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Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.26 Posadas mar. 2015

 

ARTÍCULOS

A Revolução Dos Pescadores De Ponta Grossa Dos Fidalgos: Um Drama Social Às Margens Da Lagoa Feia No Rio De Janeiro

 

Carlos Abraão Moura Valpassos* y Arno Vogel**

*Antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil; pesquisador do Núcleo de Estudos Antropológicos do Norte Fluminense Luiz de Castro Faria (NEANF/UFF). E-mail: valpassos@gmail.com
**Antropólogo e professor do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Brasil. E-mail: arnovogel17@gmail.com

Fecha de recepción del original: agosto de 2015. Fecha de aceptación: noviembre de 2015.

 


Resumo

As obras sanitaristas promovidas pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento do Brasil -;DNOS-; na bacia hidrográfica da Lagoa Feia, no norte do Estado do Rio de Janeiro resultaram na perda de mais da metade da área original da Lagoa. Os aterros realizados pelos proprietários de terras limítrofes à Lagoa, associados às obras de drenagem do DNOS, resultaram em um acelerado processo de redução do espelho d'água.
Na década de 1970, os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos, povoado pesqueiro situado às margens da Lagoa Feia, resolveram impedir a continuidade das obras do DNOS e, por duas vezes, paralisaram as máquinas que empreendiam a construção de um canal submerso na Lagoa. Este artigo aborda as narrativas sobre o conflito e a articulação dos grupos sociais na configuração da arena pública na qual o conflito explicitou diferentes cosmologias.

PALAVRAS-CHAVE: Dramas Sociais; Pescadores; Sanitarismo; Lagoa Feia.

Abstract

The works promoted by the National Agency of Sanation from Brazil -;DNOS-; in Lagoa Feia, located in the Northern state of Rio de Janeiro, resulted in the loss of more than a half of the original lake area. The land fills made by the owners of border in glake lands, associated with the DNOS enterprises, led to an accelerated reduction of the water surface.
In the 70's, the fishers of a small village called Ponta Grossa dos Fidalgos, located in Lagoa Feia, decided to stop DNOS works and paralyzed machines that were building a submerged channel in the lake on twice.
This article approaches the articulation of social groups in the public arena, where the conflict made explicit the existence of different cosmologies.

KEYWORDS: Social Dramas; Fishermen; Sanitation; Lagoa Feia.


 

Introdução

O assentamento pesqueiro de Ponta Grossa dos Fidalgos está localizado a cerca de 35 km do centro do município de Campos dos Goytacazes -;a maior cidade da região Norte do Estado do Rio de Janeiro-;. Atualmente vivem em Ponta Grossa aproximadamente 2.000 pessoas. A pesca artesanal lacustre figura como a principal atividade econômica do arraial, embora seja comum encontrar também outros tipos de ocupação. Há moradores -;principalmente das gerações mais novas-; que trabalham em Campos dos Goytacazes e em outros municípios da região, atraídos pelas oportunidades da indústria petrolífera e pelas atividades portuárias. Estes tiveram pouco ou nenhum contato direto com a pesca. Além disso, como o assentamento está localizado ao norte da Baixada Campista, parte de seus habitantes trabalha no setor rural, prestando serviços nas fazendas de gado e usinas de açúcar da região. No período de proibição da atividade de captura das espécies aquáticas, alguns pescadores também optam por este tipo de ocupação, na tentativa de elevar o orçamento familiar. Já a Lagoa Feia (que margeia Ponta Grossa ao longo de 7km de sua porção norte) é considerada a maior lagoa de água doce do Brasil. Suas características serão apresentadas mais adiante.

Desde os primeiros dias de nosso trabalho de campo em Ponta Grossa dos Fidalgos no ano de 20021, ouvíamos a história de uma "revolução" ocorrida na Lagoa Feia, uma oportunidade em que os pescadores rebelaram-se contra um movimento articulado de "pessoas poderosas" que trabalhavam em um empreendimento que levaria ao dessecamento do espelho d'água lacustre. O evento, ocorrido no "tempo dos antigos", era apontado como crucial para que compreendêssemos não apenas a história do grupo social que nos propúnhamos a estudar, mas, sobretudo, para que fossemos capazes de reconhecer o vínculo especial estabelecido entre os pescadores e sua Lagoa.

O assunto surgia basicamente de duas maneiras: 1) quando comentávamos sobre as grandes dimensões da Lagoa -;que na época contava com cerca de 160 km²-;, o que levava os pescadores a dizerem algo como "Já foi muito maior! Só não secaram a Lagoa porque nós, o povo de Ponta Grossa, não deixamos!" (fazendo referência a um período em que a Lagoa chegou a contar com 370 km²); e 2) quando perguntávamos sobre duas ilhas formadas em frente ao porto da beirada e os pescadores diziam que tinham sido formadas com a terra escavada "pela draga que queria secar nossa Lagoa". Contavam que o objetivo da draga na Lagoa era a remoção do Durinho da Valeta, um "ressalto topográfico" que garantia a manutenção de um nível mínimo das águas. Se o Durinho fosse removido, a Lagoa seria drenada, o que, por sua vez, satisfaria aos fazendeiros interessados na expansão de suas propriedades. Esta era a versão que contavam os pescadores para iniciar as narrativas sobre uma "revolução" feita, e assim classificada por eles, há muitos anos.

Nesses momentos, de diferentes formas nossos interlocutores nos diziam que: "A Lagoa Feia é a indústria de Ponta Grossa! Se acabassem com a Lagoa, acabariam também com a gente de Ponta Grossa!". Com essas frases, eles buscavam nos explicar a centralidade ocupada pela Lagoa Feia em suas vidas e a importância do drama que estavam começando a nos contar. Pois nos eventos que seriam narrados, a Lagoa Feia não era apenas cenário: ela era cenário e personagem que, junto aos pescadores, lutava pela perpetuação da vida em uma narrativa que diluía as fronteiras estabelecidas, de fora, entre natureza e sociedade. Ali, a sociedade era indissociável da Lagoa, pois os pescadores não viviam simplesmente "na" ou "da" Lagoa Feia; eles viviam "com" ela, numa relação que não sabiam quando foi iniciada, mas que pretendiam desdobrar pelos tempos futuros (cf. Valpassos, 2006).

A narrativa que se iniciava visava à apresentação da cosmologia que sustentava um modo de vida. A pesca ali praticada não era representada como uma mera atividade laboral, mas sim como o pilar de um modo de ser e estar no mundo. Entender a "revolução dos pescadores", desse modo, seria uma forma de acessar suas representações sociais e, ao mesmo tempo, alguns dos conhecimentos naturalísticos que compunham a fisiocracia agreste (cf. Mello & Vogel, 2006) da Lagoa Feia.

Sobre a Etnografia de Algumas Histórias de Pescadores

Há diferentes modos de entender o que constitui uma etnografia. Durante a primeira metade do século XX, uma etnografia era sinônimo de uma "monografia", algo que pudesse dar conta da apresentação de um "todo organizado e complexo" que era então entendido como a "sociedade nativa". Essa perspectiva adotada por antropólogos do período estrutural-funcionalista rendeu trabalhos de peso, ricos em detalhes e capazes de fomentar os debates antropológicos por décadas, até o presente. Sua proficuidade, no entanto, não impediu a observação de uma deficiência notável, aquilo que Max Gluckman (1980: 66) chamou de "uso do caso pertinente e adequado para ilustrar costumes específicos".

Tal prática negligenciava as contradições operantes na vida social e, desse modo, levava a atenção dos leitores para os aspectos que diziam respeito à ordem e à continuidade das "estruturas sociais". Gluckman sugeria que os casos fossem apresentados de modo a permitir que o leitor pudesse acessar as contradições e incoerências sociais, salientando, desse modo, os conflitos presentes nos contextos analisados. Naquele ínterim, se procurava por um método capaz de expor as fissuras e tensões dos grupos observados ao longo do tempo, num movimento que não apenas incorporava uma dimensão histórica aos estudos etnográficos, mas que dava a ela um lugar de destaque.

O melhor expoente do que Gluckman até então chamava "método de casos desdobrados" foi encontrado na noção de "dramas sociais" desenvolvida por Victor Turner (1957 [1996]; 1980). Ali se apresentava a possibilidade de observar um mesmo grupo ao longo do tempo, incorporando os dados do "presente etnográfico", mas também lançando mão dos recursos possibilitados pela história oral. E como o trabalho de campo era de longa duração, era questão de tempo para que o etnógrafo tivesse em mãos dados de um certo "passado" do qual ele mesmo fora expectador.

Neste artigo entrelaçamos diferentes fontes de dados etnográficos para apresentar um caso de conflito que acreditamos ser significativo para a compreensão dos dramas sociais decorrentes, no Brasil, da implementação das políticas públicas de saneamento ao longo do século XX. Para tanto, fazemos uso das observações encontradas nas notas de campo de Luiz de Castro Faria2 sobre uma Ponta Grossa dos Fidalgos observada no final da década de 1930, ainda antes das sistemáticas obras de saneamento que levaram ao dessecamento progressivo da Lagoa Feia. As observações de Castro Faria possibilitaram o conhecimento de um ambiente que não foi vivenciado pelos autores deste trabalho, dotando de maior nitidez as narrativas nativas feitas na alvorada do século XXI sobre as transformações ocorridas na Lagoa Feia e no arraial de Ponta Grossa dos Fidalgos ao longo de décadas.

Essas notas de campo permitiam a visualização imediata de transformações ocorridas ao longo de 60 anos nas técnicas de pesca e na relação com o ambiente lacustre. Tais transformações surgiam com destaque nos discursos dos pescadores do século XXI. A passagem de um período classificado como "tempo dos antigos" para os "dias de hoje" se fazia a partir da referência a uma "revolução" feita pelos pescadores para salvar sua Lagoa. Desse modo, as narrativas sobre tal "revolução" surgiam como centrais para fazer entender aos etnógrafos as grandes questões que marcavam a pesca lacustre local e as transformações identificadas pelos pescadores na superfície lagunar ao longo do tempo.

As histórias dessa revolução eram recorrentes e apresentadas de um modo que não obedecia a uma evolução cronológica. Elas vinham para destacar e fazer entender o que se passou, não para apresentar uma descrição daquilo que ocorrera. Eram, pois, narrativas que não tinham a pretensão de apresentarem-se como descrições. Cabe ressaltar, portanto, a distinção estabelecida por Georg Lukács (1965), para quem "a narração distingue e ordena, [ao passo que] a descrição nivela todas as coisas" (Lukács, 1965:62). Desse modo, como descrições, as histórias dos pescadores representavam um mecanismo que tendia ao fracasso; como narrativas, entretanto, elas traduziam suas perspectivas enquanto atores, suas impressões mais relevantes sobre os acontecimentos, e, embora pecassem por não realizar um relato fidedigno dos mesmos, primavam por destacar aquilo que, aos olhos e ouvidos dos narradores, representava os acontecimentos mais significativos dos eventos abordados.

É preciso aqui destacar que a narrativa, modelo norteador dos relatos dos entrevistados -;e também das outras fontes que acessamos-;, é a forma privilegiada de apresentação das histórias. E são elas -;as histórias-; que, de acordo com Wilhelm Schapp, representam o homem. Desse modo, "Nós, seres humanos, estamos sempre envolvidos em histórias. Em cada história, há uma pessoa nela envolvida. A história e o estar envolvido em histórias estão tão estreitamente ligados, que talvez não seja possível separá-los nem mesmo em nossos pensamentos" (Schapp, 2007:13)

Assim, quando iniciamos a pesquisa de campo, em 20023, dispúnhamos apenas daquilo que era diretamente observado pelos etnógrafos. Menos de um ano depois, adicionamos uma perspectiva diacrônica à pesquisa a partir do acesso às notas de campo efetuadas por Luiz de Castro Faria entre 1938 e 1941 -;período anterior às grandes intervenções sanitaristas no Norte do Estado do Rio de Janeiro-;.

As histórias que diziam respeito à "revolução da Lagoa Feia" ganharam detalhes cronológicos quando encontramos fartas publicações de materiais jornalísticos sobre tais eventos em dois jornais de Campos dos Goytacazes: a Folha da Manhã e o Monitor Campista. Estes periódicos possibilitaram a visualização sequencial dos eventos que ocorreram em 1978 e 1979, quando os pescadores se reuniram para interromper as operações de uma máquina que escavava o leito da Lagoa Feia, para a construção de um canal projetado pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento. Essas informações adicionaram detalhes às narrativas que nos foram oferecidas pelos pescadores do século XXI, trazendo depoimentos de personagens já falecidos e, ao mesmo tempo, permitindo acessar a forma como a imprensa da época apresentava tais eventos.

As histórias ali narradas eram as mesmas que os pescadores da Lagoa Feia nos tinham apresentado. Elas, todavia, apareciam nas páginas amarelas dos jornais com outras vestimentas, distintas daquelas que caracterizam a história oral. Mesmo assim, tais narrativas relatam as mesmas questões: o conflito envolvendo os pescadores da Lagoa Feia e a implementação das Políticas Sanitaristas no Norte do Estado do Rio de Janeiro. Apresentam os acontecimentos a partir da perspectiva da imprensa local, que toma o partido dos pescadores da Lagoa Feia, mas não vive, pensa e interpreta os eventos da mesma forma que os atores diretamente envolvidos no drama social.

A incorporação das fontes jornalísticas se justifica por acrescentar detalhes a partir de uma narrativa pretensamente descritiva dos eventos. É claro que tais relatos são apenas uma versão sobre as histórias, tal como ocorre com qualquer relato. Utilizamos essas fontes como forma de enriquecer nossa percepção dos eventos e também nossa etnografia.

Desse modo, o texto que segue é marcado pela polifonia de suas diferentes origens. São histórias que nos contaram os pescadores da Lagoa Feia no século XXI, a imprensa de Campos dos Goytacazes da década de 1970, as notas de campo do Professor Luiz de Castro Faria feitas na primeira metade do século XX e a bibliografia sobre as políticas sanitaristas do Século XX. O que apresentamos aqui, obviamente, não é, nem pretende ser, um reflexo dos eventos que nem ao menos vivenciamos, mas dos quais apenas ouvimos falar. Trazemos ao leitor nossa interpretação daquilo que conosco foi compartilhado. E o termo "interpretação" aqui não é escolhido de modo aleatório, mas repousa na idéia inspirada por Geertz (1989) de que o processo de conhecimento daquilo que chamamos de "vida social" é algo muito mais aproximativo do que definitivo. Nesse sentido, quando empregamos a noção de drama social -;conceito de Victor Turner-;, estamos considerando também a definição proposta por Dom Raphael Bluteau, que em 1712 explicava que: "Drama, ou obra dramática, é um gênero de poesia, em que o poeta não fala, mas faz falar várias pessoas".

É, pois, a partir do entrelaçamento de diferentes fontes que abordamos o drama social que se deu na Lagoa Feia no final da década de 19704. As narrativas, mais que meros relatos sobre um tempo passado, representam um artefato fundamental para que os pescadores da Lagoa Feia recordem a história local ao mesmo tempo em que interpretam as transformações sofridas em seu arraial. O drama social da "revolução dos pescadores", nesse sentido, permite recordar o passado e ao mesmo tempo interpretar o presente, sendo evocado pelos pescadores tanto para apresentar ao estrangeiro a história local quanto para eles próprios quando se deparam com alguma questão que exige reflexão sociológica. Estamos, parafraseando Geertz (1989), diante de uma história sobre eles mesmos contata para eles mesmos, mas também para aqueles que se interessam por conhecer um pouco mais sobre os pescadores da Lagoa Feia.

A "revolução" se refere aos momentos em que os pescadores entraram com seus barcos e canoas na Lagoa Feia, em conjunto, para interromper as atividades de uma máquina que sangrava o leito lagunar em toda sua extensão, de leste a oeste, com o objetivo de construir um canal que ligaria o Rio Ururaí ao Canal das Flechas. A paralisação da draga do Departamento Nacional de Obras de Saneamento expressava diferentes modos de concepção e administração da Lagoa Feia. Mais que isso: tais eventos revelavam o confronto de diferentes formas de ser e estar no mundo; e, quando evocadas, as narrativas sobre aqueles momentos trazem à tona a disposição dos pescadores para lutar não apenas por sua Lagoa, mas por seu modo de vida.

Para transmitir ao leitor as narrativas que nos foram contadas, começaremos apresentando o contexto em que se encontravam as políticas e a ideologia do Saneamento no Brasil. A partir disso, será possível compreender contra o que se opunham os pescadores da Lagoa Feia. Iniciaremos, pois, com uma breve discussão sobre a ideologia sanitarista nacional para, em seguida, narrar os eventos onde os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos interromperam as obras do Departamento Nacional de Obras de Saneamento.

A Ideologia e a Política do Saneamento no Brasil

Durante a primeira metade do século passado, o pensamento social e a política pública no Brasil foram marcados pela ideologia do saneamento, que se impôs e consolidou progressivamente para transformar-se, durante a Era Vargas, no alicerce do que se poderia chamar de um "Estado Higienista" (Mello & Vogel, 2004). O movimento sanitarista, que impulsionou a constituição do aparato institucional da "saúde pública", teve por fundamento a tríplice aliança formada por médicos sanitaristas, engenheiros hidráulicos e o que hoje chamaríamos de formadores de opinião -;intelectuais de diversas categorias, como educadores, mestres (as) e escritores-;.

Da ação concertada desses profissionais da sociedade urbana, muitos deles funcionários públicos, resultou uma das maiores, mais extensas, mais estruturadas e persistentes políticas do Estado brasileiro voltada para a tarefa do saneamento urbano e rural do País. No início dos anos de 1940, essa política se intensificou, graças à atuação do leque de instituições executoras e à criação de um órgão centralizador de tais empreendimentos: o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS). A Baixada Campista, no Norte do Estado do Rio de Janeiro, foi uma das principais áreas de atuação deste último, que nela empreendeu, em larga escala, obras de dragagem e retificação de rios e córregos, além da abertura sistemática de canais. Tais intervenções, pela sua magnitude, exerceram um considerável impacto sobre os diversos ecossistemas da planície litorânea do Norte Fluminense, entre eles, o ecossistema da Lagoa Feia.

A maior lagoa de água doce do país foi atingida pelos efeitos diretos e indiretos das obras de engenharia sanitária. Com efeito, os trabalhos de macro-drenagem do DNOS, associados aos diques construídos pelos proprietários de terras, cujas fazendas confinavam com a Lagoa, apressaram o encolhimento do corpo d'água lacustre, que diminuiu de 370 km² para cerca de 160 km² em menos de um século, caracterizando assim uma drástica redução. As alterações decorrentes desse processo causaram mudanças também nas técnicas tradicionais da pesca artesanal, realizada no arraial de Ponta Grossa dos Fidalgos, uma vez que proporcionou a drenagem de áreas antes dedicadas à pesca (cf. Valpassos, 2006; Bidegain, 2002).

A redução e a perturbação ecológica da Lagoa Feia, por sua vez, geraram uma tensão entre fazendeiros e engenheiros sanitaristas, de um lado, e, de outro, pescadores e ambientalistas. Na ideologia sanitarista, as idéias de progresso e desenvolvimento econômico eram centrais e, naquele ínterim, a agricultura e a pecuária eram concebidas como atividades geradoras de riquezas para a nação (cf. Cunha, 2002; Góes, 1934; Iyda, 1994; Lamego, 1945; Lobato, 1959; Mello & Vogel, 2004; Valpassos, 2006).

O dessecamento das superfícies alagadiças, nesse sentido, além de promover a redução dos terrenos considerados insalubres, promovia a ampliação das áreas "úteis" para as atividades agropecuárias e, portanto, para a economia nacional. Os interesses dos proprietários rurais e dos sanitaristas, então, se conjugavam na empreitada de saneamento da região; tarefa compreendida como verdadeira cruzada de salvação da nação, que poderia a partir dali abandonar um passado de subdesenvolvimento e doença e enfim adentrar nos trilhos auspiciosos do progresso e da riqueza. Em uma retórica pomposa, Belisário Pena resumia as perspectivas da ideologia sanitarista: "Sanear o Brasil é povoá-lo, é enriquecê-lo, é moralizá-lo (Castro Faria, 2000:432).

Nesse contexto, tanto para os fazendeiros como para os arautos do Saneamento, a "natureza" era concebida como um recurso a ser aperfeiçoado pela técnica e, a partir daí, usufruído pelos homens para gerar desenvolvimento econômico e social. Tal perspectiva contrastava com as concepções de ambientalistas do Norte-Fluminense e também com a dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos que, embora não compartilhassem das mesmas referências, não entendiam a Lagoa Feia como um mero recurso a ser explorado. Para os ambientalistas locais, a Lagoa era parte ativa de um ecossistema: um componente fundamental para a manutenção do equilíbrio da flora e da fauna, bem como da bacia hídrica de parte considerável da região Norte-Fluminense. Para os pescadores o dessecamento da Lagoa também não era desejável, mesmo que ela não fosse percebida como parte de um "ecossistema", mas sim como palco e cenário, ativo por si e também por proporcionar os atores que tornavam possível o exercício de um modo de vida pautado na pesca artesanal.

Em fins da década de 1970, essas diferentes formas de perceber e conceber o espaço lacustre vieram a se manifestar sob a forma de um conflito, quando os pescadores e suas famílias tomaram a decisão de paralisar uma draga que, a serviço do DNOS, trabalhava na construção de um canal submerso, projetado para atravessar toda a Lagoa Feia. De acordo com os pescadores, esse canal levaria, fatalmente, ao rompimento do Durinho da Valeta, nome pelo qual designam um ressalto topográfico do fundo lagunar, no qual reconhecem o principal responsável pela regulação do nível das águas, e cujo desaparecimento ocasionaria, segundo eles, o inexorável dessecamento da Lagoa.

Com base no conceito de "drama social", desenvolvido por Victor Turner (cf. Turner, 1974; 1996 e 2008), este trabalho aborda a configuração e a dinâmica das relações sociais na região -;com suas cosmologias e concepções de natureza, direito e bem-estar social-;, tal como estas se revelam nos conflitos travados em torno da intervenção saneadora do DNOS no ecossistema da Lagoa Feia.

O Drama Social da Lagoa Feia

Propomos, pois, considerar as perturbações ecológicas da Lagoa Feia e os decorrentes conflitos em Ponta Grossa dos Fidalgos sob a perspectiva do drama social. Estamos abordando, portanto, um processo político no qual estão em jogo recursos materiais e simbólicos de grande importância para os grupos envolvidos, e cuja apropriação gera antagonismos inexoráveis, para os quais são almejados modos de composição na esfera pública local.

O drama ao qual nos referimos começa a delinear-se no final do século XIX, com os debates sobre a República e as políticas de Saneamento, mas seus contornos se tornam nítidos apenas na década de 1940, quando o DNOS inicia suas atividades na bacia hidrográfica da Lagoa Feia, transformando em ações aquilo que antes apenas compunha um repertório ideológico. Desse modo, com a substituição do conjunto de rios que escoava as águas da Lagoa Feia para o oceano por um vertedouro artificial, o Canal das Flechas, houve uma acentuada retração do espelho d'água lacustre, pois a conclusão do empreendimento "rebaixou o valor médio das cotas máximas dos níveis de água da lagoa em cerca de 80 cm e também o das cotas médias mínimas em torno de 90 cm" (Bidegain, 2002: 78). Isso, ao mesmo tempo em que favoreceu a expansão das propriedades dedicadas ao plantio da cana e à criação de gado, reduziu de forma drástica as potencialidades da pesca artesanal lacustre, que historicamente compartilha esse ecossistema com as atividades agrícolas e pecuaristas.

O conflito, mesmo assim, demorou a manifestar-se, mas isto veio a acontecer em fins da década de 1970, quando os pescadores foram tomados pelo pressentimento de que as obras de engenharia hidráulica levariam ao total dessecamento da Lagoa. Esse estado de espírito coletivo parece ter surgido e se consolidado a partir do momento em que os pescadores se viram diante da possibilidade do aplainamento do Durinho da Valeta. A iminência deste fato, que para o conhecimento local constituiria uma flagrante violação da ordem tradicional, e que não podia, portanto, ser ignorado, criou as condições necessárias para a ação corporativa dos pescadores.

O desencadeamento dessa ação consolida, pois, o primeiro estágio do drama social: a ruptura da norma e, com ela, o início de uma crise que, uma vez instaurada, torna impossível ignorar os interesses conflitantes entre as partes. Para compreender o significado da ameaça ao Durinho da Valeta e os motivos que nos levam a interpretá-la como ruptura do drama social -;ou seja, como o evento que impõe a necessidade de ação ao mesmo tempo em que manifesta o conflito, tirando os pescadores do estado latente de observadores e obrigando-os a tomar a posição de atores ativos-;, devemos recordar que ao longo do trabalho de campo, os pescadores se referiam à Lagoa Feia como um legado divino. Nesse sentido, o Durinho da Valeta era mencionado como "a mão de Deus" controlando o nível das águas da Lagoa e sua remoção representaria uma subversão da ordem estabelecida ("desde sempre"), pois o fluxo hídrico deixaria de ser monitorado pela providência divina para ser controlado pelo homem, através das comportas manobráveis instaladas no Canal das Flechas. Sobre este aspecto transcendente atribuído ao Durinho, explicou um pescador: "Um duro de barro da natureza que Deus nos deixou. Deus criou e ali deixou e o homem queria com ele acabar. (...) o Durinho é um lugar alto, é um lugar que é alto e a bacia aqui é baixa, mas lá vai subindo. É tipo uma escada: vai subindo. E se eles rasgassem aquilo lá, a Lagoa escoaria toda para o mar e secaria"5.

Se o nível das águas deixasse de ser controlado pela "mão de Deus" e passasse a ser monitorado pela "mão do homem", a equidade não mais estaria assegurada. Isto porque os homens que controlariam o regime das águas poderiam agir de modo a buscar a satisfação de seus interesses particulares, prejudicando, quiçá, os interesses dos pescadores. Tal preocupação se baseava no dessecamento contínuo da Lagoa presenciado pelos pescadores desde finais do século XIX até a década de 1970, período em que a superfície lacustre perdeu cerca de 210 km² de sua área.

Da perspectiva dos pescadores, a Lagoa não surge como um "recurso natural" a ser explorado para o bem-estar dos homens. Ela é um legado divino e existe em comunhão com os homens. Tal perspectiva se enquadra naquilo que Gísli Pálsson (2004) chamou de "comunalismo", onde a separação radical entre natureza e sociedade se desfaz, dando lugar a uma relação de reciprocidade entre agentes ativos. Entendemos a relação dos pescadores com sua Lagoa como um exemplo de uma "fisiocracia agreste" (Mello & Vogel, 2004), sendo esta uma categoria do pensamento econômico do século das luzes onde a ideia central é a da parceria frutífera entre o Homem e a Natureza, entre o engenho humano e a criação divina. A ênfase dessa cosmologia recai na relação e não na separação, ao mesmo tempo em que incorpora a dimensão do divino, ressaltando, mais uma vez, o componente relacional ali envolvido.

Nesse sentido, o perigo de destruição do Durinho da Valeta representa a ameaça a um conjunto de relações que sustenta um modo de vida baseado na pesca e em suas representações. A ameaça de remoção do Durinho surge como a ameaça a um modo de vida, pois o Durinho, para além de sua substância física que o caracteriza como um "ressalto de arenito", possui um valor simbólico que pode ser entendido quando um pescador explicou que "cortar o Durinho é cortar a mão de Deus!".

A ameaça ao Durinho, desse modo, constitui, para os pescadores, a deflagração do drama social. Isso não quer dizer que o drama, em si, tenha começado ali. Pois os dramas sociais são construções históricas que organizam e reorganizam tanto o passado quanto o presente, em uma espiral de narrativas que orientam e auxiliam na interpretação dos eventos. O drama, portanto, se constitui a partir de um processo e, nesse caso, o processo social em curso já estava há décadas em andamento.

O avanço da draga em direção ao Durinho foi o evento que mobilizou os pescadores e fez com que eles entendessem que aqueles acontecimentos representavam um conflito de interesses e que tudo indicava que as políticas de saneamento pretendiam intensificar a redução da superfície lacustre. Já no momento de ruptura do drama, portanto, se configura uma primeira oposição: de um lado, os pescadores que desejam a paralisação imediata das operações sanitaristas na Lagoa; de outro, os apologetas do saneamento, que veem naquelas obras um importante meio de aperfeiçoamento da natureza e um empreendimento fundamental para o progresso da nação (cf. Valpassos, 2006).

De um lado encontramos o DNOS, imbuído de sua missão saneadora e investido do poder técnico e da autoridade necessária para executá-la. Com ele se alinham os fazendeiros da região, que vêem no empreendimento sanitarista uma oportunidade muito sedutora para ampliar seus canaviais e pastagens. Estes atores encarnam o poder local instituído, são donos da riqueza e do prestígio social adquirido ao longo dos séculos, desde a ocupação colonial da Região Norte-Fluminense (sobretudo a partir do século XVII), e responsáveis pela configuração e prosperidade históricas da sociedade campista. Em face desta conjugação de forças, erguem-se os pescadores do pequeno povoado de Ponta Grossa dos Fidalgos e os ambientalistas locais.

O que se revela, a partir desse momento, são as diferentes concepções que cada um desses atores presentes na arena do conflito, tem sobre o modo adequado de apropriação do espaço que circunda a Lagoa Feia. Os engenheiros hidráulicos (e, com eles, o aparato institucional e técnico do DNOS), coerentes com os pressupostos da ideologia do saneamento, vêem a drenagem da Lagoa como a eliminação das áreas palustres e, consequentemente, como requisito para a melhoria da saúde pública na região. Juntamente com os fazendeiros, acreditavam ainda que o recuo das águas proporcionaria ao grande empreendimento agrícola e pastoril a ampliação das áreas "úteis", ou seja, mais terras para a lavoura canavieira e para a criação de gado, duas fontes tradicionais do desenvolvimento regional.

Pescadores e ambientalistas6, por seu lado, encaram os brejais como áreas de grande importância para reprodução da fauna lacustre. Os primeiros encontravam na Lagoa Feia a possibilidade de reprodução da sua principal atividade, o que, mais que uma simples fonte de renda, fazia dela a forma matriz de um modo de vida baseado nas atividades haliêuticas. Aos últimos, por sua vez, esta Lagoa se afigurava como componente importantíssimo de um ecossistema, cujo alcance estendia-se além de suas margens, e, por isso, tratavam de enfatizar sua influência sobre o clima, a fauna e a flora da região.

O clímax do processo dramático foi alcançado quando, em 25 de setembro de 1978, os pescadores rumaram para o local em que trabalhava a draga ("do DNOS"), decididos a embargar o empreendimento de construção do canal submerso. Retiraram o operador da draga de dentro da máquina e o encaminharam para terra firme. Interromperam a operação da máquina em um cortejo onde, enquanto entoavam palavras de ordem, empunhavam a Bandeira do Brasil. Agitavam o estandarte nacional e, ao longo da performance, davam destaque a ele.

Para compreender as implicações deste ato, é preciso recordar que o DNOS contava com o apoio de todo um aparato policial e jurídico, pois, afinal, constituía uma instituição diretamente vinculada ao poder público, e que, sendo ademais uma instituição federal, encarnava um Governo de matiz explicitamente autoritária. Nesse ínterim, cabe ressaltar, ainda, que o DNOS era uma autarquia do Estado Brasileiro.

Os pescadores, por sua vez, podiam contar apenas com o apoio do Centro Norte Fluminense para Conservação da Natureza (CNFCN), porta-voz do grupo aqui designado como "os ambientalistas", que reconhecia a legitimidade da posição de seus pontos de vista e posições, e que, como eles, desejavam uma solução diferente daquela proposta pelo DNOS, sendo esta corretamente negociada com base em conversações e através das vias legais.

A paralisação forçada da draga apresenta certos aspectos dos rituais de reversão de status, tal como os concebia Victor Turner, segundo o qual tais ritos tendem a acontecer nos momentos em que a comunidade inteira está ameaçada. No caso da Lagoa Feia, a ameaça estava representada na draga que, segundo os pescadores, pretendia remover o Durinho da Valeta e, assim, dessecar a Lagoa. O fim da Lagoa acarretaria o fim da atividade pesqueira, o que, consequentemente, transformaria de modo imprevisível a comunidade, que tem na pesca o ponto principal de sua existência. Se o DNOS trabalhava pelo progresso da Nação, os pescadores lutavam pela defesa do que para eles constituía a ordem natural das coisas, tal como instituída pela Providência Divina, ameaçada pela lógica politécnica, em nome do progresso.

Quando os pescadores levantaram a bandeira, um símbolo sagrado para o Brasil, evocaram a proteção do pavilhão nacional. Com esse gesto, simbolizaram seu pertencimento à nação e seu direito de lutar pela preservação da Lagoa, que garantia (e ainda garante) seu sustento e, para além deste, seu modo de vida. É preciso não esquecer, entretanto, que devido à conjuntura política vigente na época dos episódios, para os pescadores (e certamente também para os ambientalistas), a Bandeira do Brasil significava, antes de tudo, uma proteção contra a possível acusação de subversão.

Havia naquele contexto uma preocupação com possíveis represálias, o que se concretizava na preocupação com a preservação do anonimato. No conflito da draga, a questão do anonimato se coloca claramente quando os operadores da draga perguntam pelos chefes do movimento e os pescadores respondem: "aqui todos são chefes... de família". Essa resposta preserva o anonimato dos líderes e, ao mesmo tempo, invoca a indistinção igualitária dos pescadores presentes. A presença de mulheres e crianças junto aos pescadores durante a paralisação da draga, somada à ocultação do nome dos principais personagens do grupo, garante o anonimato de todos, pois deixa as identidades individuais encobertas pelo espesso véu da coletividade.

No dia seguinte à primeira paralisação da draga, as autoridades policiais foram a Ponta Grossa dos Fidalgos. Os pescadores, que temiam retaliações, passaram o dia inteiro a pescar na Lagoa, onde tinham resolvido se ocultar, temporariamente, longe das ameaças vindas da terra. Quando, finalmente, resolveram atender à intimação policial, comparecendo à delegacia, o titular da mesma lhes assegurou que seus depoimentos serviriam apenas para ajudar a encontrar soluções para a crise. Na mesma ocasião, o delegado solicitou-lhes também que elaborassem um abaixo-assinado, relatando todos os problemas ocorridos na Lagoa Feia.

Assim teve início um conjunto de ações reparatórias visando conter a expansão da crise. Um documento elaborado pelo CNFCN entregue em mãos, tanto ao delegado Fioravante, quanto ao então futuro Presidente da República, General João Baptista Figueiredo, teve um papel crucial nesse estágio do drama. Nele se expunha o problema das obras do DNOS na região, assim como os prejuízos por elas causados; além disso, continha propostas que visavam minorar o impacto dessas intervenções sobre o meio ambiente e, por extensão, sobre o arraial de Ponta Grossa dos Fidalgos.

Paralelamente às ações reparatórias, no entanto, e apesar delas, a crise continuava em processo de expansão. Neste sentido, contribuiu a erupção de um conflito entre os pescadores do Furado7 e o DNOS, por causa da construção de um dique-estrada que separou os rios Laranjeira e Quitinguta. Com a mortandade de cerca de 4 toneladas de peixe, no Lagamar, desencadeou-se outro movimento em que foi novamente empunhada a Bandeira do Brasil pelos pescadores, que exigiam a remoção do referido dique.

Em virtude do conflito no Furado e da ação movida contra os pescadores pelo procurador do DNOS, Gilson da Silva Moraes, a crise crescia ameaçando fugir a todo e qualquer controle. Em suas declarações aos jornais, o procurador enfatizava o empenho daquele órgão federal em ampliar as áreas agricultáveis, para plantar cana-de-açúcar e criar gado, principais fontes de renda da região; ao mesmo tempo, tratava de minimizar a importância da pesca artesanal, atribuindo-lhe o caráter de mera atividade de subsistência. Desse modo, acabavam por explicitar-se, com nitidez, as razões do conflito entre os pescadores e o DNOS.

Nem os pescadores, nem tampouco os ambientalistas, negavam a importância econômica da lavoura canavieira e da criação de gado; enfatizavam, no entanto, que também as comunidades pesqueiras da região tinham sua importância, pois compreendiam "cerca de 10 mil pessoas [que] viviam diretamente desta prática econômica [pesca]"8. Até os dias de hoje é comum ouvir os pescadores dizerem que "a única indústria de Ponta Grossa dos Fidalgos é a Lagoa Feia", numa tentativa de apresentação de sua especificidade social como algo que faz sentido no conjunto de categorias utilizadas pelos interlocutores vindos "de fora" e pautados pela lógica da economia de mercado.

Nesse contexto, um mecanismo reparatório mais eficiente foi desencadeado com a visita do Ministro do Interior, Rangel Reis, a Campos e a Ponta Grossa dos Fidalgos. Em sua estada na região, o Ministro tratou de apaziguar os ânimos. Prometeu a remoção do dique-estrada, entre os rios Quitinguta e Laranjeiras; a demarcação da área da Lagoa Feia; a inviolabilidade do Durinho da Valeta e a proibição do despejo de vinhoto9 das usinas, nos rios, canais e córregos da região.

Durante a sua visita a Ponta Grossa dos Fidalgos, mais uma vez as bandeiras foram agitadas. Os habitantes do arraial, com bandeirolas nas mãos, saudaram Rangel Reis. A paz parecia retornar e o Governo parecia agir em favor da preservação das riquezas naturais da nação. As promessas do Ministro pareciam ter restabelecido a confiança dos pescadores nas ações do DNOS, pois, em seguida, as obras foram retomadas, depois de terem ficado paralisadas por cerca de um mês.

Das quatro promessas feitas pelo Ministro, entretanto, somente uma foi cumprida: a remoção do dique-estrada entre os rios Laranjeiras e Quitinguta. A demarcação da área da Lagoa Feia, passados apenas três dias da promessa de Rangel Reis, foi declarada impossível no curto prazo, e por isso postergada sine die. Quanto ao despejo de vinhoto, os jornais da época anunciavam negociações com as usinas no sentido de obter delas o compromisso de deixarem de vertê-lo nos rios e canais da região. Vale assinalar que, vinte quatro anos depois, no início de nosso trabalho de campo, os pescadores ainda se queixavam dos prejuízos causados à Lagoa e à pesca pelo vinhoto. As promessas que se referiam à Lagoa Feia, portanto, nunca chegaram a se cumprir.

A garantia dada, em nome do Presidente Geisel, de que a Lagoa não viria a secar e de que o Durinho não seria violado, no entanto, não fora suficiente para restabelecer inteiramente a confiança dos pescadores, que viam as terras dos fazendeiros avançarem sobre as margens lacustres. Dessa forma, as ações regeneradoras amenizaram a crise apenas durante pouco mais de um ano.

As águas continuavam a recuar e os fazendeiros a expandir suas propriedades às custas da Lagoa, em um contexto em que nada indicava a proximidade da demarcação da área lacustre. Isso gerava a sensação de que as obras do DNOS estavam efetivamente drenando a Lagoa e, nesse contexto, os pescadores voltaram a se mobilizar. Enviaram memoriais aos ministros da Marinha e do Interior e estabeleceram um prazo de três dias para que as obras fossem interrompidas. A crise estava, pois, novamente instaurada. E, caso não fossem atendidas as exigências dos pescadores, o conflito tornaria a eclodir, pois o DNOS já havia acionado um aparato policial visando garantir a continuidade das obras.

Esgotado o prazo e contrariando as recomendações do delegado Fioravante e dos policiais militares, os pescadores partiram, pela segunda vez, em direção à draga para interromper seu funcionamento. Alguns deles entoaram o Hino Nacional, mas não foram acompanhados pelos demais. Em seguida, alguém puxou o grito "o povo, unido, jamais será vencido".

A draga foi, assim, paralisada pela segunda vez no dia 23 de outubro de 1979 e novos mecanismos reparatórios foram acionados, desta vez pela Câmara dos Vereadores. Isso resultou no encontro entre o Diretor Regional do DNOS, Acir Campos, e os membros do Legislativo municipal, para que fossem discutidos os problemas relativos aos conflitos em torno da Lagoa Feia. Nesse encontro, Acir Campos argumentou que as obras do DNOS visavam a "preservação, manutenção e recuperação da Lagoa Feia", vítima de "agentes naturais". Para o engenheiro, as grandes oscilações do volume d'água da Lagoa, nos períodos de chuva e de estiagem, assim como o seu assoreamento, provocado pelos rios Ururaí e Macabú, eram imperfeições da natureza10. As obras do DNOS para a construção do canal submerso estavam, a partir daquele momento, interrompidas. A oposição entre as representações de pescadores e sanitaristas sobre a natureza e, mais especificamente, sobre a Lagoa Feia, no entanto, continuariam a manifestar-se e a colorir os quadros de conflito em Ponta Grossa dos Fidalgos.

Considerações Finais

Na ideologia sanitarista, a técnica deveria prevalecer sobre a natureza, ou seja, há a convicção de que, por meio de procedimentos racionais, o homem é capaz de corrigir a natureza e, assim, adaptá-la às suas necessidades. O pensamento dos pescadores, por sua vez, é, justamente, oposto ao dos engenheiros hidráulicos. Para eles, a natureza foi criada por Deus e, por isso, é sagrada e não deve ser violada ou alterada. Se a natureza é de origem divina, ela é perfeita e, portanto, prescinde da mão do homem para corrigi-la. Para os ambientalistas do CNFCN, cabe aos homens a responsabilidade de preservar o "meio ambiente", não tratando, pois, a "natureza" como uma fonte de recursos inesgotáveis à disposição dos interesses humanos.

Assim, os conflitos relativos às obras de macro-drenagem do DNOS na Lagoa Feia podem ser compreendidos como uma disputa entre uma ordem imanente, representada na ideologia higienista dos Sanitaristas e também na ideologia preservacionista dos ambientalistas, e uma ordem transcendente, expressa na atividade pesqueira. Apresentam-se, desse modo, três perspectivas sobre a Lagoa Feia em um mesmo período, colocando em disputa diferentes formas de conceber, administrar e se relacionar com a superfície lacustre.

Desse modo, os sanitaristas representam a perspectiva denominada por Gísli Pálsson (2004) como "orientalismo", onde a natureza é percebida e pensada como um recurso a ser explorado; os ambientalistas apresentam a perspectiva "paternalista", na medida em que atribuem aos homens a tarefa de preservar e cuidar da natureza; enquanto os pescadores representam concepção ambiental "comunalista", onde a separação radical entre natureza e cultura/sociedade não se coloca. Como salienta Pálsson (2004:84), "tanto no orientalismo como no paternalismo ambientais, os homens são amos da natureza". Nessas concepções o que se destaca são relações de dominação; dualismos expressos nas atividades de exploração ou preservação ambientais. Enquanto isso, na concepção comunalista dos pescadores, que decidimos chamar de fisiocracia agreste, o que se destaca é a interação entre o homem, o divino e seu legado manifesto nos atores/agentes "naturais" representados pelos animais, vegetais, ventos, águas e os demais componentes disso que se acordou denominar, numa linguagem moderna exterior ao universo dos pescadores da Lagoa Feia, de ecossistema.

A "revolução" dos pescadores, enquanto drama social, expõe as distintas concepções sobre a Lagoa Feia e sobre o cosmo. São, portanto, ideologias sobre a vida, os homens e o ambiente que se antagonizam nas disputas para apropriação e utilização do espelho d`água da Lagoa Feia e também de suas margens. O drama social chega, enfim, ao estágio da reintegração com a visita de Acir Campos, quando as obras referentes à construção do canal submerso foram suspensas até a conclusão da instalação das comportas no Canal das Flechas. Mesmo após esse prazo, no entanto, não houve a retomada dos trabalhos da draga na Lagoa Feia, o que fez com que os conflitos passassem novamente a um estado de latência.

Assim, a partir do momento em que foram suspensas as obras do canal submerso, o DNOS pôde continuar a instalação das comportas no Canal das Flechas. A luta dos pescadores e ambientalistas para conter o avanço das terras dos fazendeiros voltou a situar-se apenas no plano jurídico, sem novos confrontos diretos. O encerramento do drama, todavia, não significou a simples resolução dos conflitos locais. Aqueles eventos vivenciados em fins da década de 1970 passaram a fazer parte do repertório dos pescadores como fonte para interpretação das relações e tensões sociais das margens da Lagoa Feia. Para eles, os levantes coletivos para interrupção do trabalho das obras do DNOS representaram atitudes incontornáveis para a salvação da Lagoa e de seu modo de vida: "Queriam acabar com a Lagoa, mas nós não deixamos! Se aquela draga cortasse o Durinho, ela acabaria com a Lagoa Feia e também com a gente de Ponta Grossa dos Fidalgos. Por isso, naquele momento, houve uma Revolução!".

Quadros Sinópticos dos Eventos

QUADRO SINÓPTICO I -; SETEMBRO A NOVEMBRO DE 1978


Quadro Sinótico II -; Outubro de 1979

NOTAS

1 Para maiores detalhes sobre o empreendimento etnográfico, ver Valpassos (2006) e Colaço (2015).

2 Luiz de Castro Faria (1913-2004) foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Antropologia. Participou da "Expedição à Serra do Norte", chefiada por Lévi-Strauss, em 1938. Foi responsável pela formação de gerações de antropólogos brasileiros nos âmbitos da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

3 O trabalho de campo em Ponta Grossa dos Fidalgos foi realizado por Valpassos e Colaço entre os anos de 2002 e 2006, de forma intercalada com as atividades acadêmicas. A partir de 2007, José Colaço continuou sozinho o empreendimento etnográfico, ainda intercalado com suas atividades acadêmicas, ocupando assim os períodos de recesso das atividades universitárias.

4 Uma narrativa desses eventos não-resumida como a aqui apresentada pode ser encontrada em Valpassos (2006).

5 Comunicação de Reinaldo Gonçalo (Dóba) no dia 26 de outubro de 2002.

6 Em meados da década de 1970 um grupo de jovens estudantes universitários criou uma ONG na região Norte-Fluminense com o objetivo de atuar politicamente pela preservação dos ecossistemas locais. Um desses jovens, Aristides Soffiati, tornou-se uma figura de destaque no cenário local, atuando como professor universitário e militante da preservação ambiental, ao mesmo tempo em que desenvolveu estudos sobre a eco-história da região. Mais detalhes sobre a atuação deste grupo de ambientalistas ao longo dos conflitos ocorridos na Lagoa Feia pode ser encontra em Valpassos (2006).

7 Barra do Furado, localidade situada sobre o litoral do Município, junto a um dos vertedouros da bacia hidrográfica da Lagoa Feia no Oceano.

8 Fragmento do documento elaborado pelo CNFCN, publicado no jornal Folha da Manhã do dia 12 de outubro de 1978.

9 Nota del editor: traducimos el término em portugués como ';vinaza', que consiste em um residuo industrial generado durante la destilación del alcohol, altamente corrosivo y contaminante de las fuentes de agua.

10 Podemos adicionar como "imperfeições da natureza" as zonas pantanosas situadas às margens da Lagoa, que, no pensamento higienista, apenas traziam problemas para a saúde das populações ribeirinhas, em função da proliferação de mosquitos, e de nada serviam para o "progresso da nação".

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