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Avá

On-line version ISSN 1851-1694

Avá  no.25 Posadas Dec. 2014

 

ARTÍCULOS

Leopoldo: o encontro feliz

 

Arno Vogel*

*Doctor en Antropología Social, Profesor Titular de Antropología en la Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. E-mail: arnovogel17@gmail.com

 


Resumo

Este é um escrito memorialístico. Move-se, pois, no plano histórico e sentimental, para recordar um dos maiores antropólogos latinoamericanos: o notável Professor Leopoldo Bartolomé. Neste sentido, trata de recordá-lo em sua estatura profundamente humana; em sua fina erudição, como estudioso; na especial capacidade demiúrgica, reiteradas vezes demonstrada, tanto no meio acadêmico, quanto no mundo social. Refere-se a Leopoldo Bartolomé tal como este se revelou e distinguiu, seja pelos seus feitos notáveis como consultor, seja pelo seu brilhante destino, que o tornou mestre inexcedível do ofício de antropólogo, além de intelectual admirado pelo seu extenso saber e pelo fascínio de sua sempre amável presença.

Palavras Chaves: Leopoldo Bartolomé; Misiones; Antropologia Argentina

Abstract

As a reminiscence of Leopoldo José Bartolomé, this text points out historical facts in his career as well as moral and sentimental features of his personality. In this sense, its main purpose is to remember him as one of the finest and most distinguished southamerican ethnologists; to recall to our minds the man in his deeply humane stature, his wide and sophisticated scholarship, and his great institutional creativity, brilliantly witnessed in academic environment and social world, wherever his advice and expertise were needed. Most of all, it will remark his outstanding craftsmanship repeatedly shown by his notable achievements as a consultant and as professor of Anthropology. But, Leopoldo Bartolomé was not only an unsurpassed master of the ethnological craft. Finally, in addition all these qualities, he had a kind of spell which made him truly special – the fascination of his ever loving presence.

Key words: Leopoldo Bartolomé; Misiones; Argentinean Anthropology.


 

Hay hombres que de su ciencia Tienen la cabeza llena Hay sabios de todas menas Pero digo sin ser muy ducho Que es mejor que el aprender mucho El aprender cosas buenas1

 

Os Caminhos do Destino

Os caminhos que me levaram ao encontro com Leopoldo José Bartolomé foram tão longos e tortuosos quanto certeiros. Comecei a estudar Etnologia Brasileira em Florianópolis, com o saudoso Professor Sílvio Coelho dos Santos, no início dos turbulentos anos mil novecentos e setenta. A disciplina fazia parte do elenco de matérias de domínio conexo do Mestrado em Linguística, que cursava, então, na Universidade Federal de Santa Catarina.

À época, não sabia que Sílvio e Leopoldo eram, mais do que colegas de profissão, amigos pessoais, que muito se estimavam. Tampouco imaginava que, em breve, viria a conhecer, por intermédio de Sílvio, o jovem e brilhante antropólogo Roberto Augusto DaMatta, ao qual devo a oportuna retificação da minha trajetória intelectual, redirecionada da Lingüística para a Antropologia, sob sua magistral orientação, no Mestrado e Doutorado PPGAS do Museu Nacional, a partir de 1976.

No Rio de Janeiro, ingressei na Universidade Federal Fluminense (UFF) passando a lecionar, primeiro no Departamento de Teoria da Arquitetura e do Urbanismo, para suprir o viés antropológico na formação de seus estudantes e, depois, no Departamento de Ciências Sociais, para integrar o Setor de Antropologia do mesmo.

Este movimento trouxe consigo, além das tarefas docentes e de pesquisa, as oportunidades de consultoria. E com elas, veio a vinculação, inicialmente esporádica, depois permanente, à Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais –FLACSO, uma instituição intergovernamental latino-americana–, da qual faziam parte, então, além do Brasil, outros dez países da América Latina: Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, República Dominicana e Suriname. E na Sede Acadêmica Brasil da FLACSO, veio culminar o passo decisivo para o meu encontro com Leopoldo Bartolomé.

Foram padrinhos determinantes desse encontro afortunado os Professores Ayrton Fausto e Benício Schmidt. Graças à sua incomum ousadia acadêmica e à sua não extraordinária habilidade político- institucional, como representantes da FLACSO e da Universidade de Brasília, respectivamente, estes dois colegas e amigos de outros tempos, tinham logrado criar, contra todas as expectativas e apostas, a primeira instituição voltada especificamente para a formação de latino-americanistas no âmbito da própria América Latina o Centro Estudos da América Latina e do Caribe (CEPPAC). Este centro, destinado a abrigar o Doutorado Conjunto FLACSO-UnB em Estudos da América Latina e do Caribe, surgia nesse contexto como a concretização de um sonho longamente acalentado por toda uma geração intelectual e universitária: o sonho da integração social, política, cultural, intelectual e científico-acadêmico da América Latina.

O Encontro Feliz

Vim a conhecer Leopoldo, portanto, no Brasil, no âmbito de uma grande Universidade, explicitamente voltada para o futuro, tal como a planejara o antropólogo Darcy Ribeiro, cujas inclinações latino-americanistas eram amplamente notórias e vinham, pois, ao encontro da missão explícita da FLACSO.

Este primeiro Programa de Doutorado que se destinava à formação de latino-americanistas tinha sido formal e solenemente inaugurado no Auditório da UnB, com as bênçãos da UNESCO, cujo responsável pela Área das Ciências Sociais, o sociólogo espanhol Luís Ramallo SJ proferiu a Aula Magna inaugural do evento.

Nela, deteve-se de forma impecavelmente professoral e erudita, nos quatro princípios cardeais que, segundo ele, deveriam reger esta novíssima iniciativa de integração da América Latina, no plano social, cultural e intelectual. Dos três primeiros, todos eles de natureza epistemológica, já não consigo mais lembrar-me. Embora, na ocasião, tivessem me parecido apropriados às circunstâncias.

O quarto princípio, entretanto, permaneceu –como havia de provar o futuro– gravado de forma indelével (em caracteres de ouro, por assim dizer) na memória de todos os presentes e incorporado, como judicioso e salutar para o ofício acadêmico, a julgar pela sua constante reiteração, nas mais diversas situações: ‘Hay que pasarla bien!’ Esta se tornou, desde logo, a divisa da nossa recém inaugurada iniciativa acadêmica, cultural e social. E política, pois, certamente, também o era! Mas de modo algum menor que as anteriormente mencionadas. Bastaria recordar, a propósito, que não se tratava, no caso, de aprofundar o conhecimento da América Latina, mas de contribuir ativamente na sua integração, tão acalentada como remédio para os males do presente e para os percalços e esperanças do futuro.

A República Latino-Americana

A primeira das instâncias efetivas de integração latino-americana, entretanto, foi ‘o apartamento dos professores visitantes estrangeiros’. Vista em retrospecto, esta foi, com certeza, a mais notável e bem sucedida iniciativa dos tempos inaugurais do Doutorado Conjunto FLACSO-UnB.

Revelou-se, com o tempo e a diversidade rotativa de seus habitantes circunstanciais, uma espécie de experimento (em miniatura) da proposta de integração latino-americana. Em tudo, neste caso, adequada ao experimento maior e englobante que era o próprio Doutorado Conjunto. Foi, desde o início, um excitante fórum de discussões e debates das teorias, das políticas sociais e culturais; apenas propostas ou já implementadas; historicamente vigentes ou a caminho da extinção.

Com ele surgiu uma instância verdadeiramente digna dos nobres e ousados propósitos do Doutorado Conjunto FLACSO-UnB, pois, graças a esta iniciativa começou a concretizar-se o clima latino-americano adequado a uma formação acadêmica de alto nível, com vistas a uma nova geração de latino-americanistas, capazes de elucidar e enfrentar a problemática já identificada, até aí, formulando novas respostas razoáveis e trazendo-lhe, a partir daí, novas soluções plausíveis e viáveis.

Neste sentido, o apartamento dos professores visitantes estrangeiros consistiu na instauração de uma espécie de ‘república dos veteranos’, onde eram acolhidos os professores-visitantes, termo ao qual se costumava adicionar o qualificativo de ‘estrangeiros’. Este vocábulo referia-se ao fato de residirem aí, temporariamente, os professores vindos de outros países da América Latina; ou de outros Estados da República Federativa do Brasil, em oposição àqueles pertencentes aos quadros da UnB.

Os ‘visitantes’ –sempre homens sem exceção– eram oriundos dos mais diversos rincões da América Latina e se revelavam, de forma mais ou menos enfática, adeptos do integracionismo latino-americano, uma espécie de credo que nos unia a todos –argentinos, brasileiros, chilenos, bolivianos, equatorianos, cubanos, peruanos, dominicanos–.  

A qualidade distintiva desse contato inicial, entretanto, só poderá ser verdadeiramente compreendida mediante uma breve apreciação etnográfica do assim chamado apartamento de professores visitante estrangeiros do Doutorado Conjunto FLACSO-UnB. Era um apartamento de quatro quartos, na Asa Norte de Brasília, a pouca distância da UnB, que se podia alcançar, comodamente, a pé.

Além das demais comodidades inerentes à moradia, esta contava com um espaço central de dimensões consideráveis, que lhe servia de sala de jantar, de televisão, de visita e, naturalmente, também de reunião. No todo parecia-se com uma espécie de república estudantil, onde os cinzeiros estavam sempre cheios e as garrafas sempre vazias.

Nesta sala, porém, mais do que a fumaça dos cigarros, charutos e cachimbos, o que ocupava o ambiente era a grande arte da conversação, que florescia de uma forma luxuriante, inteligente, instrutiva, espirituosa, por vezes passional, embora sempre amável e bem humorada. Era um colóquio sem fim entre colegas de ofício e correligionários da integração da América Latina, com seus diversos matizes e tonalidades emocionais.

Essa "república de latino-americanistas" foi, desde o início, não somente uma comissão de altos estudos e debates apaixonados, mas também, em notável medida, um lugar de encontros e desencontros de costumes, modos de ser, preferências de gosto, de sensibilidade ética e estética, em resumo, uma autêntica experiência etnológica, na qual membros de diferentes clãs, tribos, facções, com seus respectivos credos, políticos, científicos ou religiosos, gostavam de debater, infindavelmente, temas e teses da mais variada natureza, que tratavam de encarnar com o brio e o histrionismo adequados. 

Dos seus respectivos personagens, de um ponto-de-vista sócio-antropológico, seria impossível não reconhecer aí um caso óbvio de liminaridade, como o considerava Victor Turner, pois não havia, neste meio, a propriamente falar, nenhum ‘nativo’. Ao contrário, em virtude das respectivas nacionalidades, disciplinas científicas, especialidades temáticas, idiomas, sotaques e personalidades, todos eram aí de algum modo "estrangeiros".

Esta pequena sociedade, porém, não era sempre a mesma. Este fato conferia-lhe uma dose constante de dinamismo, um aspecto sempre cambiante, que resultava numa diversidade bastante enriquecedora, do ponto de vista social, cultural, intelectual, psicológico e caracterológico.

O Astrofísico Amável

Nesta "república dos visitantes estrangeiros", toda ela fruto das coincidências de destinos e circunstâncias, acadêmicas, políticas e culturais, e marcada pela liminaridade, tive o primeiro e inesquecível contato com Leopoldo Bartolomé.

Encarregado de conduzi-lo, pela primeira vez, à sala de aula do Doutorado, na UnB, fiz duas descobertas impactantes: Leopoldo era, originalmente, um astrofísico, que se convertera à Antropologia, e manejava com um desembaraço e maestria, dignos de um bruxo, um computador MacIntosh, equipamento cuja existência me era, até então, totalmente desconhecida.

Não obstante tais fatos, para mim surpreendentes e maravilhosos, e também as formidáveis quantidades de cigarros e uísque, que Leopoldo costumava consumir, ele parecia, em tudo e por tudo, um ser humano particularmente sociável. Demonstrava grande interesse pelos outros ‘nativos’ deste seu novo e curioso meio social e participava com entusiasmo das tertúlias e dos debates entre eles.

Neste âmbito, porém, nem tudo eram rosas. Não faltavam aí rusgas, divergências e rivalidades de todos os matizes. Leopoldo chegou mesmo a escrever, a propósito destas, um pequeno ensaio antropológico, muito perceptivo e espirituoso, aliás, sobre as guerras entre os flacsianos e os unibês,duas ‘tribos’ aguerridas responsáveis porverdadeiras tormentas interinstitucionais, no âmbito do recém fundado programa de pós-graduação, destinado a contribuir para a integração da América Latina.

No mais, Leopoldo era um invitado e compañero agradável e cativante. Sua vasta experiência e erudição, como pesquisador de campo, consultor de grandes projetos, cientista de múltiplas competências, e docente hábil e experimentado, tornavam-no uma ótima companhia, requerida entre os seus confrades, graças, também ao seu fino e indestrutível senso de humor, em todas as circunstâncias. Nessa "república" revelou-se, com efeito, a amabilidade em pessoa.  

Com seus modos singelos e cálidos adquiriu rapidamente fama de notável conversador. Dono de um verdadeiro tesouro de casos e histórias, cada relato de sua ampla e variada experiência profissional, vinha, indefectivelmente, acompanhado de farto anedotário, sempre muito ilustrativo, esclarecedor e divertido, cujas peças se assemelhavam às histórias de ensinamento dos mestres espirituais da tradição. Em tais ocasiões vinham à tona, além de um intelecto vivaz, suas maiores virtudes –simplicidade, generosidade e prudência–.

Esse astrofísico, que amava as pessoas, era nativo de Posadas, capital da província argentina de Misiones; e, portanto, como me disse certa vez, um local boy, pertencente a um numeroso e conhecido clã familiar dos Bistoletti, imigrantes italianos de velha cepa.

Viera ao mundo em 5 de dezembro de 1942, sob a regência de uma estrela binária e irregular, de cor azul, amarela e vermelha. Esta gigante chama-se Rastaban, que outra não é senão Beta Draconis –a Cabeça-do-Dragão–. Este corpo celeste de enorme magnitude e força, augura, nos seus ‘nativos’, certas qualidades pessoais, entre elas: habilidade verbal, grande coragem, convicções fortes e firmes, inclinação para os grandes projetos, persistência e independência, eventual indecisão em assuntos emocionais, e uma pronunciada inclinação para a ciência, a religião e a educação.

O Urso e seu Bom Combate

Tal como a sua estrela, Leopoldo era um gigante. Este fato se fazia notar, entre outras coisas, pela amplitude dos seus interesses e saberes, que compreendia, para além da astrofísica, a etnologia, a antropologia aplicada, a antropologia econômica, a antropologia urbana, e a teoria antropológica geral.

Com esta panóplia intelectual extraordinária Leopoldo acometeu suas áreas de interesse: as grandes obras públicas e seus impactos ambientais; a remoção e re-localização das populações por elas afetadas; os processos de colonização e de desenvolvimento agrícola e econômico-social; a economia doméstica e a exploração agrícola familiar, bem como o problema da tomada de decisões; a marginalidade social; as estratégias adaptativas; a organização familiar; as redes sociais; o funcionamento dos modelos dinâmicos não-lineares na antropologia, bem como a aplicação da teoria do caos nas ciências sociais; o uso de teorias antropológicas e dados etnográficos para manipular as sociedades, administrando-as mediante processos de aculturação, ‘forçada’ (ou planejada), e políticas de integração.

A ação humana, não obstante suas intenções, é sempre um pêndulo arriscado entre a paz e a guerra. Entre governos e populações, possibilidades e capacidades; interesses econômicos, financeiros e políticos divergentes, ordenamentos jurídicos polêmicos, finalmente, entre os sábios, especialistas nos mais diversos saberes e tecnologias.

Nestas contendas, porém, assumiu, quase sempre, um dos mais espinhosos, difíceis e delicados papéis inerentes à profissão do cientista social, sobretudo no caso do antropólogo –o de ‘estrangeiro profissional’–.

Em virtude da distância inevitável e tantas vezes fatal entre os propósitos das ações e seus respectivos efeitos reais, com frequência, imprevisíveis e ingovernáveis teve de desempenhar-se, não apenas como detentor dos saberes técnicos da antropologia, mas também, e sobretudo, como intérprete, mediador e negociador entre os atores de dramas sociais, em grande escala, estudando, concebendo e implementando mecanismos capazes de regeneração do tecido social esgarçado.

Em tais circunstâncias, coube-lhe encarar graves riscos, enfrentando a tentação fáustica dos governos; a presunção dos projetistas e as pressões das partes em conflito, à beira do recurso à violência aberta. Portou-se, nessas guerras, como um herói, participando de muitos combates e atuando decisivamente em prélios memoráveis.

Leopoldo foi, neste sentido, um guerreiro, e a ele bem se poderiam aplicar as palavras do grande poeta brasileiro Gonçalves Dias, quando este proclama, nos seus versos: A vida é combate que aos fracos abate, e aos bravos e fortes só pode exaltar.

É impossível enumerar, aqui, todos os prélios nos quais se distinguiu ao longo da sua épica vida, na Argentina; no Brasil; no Chile; no México; na Mongólia; nos Estados Unidos. Dentre seus feitos, convém assinalar, sobretudo, aqueles referentes às expropriações e/ou re-localizações populacionais, em grandes projetos hidroelétricos; bem como projetos de saneamento ambiental; controle de inundações; disposição de resíduos sólidos; de desenvolvimento econômico, em comunidades rurais e indígenas.

Graças a estas, transformou-se em consultor de grande prestígio internacional. Esteve a serviço da Comissão Mundial de Represas (WDC); do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); do Conselho Nacional de Meio Ambiente do Chile (CONAMA); Secretaria do Desenvolvimento Social do México (SEDESOL); do Projeto Egiin (Mongólia); da Interamerican Foundation (IAF); do Banco Mundial (WB) da Fundação Bariloche e do Clube de Roma; entre tantos outros organismos internacionais.

Não obstante a magnitude de seus interesses, preocupações e atividades profissionais, constituiu família. E, por duas vezes, teve filhos, também, o que de modo algum é um feito menor, como sabemos todos. No âmbito dessas famílias teve ainda a sorte de encontrar sucessores para ambas as suas artes prediletas. E tudo isto em sua cidade natal (Posadas) onde passou a maior parte de sua vida.

Na sua auto-identificação, Leopoldo adotava um esquema totêmico, habitualmente aplicado, também, aos seus amigos e colegas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPAS - UNaM), cada qual era agraciado por ele com um termo natural. Neste curioso sistema de nominação, ele mesmo, denominava-se el Oso e habitava uma casa de madeira, construída seguindo o modelo característico dos imigrantes europeus da região e situada num bosque sombreado, às margens do Rio Paraná.

Ele gostava de referir-se a esta moradia como La Cueva del Oso. E, como estamos nos referindo aqui a um antropólogo, é prudente atentar para a dimensão simbólica desta designação.

Os celtas consideravam o urso como símbolo da classe guerreira, pois o termo com que era designado –arto ou ahrt– estava presente no próprio nome de um soberano mítico –o Rei Arthur, condutor de uma confraria de guerreiros–. Na Sibéria e no Alaska, graças ao fato de desaparecer no inverno para retornar na primavera, o urso era associado à lua e ao ciclo vegetal regulado por ela. Estava presente, ainda, nas cerimônias de iniciação, onde representava, por vezes, o próprio ‘iniciador’.

De grande importância, em toda a ritualística do Paleolítico, os ursos encontram-se, por toda parte, na Europa. Entre os gregos antigos, representavam Ártemis, divindade feminina, lunar, caçadora e padroeira de ritos marcados pela crueldade, e que, com frequência, adotava a forma da ursa.

No simbolismo alquímico, o urso representa o nigredo, esteestado original da matéria, que preside à simbólica ctônica da morte e do renascimento. Com ela se alude ao início de tudo e, trazendo implícita a metamorfose capaz de elevar o ser à sua perfeição possível. Para os gregos, esta podia alcançar até mesmo a deificação do ser. Por esse motivo, o urso veio a ser, no simbolismo psicológico e psicanalítico, assimilado às trevas, ao invisível, à obscuridade, às dimensões humanas inferiores do instinto e do inconsciente, relacionadas com o interdito, com o tabu2.

Certamente, não por mera casualidade, Leopoldo, professor culto e criativo, encomendava insistentemente aos seus estudantes, obras de ficção científica, com propósito explícito, de levá-los, dessa maneira, ao desenvolvimento da fantasia, isto é, à imaginação etnológica.

Nessa simpática caverna, Leopoldo parecia um eremita. Na verdade, entretanto, era um solitário que amava a companhia dos seus amigos, colegas e alunos do Programa de Postgrado en Antropología Social da UNaM, os quais gostava de receber para jantares e ‘asados’ –oportunidades para conversações alegres, descontraídas, e, muitas vezes, intermináveis–. Grande como um urso selvagem, Leopoldo sabia, também, ser meigo, doce e carinhoso como um ursinho de brinquedo.

Graças ao seu notável dom de reunir pessoas, conseguiu fundar e dirigir programas de graduação e pós-graduação, hoje classificados nos níveis mais elevados de avaliação, criando, orientando e cultivando os inúmeros amigos que fez na Argentina, no Brasil, e no resto do mundo, onde seu nome foi sempre referência de capacidade profissional, como cientista, professor, consultor, conselheiro, coordenador e diretor dos mais ousados empreendimentos e nas maiores empresas.

Daí a sua justa fama de competência técnico-científica, e, em paralelo com esta, o igualmente notável renome de seu intelecto intuitivo, daquele connoisseurship, que lhe era próprio, e ao qual se juntavam as demais qualidades indispensáveis ao seu ofício, sendo a mais importante delas a disposição de se manifestar, em nome dos outros, a favor dos direitos e reformas pelas quais clamavam. Em suma: sua coragem e seu idealismo3.

Se tivéssemos de qualificar esta luta, que Leopoldo travou ao longo de toda a sua trajetória, poderíamos designá-la, sem exagero, como o ‘bom combate’. Bom é o combate que vale a pena ser travado; aquele que se fere contra a injustiça e a covardia, sem ira nem desejo de vingança. É combater pelo mero respeito à dignidade da vida, em nome dos valores mais caros. O ‘bom-combate’ segue os ditames do coração, o apelo dos sonhos e a arte da disciplina.

O Mestre da Antropologia

A Antropologia Social foi o instrumento ensinado e manejado por Leopoldo José Bartolomé, que o dominava como um verdadeiro virtuose, capaz de explorar todas as suas virtualidades intelectuais e científicas. Não que se tratasse aí de uma arte misteriosa. Era, ao contrário muito simples, recordando um dito que G. K. Chesterton pôs na boca do seu magistral detetive o Pe. Brown: "Um crime", disse ele vagarosamente, "é como qualquer outra obra de arte. Não faça uma cara tão surpreendida; crimes não são de modo algum as únicas obras de arte procedentes de uma oficina infernal. Mas cada obra de arte, divina ou diabólica, possui uma marca indispensável –quero dizer, que o cerne dela é simples, não importa quão complicado possa ser a sua realização"4.

Da mesma forma, a antropologia de Leopoldo era muito singela. Resumia-se, neste sentido, a um conjunto limitado de princípios que nos fazem recordar os Consejos del Martín Fierro inmortal, presentes no epígrafe.

Se Leopoldo tivesse pronunciado o discurso inaugural do Doutorado Conjunto FLACSO-UnB, é provável que oferecesse, ao seu público, o seguinte elenco de conselhos:

I. O social é sempre o mais difícil

II. Todo impacto sobre o meio antrópico exige uma perspectiva antropológica

III. A formação profissional pode conduzir-nos à cegueira

IV. Nunca considerar apenas um único fator

V. Nosso melhor consultor é a experiência de campo

VI. Um esquema geral de conhecimento é indispensável para dialogar com as outras ciências

VII. Não usar jargões desnecessários no diálogo com outros especialistas

VIII. Tratem de educar os demais especialistas na perspectiva antropológica

IX. Todas as ações humanas coletivas (ou quase) têm uma dimensão sócio-política

X. A Antropologia, não é uma técnica, mas a arte de explicar em que consiste o problema

XI. Coisas aparentemente óbvias podem não ser tão óbvias assim

XII. Não obstante a diversidade etnológica, existe uma Natureza Humana

XIII. É preciso ser antes de tudo um generalista

Leopoldo Bartolomé era, pois, verdadeiramente grande. Não daquela grandeza ostensiva, que se manifesta na imponência do orgulho e no brilho da vaidade. Era, antes, uma grandeza despretensiosa, quase humilde, não fosse a sedução discreta de sua simplicidade sem afetação e de sua liberalidade sem artifício, discretas, ingênuas, e, eventualmente, acompanhadas de uma pitada de bom humor e auto-ironia. Esta grandeza revelava-se ainda, e sobretudo, no seu modo de lidar com subalternos e superiores, sempre como um gentleman: sincero, sereno e, ao mesmo tempo, firme e altaneiro.

Suas faculdades diplomáticas eram correspondentemente, prodigiosas. Com elas, conseguia manejar a difícil arte do acordo, comandando grupos de estudantes e cientistas sociais, para harmonizá-los, na medida do possível, sem jamais recorrer aos vexames autoritários. Tinha, em resumo, a prudência, mãe das virtudes e requisito essencial para quem se dedica, de forma reiterada e constante, ao comando de ações arriscadas polêmicas e, portanto, mais ou menos, sujeitas a riscos. Exercia, pois, magistralmente, função de chefe, da qual Edmund Leach afirma, no seu clássico sobre os sistemas políticos birmaneses, que é uma função ritual.

Mas Leopoldo era mais do que um grande antropólogo, um professor fascinante e um chefe competente. Goethe dizia, a propósito, que o magistério não consistia apenas em tornar a dizer, ou seja, recordar, os conteúdos e a lógica dos saberes. Era preciso exemplificá-los, reencarnando-os constantemente.

Sob este aspecto, Leopoldo era um mago, isto é, um iniciado que conhece os caminhos (e os descaminhos) um especialista ritual capaz não somente de ensinar, mas também, e sobretudo de despertar. Mais que um iniciado era, igualmente, um iniciador.

O homem é, como bem sabemos, um ser que olvida. Sob este aspecto, Leopoldo transformou a Antropologia num remédio contra o esquecimento. Mas de que esquecimento se trata aqui? Do esquecimento do Outro, certamente. E também, o que é o mais difícil, do esquecimento do essencial: de si mesmo, portanto.

É, sob este ponto de vista, porém, que se manifesta nele o caráter heróico, pois, como afirma Max Scheler5, o herói é o homem das realidades. O homem de Estado, general de exército e o colonizador de cujas virtudes essenciais faz parte o domínio de si mesmo. E Leopoldo, possuía precisamente esta extraordinária virtude.

Por tudo isto e mais alguma coisa que possa ter ficado no olvido, escrevemos o que se pode ler acima, como um ato essencialmente memorial. Um modesto monumento, erguido por um amigo, para não esquecer.

Buen viaje Profesor!

O nosso derradeiro encontro aconteceu na Cueva del Oso. Éramos três amigos, naquela manhã de triste memória: Leopoldo, eu mesmo além do seu simpático e travesso boxer de pelo dourado escuro. O dia estava úmido e nublado. Sentados no sofá da sala, conversamos um pouco, como dois irmãos em véspera de adeuses.

Resolvemos um assunto burocrático pendente, relativo aos meus recém encerrados seminários no PPAS, e falamos de um novo curso, para o próximo semestre letivo. O único ser alegre naquela sala era o boxer, que não parava de nos solicitar, com latidos e saltos encabritados para o colo de Leopoldo, que o afastava sempre com carinho. Saí de lá opresso e preocupado com a fragilidade da saúde do meu fraternal amigo.

Tomadas as medidas práticas para o meu retorno ao Brasil, telefonei-lhe do hotel, com a finalidade de obter dele a licença para mais uma visita, para falar do futuro. Ele negou, delicado, mas firme na sua recusa. Mal sabia eu, então, que voltaria a vê-lo, ainda uma vez, dois dias depois, justo quando empreenderia sua maior e mais extraordinária viagem.

O rito do adeus foi, ao mesmo tempo, tristíssimo e glorioso. A manchete do El Territorio daquela manhã dizia: "Buen viaje! Profesor". Seus familiares, colegas, amigos e concidadãos reuniram-se para este desafortunado encontro. No instante fatal, porém, fizeram, com um fortíssimo aplauso, seu último e emocionado esforço de reter, no seio da comunidade missioneira, o seu amado, admirado e saudoso Herói.

Notas

1 Hernández, José  2009 (1872) Martín Fierro. Buenos Aires: Gador, pág. 260.

2 Crawford, Saffi and Sullivan, Geraldine 1998 The Power of Birthdays, Stars & Numbers. New York: Ballantine Books, pp. 576 – 577.

3 Este traço de personalidade é inerente ao ‘Olho do Dragão’, estrela sob a qual nascera. Ver, a propósito, Crawford & Sullivan (1998).

4 Chesterton G.K. 1994 "The Innocence of Father Brown". In: Father Brown Stories, London: Penguin Popular Classics, pp. 74.

5 1958 Le Saint, le Génie et le Héros. Paris et Lyon: Emmanuel Vitte Éditeur, pp. 113.

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