era dos dentões derrubando a casa vizinha, e eu imaginando que era a minha também [.] aquilo, para mim foi má morte.

As falas que aquelas pessoas nos passavam, claramente levavam em direção à tentativa e à possibilidade de uma narrativa diferente do processo de mundar o terceiro mundo, como fala Spivak.

Porque as narrativas governamentais existentes sobre o Castanhão são excessivamente perfeitas. Por exemplo, o relatório da SEAGRI (renomeada posteriormente Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Estado/SDA) sobre agricultura irrigada do Ceará de 2003 apontava 3 perímetros irrigados em funcionamento no contexto Castanhão, entre eles o Alagamar, do qual nos ocuparemos, que estaria produzindo coco, banana e mamão (até hoje, 2008, nenhum perímetro irrigado foi implantado).

O problema então é tentar entender o que está sendo colocado para fora da vista de modo a criar essa aparência perfeita. E um modo de pensar isso é através do esforço feito para ocultar os movimentos sociais que surgiram em sentido oposto à construção da barragem. Associações de moradores, a ação da Igreja, e, principalmente a entrada na região de um importante movimento nacional, o Movimento dos Atingidos por Barragens, MAB.

A ação principalmente desse último coletivo foi importante por criar novas lideranças, vindas principalmente de dentro dos setores mais atingidos, os moradores da zona rural, e significou um corte na forma ambivalente de atuação das (assim chamadas pelos moradores ligados ao MAB) "lideranças tradicionais" na luta contra a barragem:

Sempre esteve [ligado a] uma história bem anterior, o fato como foi organizado uma resistência fingida, aqui no projeto Castanhão, só daí que você consegue entender, tanto o fato é que nunca teve resistência a ponto de tentar o resistir contra a barragem, essa é uma coisa, a outra coisa é que quem fez a luta talvez tenha sido alguns poucos sabidos, né, com capacidade intelectual, mas não com capacidade política e com compromisso de tentar mudar a situação e que era concentrada num grupo, não havia um debate amplo e para a sociedade com a sociedade, então isso fez com que acontecesse o seguinte, um grupo detinha todas as informações, que aí com isso você consegue deter o poder, esse grupo que se dizia independente, esse grupo puxado pela igreja organizou uma associação em Jaguaribara, tem lá seu trabalho, não podemos tirar os seus méritos, mas é um grupo que não queria ter rompimento nenhum, por isso não avançava, né, essa é a explicação, e nós que até então não entendia (V.)

É importante, como ele diz, reter o mérito dos integrantes da Associação, pois, inclusive foi dentro desta que as futuras lideranças do MAB começaram "na luta", mas é importante ver que as "lideranças tradicionais" não conseguiram criar um discurso que fosse alternativo ao discurso pró-castanhão. A criação de um discurso que tem como foco os atingidos e que tenta rever o papel das barragens na política energética brasileira (ligado aos ideologemas da soberania nacional, progresso e, agora, energia limpa) tem sido uma das maiores lutas e contribuições do MAB (Vainer, 2004).

A catexia a que se refere Spivak mostra outra face, a heterogeneidade inerente ao mundar não estava só nos diversos grupos que acorreram ao projeto e que fizeram aqui o papel que na Índia foi preenchido pelos colonos ingleses e que para esse texto seriam os bichos de obras: frações dos atingidos, principalmente as elites locais (que, dentro da discussão dos subaltern studies são também subalternos, Spivak, s/d) em seus estratos superiores e inferiores colaboravam no processo, complexificando o quadro.

Contudo, no processo de surgimento de novas lideranças, aliado à assessoria prestada por atingidos de outras barragens no Brasil, o MAB foi e é responsável para que a rubrica do "social" existente no Rima e no EIA não se tornasse aquele apêndice simplificado que Sigaud discute, termo que às vezes aparece como substantivo, outras como adjetivo e

designa de forma residual, tudo aquilo referente aos homens, às suas atividades, ao seu patrimônio, por oposição aos animais, às plantas e às demais condições físicas. (Sigaud, 1992:19).

Assim, começou a haver, por volta de 1999, uma percepção de que os movimentos sociais que estavam envolvidos no projeto Castanhão teriam de tentar formas de ação que não fossem as mesmas que eram conhecidas na região, uma região marcada por uma política coronelista, e com uma forte componente clientelista nos entendimentos do que seja política:

No início do Castanhão, da construção, da discussão, não tinha planejamento para os atingidos da zona rural como um todo né, eu participei algumas vezes de debates aí na Nova Jaguaribara, em Fortaleza, em audiências públicas que se faziam. E a gente via que tinha um grupo, engenheiros e tal que davam a sua contribuição, no sentido de oferecer uma alternativa ao Castanhão Plano, e a gente sentia justamente essa distância. Algumas pessoas aqui da Jaguaribara participavam, políticos e instituições religiosas participavam, mas quando chegavam aqui não tinha aquela socialização do debate com a comunidade, com o povo. Alguns políticos aqui diziam que eram contra a construção da barragem e lá nas discussões com os técnicos eram a favor. Aí foram empurrando assim, com a barriga, até que em um dado momento a gente foi se dando conta que precisa organizar, no lugar de ficar discutindo essas coisas no nível geral e não tinha encaminhamento nenhum. Na prática era só uma idéia na cabeça de engenheiro do DNOCS que era contra a barragem, algumas pessoas da igreja e alguns apoiadores, mas que essa discussão era lá, por fora, aqui não tem mais acordo. A gente foi se dando conta que era necessário organizar a comunidade para se conquistar os direitos dentro do contexto Castanhão (J A.)

Também, o fato desse movimento ter conseguido se firmar na região, mesmo com ameaças de morte e tiros disparados contra casas de lideranças, possui importante papel na responsabilidade pela forma com que alguns assentamentos estão tomando, pois como discutiremos em seguida, eles têm conseguido aglutinar moradores de todos os reassentamentos (20) e de duas das cidades atingidas (Jaguaribara e Jaguaretama) na luta por uma auto-determinação da produção e de seus padrões futuros de moradia e produção.

Para uma segunda estadia na região, houve por minha parte uma preocupação em entrar em contato telefônico com lideranças do movimento no local, para que na segunda viagem pudéssemos começar a pesquisar como os moradores da zona rural que preferiram nela permanecer estavam vivenciando o processo de mundar.

A segunda ida ao município de Jaguaribara foi mais impactante. Foi um ano de inverno atípico e nós chegamos pouco depois das grandes chuvas que repentinamente encheram a represa e que fizeram uma grande parte da população rural sair de suas casas "com água nas canelas". Era mês de abril e dessa vez fomos conhecer os assentamentos, que nas palavras dos moradores "é viver num desacato".

O reassentamento onde centramos nossos esforços em etnografar é o Novo Alagamar. Nome da antiga comunidade onde se localizava a casa de D. Rosa, que, junto a seu filho, Agnelo, foi conosco nessa visita.

Esse reassentamento é bastante interessante em vários sentidos. Originalmente a comunidade distava apenas 5 km da cidade velha, o que permitia um fluxo bastante constante de pessoas entre ambas. Devido ao enchimento da barragem, ele veio a ficar 70 km da nova sede de Jaguaribara e acabou sendo, posteriormente, anexado a outro município, Jaguaretama, do qual dista 18 km. No caminho até os barracos atravessamos o que será o "perímetro irrigado Alagamar", uma vasta planície absolutamente desmatada. Paisagem idêntica a outras em que Projetos de Grande Escala foram implementados13 e seguimos até a beira do rio. Ali, D. Rosa, da margem olhava sua casa, semi-submersa a uns 50 m para dentro do rio e descrevia em detalhes aquilo que para nós era puro espelho d'agua:

Ali é um pé de cajarana, perto de um pézinho de fícus, ali do lado da cajarana. Do outro lado dela, era um cacimbão bem grande que a gente puxava água, assim, no verão a água era limpa. Quando a gente não queria tirar aqui do açude tirava dali. E acolá é o rio, mas o rio era pertinho lá da casa também.
O rio Jaguaribe é ali onde tem aqueles matos mortos, aquelas carnaúbas, mangueiras, coqueiro, também tem um pé de cajá bem grande acolá, na frente do rio aonde tinha as campineiras. Aonde tirava o capim do gado era acolá. Aí a gente tinha um mato lá do lado de lá do rio que pingava água para agoar o capim.

E, eu entrei na água do rio Jaguaribe até a água chegar na barriga para ir até a destruída casa dela, e depois também ela, me seguiu, sob os protestos do filho ("você vai gripar, mãe"). Parte das construções da propriedade dela, o estábulo e um barraco para guardar ferramentas não foram submersos, mas tinham sido demolidos.14

Voltamos um pouco pela estrada para conversar com moradores que ali permanecem do antigo Alagamar. A comunidade consistia de 134 famílias que, ainda não tinham tido casas novas construídas quando o rio encheu em 2004 (as casas ficaram prontas em 2006, mas o abastecimento de água só foi normalizado em 2007, assim como o de eletricidade), saíram de suas casas com água já na soleira e foram colocados em 100 barracos de 20m2 cada, de madeirite, organizados em 20 blocos de 5 barracos.

O arranjo, que quando fomos lá a primeira vez ainda era recente, já dava nítida impressão que se tornaria uma panela de pressão, pois era totalmente contrário às noções locais de privacidade. Como disse um morador: "antes as casas eram afastadas e os conflitos se diluíam". Agora, a proximidade reduzia a intimidade a zero, até o hábito de dormir em redes ficava em cheque: "eu tô dormindo no pau de fulano [nome do vizinho], ele se bole, eu me viro também" dizia uma moradora com uma risada nervosa, fazendo na sua fala, através do trocadilho - em que a palavra pau tanto pode ser pênis como a coluna de madeira que sustenta os dois barracos e em que eles penduram suas redes - uma alusão à situação de promiscuidade forçada.

Neste primeiro dia, tivemos uma reunião com duas lideranças do MAB que moram no assentamento. Nos sentamos sob uma mangueira, a única árvore de sombra em 400 ha de puro descampado. Como parte do "projeto" de mundar, toda a vegetação do assentamento, menos os 20% de reserva legal, fora desmatado, o que é outra característica de vários sistemas de reassentamento: a redução das dimensões múltiplas do espaço vivido, com a aparente aleatoriedade do existir, por estradas e canais retos em um solo plano. Mais uma vez nossa guia foi D. Rosa, pois, enquanto andávamos até a mangueira, Agnelo perguntou se a mãe sabia aonde eles estavam pois ele estava perdido: "claro, aqui é a roça de fulano, ali era a de seu x., ali para baixo era a nossa...", ela olhava a rala topografia da borda de chapada em que estávamos e conseguia se guiar por todos os sítios que antes existiam, coisa que seu filho, que tinha nascido a menos de 1 km dali, não conseguia mais ver, o que parecia duas formas diferentes de resistência à catexia que o plano Castanhão os forçava: D. Rosa via sob a superfície alisada, e Agnelo assumiu o trauma e foi morar em Fortaleza.

No pé daquela mangueira tivemos uma aula de como se deram as mediações dos conflitos implicados no contexto Castanhão, como os integrantes do MAB gostam de enfatizar:

eu quero pedir isso com  muito carinho a vocês que não mencionem no contexto Castanhão [apenas] Jaguaribara, e sim a região, porque existem mais municípios atingidos, se sai uma reportagem no jornal, mas atrela sempre a Jaguaribara, sempre a Jaguaribara. Então isso foi disseminado de um jeito que na cabeça das pessoas não consegue ver o contexto Castanhão como uma área de abrangência de vários e vários municípios. É só Jaguaribara e isso tem uma explicação porque foi feito desde o início, quem mais puxou foi Jaguaribara, tem seus méritos, mas com isso gerou uma certa relação de ser um pouquinho melhor, tipo assim, "ah, Jaguaretama não acompanhou então vamos sempre deixando de lado", não adianta nós tentarmos agora, né, porque eles não correram junto, não organizaram junto. E nós entramos tentando fazer um trabalho diferente e aí na relação a nível nacional com o movimento (V.)

Como já foi apontado, essa chamada tinha, no lugar exato onde estávamos, um sabor a mais, já que as casas novas (na época ainda uma questão para o futuro) dos moradores do Alagamar  acabaram sendo construídas no município de Jaguaretama, criando mais um conflito de fronteira entre os dois municípios, à esteira do anterior que foi a construção de da cidade  de Nova Jaguaribara no território daquele município.

Uma questão que apareceu de forma muito clara foi a dificuldade em criar minimamente um discurso contrário à represa que não fosse o discurso pró-Castanhão espelhado, ou seja, criar um discurso onde os atingidos da zona rural estivessem presentes.

Nas lideranças mais antigas, principalmente, que eram puxados pela própria igreja, pelas entidades, o Sindicato era praticamente cooptado pelos governos locais, né, os STR. A igreja que tinha a luta mais forte, também não tinha uma linha libertadora na prática, né, de enfrentamento, e aí não foi fácil. E aí, nóis começamos a fazer o debate. E aí, como já existia inúmeros reassentamentos: O que é que eles fizeram? Tá aqui as pequenas propriedades com moradores, posseiros, arrendatários, meeiros, sem-terra e por aí ia, né. O que eles fizeram? Eles mesmo, o próprio governo quando deu início, deu a ordem de serviço na barragem do Castanhão, não tinha plano de reassentamento nenhum, era o desvio da BR116 e a Nova Jaguaribara, agora pra isso tinha projeto, pra reassentar a população urbana e fazer o desvio da BR116.
Só que eles se deram conta no momento, mesmo sabendo que tinha só de comunidades rurais, mais de 45 e a maioria altamente populosa, então quer dizer, chamaram o IDACE e disseram "agora é um plano seu, dá um jeito". Então, o quê que eles começaram a observar? Propriedades aqui fora da área do Castanhão, comprar grandes ou médias propriedades, não interessava a qualidade da propriedade, e obrigar os moradores a ir pra dentro.
De que maneira? Olha, vocês não podem mais ficar aqui, vocês não têm condições de comprar uma propriedade própria, e se quiserem vocês podem é aceitar, pegar essa propriedade que está sendo vistoriada, que tá sendo oferecida, e nós fazermos um assentamento. As pessoas aqui tinham uma frustração, tinha um medo da questão coletiva de assentamento ou reassentamento. Aqui, essa região é uma das mais reacionárias do ponto de vista político, do ponto de vista de organização. Então obrigou as pessoas a virem pra cá, não tinha outra opção, né. As pessoas vieram para áreas péssimas, tem solos altamente improdutíveis, não por não ser cultivados, mas porque é pedregoso mesmo, né. Agnelo já conhece algum, conhece uma parte.
Então nóis entramos fazendo todo este debate. E a questão das irrigações? Se era 43.000ha que o Castanhão vinha puxando que irrigaria? Então para quem vão ser? É só para empresários? Esse solo estava nas manchas de solo pesquisado pela SRH, a chapada daquela área da Jaguaribara, que é a chapada do Castanhão com mais de 10.000ha, e por aí ia, então nóis começamos a fazer este questionamento. Me diga uma coisa, e as áreas de produção irrigada, vão ser pra quem? Aí eles começaram a dizer, olha mas não pode porque pequeno não pode irrigar, não tem capacidade do ponto de vista... de tecnologia; do ponto de vista financeiro; ele é burro demais... dizia com outras palavras, mas é isso. É burro pra ele seguir uma tecnologia, tem a questão mercadológica e tudo. Aí nós fomos comprando, de uma certa maneira, briga com grupos, né, de dentro do governo ligado à questão empresarial, ou que vendia equipamentos de irrigação, enfim, isso é toda uma cadeia.
Então como a gente começou com este questionamento e tinha um grupo multiparticipativo, né, que este grupo foi composto - vou variar assim pra ver se a gente consegue compor uma compreensão - Havia esse grupo que para iniciar o Castanhão, então, monta-se um grupo multiparticipativo. Esse grupo é composto por todas as pessoas que concordam com o complexo Castanhão, entendeu? Então, esse grupo é composto por vários representantes do governo federal DNOCS, por vários representantes do governo do estado do Ceará, das mais diferentes secretarias, e também é composto por governos municipais que concordam e por vereadores do município que também concordam, e representando a sociedade civil, né, uma indicação na época do povo, também não sei de que jeito ela foi conduzida até o ponto de ser indicada, da principal figura, que tenho muito respeito por ela, da irmã Bernadete, ela representando a sociedade civil, e aí dentro desse grupo lá eles discutiam e encaminhavam o que entendiam. E aí nós começamos a entrar dentro e atrapalhar, não como conselheiro, mas como pessoas da sociedade, e aí chegou um momento que nós era proibido a falar como integrante do MAB, né. (V.)

Hoje há, de fato, ganhos decorrentes de ações orquestradas pelo MAB - ações de protesto algumas vezes muito visíveis, como a ocupação e paralisação do canteiro de obras da barragem por 3 dias em 2003, e a ocupação da BR-116 por 4 dias em 2004 -, como por exemplo o projeto das casas (com 85m2) e o formato do núcleo populacional do Alagamar, assim como o gerenciamento e a construção das casas que foi todo realizado pelos próprios reassentados:

eles ficaram doidos quando a gente sugeriu isso, nós tiramos o dinheiro que iria para as empreiteiras e gerenciamos, e dissemos que nós que iríamos fazer. Então os repasses foram direto para nós. Ai nós falamos "olha, a gente não está produzindo por culpa de vocês, então nós mesmos vamos fazer as casas, e vamos pagar o nosso povo que está aí passando fome". E conseguimos. (V.)

Contudo, embora no âmbito nacional a maneira como o MAB se organizou no contexto Castanhão seja bastante elogiada dentro do universo maior de movimentos de massa ligados à terra (incluindo aí MST, MPA e outros), seria simplificar em demasia centrar-se apenas no discurso dessas lideranças. Por um motivo que eles mesmos percebem ser ainda um dos pontos fracos do movimento, no país inteiro: pela associação direta barragem/progresso presente nas ideologias desenvolvimentistas, é muito difícil criar uma consciência política de que se deve rever a posição central das grandes barragens no modelo energético brasileiro, mesmo para os atingidos. Para esses últimos implica em criar, alem de reflexões alternativas, um currículo novo para ser usado como instrumento pedagógico nas escolas de reassentamentos. Esse é um dos grandes objetivos nacionais do movimento hoje, criar suas cartilhas e intervir nas escolas, a exemplo do que o MST tem feito já há cerca de 10 anos. Para usar as palavras de Spivak, busca-se "un cambio funcional en los sistemas de signos" (Spivak,  s/d [1985])

Porque ainda está longe de haver, mesmo dentro do Alagamar, onde moram as duas maiores lideranças do movimento na região, um consenso sobre o que é o movimento (MAB), ou qual a importância deste no cenário onde se encontram. Uma das pessoas que Christianne entrevistou, à pergunta "o que é o MAB?", respondeu "Que MAB? Que bateu? Que apanhou?", já outro, falou "o que eu gosto desse pessoal do MAB é que o que eles conseguem é para todo mundo, não é só para aqui [Alagamar] ou para quem eles gostam, é para tudo [os 18 reassentamentos] do Complexo Castanhão.

E aqui, quero começar a fechar esse texto, pois se há claramente uma tentativa de escrever a história desse pedaço do terceiro mundo de outra forma e se o principal agente político empenhado nessa tarefa na região é o MAB, contudo, é preciso saber se isso não significará mudar um mundar por outro, ou seja não substituir um mundar neocolonial por outro, tão cego às necessidades dos subalternos quanto o que aí está.

Acho que tentar fazer com que isso não aconteça é a grande tarefa, e um dos caminhos que o movimento tem tomado no Ceará para fazer parecer isso possível é pela compreensão e internalização ao movimento das grandes contradições inerentes aos sujeitos que o compõe. Uma maior discussão sobre o que significa ser "atingido por barragem" e sobre quem são esses agentes. Neste caso, não há lugar melhor para ter surgido esse movimento na região nordeste do que numa das partes "mais bravas" do sertão. Talvez esteja na hora do sertão deixar de ser o ente que é sacrificado para que surja a civilização. O olhar que aqueles agentes começam a devolver-nos, inclusive pela sua presença cada vez maior nas universidades brasileiras como alunos dos cursos de Pedagogia da Terra15 e outros cursos, pode ajudar a compreender e melhor pensar algumas das maiores contradições do Brasil, afinal, quando se instala uma barragem, tanto o meeiro quanto o latifundiário, em todo o perímetro do projeto - que implica o reservatório e as áreas contínuas que devem ser desapropriadas -  e além - posto que o rio é alterado acima e abaixo da represa - são, embora em diferentes graus, atingidos, mas a maior parte era silenciada, e agora está criando seus próprios meios de resolver a situação em que em que foram colocados pelo "pacto federativo".

É certo para eles e para mim que todos esses avanços são ainda muito frágeis. Mas deve-se marcar que um efeito interessante da presença do MAB na região tem sido a de complexificar a vida política regional, criando furos trama extremamente forte do clientelismo. Assim, um ganho é que as negociações mais importantes extrapolam o local e mesmo o regional sendo realizadas diretamente dentro da Casa Civil da Presidência da República, ou na diretoria de órgãos federais como o Instituto Nacional de Reforma Agrária, que sempre são pegos de surpresa. E mais, a prática política do movimento tem colocado os moradores numa espécie de rede mundial de movimentos de atingidos, em que militantes do movimento mexicano (MAPDER) recentemente visitaram o Castanhão para conhecer a experiência local e, anteriormente, militantes do MAB tinham participado de encontros na Guatemala e na Tailândia. Eles entenderam muito bem que em situações como essa, a discussão tem que estar ancorada tanto no local quanto no sistema de locais e discursos hierarquicamente situados que (con)formam o "mundo". Creio que eles tomaram para si a tarefa que nos deixou o que o prof. Milton Santos em uma de suas últimas entrevistas:

"Nós estamos criando a humanidade. Estamos dando os primeiros passos do que será a humanidade"

Notas

1 Os depoimentos citados foram recolhidos em grupo por Christianne Evaristo de Araújo, eu e Glaudiane Holanda em trabalhos realizadas no âmbito de dois projetos. O meu que queria treinar alunos de graduação na pesquisa de campo e o de Araújo que resultou em sua dissertação de mestrado. Este artigo tem um caráter híbrido decorrente das varias identificações que nesse período atravessaram o autor/narrador: antropólogo, pesquisador de campo, testemunha, professor e orientador, simpatizante do Movimento de Atingidos por Barragens, participante de projetos de alfabetização de adultos para reassentados etc. Algumas passagens emotivas podem ser entendidas por aí, assim como o uso no texto do pronome de 1ª pessoa do plural (nós), que se refere a situações de campo em que estavamos eu e Araújo. Agradeço imensamente a ela por ter-me deixado usar parte ainda inédita de seu rico material de campo.

2 Tradução para uso didático do verbete "worlding" de ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth & TIFFIN, Helen, 1998. Key Concepts in Post-Colonial Studies. London/New York. Routledge. P. 241-242. Roberto Lima

3 Ao todo, a represa impactou diretamente 20.000 pessoas que moravam nas cidades de Jaguaribara (totalmente destruída) e Jaguaretama (parcialmente destruída) e em dezenas de povoados de vilas. Devido à pressão popular, para atender aos moradores das áreas rurais, estão sendo implantados 20 reassentamentos rurais. A palavra reassentamento é auto-designinativa porque eles consideram que eram assentados, i.é. tinham suas terras e as perderam devido à barragem.

4 Jagunçagem refere-se ao uso, por parte de chefes locais, de bandoleiros - chamados localmente jagunços e que eram normalmente agricultores sem-terra - como milícias privadas. Em troca desses serviços, os jagunços tinham acesso a terra para roçado nas fazendas desses chefes e nelas ficavam ao abrigo da justiça (acoitados)

5 Ideologema é uma palavra inventada por Fredric Jameson a partir da ampliação do campo de análise da idéia de mitema de Lévi-Strauss e proposta por esse último: "o ideologema é uma formação anfíbia, cuja característica estrutural essencial pode ser  descrita como  sua possibilidade  de se manifestar como pseudo-idéia - um sistema conceitual ou de crença, um valor abstrato, uma opinião ou um preconceito - ou como uma protonarrativa, uma espécie  de fantasia  de classe  essencial  com relação aos "personagens coletivos" que são as classe em oposição" (Jameson, 1992: 80. Grifos no original)

6 Quichó é uma armadilha para caçar pequenos roedores. Consiste em uma pedra grande e achatada, suspensa em um dos lados por um gatilho de madeira preso a uma isca. Ao comer a isca, o animal aciona o gatilho derrubando a pedra sobre si.

7 Sem dúvida, o texto fundador para pensar a esquizofrenia colonial é os condenados da terra de Fanon.

8 Este termo, faz parte do léxico do Banco Mundial em seus projetos de grande escala. A crítica a ele é extensa.

9 Em suas passagens, Benjamin afirma que "pode-se considerar um dos objetivos metodológicos deste trabalho demonstrar um materialismo histórico que aniquilou em si a idéia de progresso" e que os "conceitos de 'progresso' e de 'época de decadência' são dois lados de uma mesma coisa" (2007:502 e 503)

10 "Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do Paraíso  e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las [...] Essa tempestade é o que chamamos de progresso." (Benjamin, 1985:226)

11 Os danos sociais causados represa de Sobradinho são marcos na literatura mundial sobre represas. Tendo afetado diretamente e imediatamente 80.000 pessoas e destruído 4 cidades, foi a partir dela que o Banco Mundial começou a exigir a existência de (alguma) política indenizatória para as populações atingidas nos projetos de grande escala para conceder empréstimos.

12 "Está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos" (Benjamin, 1985, 114-115)

13 Já que este artigo vem fazendo contrapontos ao exemplo indiano, quem tiver interesse pode ver fotografias no sitio do movimento "Narmanda Bachao Andolan" ou, "Salvem o Narmanda" que certamente poderiam ter sido tiradas no CE. Araújo (2006) faz um belo contraponto imagético entre o Jaguaribe e o Narmanda

14 Esta experiência vertiginosa de ver sob o espelho de água é recorrente na bibliografia sobre atingidos. Ver, por exemplo Rodrigues 1999 e, para um registro visual dessa situação, o filme o profetas das águas de Leopoldo Nunes (2005)

Bibliografia

1. Araújo, Christianne Evaristo de 2006. Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a questão ambiental e a participação política. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente/PRODEMA. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.         [ Links ]

2. Ashcroft, Bill; Griffiths, Gareth & Tiffin, Helen 1998. Key Concepts in Post-Colonial Studies. London/New York: Routledge.         [ Links ]

3. Baudrillard, Jean 1991. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'água.         [ Links ]

4. Benjamin, Walter 2007. Passagens. Belo Horizonte: UFMG.         [ Links ]

5. Benjamin, Walter 1985. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

6. Catullo, Maria Rosa 2006. Ciudades relocalizadas. Buenos Aires: Biblos.         [ Links ]

7. Jameson, Fredric 1992. O inconsciente político. São Paulo: Ática.         [ Links ]

8. Lima, Roberto 2004. "Três nós na memória". Em: Etnográfica VIII (2). Lisboa.         [ Links ]

9. McCully, Patrick 2004. Ríos silenciados. Ecología y política de las grandes represas. Santa Fe: Proteger.         [ Links ]

10. Rodrigues, Cintya M. C 1999. Águas aos olhos de Santa Luzia.  Campinas: Unicamp.         [ Links ]

11. Seagri 2003. O agronegócio da agricultura do Ceará. Disponível em http://www.seagri.ce.gov.br/siga/Informacoes_gerais_agricIrrigada_1999_2003.pdf. Acessado em 14 de setembro.         [ Links ]

12. Sigaud, Lygia 1992. "O Efeito das tecnologias sobre as comunidades rurais: o caso das grandes barrragens". Em: RBCS 18. (18-29)        [ Links ]

13. Spivak, Gayatri 2003. "¿Puede hablar el subalterno?". Em: Revista Colombiana de Antropologia.  Nº 39. Santafé de Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia.         [ Links ]

14. Spivak, Gayatri 1985. "The Rani of Simur". In Barker, Francis (et al). Europe and Its Others V.1 Proceedings of the Essex Conference on the Sociology of Literature, Colchester: University of Essex.         [ Links ]

15. Spivak, Gayatri s/d [1985] "Estudios de la Subalternidad: Deconstruyendo Ia Historiografia" Em: Cusicanqui. Debates Post Coloniales: Una introducción a los Estudios de la Subaltenidad. La Paz: SEPHIS.         [ Links ]

16. Vainer, Carlos 2008. "Conceito de "atingido": uma revisão do debate". Em: Vidas alagadas.Viçosa. UFV.         [ Links ]

17. Vainer, Carlos 2004. "Águas para a vida, não para a morte". Em: Acserald, H.; Herculano, S. e Padua, J.A. justiça e cidadania.  Rio de Janeiro: Relume Dumará.         [ Links ]

18. Vainer, Carlos 2002. "Deslocamentos compulsórios, restrições à livre circulação". Em: Carleial, Adelita (org.) Transições migratórias. Fortaleza: Iplance.         [ Links ]

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons