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Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.19 Posadas dez. 2011

 

DOSSIER - NATURALEZA Y CULTURA

 

A physis e o pensamento ameríndio

 

Ugo Maia Andrade*

* Doutor em Antropologia Social, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil. E-mail: ugomaia@ufs.br

 

"O único sentido íntimo das cousas É elas não terem sentido íntimo nenhum"
F. Pessoa, 'O guardador de rebanhos'

 


RESUMO

Elemento fundamental no pensamento grego pré-filosófico, physis reflete unidade, presença e relação. Convertida em "naturans" pelos romanos foi, na modernidade, depurada em "natureza" e com esse sentido passou a representar um domínio em face do qual a história e a cultura mantém uma relação crescente de assimetria e exterioridade figuradas pela máxima cartesiana de que "o homem deve ser Mestre e Senhor da natureza". Fora do arco hegemônico do pensamento ocidental há, entretanto, percepções alternativas da natureza análogas à physis. Assumindo que para o que nomeamos natureza existe um plano originário - captado seja pelo pensamento selvagem, de Lévi-Strauss (1962), ou pela ontologia anímica, de Tim Ingold (2000; 2006) - o texto busca confluências entre a physis pré-filosófica e o xamanismo dos índios Galibi-Marworno da região do baixo Rio Oiapoque e Rio Uaçá (fronteira Brasil-Guiana Francesa).

Palabras Clave: Chamanismo; Naturaleza; Ontología fenomenológica; Percepción.

ABSTRACT

Central in the pre-philosophical Greek thought, physis reflects unity, presence and relationship. Turned into "naturans" by the Romans and "nature" in modern times, it has come to represent a domain where history and culture develop a growing relationship of asymmetry and externality represented by the Cartesian axiom that man should be Lord and Master of nature. However, outside the arc of the hegemonic Western thought there are alternative perceptions about nature equivalents to the physis. Assuming that  there is an original plan for what we call nature - captured by Lévi-Strauss's savage mind (1962)  or by Tim Ingold's animic ontology (2000; 2006) - this text seeks similarities between  pre-philosophical physis and the shamanism of Galibi-Marworno Indians in the Lower Oiapoque River and Uaçá River region (between Brazil and French Guiana borders).

Key words: Shamanism; Nature; Phenomenological ontology; Perception.


                                  

A PHYSIS E O PENSAMENTO AMERíNDIO

O propósito do presente texto é refletir a respeito de uma experiência ameríndia com o que denominamos "natureza". Destarte, natureza é aqui compreendida como um arranjo de relações que existe diferentemente segundo certas disposições geradas em um domínio, a ela contíguo ou não, e que nomeamos genericamente por "cultura". Oriunda de antíteses precoces no pensamento filosófico, como physis X nomos ou physis X lógos, a polarização natureza X cultura tem sido a viga para a definição do humano, da intencionalidade e da razão. Este lastro, entretanto, está longe de ser universal.

Utilizo conexões possíveis entre modos distintos - separados no tempo e no espaço - de percepção da natureza, propondo analogias entre a physis grega pré-filosófica e o pensamento sobre os entes expresso no xamanismo dos índios Galibi-Marworno da fronteira com a Guiana Francesa (norte do estado do Amapá, Brasil). Com este fim, recorro à caracterização dos Karuãna (pessoas invisíveis auxiliares dos pajés) pelos Galibi-Marworno a fim de sustentar que ambos, physis e xamanismo, derivam de um mesmo modo originário de experienciar e refletir o cosmos como presença e relação. Retomarei esse ponto adiante1.

PHYSIS, NATURANS, NATUREZA.

O Ocidente define natureza como o domínio total exterior ao homem ou a diferença da totalidade humana, contrapondo-a à cultura (Heidegger, 2008); e também o domínio total interior ou imanente a qualquer ente. É por meio desse último que nos referimos à natureza de uma coisa ou de alguém, dizendo, por exemplo, que latir é parte da natureza do cão. Há alguma conexão entre esses dois sentidos de "natureza" desenvolvidos pelo pensamento ocidental? Um domínio originário da palavra que una exterioridade e interioridade, diferença e identidade, imanência e transcendência? Este solo talvez esteja representado por aquilo que o pensamento grego pré-filosófico (anímico, à larga) nomeou por physis. Seguindo Merleau-Ponty (2006): "Em grego, a palavra 'Natureza' deriva do verbo juw (raiz da palavra physis) que faz alusão ao vegetal; a palavra latina vem de nascor, nascer, viver; é extraída do primeiro sentido, mais fundamental [...] A 'Natureza' é diferente, portanto, de uma simples coisa; ela tem um interior, determina-se de dentro; daí a oposição de 'natural' a 'acidental'. E não obstante a Natureza é diferente do homem; não é instituída por ele, opõe-se ao costume (physis X nomos), ao discurso (physis X lógos)" (Merleau-ponty, 2006:4. Parênteses acrescentados).

Heidegger (2008) também sublinha o desenvolvimento da dupla pertença semântica de "natureza" no percurso do pensamento ocidental: "Os romanos traduziram f?s?? por natura; natura provém de nasci, ser gerado; em grego geu -; natura - aquilo que deixa surgir a partir de si. Desde então, o nome "natureza" constitui-se naquela palavra fundamental que nomeia relações fundamentais do homem histórico ocidental com o ente que ele não é e que ele próprio é" (Heidegger, 2008:251. Grifo acrescentado). "Aquilo que deixa surgir a partir de si". A caracterização da physis como surgir-aparecer pela ontologia fenomenológica heideggeriana aprova simetrias entre tal experiência particular do cosmos (grega e pré-filosófica) e outras situadas em paragens ameríndias. A mediatriz aí é o xamanismo. Não por acaso, os physiokóis (pensadores gregos da physis) foram os herdeiros dos antigos poetas-profetas-sábios (dentre eles Hesíodo e Homero) que tinham por função serem destinatários de conhecimentos superiores revelados. Faziam, assim, ao modo dos xamãs asiáticos cuja influência alcançou os gregos e outros povos na Europa meridional, a interseção entre homens comuns e entes extraordinários (Cornford, 1952:143). Ironicamente, é em Parmênides - o mais próximo da metafísica e da tradição filosófica dentre os physiokóis - que se encontra a vigência das técnicas xamânicas de comunicação inter-mundos quando narra, em seu poema Πeρ? f?se?? (Peri physeos, "Acerca da physis"), sua saga pelo caminho do conhecimento verdadeiro que relembra "the heaven-journey of the shaman's ritual drama" (Cornford, 1952:118). A filosofia grega nascente revelaria, assim, suas afinidades com o xamanismo, não obstante os xamãs serem muito mais physiokóis que filósofos.

Este domínio originário de experiência da "natureza" como cosmos foi determinado antes por predisposições sensíveis que conceituais; pela identidade e contigüidade que pela diferença e afastamento. Tal experiência seria marcada por (ou seria ela própria) uma espécie de relacionismo. O relacionismo, presente tanto no pensamento escolástico de Duns Scotus e William Ockham quanto na filosofia da ciência moderna, concede primordialmente que as relações são constitutivas das coisas e delas derivam a ação mútua atinente a entes relacionados. A diferença do relacionismo filosófico para o relacionismo indígena - tal qual o perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996; 2002), por exemplo - seria que, enquanto o primeiro acredita na relação entre coisas "reais", o segundo promulga que o "real" é fruto da relação, pois somente ela é o a priori. A realidade não pode ser mensurada como uma propriedade de coisas em particular e o que é real é a relação.

Esta não é, contudo, uma premissa exclusiva do pensamento ameríndio, mas distribui-se entre sociedades caracterizadas pelo animismo, dentre as quais sociedades cosmocêntricas como a dos gregos pré-filosóficos. Trata-se de perceber como tais povos pensaram e pensam as relações entre os entes no domínio que chamamos de "natureza". Fiquemos, pois, com os physiokóis. Heidegger busca a experiência originária representada por aquilo que os pensadores gregos do cosmos definiram como physis (f?s??). Na physis os entes são simplesmente porque surgem, uma vez experienciados como fa???µe??? ("fenômeno" ou "o que vem à luz"). Em um certo sentido, physis é a reunião e simetrização de todos os entes do cosmos que têm em comum serem no movimento de brotar (aparecer) e declinar (perecer) (Heidegger, 2002:73). Physis, é, pois, "o puro surgir", dimensão que determina todo e qualquer ente enquanto "o que surge". Tal condição fenomênica originária (irredutível a qualquer ontologia) torna-se "natureza" quando destilada em ontogêneses diferenciantes, uma vez que "o que para nós aparece como processos da natureza, para os gregos só se torna visível à luz da f?s??" (Heidegger,  2002:102). O ente surge "a partir de si mesmo", pois ser, na physis, é sentido como "vigor de presença"; ser é "t? f?se???ta" ("os entes da physis") (Heidegger, 2002:73). O ser e o ente, pensados como disjunção metafísica radical pelo projeto filosófico, não existem na physis enquanto tais. Ser na physis é (enquanto aparecer e perecer) devir.

Esse movimento-devir, que os gregos pré-filosóficos nomearam por physis, se dá como emergência múltipla de entes em reunião, resultando em horizontes de manifestação incessantemente interseccionados. E o que eles têm em comum nessa reunião é a condição de diferença. A relação (diferença), portanto, é configurada como a priori. Tim Ingold percebeu tal movimento-devir nas "ontologias anímicas" manifestas por sociedades de caçadores do círculo polar ártico, nomeando-o de entanglement ("enredamento") (Ingold, 2000; 2006). Para Ingold, entanglement é o modo originário de percepção de environment e radicalmente diverso da concepção gerada no Ocidente para natureza como exterioridade e assimetria. A exemplo da physis, o vigor (animacy) dos entes nas ontologias anímicas é imanente ao processo de geração contínua do mundo que emerge das relações entre os entes no fluxo do devir (Ingold, 2006:10). Com o vigor (animacy) distribuído no cosmos, os entes implicam-se mutuamente, agindo uns sobre os outros. Vigor (animacy) e agência2 são simétricos, tal qual a unidade que physis constitui com zoe (???) e psyche (ψ?χ?), respectivamente "vida" e "alma" (Heidegger, 2002:307).

Como, portanto, no Ocidente, o vigor (animacy) recolheu-se e passou a propriedade de alguns entes (os animados, capazes de intencionalidade) dotados de certos princípios ou substâncias responsáveis por ele? Essa "lógica da inversão" (Ingold, 2006:17) começa a operar ainda nos primeiros séculos do advento da filosofia ao instituir domínios desconexos onde habitarão, separadamente, o "ser" e o "ente". Destilado em µet? t? f?s??? (metà tà physiká - metafísica), o pensamento filosófico clássico busca ultrapassar o horizonte de manifestação dos entes para ascender ao reino das ideias e dos conceitos à procura da essentia, o universal e necessário que está fora das coisas. Metà tà physiká é também o salto por cima e para além da reunião originária da physis, onde estão tanto o imanente quanto o transcendente, o ente e o ser. É o movimento que, iniciado na Grécia sob o auspício de um conjunto complexo de contingências históricas e culturais, criou uma racionalidade poderosa que, tornada hegemônica, permitiria a invenção de dois modelos de pensamento baseados no conceito e na análise: a ciência e a filosofia. A racionalidade metafísica vem sendo destilada ao longo de mais de dois milênios e embora não tenha sido a mesma, a rotura entre sensível e inteligível em todo o tempo a consagrou.

A criação de uma racionalidade metafísica no Ocidente produziu uma profunda alteração naquilo que os physiokóis chamavam de physis. à medida que os entes são (isto é, vem à percepção) pertencem ao domínio do que vive, pois o sentido originário que os gregos formularam para vida muito pouco tem a ver com aspecto morfológico ou condição fisiológica. E o que é vivo tem como seu fundamento ψ?χ? (psyche), traduzido pelos escolásticos por "alma". Contudo, ao contrário do sentido reservado à anima na tradição cristã, a psyche não é transcendente e nem uma substância injetada nos corpos. Antes ela é uma propriedade que tem a ver com o fato dos entes existirem fenomenicamente (em relação-reunião) e, assim sendo, deriva de noções meramente sensíveis. No início da racionalidade metafísica na Grécia clássica, aos entes eram atribuídas ainda qualidades essenciais que talvez correspondam ao que entendemos por "vida" (??? - zoe) e "alma" (ψ?χ? - psyche) (Heidegger, 2002:307), atribuições que, por certo, derivaram da apreensão sensível e sintética do devir impresso nos entes e que delimita a fronteira entre racionalidades e tradições distintas.

Da totalidade dos entes em reunião, cuja forma análoga à physis os gregos nomearam de ??sµ?? (cosmos), participavam o homem, a cultura e a história (Heidegger, 1987[1953]:45). Mas a transição difusa para a racionalidade metafísica consolidou um setor autônomo em relação à physis, nomeado como ??µ?? (nomos) e associado aos costumes e às leis da cidade. Inversamente à physis, nomos não é universal, mas restrito a um determinado conjunto de relações sociais, a uma sociedade urbana em particular e a seus membros. O que dá suporte e existência a nomos é a vontade coletiva presente no contrato vigente entre os membros de uma sociedade (agreement) e não a força independente dos homens que vigora na physis e compõe a ordem estável do mundo sensível (Ostwald, 1990:298).  

Conforme a physis produz a identidade entre os entes, faz equivaler não apenas homens, animais, deuses, o mar e a pedra - partícipes de zoe (vida) e psyche (alma) - mas indistingue também os homens entre si, obliterando as diferenças culturais tão marcantes entre as cidades da Grécia antiga. Com nomos um ateniense distinguia-se de um espartano e um grego de um bárbaro. Ultrapassavam a inexorável identidade imposta pela physis enquanto entes. Deste modo, além de permitir a isonomia entre iguais (as partes do contrato social, os habitantes de uma mesma cidade-Estado submetidos às mesmas leis e portadores de costumes semelhantes ou "controlados" pelas leis citadinas), nomos marcava também a diferença entre gregos de cidades diferentes ou entre gregos e não gregos. Em síntese, nomos é o universo particularizante da cultura e das normas jurídicas que emerge da forte tradição urbana grega.

Com a ascensão da racionalidade metafísica no início da filosofia grega, a distinção entre physis e nomos se define como oposição e criam-se setores distintos da realidade impulsionados pela emergência de um lógos transformado em discurso, argumento, razão e instrumento humano a favor do julgamento da verdade que constitui a busca da filosofia. Physis passa a ocupar o lado reverso da unidade tensa que compõe com nomos; conserva-se sua totalidade, mas da qual o homem se separa enquanto ente urbano. Esta diferença entre physis e nomos, que mais tarde, às portas da modernidade, se converteria em antítese fundamental para o Ocidente, é a gênese da distinção natureza/cultura e um dos grandes marcadores da ascensão da racionalidade metafísica que opõe e hierarquiza o inteligível e o sensível, capacidades da razão humana antes inseparáveis na consciência mito-poética. Convertida gradativamente em "natureza" pelo pensamento filosófico, physis deixa de ser a reunião fundamental e originária dos entes e razão de sua equipolência, uma vez que nela o homem - que ocupará o domínio exclusivo de nomos e lógos (isto é, "cultura") - já não mais habita.

A racionalidade metafísica produtora do princípio da não contradição predicativa pelo qual guiamos nosso pensamento é uma contingência, produto da confluência de matizes culturais diversas na península grega há mais de dois milênios, e não um universal da razão ou uma etapa do desenvolvimento da mente humana. Onde ela está ausente, o pensamento permite uma reflexão originária sobre o ser e o ente predicando-o, inclusive, antinomicamente. Fora da metafísica do lógos, ser e não-ser podem ser o mesmo.

Este modo de proceder diante das coisas é também um modo de estar-no-mundo com as coisas (os entes); um relacionismo que decorre da experiência de que tudo participa de uma mesma reunião (sem fundir-se numa mesma massa) e que é nessa reunião participativa - que os gregos pré-platônicos chamaram originalmente também de λ?γ?? (lógos) - onde as coisas aparecem e são. Tal condição de ser e aparecer constitui a identidade do diverso, a unidade do múltiplo que se oferece como princípio fundamental do pensamento não metafísico inspirado por uma rigorosa classificação das qualidades sensíveis.

Tudo ocorre como se, partindo de constatações perceptivas e intuitivas sobre o diverso, o pensamento procurasse conhecer o que há de comum na multiplicidade dos entes e, fazendo um percurso pericêntrico (mas de resultado) declarasse uma conclusão que é também um retorno ao ponto de partida: que a unidade reside no fato de todo ente ser e ser com. Como ser com é diferença (= relação), conserva-se a identidade no ponto da alteridade, pois todo ente é igualmente diferente. O sensível é, simultaneamente, o objeto de interpelação e a resposta. Este domínio é o da experiência e da transição como vigência universal dos entes, um domínio onde as coisas são em seu surgimento e declínio; um domínio que é, ao mesmo tempo, os entes, seu modo de ser, a identidade entre eles e a conjuntura de sua diversidade. A isto chamaram os gregos de f?s??(physis): "Physis significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, regido e impregnado por ele. Nesse vigor, que no desabrochar se conserva, se acham incluídos tanto o 'vir-a-ser' como o 'ser', entendido esse último no sentido restrito da permanência estática. Physis é o surgir, o ex-trair-se a si mesmo do escondido e assim conservar-se [...] O ente como tal, em sua totalidade, é physis" (Heidegger, 1987[1953]: 45-47).

Contudo, à physis não atribui-se apenas uma estrutura fundamental de relações ou o movimento-devir que rege todas as coisas. Nos poemas gregos cosmológicos, do 7º ao 5º século AC, a própria physis aparece como um protogenoi, um dos primeiros imortais a emergir no universo ao lado de elementos conhecidos da cosmologia grega, como Khaos, Eros, Gaia, Nyx e Khronos. Ela é, portanto, uma pessoa. E como prova testemunhal da persistência das idéias durante as épocas de sua transição, no período clássico a palavra physis ainda conservava a qualidade de "brotar", designando por força das reminiscências semânticas por trás das transformações dos significados "aquilo que brota por si mesmo e aparece". É o que se vê em Aristóteles: "Chama-se physis (f?s??)3, em um sentido, a gênese das coisas que crescem, o que se depreende se pronunciarmos o ? (a letra upsilon do alfabeto grego) de forma alongada. Em outro sentido, a parte primeira e imanente de uma coisa que cresce, da qual provém o seu crescimento. Também é aquilo de onde procede em cada um dos entes da physis o movimento primeiro, que neles reside constituindo sua essência" (Metafísica. V, 4, 1014b 17 - 21. Parênteses acrescentados)

Ao pensarem a physis os gregos não apenas reuniam todos os entes, todas as coisas que são, e extraiam-lhes a vigência comum ou o seu modo de ser como presença (a síntese unificante entre brotar [aparecer] e declinar [recolher-se e perecer]). Fundamentalmente pensavam-nos no âmbito dos próprios entes e do ser dos entes. Esta franca inclinação para pensar o ser dos entes como, por assim dizer, aparescência (Andrade, 2007:178), foi determinada - na experiência grega pré-filosófica - pela posição que as imagens possuíam como conectivos no processo de construção das estruturas que edificavam o mundo conhecido, processo este cujas formas análogas estão presentes em demais modos de pensamento não metafísico (Andrade, 2007:182).

Um pensamento assim estabelecido não postula a radical diferenciação entre imanência e transcendência, pois nele os entes (as coisas existentes) são a partir de seu modo de ser (ou a partir daquilo que conhecemos simplesmente por ser). De acordo com uma expressão grega conhecida, "???;e??" (on hè on - "o ente como ente") as coisas são pensadas a partir de sua presença e do modo como se apresentam enquanto fa???µe??? ("fenômeno", palavra cujo radical designa "vir à luz"). Assim, na consciência não metafísica imanência e transcendência são o mesmo, uma vez que "a razão das coisas está nas próprias coisas" (Cavalcante, 1992:103). Em resumo: no período cosmológico  de sua tradição - quando ainda pensavam o mundo tendo por prumo o mito e a poesia - os gregos concebiam o ser (ou o modo de ser dos entes) a partir do horizonte de manifestação dos entes, destacando-se nessa modalidade de apreensão do mundo duas qualidades precípuas: percepção e relação.

Estes dois elementos, somados à presença, são os constitutivos noéticos da physis que, como procurarei demonstrar com o auxílio da etnografia do xamanismo na região do baixo Rio Oiapoque e Rio Uaçá, fazem parte de todas as formas de consciências míticas, transformações daquilo que Lévi-Strauss chamou de "pensamento selvagem" para designar o pensamento analógico que "approfondit sa connaissance à l'aide d'imagines mundi" (Lévi-Strauss, 1962:348); e Merleau-Ponty (1945) disse ser uma "ontologia selvagem". Estas caracterizações não possuem, obviamente, qualquer vinculação com a "mentalidade pré-lógica" de Lévy-Bruhl, epíteto da alma primitiva que entrega-se aos afetos e à irracionalidade. O pensamento e a ontologia selvagens, assim como seus correlatos morfológicos, estão no horizonte da racionalidade humana e, não constituindo "formas irracionais de conhecimento" (para acentuar o equívoco da expressão), podem indicar, entretanto, modelos de desrazão - no sentido de revelarem um conhecimento que, procedendo da unidade entre imagens e conceitos, está à vontade com a contradição e o paradoxo. Esse é o ponto precípuo que permite cotejar physis e xamanismo: ambos são modelos de racionalidade (ou de desrazão, conforme sublinhado) constituídos a partir de balizas cognitivas como presença, relação e percepção. Todavia, isso não quer dizer que essas formas estejam encapsuladas na síntese e sejam analiticamente insuficientes; a radical distinção entre síntese e análise (coroada por Kant) parece ser nelas, simplesmente, insatisfatória. Deste modo não estão em desvantagem em face de modelos análogos, como a filosofia ou a ciência, e mutilam-se quando reduzidas a essas em nome da descoberta de novas equidades no eixo norte/sul. O acervo de (fragmentos) escritos recuperados de physiokóis constituem uma fonte importante acerca de um modo originário de pensar o cosmos e cuja comparação com o pensamento xamânico de tradições orais ameríndias pode ser bastante profícua. As distâncias no tempo e no espaço entre pajés amazônicos de hoje e os physiokóis gregos que viveram há dois mil e setecentos anos são pouco importantes se considerarmos physis e xamanismo ameríndio formas originárias (e, em certo sentido, intercambiáveis) de pensamento sobre o cosmos lastreadas na presença, relação e percepção.

O salto radical que conduziria para além - e contra - o pensamento dos physiokóis foi primeiramente experimentado com a especulação filosófica e metafísica: "Pensar o ente a partir da idéia, do supra-sensível, é o que distingue o pensamento que recebe o nome de 'metafísica'" (Heidegger, 2002:266). Longe de ser um imperativo do espírito humano presente em todas as épocas e ecúmenos conforme variantes regionais; e mais distante ainda de ser o maturar da razão alcançado inelutavelmente em tempos diferentes pelos homens, a filosofia é um acidente, o acaso ocidental inventado pelos gregos clássicos que, além de ascenderem a uma lógica das formas com a superação (que não, necessariamente, destruição) do mito, passariam a interpretar - conforme este novo modelo de pensamento - sua própria mitologia (Detienne, 1981:211).

No Ocidente, o percurso da physis à "natureza" é consequência do pensamento filosófico e da hegemonia da metafísica, tendo sido concluído com júbilo quando, ao final dessa trajetória, em solo moderno, a natureza torna-se não apenas um algo exterior ao homem, mas contra ele, possibilitando que Descartes dissesse que o homem deve ser dela Mestre e Senhor, dominando-a brutalmente; e Francis Bacon defendesse que o método científico deva extrair-lhe os segredos por meio de torturas experimentais. Tal percurso, sendo criação da filosofia que, por sua vez, é apenas um modo - dentre vários outros - de pensamento complexo, não estará distribuído dentre todos os povos e nem mesmo de forma unívoca no domínio do pensamento filosófico. Restam, portanto, caminhos para "outras" physis.

COSMOLOGIA NO BAIXO RIO OIAPOQUE E RIO UAçÁ

Passo agora a uma caracterização sintética da cosmologia na região do baixo Rio Oiapoque e Rio Uaçá, buscando conexões entre esta e a physis pré-filosófica. O liame serão as pessoas invisíveis, denominadas genericamente Karuãna (Kamahads e Zamis em patois da Guiana Francesa), com quem os xamãs (doravante pajés) devem manter relações amistosas a fim de mitigar o risco da predação, uma vez que os Karuãna atuam tanto na causação quanto na eliminação de doenças. Percorrem, assim, domínios de relações com os humanos estandardizados, nos vértices, pela cooperação e pela predação; não obstante os Karuãna sejam, a um só tempo, agentes de cura e de agressão por causação de doenças, ações contíguas e separadas somente a posteriori. Entre os anos de 2004 e 2007 efetuei trabalho de campo na região do baixo Rio Oiapoque e Rio Uaçá com os índios Karipuna, Palikur e Galibi-Marworno4 e meu argumento é que o xamanismo regional atribui aos Karuãna o mesmo "vigor de presença" que Heidegger identifica nos entes da physis grega pré-filosófica. Ambos constituem modos de experienciação do cosmos como presença e relação. Trata-se de pensar as interseções entre physiokóis e pajés no que diz respeito aos modos como experimentaram aquilo que no Ocidente tornou-se "natureza", concedendo que há um domínio originário e fundamental de percepção da "natureza" de onde as aproximações entre physiokóis e pajés podem ser extraídas.

Para começar, a cosmologia regional é pensada a partir de dois espaços diferentes, porém contíguos, habitados por pessoas com distintas capacidades, e conhecidos como "Este Mundo" e o "Outro Mundo". Ambos apresentam subdomínios diferenciados ecologicamente (fundo de rios, mares, lagos e lagoas; floresta de terra firme; espaço sideral; aldeias; cidades, etc.) e são marcados segundo os tipos de gentes que os habitam (invisíveis - genericamente chamadas de Karuãna ou Bicho - e humanas). As pessoas invisíveis constituem diferentes tipos de gente que, com recurso às transformações e metamorfoses, inter-relacionam-se em ocasiões particulares (Vidal, 2007b: 24). Esse postulado cosmológico mantém-se autônomo em face das ideologias cristãs há décadas instaladas na região, não obstante as intersecções e membranas, como a correspondência entre as pombas Hamiê ou Uaramin (um Karuãna que fica no topo do Mastro instalado por ocasião do rito do turé) e a do Divino Espírito Santo; ou ainda a sobreposição de funções, como a cura atribuída, pelos Karipuna, aos santos católicos e aos Karuãna (Dias, 2000: 245; Tassinari, 1999:458).

É da competência do pajé fazer a mediação entre os habitantes d´Este Mundo (ou o mundo para os humanos) e do Outro Mundo, uma vez que apenas ele - sendo, simultaneamente, humano e Karuãna - consegue alternar-se entre os pontos de vista de ambos. Essa habilidade ímpar é garantida pelo tipo de relação que sustenta com seus auxiliares invisíveis - ora parceiros, ora afins em potencial, ora consanguíneos metafóricos/efetivos - com quem compartilha substâncias (notadamente se for um "filho de Bicho"), alimentos, festa e caxiri. Como um "filho de Bicho" (ou "pajé de nascença") terá as mesmas capacidades e ponto de vista dos Karuãna, pois seu verdadeiro pai é um Karuãna com quem sua mãe se enamorou quando menstruada. Segundo um pajé karipuna, nascido palikur: "[...] Ele (o pajé) enxerga, é Bicho. A pessoa que é pajé, é Bicho já. Os olhos dele não são como os seus. É assim que é o Bicho. Uma cobra passa por você e lhe morde, sem você nem vê-la. Assim também é com o Bicho: ele (o pajé) lhe enxerga, mas você não o enxerga. Pajé é Bicho [...] Se for pra Macapá, pra Brasília, ele já está lá, porque já está vendo todos os lugares por onde vai passar. Já sabe tudo o que tem na frente. É assim que é" (Raimundo Iaparrá, maio de 2005)

Após cada viagem, por vezes empreendida como visita aos parentes extra humanos, o pajé retorna trazendo novos cantos aprendidos com os aliados Karuãna; fórmulas fitoterápicas que usará em seus pacientes ou pedidos que deverão ser atendidos em troca de favores. É sua condição ontológica liminar - parte humano e parte Karuãna - que permite os trânsitos contínuos entre Este Mundo e o Outro Mundo.

Uma pessoa dizer-se pajé, todavia, não é condição suficiente para que tenha seus poderes de cura ou de agressão reconhecidos, capacidades decorrentes exclusivamente de relações sustentadas com os Karuãna. O que, de fato, serve como índice do poder de um pajé é a força persuasiva de suas narrativas sobre as viagens empreendidas ao Outro Mundo. Mais do que por suas habilidades de cura, os grandes pajés da região são lembrados pelo total controle que mantinham sobre os Karuãna hostis (genericamente chamados de Djabs), enfrentando-os com seus exércitos de Karuãna aliados e liberando para a ocupação humana os grandes rios da região (Vidal, 2007a; Tassinari, 2003). A habilidade em domesticar Karuãna hostis e perigosos, possibilitando a vida dos humanos n´Este Mundo, faz um poderoso pajé e o habilita a entrar para a história.

Como uma metáfora superlativa d´Este Mundo, o Outro Mundo é constituído por grades cidades habitadas por pessoas belas e bem paramentadas, donas de capacidades e bens tecnológicos superiores aos dos humanos. Cada cidade é o lar de uma classe de pessoa invisível, de modo que nelas habitam gentes diferentes que utilizam invólucros distintos a fim de saírem n´Este Mundo como animais, plantas, fenômenos meteorológicos, artefatos, etc. De acordo com um conhecido pajé galibi-marworno da aldeia Kumarumã: "Cobra Grande tem paletó, mas quando tira é gente. Tudo, tudo, tudo tem paletó. O que a gente está enxergando assim como bicho, cobra, animal, peixe, a gente enxerga, mas tudo é com paletó. Se tirar paletó é gente. Sem paletó é gente, é a própria gente" (Lêven, setembro de 2004)

Um Karuãna é uma pessoa invisível do Outro Mundo que utiliza invólucro - chamado regionalmente de "paletó" ou "camisa"5 - a fim de transitar por Este Mundo metamorfoseado em animais como Cobra Grande, Jacaré, Cotia, Macaco, Garça, Tucano; em plantas como Nuri-Nuri e Apicuriwá; ou ainda em fenômenos meteorológicos como Arco-íris ou Trovão, e artefatos, como Karamatá (uma clarinete ritual), Maracá e Bancos zoomorfos. Todavia, o paletó não é simplesmente um suplemento que concentra as capacidades concernentes à espécie que representa. O próprio invólucro é um Karuãna, posto possuir agência e intencionalidade, ao modo das pessoas em geral. Sem o invólucro um Karuãna volta a ser uma pessoa com forma humanoide desprovida de poderes especiais associados às espécies de animais, plantas ou fenômenos meteorológicos.

É destes invólucros que provêm as capacidades das pessoas invisíveis, de modo que é o invólucro de Poraquê que permite a seu portador distribuir descargas elétricas ou fazer queimadas no campo, assim como é o invólucro de Cobra Grande o verdadeiro responsável pela força descomunal e apetite voraz da pessoa da Cobra Grande. Uma vez de posse do invólucro, o Karuãna terá de manter vigilância constante sobre ele ou se arriscará a tê-lo roubado por outros Karuãna e por pajés humanos. Decorre daí que um invólucro não está associado a uma pessoa invisível como sua substância. Ela poderá perdê-lo para outrem que o deseja e precisará cuidar, amiúde, para que isso não aconteça. Como o próprio invólucro é um Karuãna será necessário manter para com ele relações pessoa-pessoa, atendendo a um protocolo apropriado de reciprocidades que define o cosmos como amplo domínio de relações de domesticação e subordinação de intencionalidades, possibilitando estabelecer uma hierarquia conjuntural entre os entes e não essentias pertinentes às qualidades "sujeito" e "objeto" (Andrade, prelo).

Embora mutuamente irredutíveis, o Outro Mundo e Este Mundo estão conectados por passagens por onde emergem inadvertidamente os Karuãna. Tema recorrente na cosmologia regional, o aprisionamento desses Karuãna invasores em câmaras no interior dos grandes rios da região (Oiapoque, Urukauá, Uaçá e Curipi) é a marca da grandeza dos pajés de outrora cujos poderes não se esgotavam no combate à potência letal dos Karuãna. Todavia, a hostilidade e a predação não são substantivas dos Karuãna (os próprios pajés só curam por meio deles) e o aspecto principal da vida no Outro Mundo é a ampla distribuição da pessoa. Pois o que n´Este Mundo (ou na perspectiva dos humanos) seriam "objetos", a exemplo de manufaturas e bens industriais, no Outro Mundo são Bicho, isto é, pessoas com intencionalidade: automóveis, barcos, cadeiras, etc. Se as "coisas" no Outro Mundo são simétricas na condição de Bicho ou Karuãna, suas potências, todavia, são dessemelhantes, revelando que as capacidades atinentes às pessoas em geral, visíveis e invisíveis, são produtos da eterna domesticação de intencionalidades alheias. Assim é que os pajés têm de "amansar" os Karuãna que os assediam durante o processo inicial de xamanização a fim de obterem poderes múltiplos; os Karuãna, por sua vez, precisam manter controle sobre os paletós que portam, pois Bicho também. E até mesmo na periferia deste sistema de relações - como nas práticas dos potás - ocorre a domesticação da agência da palavra, por meio de sua enunciação propositiva. O cosmos, assim, é sintetizado como múltiplos processos de domesticação e controle de intencionalidades que compõem um tecido eternamente à beira da ruptura integral.

Na escala de capacidades, os mais poderosos Karuãna são, segundo os Galibi-Marworno, os mestres ou senhores de espécies animais e vegetais chamados de "rei" ou "mãe" de suas respectivas classes. Trata-se de pessoas invisíveis que usam paletó cuja forma e potência são atinentes a uma espécie (ou ainda a suas subclasses, como da piranha vermelha), cabendo a elas zelar por seus pares subordinados. às vezes apenas o mestre de cada espécie animal ou vegetal é percebido como uma pessoa invisível, pois, ao contrário de seus congêneres empíricos, são como "um presidente" ou "um Governo" que fica lá no Outro Mundo monitorando o que se passa com seus "filhos" n´Este Mundo. São com essas pessoas invisíveis que os pajés negociam a liberação de espécimes para fins de caça, a conclusão do assalto de pragas às roças e o auxílio na efetuação de curas ou de agressão por meio de doenças. Por conseguinte, elas são Karuãna poderosos e devem ser domesticadas por meio de alianças - cuja sedimentação inclui a realização de turés - a fim de minimizar o risco da agressão.

AS PESSOAS INVISíVEIS: PHYSIS E XAMANISMO

Todo Karuãna é potencialmente letal, embora sejam eles que sustentem, por meio dos pajés, a clínica xamânica. A efetivação da agressão ou da cura não decorre, necessariamente, de qualidades inflexíveis atribuíveis a cada Karuãna, uma vez que esses entes não podem ser classificados segundo essentias transcendentais amparadas no conceito.6 Sendo assim, as definições a eles atribuídas são volúveis, de ordem sensível e relacional, e admite-se dizer que os Karuãna são definidos a partir de sua aparescência (Andrade, 2007) ou de seu horizonte de manifestação circunscrito pelas relações que mantém com os humanos. Em seu horizonte de manifestação, todo ente é um ser com ou um ser na diferença, não existindo para além da relação com outro ente. Qualquer essentia transcendental para os Karuãna seria, portanto, inevitavelmente equívoca. Todavia, as coisas não repousam no vazio. Há atributos primários e necessários que evocam propriedades sensíveis, como invisibilidade e intolerância ao cheiro de mênstruo (para uns Karuãna), a ruídos de aparelhos eletro-eletrônicos, à luz e ao cheiro de peixe.

A esses atributos acrescente-se gosto por: caxiri, cheiro de mênstruo (para outros Karuãna), cerveja industrial e/ou cachaça e tawari e/ou cigarro industrial.7 Por seu turno, os atributos secundários e contingentes são morais e decorrem da agência distribuída entre os Karuãna e potencialmente presente entre todos os entes do Cosmos. São tais predicados (como "curador", "namorador', "de feitiço", etc.) que criam uma persona para os Karuãna conforme o contexto de relações que a qualificará. E embora a inconstância e mudança sejam próprias de tal persona que se transforma de acordo com os cenários de aparescência, certos Karuãna possuem tendência a agirem de maneira algo previsível, desde que se mantenha com eles a mesma qualidade de relações.

Os predicados morais não podem ser constitutivos de uma essentia extra relacional para os Karuãna por causa dos pontos de vistas plurívocos presentes em cada encontro entre eles e os humanos. Se para o pajé a verdadeira causa mortis de uma parturiente foi o rapto de sua alma pelo Djab Ho-ho, para este sua ação será busca por mulher, posto que o rapto de almas humanas pelos Karuãna é expediente comum de efetuação da afinidade. Uma vez entes de intencionalidade, é este atributo que fará com que os Karuãna sejam capazes de vontade e ação e predicados nas circunstâncias e não previamente recorrendo-se a uma essentia transcendental. E isso é verdadeiro para demais entes não imediatamente Karuãna, mas pessoas invisíveis que sustentam relações potenciais com os humanos e que ocupam um lugar na interface com as "coisas". Pois o que os Karuãna são depende de como são.

Disso resulta que a diferença entre os entes não é a fonte precípua de perigo. A ameaça é síntese de uma identidade originária que, ao unificar todos na condição de ente (isto é, contíguos pela aparescência), cria a identidade entre tudo o que é. Pois uma vez equipolentes os entes (humanos e extra humanos; visíveis e invisíveis) implicam-se mutuamente. A aparescência é, assim, o concreto princípio da agência. Tal postulado explica a agência patológica dos Karuãna e a possibilidade de neutralizá-la mediante ação xamânica que atua domesticando e dirigindo agências extra humanas, uma vez que a antítese de uma agência é somente uma outra agência.

É a identidade expressa pela aparescência que traz à luz capacidades comuns responsáveis pelo perigo de intervenção dos Karuãna no cotidiano social e não a diferença entre os entes. A diferença acresceria (e não fundaria) o perigo que provém da identidade porque, no domínio da alteridade, a capacidade fundamental de ação está potencialmente fora de controle, agravando o risco da agressão. E a melhor maneira de afastar o risco iminente da interferência dos Karuãna é controlando ritualmente sua agência. A capacidade de um ente de agir sobre outro ente é o resultado decisivo da identidade originária fonte da intencionalidade, de maneira que é a agência o valor equipolente dos entes e não qualquer referência a um self destilado em "subjetividade". Segundo uma fórmula de Heidegger: "No sentido de seu raio ilimitado de ações todos os entes se equivalem. Um elefante numa floresta virgem da índia é tão bem um ente quanto um fenômeno de combustão química no planeta Marte ou qualquer outra coisa" (1987[1953]: 35). Pensamentos originários cujo fundamento é a equipolência dos entes partem de um princípio de identidade formulado a partir da diferença e da pertença do diverso à unidade do múltiplo.8 Essa equipolência determina a agência de entes extra humanos descrita à larga nas cosmologias amazônicas, consentindo sua caracterização como pessoas. E no limite, não há distinções substanciais entre humanos e extra humanos, mas gradações, seja conforme a extensão das agências, ou as qualidades possíveis de trocas de informações baseados em aptidões linguísticas, como revelam, por exemplo, os Achuar (Descola, 1998: 26).

A distribuição da pessoa é, por conseguinte, o marcador principal da vigência de uma racionalidade não metafísica. Onde há pessoa, há agência e, logo, relação, uma vez que o estatuto de pessoa corresponde à capacidade de gerar e sustentar relações recíprocas (Hamlyn, 1984: 201-202). A agência (e ainda psyche e zoe, em termos heideggerianos) é decorrente da relação e não sua condição. Inversamente, quando as possibilidades e qualidades de relações decorrem da não distribuição da pessoa, estabelecem-se hierarquias e separações expressas por antíteses como sujeito/objeto; intencionalidade/objetividade; pessoa/coisa, etc. No domínio metafísico não há equipolência, posto que é a essentia de cada termo que determina sua posição e qualidade frente a termos alternos.

Se as racionalidades que distribuem psyche e zoe são não metafísicas, os modelos utilizados pela antropologia e que visam à simetrização de termos tradicionalmente polares a fim de compreender fenômenos recentes - como aqueles que emergem do domínio da automação, esmaecendo as fronteiras entre o técnico e o social, entre as "coisas" e os "sujeitos" (Latour, 1988, 1999; Ingold, 2000) - são pós-metafísicos. Em ambos os casos, a simetrização é síntese da distribuição da pessoa, esta também a causa eficiente de agências extra humanas.

PARA TERMINAR

Racionalidades anímicas - estejam elas representadas pelos physiokóis gregos, pelos pajés amazônicos ou pelos caçadores do círculo polar ártico - têm em comum a precedência da relação sobre a categorização de entes, permitindo mundos concretos onde a "natureza" é o devir das relações entre entes. E, concebendo um ente como aquilo que é ou o que se mostra, a percepção sai na frente no processo de construção de mundos. Como todo ente é um ser com, i.e., nunca está só em seu horizonte de manifestação, a relação é o a priori, pois o primeiro elemento captado em um mundo sempre sendo. Tudo transcorre como se tal movimento-devir - ele mesmo confundido com a physis - permitisse apenas a aplicação aos entes de definições contingenciais mais ou menos duráveis conforme seus horizontes de manifestação. Dizendo de outra forma, o acaso moral atribuído aos Karuãna galibi-marworno devido à sua agência e vontade potenciais (psyche) tanto é testemunha do trasbordamento dos valores para além do universo que determinamos "humano" (em oposição ao natural) - em função de uma exigência do signo (Lévi-Strauss, 1962:30) - como é parte da empresa das classificações sensíveis que exprimem as transformações e o devir das coisas enquanto resultantes da imponderabilidade do mundo concreto.

Em ternos cognitivos, poderíamos assimilar tais operações à vigência daquilo que Stephen Mithen (2002), um arqueólogo da mente, chamou de "fluidez cognitiva", resultado da sincronia entre módulos mentais especializados (relativos à linguagem, habilidades social e técnica, exploração do meio ambiente, etc.) e a inteligência geral que constituem a mente humana atual (muito baseada na mente dos caçadores coletores do Pleistoceno), fazendo-a adquirir "uma verdadeira paixão por metáforas e analogias" (ib.: 113). Physis, entanglemente e o xamanismo amazônico seriam, assim, o "processo normal" (i.e., não anômalo) de percepção daquilo que chamamos de "natureza", posto decorrem do uso integrativo das capacidades cognitivas humana. Inversamente, é nossa percepção de natureza - fabricada na ausência da fluidez cognitiva responsável pela imaginação e criatividade - que é anômala e que, segundo bem observou Ingold (2006), merece uma explicação.

 

NOTAS

1. Uma versão, bastante preliminar, deste texto foi apresentada no colóquio "Guiana ameríndia: história e etnologia" - realizado em Belém, entre outubro e novembro de 2006, sob o auspício do NHII-USP, EREA-CNRS e MPEG - e serviu de apoio para o capítulo IV e Epílogo de minha tese de doutorado (Andrade, 2007). Agradeço a Antonella Tassinari, Francisco Paes e Lux Vidal pelos comentários na ocasião do colóquio.

2. Tomo a noção de agência de Sherry Ortner (2006), sintetizada como uma "propriedade de sujeitos sociais", marcada, simultaneamente, pela universalidade e parcialidade que, não obstante, justifica qualidades como intencionalidade e poder.

3. As traduções do texto aristotélico trazem termos derivados da palavra latina "natura" (natureza, naturaleza, nature, etc.) em lugar de physis. No texto original, entretanto, a presença da palavra f?s?? é inequívoca.

4. O trabalho de campo foi efetuado para elaboração de minha tese de doutorado (Andrade, 2007) e cumprido majoritariamente entre os Galibi-Marworno, população praticamente concentrada em uma única aldeia no curso médio do Rio Uaçá. Os Galibi-Marworno constituem uma amálgama de índios (principalmente falantes de línguas caribe) e não índios que confluíram para o Rio Uaçá a partir do século XVIII devido às rotinas coloniais instaladas na região de fronteira (Nimuendaju, 1926:60-61).

5. Na etnologia das terras baixas sul-americanas esse invólucro tem sido chamado de "roupa" e "envelope" (cf. Rivière, 1995).

6. Refiro-me à noção platônica (isto é, metafísica) de Idea. Dela podemos derivar o conceito como monólogo das ideias que transcorre no palco paralelo àquele onde estão os objetos sensíveis e que, por sua vez, formam um subconjunto da realidade.

7. A tolerância a barulhos e preferência por bebidas e fumo dependem da proveniência do Karuãna. Os pajés galibi-marworno e karipuna podem dispor da assistência de pessoas invisíveis que habitam rios, igarapés ou o mar; os espaços astral e celeste; o interior da floresta grossa ou ainda que são provenientes das imediações de cidades como Amapá, Cassiporé, Macapá, Belém, Saint Georges e Tampac. Karuãna associados a aldeias exteriores à área indígena (notadamente Camopi, no alto Oiapoque) são mais raros, contudo ocorrem. Os Karuãna habituados ao consórcio com "pajés brasileiros" são menos melindrosos e manifestam preferências por "coisas de branco", como cerveja industrial e/ou cachaça (em lugar do caxiri) e cigarro industrial (em lugar de cigarro de casca de tawari).

8. Tal unidade é a physis e a identidade fundada na diferença que ela comporta deve ser pensada como determinante do ser, que é um traço desta identidade. De modo contrário à identidade metafísica, amparada no princípio da unidade do mesmo consigo mesmo e representada como um traço do ser (Heidegger, 1968: 262).

 

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