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Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.19 Posadas dic. 2011

 

DOSSIER - NATURALEZA Y CULTURA

Normas jurídicas e agências não-humanas: o caso dos cães "perigosos"

 

Ciméa Barbato Bevilaqua*

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná, Brasil. E-mail: cimea@uol.com.br

 


RESUMO

Este artigo tematiza regimes jurídicos aplicáveis a animais no direito brasileiro e algumas de suas implicações. Em contraste com a tendência de incorporação crescente de normas de proteção aos animais à legislação do país, tramitam no congresso nacional numerosos projetos de lei visando à adoção de medidas restritivas, ou mesmo punitivas, em relação a cães "perigosos". Ao explorar analiticamente um debate legislativo que perdura há mais de uma década, busca-se refletir sobre as dificuldades suscitadas pela incorporação de agências não humanas a uma tradição jurídica fundada no dualismo entre pessoa e coisa.

PALAVRAS-CHAVE: Direito; Pessoas e coisas; Agências não-humanas; Cães perigosos.

ABSTRACT

This paper focuses on legal regimes applicable to animals in Brazilian law, seeking to point out some of their ambiguities. In contrast to the increasing adoption of animal welfare norms, a long parliamentary debate has been developing for more than one decade concerning an unprecedented national dangerous dog's act. By following the steps of this debate, it becomes possible to identify some of the difficulties posed by non-human agencies to a legal tradition based on the dualism person-thing.

KEYWORDS: Law; Persons and things; Non-human agencies; Dangerous dogs.


 

NORMAS JURíDICAS E AGêNCIAS NãO-HUMANAS: O CASO DOS CãES "PERIGOSOS"

Um dos fundamentos mais gerais do direito brasileiro, assim como de outros sistemas jurídicos modernos cuja inspiração remonta à tradição romana, é o grande divisor entre pessoas e coisas. Embora a condição jurídica de pessoa não seja assimilável ao sujeito humano concreto, os seres vivos não-humanos, não sendo reconhecidos juridicamente como pessoas, só podem ser coisas. E como as relações entre pessoas e coisas são constituídas de modo quase exclusivo em termos de direitos de propriedade exercidos pelas primeiras sobre as segundas, os animais habitam o mundo do direito sobretudo como bens incorporados ao patrimônio de pessoas.

A categorização dos animais como coisas não impediu, contudo, que o direito incorporasse gradativamente preocupações com o seu bem-estar. No Brasil, isto ocorre desde a década de 1930, inicialmente com normas visando coibir maus-tratos a animais e, a partir da Constituição Federal de 1988, com o reconhecimento da biodiversidade das espécies como um valor a ser protegido e promovido1. Desse modo, por meio de deslocamentos sucessivos, "a fauna começa a ser juridicamente resguardada em si mesma, independentemente do seu valor econômico ou científico para os seres humanos" (Benjamin, 2005:55). 

Em contraste com a trajetória de incremento progressivo de normas de proteção, um projeto de lei foi apresentado à Câmara Federal em fevereiro de 1999 visando proibir "a reprodução e a importação de cães das raças rottweiler e pit bull, puros ou mestiços"2. Esta foi, possivelmente, a primeira iniciativa parlamentar na história do Congresso Nacional brasileiro a se ocupar explicitamente de cães, matéria tipicamente considerada como de âmbito municipal. Mais que isso, e de modo mais preciso, propunham-se medidas contra raças de cães, com o propósito de promover sua erradicação no país. A justificativa do projeto mencionava ataques (então) recentes e fatais de cães rottweiler e pit bull a pessoas humanas, e fazia referência a medidas similares adotadas por outros países para conter a proliferação de cães considerados violentos (Diário da Câmara dos Deputados- DCD, 20/03/99: 10.827).

Nos quatro meses seguintes, nada menos que dezessete projetos sobre o mesmo tema foram apresentados por parlamentares de nove partidos e de todas as regiões do país3. Enquanto a maioria deles propunha restringir ou ampliar o leque de raças sujeitas a regulamentação especial, sete projetos não mencionavam raças particulares, referindo-se genericamente a cães "perigosos" ou "agressivos".

Todas as proposições foram apensadas ao primeiro projeto e passaram a tramitar conjuntamente. Constituiu-se assim um corpus formalmente unitário e estável, embora reunindo vozes dissonantes, classificações heteróclitas e normas de escopo e abrangência variáveis. Registrado em dezenas de páginas do Diário da Câmara dos Deputados, o debate sobre a matéria continua em aberto mais de uma década depois, a despeito da aprovação em plenário de um projeto substitutivo.

PESSOAS, COISAS, LEIS

Ao descrever a heterogeneidade de perspectivas, as alternativas e formulações abandonadas ou retidas no processo de elaboração de um novo regime legal aplicável a cães, o propósito deste artigo é explorar analiticamente as tensões entre perspectivas aparentemente incompatíveis: de um lado, a categorização jurídica tradicional dos animais como coisas (bens integrantes do patrimônio de pessoas e assim, por definição, desprovidos de agência autônoma); e, de outro, a qualificação desses animais como "perigosos" (o que implica, de algum modo, a incorporação de agências não-humanas ao universo do direito)4.

Desde pelo menos o clássico ensaio de Clifford Geertz sobre a relação estabelecida entre fatos e leis por diferentes sensibilidades jurídicas, a reflexão antropológica sobre o direito experimentou uma profunda renovação. Abordagens de inspiração funcionalista - o direito como reflexo de um consenso normativo, instrumento para a promoção de interesses ou mecanismo para a administração de conflitos - perderam terreno em favor do reconhecimento de que o pensamento jurídico não simplesmente espelha e regula, mas constitui e constrói a realidade à qual suas disposições se aplicam5.

No que se refere aos sistemas jurídicos ocidentais, Marie-Angèle Hermitte (1998) observa igualmente que, ao dissociar os objetos do mundo da experiência e integrá-los a uma rede de conceitos e normas que lhe é própria, o direito não busca uma correspondência com o real: ao contrário, inventa um outro mundo a partir de seus próprios princípios. Este "outro mundo", por sua vez, segmenta-se internamente em ramos especializados, relativamente autônomos e até certo ponto indiferentes uns aos outros. Um dos efeitos dessa complexa topografia do direito, segundo Hermitte, é dotar os entes incorporados ao universo jurídico de uma multiplicidade de formas. Além do tratamento diferenciado a que cada ramo do direito submete seus objetos, cada época imprime suas marcas às construções jurídicas, sem que as formulações mais antigas sejam necessariamente eliminadas.

Considerando as tensões entre perspectivas tradicionais e desdobramentos recentes, Alain Pottage (2004) chama atenção para o fato de que pessoas e coisas têm se tornado problemas, mais que premissas, para os sistemas jurídicos ocidentais. O desenvolvimento da biotecnologia, os impasses em torno de direitos intelectuais e patentes sobre seres vivos, assim como novas sensibilidades em relação ao meio ambiente tornam a fronteira jurídica entre pessoas e coisas, assim como os limites entre natureza e cultura, imprecisos e contingentes. Nesse contexto, assinala Pottage, o direito literalmente faz a diferença: as técnicas e operações jurídicas são constitutivas, mais que declaratórias, da ontologia na qual se baseiam (Pottage, 2004: 5).

Em campos tão diversos como o transplante de órgãos e tecidos, as técnicas de reprodução assistida e o patenteamento de material genético, pesquisas recentes têm demonstrado a indissociabilidade entre realidades emergentes e sua representação pelo direito (Strathern, 2005; Pottage, 2007; Stolcke, 2008; Fonseca, 2010). De forma análoga, a incorporação aos sistemas jurídicos de normas relativas ao bem-estar dos animais e ao equilíbrio ambiental, cada vez mais incoerentes com a qualificação dos seres vivos não-humanos como coisas, suscita a reflexão sobre a possível emergência de categorias híbridas, intermediárias entre coisas e pessoas  (Hermitte, 1998).6

Nesse sentido, seguir o curso do debate no Congresso Nacional brasileiro sobre disposições legais visando conter, punir ou mesmo eliminar cães considerados perigosos pode contribuir para uma melhor compreensão de processos jurídicos de personificação e reificação: um encadeamento específico de proposições, documentos e argumentos produz, passo a passo, uma solução etnográfica para o lugar das formas não-humanas de agência no mundo do direito.

A descrição se baseia nos textos dos projetos de lei e nas justificativas que os acompanham, assim como nos registros oficiais das sessões parlamentares em que a matéria foi debatida. Pela própria natureza dessa documentação, evito especular sobre as razões que levaram deputados de diferentes partidos a apresentar projetos sobre o mesmo tema, alguns deles quase idênticos. Também não é possível determinar se os parlamentares estavam pessoalmente comprometidos com o conteúdo de suas propostas, se buscavam notoriedade ao ingressar num debate de grande repercussão pública, se eram porta-vozes de interesses específicos ou, finalmente, se os argumentos apresentados exprimiam a oposição a adversários e a reafirmação de alianças políticas. Possivelmente, tudo isso está presente em algum grau. Os próprios parlamentares, como mostra Abreu (2005), atuam no Congresso com a convicção de que há sempre algo acontecendo além do que se passa publicamente.

A centralidade conferida aos "bastidores" pelos próprios participantes desse universo, porém, não retira o interesse de uma análise baseada na dimensão pública do debate legislativo, no seio do qual argumentos enunciados em textos e palavras - quaisquer que sejam suas razões "últimas" - produzem um percurso que, embora feito de contingências, é também unidirecional e, até certo ponto, irreversível. Ao cumprir etapas e condições definidas regimentalmente, a tramitação das proposições encaminha a uma decisão final que, estabilizada como lei, produzirá efeitos para além do parlamento.

UMA POPULAçãO FORA-DA-LEI

Uma premissa comum possibilitou que todas as proposições apresentadas à Câmara dos Deputados fossem reunidas em um único conjunto: a percepção da necessidade de normas para administrar uma população que até então permanecera, por assim dizer, exterior ao ordenamento jurídico, ao menos à legislação federal. A atenção se dirige particularmente aos cães em contextos urbanos, considerando sobretudo os possíveis riscos que sua presença em espaços públicos poderiam suscitar para seres humanos. Nas palavras do autor do projeto original, "hoje existem 20 milhões de cães no país sem nenhum tipo de controle por nenhum tipo de autoridade" (DCD, 14/10/1999: 48540).

A existência de raças caninas como conjuntos "reais", definíveis de forma não-problemática, é outra premissa de todos os projetos. As referências a raças remetem ocasionalmente a atributos físicos dos animais mas, de modo muito mais frequente, a disposições comportamentais compreendidas como parte da própria identificação da raça e, portanto, comuns a todos os indivíduos a ela pertencentes. O caso mais evidente, mencionado por dez das proposições, é o da raça pit bull, cujos exemplares são descritos, com pequenas variações, como animais "naturalmente"ou"espontaneamente agressivos" e, por essa razão, "extremamente perigosos" (PL 159, PL 331, PL 136).

Apenas um dos projetos faz referência à raça pit bull como resultado da seleção deliberada de "características que a especializaram como cão de briga" (PL 176). No entanto, a percepção de que a violência desmedida de determinadas raças de cães é 'anti-natural' também está presente nas justificativas de outros projetos. Argumenta-se, por exemplo, que ela provém de técnicas perversas de adestramento, ou ainda que resulta de "inúmeros graus de mestiçagem, que [tornam] a ferocidade um fator geneticamente fora de controle" (PL 238).

Seja como for, não parece haver dúvidas sobre a possibilidade de proceder à classificação inequívoca de indivíduos específicos como exemplares puros ou mestiços de determinada raça, bem como de estabelecer, a partir de bases "técnicas", graus de periculosidade relativos a raças caninas particulares. A periculosidade também pode ser percebida, porém, não como atributo inerente a conjuntos determinados, mas como característica idiossincrática de certos indivíduos. Nessa perspectiva, minoritária no conjunto de proposições, um cão só poderia ser considerado perigoso depois de manifestar condutas agressivas. De modo significativo, os projetos que situam a periculosidade no plano individual introduzem uma ressalva: o caráter motivado (ou não) da conduta agressiva. Voltarei a este ponto.

PROTEGER E PUNIR: AS NORMAS PROPOSTAS

A erradicação de raças caninas aparece em oito dos projetos de lei apresentados pelos parlamentares. Nos demais, mesmo que não sejam mencionadas raças particulares, a esterilização figura como medida aplicável de forma regular e sistemática a cães considerados "potencialmente perigosos" - o que, a médio prazo, produz efeito equivalente (PL 768, PL 629, PL 238).7

Outra preocupação recorrente é o trânsito de cães "perigosos" no ambiente urbano. Não se proíbe sua presença em locais ou horários específicos, mas a maioria dos projetos torna obrigatório o uso de equipamentos (focinheira, guia, enforcador, etc.) que, por sua própria natureza, implicam outra obrigação: cães só podem sair do ambiente doméstico acompanhados por pessoas humanas. Em alguns projetos, a restrição se estende também às pessoas: cães "perigosos" não podem ser conduzidos por menores. Proíbe-se, assim, a conjunção de dois modos de irresponsabilidade, humana e não-humana - ou, de modo mais preciso, impede-se que indivíduos não responsabilizáveis juridicamente por seus atos circulem juntos e desacompanhados por responsáveis em locais públicos. Comparativamente, são raras as determinações referentes a espaços privados. Quando presentes, não visam ao bem-estar dos cães, mas à proteção de pessoas: torna-se obrigatória, por exemplo, a colocação de placas alertando para a presença de "cão perigoso" (PL 839) ou "animal feroz" (PL 1141) no domicílio.

A importância conferida à identificação formal dos cães não é menor. Quase todas as proposições preveem o registro obrigatório dos animais junto a órgãos oficiais, com o duplo propósito de documentação (quem são, a quem pertencem, onde residem) e monitoramento sanitário (vacinas e exames veterinários obrigatórios). Não há consenso, porém, quando se trata de definir o lugar próprio dos cães na estrutura da administração pública. Ora entende-se que o registro cabe às prefeituras, ora aos governos estaduais ou federal. Da mesma forma, diferentes projetos sugerem que a tarefa de identificação e monitoramento de cães fique a cargo de órgãos da área de saúde, de agricultura ou - não raramente - de segurança pública. Correlativamente ao cadastro administrado por instâncias burocráticas, diversos projetos preveem a inscrição dessa identidade pública obrigatória no próprio corpo do cão, sob a forma de tatuagens ou chips implantados sob a pele.

OS CãES, SEUS DONOS E O PODER PÚBLICO

Assim como a proposição original (PL 121), quase todos os demais projetos se apresentam como respostas a uma preocupação generalizada da "sociedade brasileira" com o número e gravidade crescentes dos ataques de cães a pessoas humanas. Como justificativa suplementar, a grande maioria faz referência a medidas semelhantes adotadas por outros países - em particular Inglaterra e França, onde a erradicação da raça pit bull havia sido recentemente aprovada8.

Em seu conjunto, os projetos constituem a convivência entre pessoas humanas e cães como um problema a ser enfrentado por meio de uma disciplina jurídica específica - ou, poder-se-ia dizer, uma biopolítica dirigida a populações não humanas9. Criam-se novas disposições e infrações, novos crimes e uma variada gama de sanções administrativas, civis e penais.

Certamente a conformidade às normas de vacinação, esterilização e uso de equipamentos de segurança só pode depender da iniciativa do dono do cão, ao qual também cabe arcar com os gastos correspondentes. O cumprimento dessas determinações legais afeta diretamente, contudo, o próprio animal: é no corpo dele que essas intervenções acontecem. Nesse sentido, pode-se considerar que as normas incidem simultaneamente sobre o cão e sobre o dono, que passam a constituir uma unidade: o animal é absorvido juridicamente como parte da pessoa de seu proprietário e, desse modo, é por intermédio deste - por suas ações ou omissões - que a lei produz efeitos sobre o cão.

A situação permite uma analogia com o sentido da pessoa no direito romano antigo. Como observa Yan Thomas, a unidade da pessoa, originariamente, recobre a unidade de um patrimônio. Assim, um só sujeito podia conter diversas pessoas, ou uma só pessoa conter diversos sujeitos. Não havia dificuldade, por exemplo, em considerar os bens como pessoa do proprietário falecido ou em integrar o escravo à pessoa do senhor: a pessoa era uma unidade abstrata e, consequentemente, extensível. Ainda segundo Thomas, é a reinterpretação medieval do direito romano que assimila a pessoa ao sujeito humano concreto: quando admitem que diversos indivíduos podem constituir uma só pessoa, os juristas medievais se apressam em notar que esse efeito é produzido por uma ficção (Thomas 1998: 100).

No caso analisado aqui, a unidade entre o proprietário e seu cão produz efeitos concomitantes - mas diferenciais - sobre ambos, tanto nas situações em que as normas são cumpridas (conforme acima), quanto nos casos de descumprimento. Nos diferentes projetos, a desobediência por parte do proprietário é sancionada com a apreensão do cão (enquanto o dono permanece em liberdade) e, frequentemente, com o seu sacrifício. Assim, se tais sanções podem afetar o direito de propriedade e os vínculos afetivos entre o dono e o animal10, o maior ônus seguramente recai sobre o próprio cão, uma vez que a conduta de outrem pode resultar em sua própria morte. É também com a vida que o cão está sujeito a pagar caso seu dono o faça participar de rinhas (PL 136) ou deixe de adequar as instalações domésticas às novas prescrições (PL 219).

A integridade jurídica da pessoa como ponto de imputação de direitos e deveres, no entanto, permanece intacta nas hipóteses descritas. Em outros momentos, porém, os projetos tendem a estabelecer uma relação independente e não mediatizada entre o cão e a lei. O próprio texto das proposições parece se dirigir diretamente aos cães, como se verifica nos dois exemplos seguintes.

 Ao estabelecer punições decorrentes de atos do cão - cometidos, em princípio, à revelia de seu proprietário -, o texto do PL 1113 se refere unicamente ao próprio animal, prevendo a dosagem da pena conforme a gravidade do delito. Sob este aspecto, nenhuma diferença se produziria se o cão não possuísse (ou fosse possuído por) um proprietário humano:

Art. 10 - Qualquer cão que atacar pessoa, comprovadamente sem provocação ostensiva, e ocasionar lesão corporal leve será esterilizado.

Art. 11 - Qualquer cão que atacar pessoa, comprovadamente sem provocação ostensiva, e ocasionar lesão corporal grave ou a morte do indivíduo será sacrificado (DCD, 08/06/1999: 44177).

De forma análoga, ao tratar de agressões de cães a seres humanos, o PL 1141 estabelece, em artigos diferentes, punições específicas ao cão e ao proprietário:

Art. 7º - Em caso de agressão a seres humanos, o cão agressor será imediatamente recolhido e mandado à avaliação comportamental, a ser feita por médico veterinário.

Parágrafo único - Constatada a impossibilidade de manutenção do cão no convívio social sem riscos para seres humanos, o veterinário emitirá parecer recomendando o sacrifício do animal.

Art. 8º - O criador, proprietário ou responsável pela guarda do animal responderá civil e criminalmente, na forma da legislação federal em vigor, pelos danos físicos e materiais decorrentes da agressão dos cães a quaisquer pessoas, seres vivos ou bens de terceiros (DCD, 10/06/1999: 44179).

Ainda que apenas de modo implícito, distinguem-se planos e graus diversos de responsabilidade pelo mesmo ato, atribuíveis a sujeitos diferentes. Dito de outro modo, desfaz-se a unidade resultante do englobamento jurídico da propriedade por aquele que a detém. Voltarei a este ponto, buscando explorar algumas das implicações desse passo para o dualismo jurídico entre pessoa e coisa.

DA RAçA AO INDIVíDUO: O PROJETO SUBSTITUTIVO

Em fins de setembro de 1999, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados recomendou a aprovação da matéria na forma de um projeto substitutivo (DCD, 24/09/99: 44181-44186). Embora apresentado como a consolidação das contribuições dos diferentes projetos, o novo texto deixa de incorporar aquilo que constituía o próprio cerne da maioria das proposições originais - a erradicação ou o controle estrito de determinadas raças caninas, medida entendida como contrária a disposições constitucionais. O mesmo argumento justifica o abandono de uma série de outras providências. Também não são mantidas penas consideradas "desproporcionais" para as condutas definidas como crimes, assim como medidas tidas como incompatíveis com a proteção conferida pelo sistema jurídico ao direito de propriedade.

De modo mais relevante, o substitutivo consolida a mudança do foco da lei. Em lugar da consideração de raças de cães, isto é, grupos definidos por características intrínsecas e disposições potenciais comuns para determinadas condutas, passa-se ao exame de condutas e disposições específicas de cães tomados individualmente.

Embora esse deslocamento permita afastar medidas extremas como o extermínio de determinadas raças, produz-se concomitantemente um efeito de universalização: enquanto a caracterização de algumas raças como perigosas possibilitava que a maior parte dos cães existentes no país permanecesse fora do escopo da lei, agora todos passam a estar sujeitos à disciplina legal e, mais que isso, todos estão potencialmente sujeitos a serem considerados perigosos. Por ocasião da vacinação anual, tornada obrigatória, prevê-se uma avaliação profissional do cão com o propósito de determinar seu "grau de periculosidade" (art. 3º). Com base no laudo veterinário, o animal poderá ser inscrito no Cadastro Nacional de Cães Perigosos, a ser criado com a promulgação da nova lei. Com esse passo, o cão fica submetido a um regime jurídico específico, cujas normas são endereçadas mais diretamente a ele mesmo que a seu proprietário:

Art. 4º - O cão, de qualquer raça, que for considerado perigoso na avaliação referida no artigo anterior estará sujeito às seguintes medidas:

I    -  realização de adestramento adequado, obrigatório;
II  - condução em locais públicos ou veículos apenas com a utilização de equipamento de contenção [...];
III - guarda em condições adequadas à contenção do animal, sob estrita vigilância do responsável, de modo a tornar impossível a evasão;
IV - identificação eletrônica individual e definitiva, através de microchip projetado especialmente para uso animal, inserido sub-cutaneamente na base do pescoço [...] (DCD, 24/09/1999: 44186).

Nas circunstâncias da elaboração da nova lei - a grande repercussão de casos de ataques de cães a pessoas e o clima de alarme em relação a determinadas raças -, não é surpreendente que um rígido controle de animais "perigosos" tenha sido considerado necessário. O que merece registro é o entendimento implícito da periculosidade como um atributo individual permanente: a identificação do animal perigoso, inscrita em seu próprio corpo, é "definitiva"; da mesma forma, o ingresso no cadastro de cães perigosos é um percurso de mão única.

Por mais estrito que seja o controle instituído pela lei, porém, não é possível conter inteiramente os cães "perigosos", ou evitar que animais até então considerados inofensivos cometam agressões.  O texto estabelece as sanções correspondentes:

Art. 7º - Se o cão agredir uma pessoa, será imediatamente recolhido e mandado à reavaliação pelo médico veterinário, que, após observação, emitirá parecer sobre o possível desvio de comportamento.

§ 1º - Havendo parecer pela impossibilidade de manutenção do cão no convívio social sem risco para outras pessoas, o veterinário poderá emitir parecer recomendando o sacrifício do cão agressor [...]

§ 2º - O parecer pela eliminação do animal também poderá ser dado se houver reincidência em agressão ou sua comprovada habitualidade (DCD, 24/09/1999: 44186).

Assim como nas disposições referentes a cães potencialmente perigosos consideradas acima, também as penalidades previstas em caso de agressão parecem endereçadas mais diretamente ao próprio cão que a seu proprietário. O lugar da autoridade, entretanto, passa a ser ocupado por uma categoria profissional específica, investida de legitimidade para assumir funções típicas do sistema judiciário, inclusive a imposição da pena de morte.

Com algumas dificuldades iniciais, o texto é aprovado em junho de 2000. Encaminhado ao Senado Federal, conforme as normas do processo legislativo brasileiro, o projeto tramita muito lentamente, mas termina por ser também aprovado, com emendas, em setembro de 2009. Ainda que as emendas não tenham produzido alterações substanciais, tornou-se obrigatório o reexame da matéria pela Câmara dos Deputados, onde o projeto se encontra atualmente, prestes a ser levado mais uma vez a votação.

PESSOAS, COISAS E AGêNCIAS

A posição singular dos cães no mundo humano - ou, mais precisamente, a existência conjunta, mas nem sempre pacífica, de cães e pessoas num mundo comum (cf. Haraway, 2003) - ajuda a compreender por que pareceu necessária uma disciplina legal distinta para a espécie, assim como a proliferação de projetos heterogêneos sobre o tema. Entre o sacrifício sumário de raças tidas como ferozes e os cuidados periódicos com a saúde dos animais, o debate legislativo dispôs um gradiente de medidas mais ou menos restritivas e intervenções de toda sorte nos corpos dos cães: esterilização, tatuagens, chips subcutâneos, focinheiras, enforcadores e outros equipamentos de uso obrigatório.

É tentador comparar essas intervenções com políticas de controle e segregação étnico-racial, medidas eugenistas de inspiração totalitária ou mesmo práticas de genocídio - um tropo relativamente comum nos discursos em defesa dos direitos dos animais11. Em termos muito gerais, talvez a aproximação não seja inteiramente descabida: a imaginação (humana) que produz medidas extremas para seres humanos é a mesma que elabora normas para o controle de não-humanos. É justamente a generalidade de aproximações desse tipo, contudo, que conduz a um raciocínio circular: a condenação retrospectiva de situações em que "seres humanos foram tratados como animais" torna possível passar à afirmação de que "os animais são hoje tratados como alguns humanos o foram no passado" - isto é, como animais. A saída desse impasse não é menos circular: a esperança de que o aperfeiçoamento ético e político (humano) permita, no futuro, que os animais sejam considerados da mesma forma que pessoas humanas - e vice-versa.

Perde-se de vista, assim, o caráter específico da discussão, no presente e num contexto particular, de normas jurídicas referentes a cães, em contraste tanto com a ausência de normas exclusivas para esta espécie quanto com disposições legais relativas, por exemplo, a animais classificados como silvestres (objeto de proteção, em nome da biodiversidade) ou sinantrópicos (objeto de controle, em nome dos potenciais riscos que trazem à saúde pública).

Um primeiro aspecto a observar é a tensão inerente a normas relativas a animais que são considerados, com frequência, como membros não-humanos de famílias humanas. O registro obrigatório dos cães junto a órgãos públicos, por exemplo, permite esquadrinhar uma população onipresente em contextos urbanos, conhecer seus atributos e administrar seus movimentos; mas também torna possível, por outro lado, identificar e proteger cães eventualmente perdidos ou furtados, restituindo-os aos seus lares. Da mesma forma, se a exigência de vacinação protege a saúde do animal, também visa resguardar os seres humanos do risco de transmissão de doenças que todo cão, de qualquer tamanho ou raça, pode representar. No limite, talvez não seja possível discernir de modo inequívoco normas protetivas e normas restritivas: a proteção também controla e sujeita (cf. Foucault 1999).

O modelo da regulamentação proposta espelha, em grande medida, a disciplina legal relativa aos próprios seres humanos: regras sobre a circulação em locais públicos, normas higiênicas e sanitárias, regulamentos referentes ao trabalho, formas obrigatórias de identificação civil. A obediência que se espera dos cães, aliás, é mediada pela obediência do dono humano, a quem cabe assegurar a conformidade do seu animal à legislação. A própria categorização jurídica dos animais como coisas requer que seja assim. Se no universo do direito as coisas existem sob a forma de bens integrados a um patrimônio, não é possível, por definição, a existência de coisas desvinculadas de pessoas12. Uma consequência disso é que, mesmo que reunissem condições para tanto, o direito não lhes reconhece autonomia para, por exemplo, estabelecer contratos ou ajuizar ações. Da mesma forma, ainda que possam causar danos a terceiros, não podem cometer infrações ou sofrer sanções de modo independente.

Há um ponto, porém, em que o debate legislativo parece se destacar da perspectiva jurídica tradicional: refiro-me às normas que aparentemente criam uma relação direta, não mediatizada, entre a autoridade pública e os cães agressivos ou agressores. Presentes em diversos projetos do conjunto original, normas dessa natureza permaneceram no texto do substitutivo, enquanto outras disposições foram descartadas em nome da juridicidade e da técnica legislativa. Parece haver aí um reconhecimento implícito de que os cães, quando atacam pessoas humanas, expressam a autonomia de vontade que o sistema jurídico não lhes reconhece e que se afigura incoerente com sua qualificação como bens.

A proposta de uma disciplina legal para cães pode ser situada, desse modo, em um plano mais geral. Em diferentes contextos, vem se disseminando recentemente a percepção de que a existência jurídica de seres vivos não-humanos como coisas não mais opera de modo silencioso e não-problemático em qualquer circunstância. O questionamento da categorização tradicional provém, em parte, da crescente mobilização em favor dos direitos dos animais, cujas vertentes mais radicais visam seu reconhecimento jurídico não apenas como objetos de proteção, mas como sujeitos de direitos. Em outras palavras, pretende-se que a categoria jurídica de pessoa passe a incorporar não apenas seres humanos concretos (pessoas físicas) e organizações (pessoas jurídicas), mas também seres vivos não-humanos13.

Nas últimas décadas, alguns países europeus14 vêm modificando sua codificação civil para incorporar a noção de que "animais não são coisas". Tal deslocamento aproxima a norma legal de sensibilidades exteriores ao universo do direito, mas não sem ambiguidades: esses mesmos ordenamentos continuam a considerar que, exceto em condições específicas (relativamente periféricas ao cerne do sistema jurídico), as disposições referentes a coisas (isto é, à generalidade dos bens apropriáveis por pessoas) continuam a se aplicar aos animais. Também no Brasil, como mencionei no início, verifica-se a paulatina incorporação ao sistema jurídico de dispositivos de proteção aos seres vivos não-humanos, agora investidos de um valor intrínseco como elementos da  biodiversidade.

Nessas circunstâncias, a discussão de uma lei federal cujo ponto de partida é a periculosidade dos cães parece estar em contradição com tendências que vão se tornando majoritárias no país e no exterior. Recorde-se, porém, que os autores dos projetos apresentados à Câmara Federal buscaram no exemplo de outros países (em especial Inglaterra, França e Estados Unidos) elementos para sustentar a proposta de uma disciplina legal específica para cães, contemplando inclusive a erradicação de determinadas raças.

O próprio debate legislativo oferece elementos que ajudam a compreender a emergência simultânea dessas tendências antinômicas. Nas justificativas que acompanham os projetos de lei, a agressividade canina é percebida como particularmente preocupante quando parece não corresponder a padrões estáveis, previsíveis e, por assim dizer, razoáveis. O ataque de cães pit bull a pessoas humanas, afirma-se, "beira a insanidade mental de tão injustificado e imotivado" (PL 171). Também se enfatiza a "instabilidade" dos cães pit bull e rottweiler, descritos como "cachorros assassinos" (PL 184). São mencionados, ainda, ataques de cães "a pessoas da própria família que os cria" (PL 326).

A perplexidade diante de uma violência cujas razões parecem insondáveis tem como contrapartida a preocupação em diferenciar essas situações e os ataques desencadeados por motivos justificáveis. Um dos projetos, por exemplo, propõe que seja considerado perigoso "todo animal da espécie canina que ataque seres humanos fora dos limites domésticos e sem provocação" (PL 839, ênfase minha). Outra proposição estabelece que "o cão que atacar ou tentar atacar pessoas, sem provocação ostensiva, será considerado cão bravio" (PL 1113, ênfase minha). De modo análogo, o substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados isenta o proprietário de responsabilidade "se a agressão se der em decorrência de invasão ilícita da propriedade que o cão esteja guardando ou se for realizada em legítima defesa de seu condutor". O texto estabelece ainda outra exceção: os cães das Forças Armadas e órgãos de segurança pública, aos quais devem se aplicar as normas próprias dessas corporações (art. 6º, §§ 1º e 3º).

Em síntese, a agressidade canina é percebida como não-problemática quando parece compatível com uma racionalidade humana. Desse modo, não são previstas punições quando a agressão ocorre em legítima defesa de si mesmo e dos seus; quando constitui revide a uma provocação; ou ainda quando se trata de uma violência exercida no âmbito do monopólio legítimo do Estado. O que fazer, porém, com uma agressividade não-humana e não compreensível em termos humanos? Como pode o direito lidar com "vontades" cujos princípios são desconhecidos e cuja manifestação irrompe de modo imprevisível, com um ímpeto tão desmedido quanto, por assim dizer, autônomo?

No debate parlamentar, a noção de raça parece fornecer um ponto de apoio. Se é possível afirmar, com base em saberes técnicos legítimos, que esta ou aquela raça canina, por seus atributos intrínsecos, é agressiva e imprevisível, isto permite justamente alguma previsibilidade e, portanto, garante o lugar da norma jurídica. Dito de outro modo, se a instabilidade de uma raça perigosa é, enquanto tal, estável, torna-se possível distinguir cães inofensivos e ferozes e elaborar prescrições destinadas apenas a estes últimos.

Ao mesmo tempo, quando as raças são concebidas como conjuntos reais objetivamente discerníveis (e aqui pouco importa se seus atributos são tidos como 'originários' ou desenvolvidos 'artificialmente' pela ação humana), a agência dos cães perigosos pode ser reconhecida pelo direito a despeito da impossibilidade de compreendê-la. Um dos efeitos desse reconhecimento é a adoção de medidas punitivas extremas aplicáveis diretamente aos cães perigosos, sem a mediação de seus proprietários humanos.

O texto aprovado pela Câmara Federal, porém, aboliu a consideração de raças, substituindo-a por uma avaliação individualizada dos cães a fim de determinar sua eventual periculosidade. Manteve, contudo, normas e punições que parecem se dirigir diretamente aos próprios cães. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que ficou a meio caminho entre as proposições iniciais da maioria dos parlamentares e a solução adotada pelo próprio Congresso Nacional ao aprovar o novo Código Civil em 2002 - isto é, enquanto o projeto referente a cães permanecia no Senado à espera de deliberação.

Desde 1916, quando entrou em vigor a primeira codificação civil republicana no Brasil (Lei nº 3.071/16), previa-se que o dono do animal respondesse por danos por este causados. A lei o isentava de responsabilidade, porém, se provasse ter tomado todas as precauções cabíveis para prevenir a ocorrência (art. 1.527). A opção do Código Civil de 2002 foi desconsiderar a culpa subjetiva do dono do animal, cuja obrigação de ressarcimento, atualmente, só pode ser afastada se o dano tiver resultado de "culpa da vítima ou força maior" (Lei nº 10.406/02, art. 936).

A responsabilidade 'objetiva' do proprietário estabelecida pelo novo código - conforme tendência presente nos sistemas jurídicos de diferentes países nos últimos anos - suscita controvérsias e alimenta o debate entre juristas15. Para a reflexão desenvolvida neste artigo, o que importa reter é que a aplicação do princípio da responsabilidade objetiva prescinde de qualquer consideração sobre a agência do próprio animal, sejam suas ações concebidas como mero reflexo de disposições instintivas, postuladas como fruto de uma intencionalidade subjetiva consciente ou, ainda, como resultantes de alguma combinação entre instinto e subjetividade. De certo modo, a objetivação da responsabilidade do proprietário acentua a objetificação do animal como bem integrante de um patrimônio. Por outro lado, entretanto, esse mesmo movimento tem como efeito uma espécie de imunidade do animal: quaisquer que sejam suas ações, não estarão sujeitas a penalidades impostas pelo poder público (ao menos enquanto não existir lei específica). Evidentemente, essa autonomia é relativa, uma vez que o animal permanece à mercê de castigos, em princípio ilimitados, que venham a ser infligidos por seu proprietário.

Talvez seja possível sugerir que a primeira solução, ao tomar as raças caninas como critério de inteligibilidade de ações que, de outra forma, permaneceriam incompreensíveis, enfrenta o problema do equacionamento jurídico de agências não-humanas por meio da acentuação da natureza como um domínio ontologicamente distinto mas, por esta mesma razão, passível de ser descrito por discursos técnico-científicos que caberia ao direito incorporar. De modo inverso, o Código Civil de 2002, diante da mesma questão, aposta na acentuação do direito como artifício, isto é, como instituição humana que cria seu próprio mundo (cf. Hermitte, 1998) e as condições de existência dos entes que o habitam, prescindindo da obrigação de espelhar, ou mesmo guardar coerência com, um mundo "real" exterior. Existindo como coisas, os seres vivos não-humanos podem ser englobados pela pessoa de seus proprietários. Nos dois casos, evidencia-se a dificuldade dos sistemas jurídicos modernos diante de seres vivos que se apresentam, ao mesmo tempo, como não-pessoas e não-coisas, ao manifestarem formas próprias de agência.

 

NOTAS

1. O primeiro instrumento específico de proteção dos animais na legislação brasileira foi o Decreto nº 24.645/34, hoje revogado, que definia como contravenção penal os maus-tratos a animais. Embora a norma se estendesse a todas as espécies, seu foco eram os animais em situação de trabalho, assim como aqueles destinados à alimentação humana. Num segundo momento, a atenção se dirige aos animais mais distantes do convívio humano, com medidas de proteção à "fauna silvestre" (Lei nº 5.197/67). Duas décadas mais tarde, o equilíbrio ecológico do meio ambiente é elevado a princípio constitucional (Constituição Federal de 1988, art. 225). No mesmo ano, a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 7.653/88) passa a dispor sobre a proteção dos animais com base no reconhecimento da biodiversidade das espécies como um valor.

2. PL nº 121/99, apresentado pelo deputado Cunha Bueno, do PPB- Partido Progressista Brasileiro (cuja denominação foi alterada em 2003 para Partido Progressista - PP).

3. São eles: Projeto de Lei nº 136/99, do deputado Marcos Cintra (Partido Liberal- PL); PL nº 159/99, do deputado Wilson Santos (Partido do Movimento Democrático Brasileiro- PMDB); PL nº 166/99, do deputado Jacques Wagner (Partido dos Trabalhadores - PT); PL nº 171/99, do deputado Roberto Jefferson (Partido Trabalhista Brasileiro- PTB); PL nº 176/99, do deputado Nilson Mourão (PT); PL nº 184/99, do deputado Walter Pinheiro (PT); PL nº 219/99, do deputado Pedro Valadares (Partido Socialista Brasileiro- PSB); PL nº 238/99, do deputado José Carlos Vieira (Partido da Frente Liberal- PFL); PL nº 326/99, do deputado Luiz Moreira (PFL); PL nº 331/99, do deputado Robson Tuma (PFL); PL nº 629/99, do deputado Ricardo Berzoini (PT); PL nº 768/99, do deputado Fernando Zuppo (Partido Democrático Brasileiro- PDT); PL nº 790/99, do deputado Marcos de Jesus (PTB-PE); PL nº 839/99, do deputado Paulo José Gouvêa (Partido Social Trabalhista); PL nº 1.113/99, do deputado Marcos Rolim (PT); PL nº 1.141/99, do deputado Enio Bacci (PDT); e PL nº 1.290/99, do deputado Aníbal Gomes (Partido da Social Democracia Brasileira- PSDB). A íntegra de todos os projetos pode ser consultada no Diário da Câmara dos Deputados (DCD, 20/03/1999: 10.827-10.842; e DCD, 24/09/1999: 44160-44186).

4. Uma primeira versão deste trabalho - situado no escopo de um projeto de pesquisa mais abrangente, cujo horizonte é problematizar diferentes maneiras pelas quais as distinções e relações entre humanos e não-humanos são construídas pelo direito - foi apresentada na IX Reunião de Antropologia do Mercosul, em julho de 2011. Agradeço a Marilyn Cebolla, Felipe Vander Velden e Ugo Maia Andrade, coordenadores do GT La relación naturaleza y cultura en su diversidad: percepciones, clasificaciones y prácticas, pela oportunidade de debater as ideias aqui desenvolvidas. Agradeço também a (o) parecerista anônimo (a) da Revista Avá pela leitura criteriosa e recomendações.

5. Ao caracterizar sensibilidades jurídicas particulares como sistemas de representações, no entanto, a análise de Geertz encontra seu limite: o poder criativo do "saber local" não constrói uma pluralidade de mundos, mas de visões de mundo. Nesse sentido, permanece comprometida com o monismo ontológico moderno que tem sido objeto de críticas mais recentes (Latour, 1994; Viveiros de Castro, 1996, 2003; Henare et al., 2006).

6. Também a reflexão antropológica sobre as relações entre seres humanos e animais tem experimentado uma profunda renovação. Se até recentemente o interesse pelo tema se justificava sobretudo pelo reconhecimento da importância material e simbólica dos animais para as relações entre seres humanos, a emergência de novas perspectivas acerca das distinções entre natureza e cultura conduziram à consideração dos animais como participantes ativos de uma multiplicidade de relações sociais envolvendo seres humanos e não-humanos. Para um balanço de debates recentes, ver Mullin (2002).

7. Sob este aspecto, verifica-se uma única voz dissonante: propondo normas gerais sobre a posse de cães, o PL 1141 dispõe textualmente que "nenhuma raça de cão será extinta em razão de atos agressivos injustificados". Ao apresentá-lo, seu autor reproduz a norma constitucional que proíbe práticas que "provoquem a extinção de espécies ou submetam animais à crueldade" (CF 1988, art. 225). Tratando-se de uma das últimas proposições a se reunir ao conjunto, é possível assumir que tenha sido elaborada precisamente como refutação à tendência majoritária.

8. Na Inglaterra, o Dangerous Dogs Act de 1991 proíbe as raças pit bull e tosa. Na Franca, o decreto de 27/04/1999, que regulamenta o artigo 211-1 do Código Rural, enumera tipos de cães potencialmente perigosos e estabelece a erradicação progressiva de cães pitbull, boerbull e "de aparência" tosa-inu. Não são proibidos, mas passam a estar sujeitos a regulamentação estrita, os cães american staffordshire terrier, tosa e rottweiler. 

9. A noção de biopolítica (Foucault 1999; 2001) tem inspirado reflexões recentes sobre diferentes aspectos das relações entre humanos e animais, desde a problemática da extinção de espécies até a reivindicação de reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos. Carey Wolfe (2010) toma a teoria biopolítica como referência para refletir sobre o estatuto ético e político dos marcos legais contemporâneos em relação a seres não-humanos.

10. Situação que poderia ser descrita como configurando insulto ou agressão moral, nos termos de Cardoso de Oliveira (2002; 2008), com a peculiaridade de se efetivar a partir da própria aplicação da lei.

11. A esse respeito ver, por exemplo, o panorama traçado por Daniel Braga Lourenço de aproximações entre a "tirania dos animais humanos sobre os não-humanos" e regimes de escravidão arcaicos e modernos, o genocídio de populações indígenas americanas e os campos de concentração nazistas (Lourenço, 2008:285-295).

12. Os únicos casos em que se admite a existência de coisas desvinculadas de pessoas confirmam a regra, ao situarem tais coisas como res extra patrimonium, categoria que comporta três possibilidades lógicas reconhecidas pelo direito: coisas não pertencentes a ninguém e, por isso mesmo, passíveis de serem apropriadas por qualquer pessoa (res nullius); coisas que já pertenceram a alguém e foram abandonadas ou renunciadas (res derelicta); e coisas que não podem ser objeto de apropriação, entre as quais se inclui o próprio ser humano, seu corpo ou partes do corpo (res extra commercium).

13. No entanto, como observa Philippe Descola, "proteger os animais outorgando-lhes direitos ... é apenas estender a uma nova classe de seres os princípios jurídicos que regem as pessoas, sem colocar em causa de maneira fundamental a separação moderna entre natureza e sociedade" (Descola, 1998: 25). De modo similar, Yan Thomas assinala que a natureza só é instituída como sujeito pelo próprio ato dessa instituição, que é um ato humano (Thomas, 1998: 93).

14. É o caso, por exemplo, da Áustria (emenda ao artigo 285 do Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch- ABGB aprovada em 1989) e da Alemanha (emenda ao artigo 90 do Bürgerliches Gesetzbuch- BGB aprovada em 1990).

15. Para uma minuciosa discussão da responsabilidade civil do dono do animal no direito brasileiro, em perspectiva com outros sistemas jurídicos, ver Rosso (2007).

 

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