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Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.26 Posadas mar. 2015

 

ARTÍCULOS

A Gestão Da Saúde Nos Registros: Empreendimentos para Construir Redes

 

Mariana Medina Martinez*

*Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisadora vinculada ao Projeto "As Margens da Cidade", financiado pela FAPESP (CEPID/CEM) e CNPq (INCT) e ao Hybris: Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades (PPGAS UFSCar/PPGAS USP). Email: m.medimartinez@gmai.com.

Fecha de recepción del original: abril de 2015. Fecha de aceptación: julio de 2015.

 


RESUMO

Este artigo traz uma abordagem antropológica das redes de cuidado, que surgiram como resposta alternativa às instituições de confinamento. A gestão é feita no mundo dos registros porque ali as inscrições materiais estabilizam as padronizações e os cálculos. Nos documentos, as previsões são visualizadas, por isso seguir os rastros dos registros nos levam a compreender a dinâmica de gestão. Procuro descrever os procedimentos burocráticos de mensuração, avaliação e os cálculos na gestão da saúde, sem os quais seria impossível produzir serviços e administrar vidas dentro dos desígnios da liberdade. Para tanto, descrevo os fluxogramas, estes esquemas simplificados que permitem visualizar a extensão da rede e os parceiros potenciais. Irei descrever também os protocolos de atendimento para as gestantes usuárias de drogas. Com isso suscito mais cálculos e estratégias para solucionar os impasses que não cessam em chegar. 

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Pública; Governamentalidade; Burocracia; Documentos.

ABSTRACT

This article presents an anthropological approach to care networks, which have emerged as an alternative response to confinement institutions. The governments realized in the world of documents because the material inscriptions stabilize the standardization and the calculations. In the documents, the forecasts are seen, that's why follow the trail of the records lead us to understand the dynamics of governmentality. I describe the bureaucratic procedures of measurement, evaluation and calculations in health management, without which it would be impossible to managing lives and to produce services within the designs of freedom. Therefore, I describe the flowcharts, these simplified schemes that let you see the extent of the network and the potential partners. I will also describe the protocols for pregnant drug users. Thus raising up more calculation sand strategies to solve the impasses that do not cease to arrive.

KEY-WORDS: Public Health; Governmentality; Bureaucracy; Documents.


 

APRESENTAÇÃO

Esta pesquisa tem como ponto de partida a reflexão sobre os modos de produzir cuidados em usuários de drogas em diversos e simultâneos aparatos, cuja ideia de intersetorialidade, tão desafiadora na Saúde Pública, remete à noção de redes de cuidado. Minha proposta é investigar o modo como os documentos, tais como artefatos etnográficos, materializam a administração de casos, pessoas e objetos, e ainda corroboram para construir uma ideia de que é a própria saúde que está sendo produzida nessas amarrações.

As redes de cuidado emergiram como política de Estado no Brasil no início dos anos 1990, junto à reivindicação de um novo projeto de Saúde Pública. O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu da exigência da saúde tornar-se um assunto governamental, ela passou a ser "dever o Estado e direito de todos os cidadãos" (art. 196). Neste grande projeto nacional, concebido no período de redemocratização do país, associou-se a ideia de expansão dos serviços públicos a uma estratégia de reorganização política e de modernização do Estado. O novo projeto assistencial da saúde foi também pautado nos debates trazidos pelos movimentos da reforma psiquiátrica e trabalhadores da saúde (cf. Amarante, 1995; Paim, 1992), pois eles já traziam alguns dos enunciados fundamentais dos discursos ideológicos do SUS, como a ideia da universalidade, igualdade e equidade, os princípios basilares da Saúde Pública (cf. Neves & Massaro, 2009). Essas reivindicações por um sistema de saúde "para todos", em épocas de grande debate sobre o que seria a função do Estado, ajudaram a compor uma imagem muito difundida atualmente de que o Estado é provedor de serviços. Outras pesquisas mostram uma concepção de Estado próxima à ideia que se formou por aqui (em Botswana cf. Chabrol, 2012; no Senegal cf. Couderc, 2011).

O projeto de universalização da saúde é idealizado a partir de uma estranha equação em cuja conta haveria de equilibrar certos paradoxos: o SUS deveria ser unificado em suas diretrizes conceituais e operatórias, por isso "único", ao mesmo tempo em que precisaria ser adaptado às particulares locais. O sistema em rede traria uma nova cultura organizacional capaz de oferecer respostas técnicas para a viabilização desta nova concepção de gestão. Modelo organizacional segmentar, descentralizado, não hierarquizado e submetido ao regime de auditoria; por essas características, as redes viabilizaram a alternativa que atendia aos preceitos democráticos e humanistas1 da saúde.

Há mais de três décadas, desde a reforma psiquiátrica brasileira, as redes de cuidado para usuários de drogas são debatidas na Saúde Pública, seguindo o movimento de substituição das instituições de confinamento e a profusão de uma gestão intersetorial. Mas foi ao final dos anos 2000, com uma grande exposição midiática sobre o crack, que o problema da gestão das drogas passou a ser incorporado como assunto tanto de segurança pública como de saúde2. Neste momento, criaram-se sucessivos planos de ampliação dos aparatos de cuidado para usuários de drogas3. E aqui é marcada uma nova economia intersetorial em torno da saúde desta população.

Sem tomar de partida uma teoria sobre a rede, minha proposta é buscar algumas imagens e noções que emergiram de uma pesquisa de campo que realizei junto ao Consultório na Rua de São Bernardo do Campo4 (SP), cujo projeto político que baliza todos os serviços municipais é inspirado nos desígnios de uma saúde humanizada e universal.

Há muito na antropologia, desde Barnes (1988) que estava interessado em analisar os processos políticos transinstitucionais, rede é um instrumento analítico para pensar as conexões interpessoais. Foi Barnes quem inaugurou a ideia de que redes são boas para pensar relações instáveis, temporárias, ou um tecido de ações, mais densas em certos pontos e menos densas em outros. Embora suas recomendações sejam válidas, o autor tece uma teoria da ação focalizada nos indivíduos. Já numa rede de saúde5 (doravante em itálico) participam do campo de ação sujeitos, não-humanos e artefatos. As ações na rede engendram uma gestão do tipo intersetorial, numa associação entre aparatos tecnológicos e burocráticos de governo, relações entre pessoas e artefatos.

Em antropologia, os usos do conceito de rede mais recentes estão ligados ao que se denomina de "antropologia da modernidade", de onde tirei parte da inspiração metodológica para dar conta de descrever e analisar as naturezas distintas das matérias que compõem a rede de saúde. A esta maneira, Latour (1994, 2005) recoloca o lugar da natureza e das coisas, bem como dos humanos, não-humanos e artefatos, desfazendo a divisão recalcitrante entre sujeito e objeto. Ele reencontra nos vínculos uma solução para associações de elementos heterogêneos capazes de produzir amálgamas, ou híbridos. Resgataríamos, numa perspectiva simétrica, a historicidade dos enunciados dentro de um compósito complexo de mediadores humanos e não humanos, ambos considerados com agência real e transformando-se mutuamente. O sobreaviso de Latour, portanto, é de estender "a lista de atores e agência" (2005: 87).

Vale alertar que rede não será tomada aqui como um instrumento analítico para pensar as relações entre grupos, como há muito tem sido feito na Antropologia. Seguindo os termos formulados pelos interlocutores de pesquisa, como o fez a antropóloga Catarina Vianna (2010) sobre emaranhados de combate à pobreza, apostando na potencialidade dos conceitos deles, formularei algumas proposições acerca de um modo de gerir e cuidar de uma população que vem sendo discutido no campo da saúde e materializado na noção de rede.

De partida cabe assinalar que a rede de saúde é a denominação mobilizada no setor público para falarem de um conjunto de equipamentos que operam de forma articulada. Quando as ligações entre os canais institucionais são bem atadas a fim de realizar uma ação específica, a linha que os liga ganha materialidade, é canal de escoamento, de troca, é um fluxo, nos dizeres deles. Portanto, o que qualifica uma rede para os trabalhadores da saúde são os canais abertos e as parcerias atadas, pois assim é produzido um serviço de saúde chamado intersetorial.

A tarefa que enfrentarei neste artigo é descrever os esforços para atar as ligações das quais a rede é composta. É certo que muitas das ações não são executadas plenamente como foram planejadas, mas importa menos averiguar a boa execução do que os planejamentos das ações, porque estes últimos são os empreendimentos que figuram o cerne da lógica da gestão. Uma gestão exemplar, pensando nos termos dos trabalhadores, é aquela em que o caso já fora previsto (ou anunciado com antecedência) e para ele já foram arquitetadas maneiras de administrá-lo. Da gestão nada escapa porque os casos já foram previstos, discutidos e calculados.

Com a proposta de atendimento clínico nas ruas, a equipe do Consultório na Rua6 realiza rondas pela cidade a fim de mapear os campos, assim são chamados os territórios onde são identificadas pessoas em consumo de substâncias psicoativas ou em situação de rua, que uma vez mapeados, passam a ser monitorados pelos profissionais da saúde. As intervenções7 previstas no campo de atuação dos redutores de danos são propulsionadas pelo objetivo de trazer para junto deles ("trazer para a rede") pessoas em situação de rua, o seu público prioritário. Deste modo, a equipe enfrenta alguns desafios para efetivar uma administração da saúde de seu público atendido: a) não perder de vista os usuários já mapeados na cidade; b) buscar estratégias para convencê-los a tratar seus problemas de saúde; c) saber a arquitetura da rede para encaminhá-los ao serviço mais adequado; e d) quando, finalmente, os abordados são encaminhados para os serviços de saúde, é preciso acompanhar o movimento deles na rede.

Por esses desafios, a equipe mobiliza alguns recursos para planejar suas ações. Os materiais sobre os quais irei debruçar-me neste artigo são os documentos (fluxogramas e protocolos de atendimento) produzidos ou utilizados pela equipe do Consultório na Rua, para planejarem suas intervenções nas cenas de uso de drogas e as estratégias de acompanhamento dos usuários por eles atendidos. Assim, irei seguir a gestão da saúde no mundo dos registros para buscar uma abordagem etnográfica de um modo de gestão contemporânea. Entendo os documentos como artefatos tecnocráticos, seguindo a sugestão de autores que fizeram uma etnografia dos artefatos do conhecimento moderno (Riles, 2006; Biagioli, 2006; Reed, 2006; Vianna, 2010 y 2014). Como tais, eles são capazes de mobilizar uma rede de ideias, pessoas e tecnologias; revelam temporalidades e retóricas. Riles (2006: 7) ainda completa a potencialidade dos documentos em proporcionar a apreensão da modernidade etnograficamente.

O que os registros no campo da saúde revelam do mundo moderno? Veremos que os fluxogramas e os protocolos colocam à mostra a dimensão do cálculo na administração pública. Entretanto, o impasse das medidas (como planejar uma ação para que ela seja certeira, como visualizar a potência dos equipamentos, como fazer com que pessoas e coisas circulem de um lado ao outro) veio à tona com a particularidade dos nossos tempos em função do desafio de cuidar de pessoas em liberdade, diferente do cálculo feito em instituições fechadas8. Governar em liberdade configura a inventividade do pensamento governamental liberal, como mostraram Deleuze (1992), Castel (1981) e Rose (1999 [1989]), uma vez que é expandida a zona de autonomia de pessoas e entidades mas sempre emaranhadas em novas formas de regulação. Muito próximo ao que noto nos modos de funcionamento das redes de saúde, Miller e Rose (2008) mostram que no "governo à distância" as formas de poder são construídas sobre tal premissa. Como cuidar de pessoas em seu aspecto mais amplo, de forma articulada, sem que elas se percam na rede? Como incitar a circulação entre diversos setores de modo ordenado? Como cuidar de pessoas fora dos ambientes institucionais?

 INVESTIMENTOS PARA ATAR OS NÓS DA REDE: CÁLCULOS ESTABILIZADOS NOS FLUXOGRAMAS

Com grande frequência gestores ligados à coordenação das secretarias municipais, cujo encargo é majoritariamente administrativo, exigem dos demais trabalhadores de saúde a "abertura dos fluxos". Sobre tal tarefa recai a importância fundamental de construir pouco a pouco aparatos em rede, de modo que são pequenas e meticulosas iniciativas que entrelaçam os serviços. Foi deste modo que chegou à equipe do Consultório na Rua a ordem de "abrir os fluxos" dos usuários de drogas atendidos pelos redutores de danos. Muitos esforços são exigidos para alcançar tal propósito.

Um fluxo é um canal de escoamento por onde coisas são transportadas de um lugar a outro e relações são firmadas. Por um fluxo passam as pessoas encaminhadas, mas não apenas, também o caso dela deve ser passado de uma equipe a outra, os exames também devem circular. Com isso, os profissionais devem ficar atentos para que nada se perca nesta movimentação. Estes canais não são dotados de uma materialidade em si, apenas as trocas de muitas coisas feitas sempre na mesma direção e com um espectro mais ou menos calculável de parceiros são o que caracterizam a noção de fluxo.

Como o trabalho de interligação dos canais institucionais é artesanal, uma das formas que os trabalhadores da saúde utilizam para conectar os serviços é registrar o movimento das coisas. Tais inscrições tornam visíveis os fluxos de tal forma que um desenho da rede é estabilizado nos documentos. A representação gráfica das trocas e das parcerias ajuda a compor um plano estratégico das movimentações. Por outras palavras, são as estratégias que se tornam visíveis. Prática tão comum no mundo empresarial, essas figuras da contabilidade tornaram a economia visível e o mercado mensurável, segundo o que nos mostram Hopwood & Miller (1994). A arena dos sistemas de saúde também foram alvos de sucessivos procedimentos para torná-la uma entidade calculável, é o que discutem Kurunmaki & Miller (2008).

A rede é composta por muitos fluxos já que eles são as vias de transporte deste aparato. Para não perder de vista que caminhos são possíveis serem tomados em determinadas circunstâncias, os profissionais da rede de saúde elaboram mapas mentais das ações a fim de projetarem o movimento das coisas para conduzir os casos, porque entendem que são programações como essas que efetivam o trabalho em rede.

Na ponta da rede, em seus tentáculos, encontra-se a equipe do Consultório na Rua. Cabem a eles mapear as cenas de uso de drogas, identificar os riscos, abordar os usuários, escutar as queixas deles, calcular a melhor intervenção a ser feita, oferecer alguns serviços; caso o oferta seja aceita, encaminhá-los para o cuidado. O trabalho não acaba por ai. Depois do encaminhamento, cabe também a equipe fazer contato com os parceiros necessários para que o sujeito seja acompanhado. Vale lembrar que pessoas em situação de rua não costumam aderir ao atendimento, seja porque não possuem os documentos para efetivação dos cadastros, seja porque sofrem hostilização por estarem sujos, ou também porque desistem dos tratamentos antes da conclusão. É pensando nesses entraves que a equipe empreende muitos esforços, não apenas para trazer esse público para a rede, mas garantir que o fluxo correto do atendimento não seja interrompido por negligência profissional, ou porque o usuário foi impedido de ter acesso ao serviço por conta de uma burocracia que o desfavoreceu.

No escritório central do Consultório na Rua, uma das paredes é coberta por cartazes enormes com fluxogramas desenhados à canetões hidrográficos. O diagrama da Abordagem/Encaminhamento ocupava um espaço considerável da parede, composto muitas operações diferentes que foram dispostas graficamente de tal forma que possibilitasse os profissionais visualizarem a dinâmica daquelas duas ações, o movimento gerado por cada uma delas e, importante notar, enxergar a repercussão destas operações na rede.



Figura 1.
Fluxograma Abordagem/Encaminhamento

 Os fluxogramas são esquemas simplificados para serem estudados até que sejam memorizados pelos funcionários. É entendido que para tecer uma rede é necessário conhecer os pontos a serem entrelaçados, os serviços com os quais trabalharão em parceria. Essa compilação lhes serve como mapas mentais para direcionar as pessoas abordadas na rua para dentro da rede de acordo com a queixa pronunciada. Por exemplo, no caso de ser identificada uma queixa de tuberculose, qual seria o fluxo ideal? Ainda na rua, no momento da abordagem,o profissional deve saber que para o tratamento da tuberculose alguns parceiros da rede devem ser acionados: 1) o laboratório de análises clínicas para a realização do exame; 2) a equipe do Programa Municipal de Controle de Tuberculose; 3) os agentes de saúde das equipes do Programa Saúde da Família para acompanhar a medicação; 4) se o sujeito quiser fazer o tratamento em abrigo, é preciso ativar a parceria do Albergue Noturno; 5) para encaminhar para o Albergue a equipe deve antes fazer contato com o Centro Pop, da Secretaria de Assistência Social. Os redutores de danos devem reconstruir mentalmente esses fluxos para fazerem uma intervenção adequada. Os processos de trabalho devem ser arquitetados de um modo rápido e automatizado.

Muitas vezes acompanhando a ação destes profissionais na rua, no momento em que uma queixa era feita e a partir dela o agente de saúde deve reconstruir mentalmente aqueles fluxos para fazer uma ação correta, causava-me espanto ver como arquitetavam rapidamente os processos de trabalho, algo que para mim era uma tarefa quase impossível. Ter em mente a projeção dos movimentos através dos quais as pessoas irão deslocar-se no emaranhado é fundamental para mensurar a ação no presente e projetá-la no futuro, sem isso não haveria como fazer parceria, nem a articulação da rede seria imaginada como um objetivo a ser alçado.

Cabe dizer, ainda, que os fluxogramas, na simplificação que os configuram, são depuração dos demais processos envolvidos nas ações, de maneira que ao final de um procedimento de purificação parece restar apenas o elementar. A objetividade ganha o sentido de neutralidade, pois fogem dos diagramas dos fluxos e das práticas calculistas os interesses políticos e as intrigas, os debates e as disputas, conservando apenas a ideia de que das ações foram enxugadas as impurezas. Mas a objetividade científica, esse ideal de verdade para os modernos, é consequência de processos que Latour entende como purificação; é através da dissociação e do estabelecimento de fronteiras claras, "separando cuidadosamente a parte que pertence às coisas em si e a parte devida à economia, ao inconsciente, à linguagem ou aos símbolos" (Latour, 1994: 41). O objetivo percorrido para a plena realização da modernidade, que nunca se realizou, diz o autor, seria a obtenção da máxima purificação ontológica (a natureza dissociada por completo da cultura).

Dentro da proposta de uma clínica ambulante que se presta mais a intermediar relações do que solucionar problemas clínicos, as intervenções contribuem menos para tratar da saúde e mais para criar elos com demais serviços, por isso este profissionais são como "artesãos da rede": costuram, ligam, fazem pontes, atam os nós de um emaranhado.

Com os redutores vimos que ao pensarem suas estratégias para atender e levar os serviços de saúde em cenários de uso de drogas, estes profissionais mobilizam elementos importantes para pensar sua própria teoria da rede. Eles nos mostram que rede é arquitetura, não estrutura. Isto quer dizer que este aparato possibilita uma nova forma de organização do trabalho e não uma configuração rígida que moldure as instituições ou os postos de trabalho. Redes não estão prontas de antemão, o processo de sua construção é amplo e trabalhoso, tarefa a qual procurei seguir com os redutores.

As ações minuciosas, amplamente debatidas e planejadas pelos profissionais do Consultório na Rua colocam à mostra os modos de funcionamento e os propósitos das ações no campo da Saúde Pública. Revela-se, portanto, a lógica que impele os trabalhadores a fazerem suas intervenções: por um lado, o propósito de difundir um direito (o da saúde) e, com isso, produzir cidadania; por outro, manifesta uma lógica de gestão na qual quase tudo se governa -; pessoas, território, desejos, micróbios, documentos-;.

OS RASTROS DOS MOVIMENTOS NOS PROTOCOLOS: O CÁLCULO DAS AÇÕES EM GESTANTES

A padronização dos fluxos é outro investimento fundamental para criar estratégias de planejamento, para elaborar uma tipo de gestão ideal, a sua melhor performance no cotidiano. Assim são criados procedimentos padrões, os chamados protocolos de atendimento, para serem seguidos pelos profissionais. A formalização dos fluxos implica em estabelecer uma série de condutas padronizadas, levando-se em conta todas as estratégias para direcionar o caso de forma mais eficiente possível aos demais parceiros da rede. Esses são os fluxos compactuados pelos serviços. Nem todos os movimentos previstos são protocolados, apenas aqueles que, por conta de seu grau de complexidade ou vulnerabilidade estimado pelos gestores, tornam-se prioritários nos serviços. O fluxo das gestantes é um desses exemplos de prioridade, uma vez que a gestão delas passou a ser uma questão importante para o cenário político da Saúde Pública de São Bernardo do Campo.

A necessidade de articular diversos serviços para atender às gestantes veio a ser prioritária quando foi identificada essa demanda específica. Aqui vale um parêntese para deixar claro que são os gestores públicos quem criam a demanda das gestantes e não o contrário9. Neste caso, são os gestores quem prevêem ou avaliam a necessidade de um serviço para um público específico. Como as demandas são todas programadas e previstas, porque uma demanda só é criada depois de ser discutida previamente a necessidade de adaptar os serviços de saúde para atender os casos emergentes, os gestores vêem a necessidade de formalizar o trânsito ou o deslocamento ideal dos usuários da nova demanda, quer dizer, criam o fluxo ideal para ela.

Quando uma demanda é criada, muita atenção é voltada para encontrar uma forma de equiparar a "necessidade" de ter acesso aos serviços de saúde e a capacidade de oferecer os atendimentos, como a lei econômica básica da oferta e procura. A propósito dos empréstimos lingüísticos do campo econômico, na Inglaterra da década de 1960, economistas ocuparam cargos importantes no Ministério da Saúde. Segundo Kurunmaki e Miller, uma nova linguagem passou a ser elaborada nos sistemas de saúde em todos os Estados de bem-estar social, "tornou-se o sonho de sucessivos governos fazer uma medicina calculável" (2008: 9). Já Aldred mostra que o campo da medicina foi invadido pela lógica do mercado e do empreendedorismo, justificando inclusive novas formas de envolvimento do setor privado nos serviços públicos de saúde. No "negócio do risco", como ela entende esse campo híbrido, o risco é "normalizado como parte do planejamento organizacional, e desta perspectiva o estado parece gerenciá-lo" (Aldred, 2008: 26).

Em São Bernardo do Campo a demanda das gestantes emergiu por exigência do Ministério da Saúde para implantar estratégias de combate à mortalidade materna e infantil, organizando a chamada Rede Cegonha (Portaria Nº 1.459/2011). Trata-se da padronização de um modelo de atenção ao parto e ao nascimento. A diretriz ministerial fez surgir o fluxo das gestantes no município, compactuado por diversos serviços, discutido e estudado pelos trabalhadores até que a articulação dos equipamentos fosse tão operante que uma imagem da rede pudesse ser formulada. Para garantir a atenção obstetra e infantil no SUS, as estratégias da Rede Cegonha é concatenar o maior número de parceiros possíveis, desde a Atenção primária à Especializada. O objetivo, segundo consta na Portaria 1.459/11, é "organizar a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil para que esta garanta acesso, acolhimento e resolutividade".

A rede que se espera formar para dar conta de todos os processos exigidos no acompanhamento das gestantes é extensa, convoca grande parte dos equipamentos de saúde. Torna-se tão difusa nos territórios e cujas malhas são tão apertada que a Rede Cegonha, diferente da formulação da rede de saúde para casos gerais, funciona muito próxima às redes de cerco para pesca. A técnica do cerco consiste em lançar uma rede que, presa por bóias na superfície d'água e afixada no fundo do mar com âncoras, rodeia o cardume, formando um grande cerco. Seu princípio de funcionamento é pescar o tempo todo, capturando e mantendo vivos os peixes que entram no aparelho e não conseguem mais sair.

As malhas desta rede para gestantes são finas, por entre os fios ficam retidas muitas mulheres porque quando evadem, com elas escapam também a possibilidade de garantir o cumprimento da meta de redução dos óbitos natais, uma exigência de outras esferas de governo10. O que tais políticas esperam é controlar rigidamente as taxas de mortalidade, por isso lançam mão de técnicas como as de cercamento para alcançarem o esperado. Programas de vigilância sentinela para mulheres grávidas no continente africano, financiados pela Organização Mundial da Saúde, promovem o controle epidemiológico por meio de relatórios estatísticos minuciosos. Esse sistema de vigilância, próximo ao modo de funcionamento dos dispositivos sentinelas brasileiros, permite criar uma cartografia da infecção do vírus HIV e da sífilis em diferentes regiões dos países (Raynault, 1997; Chabrol 2012; Courdec, 2011).

Como posicionar a rede de forma que a malha seja tão fina que todas as mulheres gestantes apreendidas pelo aparato entrem no fluxo programado? Uma vez mais é a regulamentação dos fluxos que permite produzir alguns esquemas. Outra função primordial dos registros é estabelecer objetivamente que condutas abrangem cada uma das ações,como deve ser a abordagem, que exames devem ser solicitados, que documentos são produzidos em cada um dos procedimentos; todos esses modos de agir são estabilizados no protocolo. Neste registro é formalizada uma espécie de guia para a ação dos trabalhadores. Mais do que uma padronização, porque as instruções normativas podem ressoar como jurisprudência, entendo os protocolos como um mapa das ações para o cuidado, é mais instrutivo do que normativo.

Protocolar é um modo de tornar estável uma série de negociações e discussões anteriores, cujas deliberações culminam no documento. Porter (1995) nos fala que a padronização não é apenas a imposição de um sistema de regulamentação burocrática. Mais do que isso, padronizar é uma condição de interação em sociedades diversificadas que exige sentidos comuns, sem esta operação não haveria as transações comerciais, por exemplo. O que se passa é que a coordenação de atividades entre zonas amplas é possível pela padronização porque produz um sentido através do qual as atividades amplamente dispersas podem ser inteligíveis.

A regulamentação de um fluxo é um processo longo e demorado, exige muita discussão entre os parceiros, até que todos compreendam e executem de forma satisfatória o andamento do usuário na rede. Os esforços empreendidos para regulamentar o fluxo das gestantes, e com isso atar os nós da Rede Cegonha, não foram escassos. A elaboração das diretrizes propositivas desta rede específica foi feita por gestores responsáveis pelos serviços comprometidos, deste conselho participaram os coordenadores dos Hospitais, da Atenção Básica e da Atenção Especializada, a partir do qual foi elaborado o "Plano de ação regional e municipal"11. Ainda faltava ajustar com os parceiros os protocolos de atendimento a fim de que as diretrizes orientem toda e qualquer ação implicada neste programa. Para tanto, os membros do colegiado da Rede Cegonha devem fazer treinamentos em diversas instâncias da rede de saúde, como ocorreu numa das reuniões, na qual a superintendente do Hospital Municipal Universitário (HMU), também membro do colegiado, explicou as metas daquele plano. Ali também são abertos canais de comunicação entre os trabalhadores da rede de saúde para se compreender o funcionamento da Rede Cegonha no cotidiano dos serviços nela envolvidos.

Carolina, a conselheira que nos apresentava o plano de ação da Rede Cegonha, é enfática ao dizer que para uma política de atenção às gestantes seja bem executada, de modo que a rede tenha alguns nós atados, as funções dos profissionais deveriam ser bem delineadas, porque assim não aparecem brechas na rede -;como eu entendo, o aparato de cerco é bem posicionado-;. Tão justas são as malhas desta rede para gestantes que quando Carolina diz que a principal estratégia é "identificá-las e vinculá-las precocemente", o apelo que se faz, fato bastante discutido nas reuniões, é para que qualquer profissional, cada qual em suas atribuições, saiba os procedimentos esperados caso a demanda seja identificada. Ou ainda, espera-se que se saiba o mapa mental da Rede Cegonha, a fim de que se façam os encaminhamentos adequados.

Com a organização meticulosa do "plano de ação" da Rede Cegonha, cujo resultado esperado é a diminuição da mortalidade materna e infantil, criam-se estratégias para não deixar escapar de intervenções mulheres grávidas, sobretudo aquelas que apresentem muitos riscos, como é o caso das gestantes usuárias de drogas que vivem nas ruas. Para esse público, o cerco da rede deve ser ainda mais apertado, uma vez que gestantes em situação de rua não realizam quase nenhum exame pré-natal e o consumo de drogas, muitas vezes abusivo, de certo traria muitas complicações de saúde ao bebê e à mãe.

A equipe do Consultório na Rua realiza uma função considerada pelos gestores primordial no programa de combate à mortalidade infantil, uma vez que eles elaboram ações para identificar a demanda, abordar o público, ofertar cuidados, trazer essas mulheres para a rede e articular todos os parceiros para o acompanhamento da gestante. São os redutores quem lançam a rede sobre o local de arpar. Ainda que não consigam trazê-las para os serviços de saúde, onde teriam os cuidados mais adequados, a estratégia de cercá-las até que se consiga fisgá-las também é considerada boa tática para atingir o público-alvo deste "plano de ação". São os acompanhamentos semanais no local onde a gestante vive, sempre insistindo na oferta do cuidado, até o momento em que a pessoa aceite recebê-los, que eu entendo como métodos parecidos com a pesca de cerco. É assim que finalmente conseguem "fisgá-las"12.

O caso de Tatiane, gestante em situação de rua e usuária de crack, havia sido identificado pelos redutores de danos numa das visitas ao bairro Ferrazópolis, mas como ela não quis conversar naquele dia, os redutores não insistiram no contato, muito embora, após terem encontrado uma demanda de gestante no local, as visitas ao Ferrazópolis passaram a ser semanais, como uma estratégia para mantê-la sob observação. Acompanhei a equipe no dia em que os profissionais realizaram uma intervenção. Rodeávamos as ruas onde ela transitava com mais frequência, até o momento em que um dos redutores a avistou:

"Olha a grávida ali! Gritou a enfermeira. Ela e a médica ficaram inquietas no banco do veículo [do Consultório na Rua] quando avistaram a menina aproximando-se dos redutores de danos que estavam fora do carro abordando as demais pessoas numa cena de uso de crack. Será que os meninos [redutores de danos] vão conseguir falar com ela? Ela está com cara de chapada. Não vai querer falar com eles. As duas técnicas cogitavam a possibilidade de conseguirem fazer uma abordagem, que durante semanas elas vinham tentando. Os redutores voltaram pro carro. Um deles senta no banco da frente e pede pro motorista seguir: ';Ela não quer falar com a gente. Ela não quer nenhum serviço, o redutor dá o recado à equipe'. O companheiro de Tatiane, do lado de fora, gritava com ela, puxando-a pelo braço em direção ao veículo. Ele bateu na porta e pede pra parar o carro. A enfermeira e a médica saíram do carro num sobressalto. Elas conversaram com a gestante e seu companheiro. Voltaram minutos depois com Tatiane. Ela aceitou fazer os exames pré-natais. A sós com a menina, as duas técnicas, conversaram com ela e aproveitaram para colher uma amostra de sangue para os exames. Depois da consulta clínica, Tatiane saiu do carro. Todos os profissionais, inclusive eu, nos juntamos em volta dela. A médica disse que os resultados dos primeiros exames pré-natais seriam entregues na segunda-feira da próxima semana, ali mesmo, às 9h da manhã. E ainda pediu para que o companheiro se lembrasse do compromisso: a entrega dos exames". (Diário de campo 04/05/2013)

Sem exigir que as mulheres entrem nos serviços de saúde para fazerem o acompanhamento médico da gravidez, a estratégia dos redutores de danos de levar até elas uma equipe que faça, com poucas exigências burocráticas, os cuidados médicos (como a consulta clínica, a coleta para exames e a entrega dos resultados) é um desses empreendimentos para alcançar tal público. O monitoramento é bastante importante embora seja apenas o primeiro passo de uma cadeia de procedimentos que o sucedem.

Qual seria o planejamento para aproximar os parceiros e prepará-los para não deixar passar despercebida a gestante Tatiane? Que empreendimentos fariam para afinar as malhas daquela rede? De imediato, foi acordado que um dos técnicos do Consultório na Rua teria que ligar para a UBS do Ferrazópolis informando aos profissionais que foi identificada uma demanda de gestante naquele território. E os profissionais da UBS levariam o caso para a equipe do Programa Saúde da Família, no qual um agente comunitário de saúde faria o acompanhamento de Tatiane no território da gestante. O coordenador aproveitou para dizer quais seriam os próximos passos a serem feitos: a) acompanhar a gestante semanalmente (retornar ao Ferrazópolis); b) marcar reunião com gestores da UBS daquele território para discutir as possíveis ações conjuntas; c) informar à maternidade do Hospital Municipal Universitário (HMU), quando o momento do parto estiver próximo; d) informar também ao Centro de Atenção Integral a Saúde da Mulher (CAISM).

As estratégias de articulação das parcerias são tomadas por uma ambigüidade: a rede que cobre territórios inteiros tanto acolhe quanto cerca. Também aqui a imagem da rede pode ser aquela que conecta muitos pontos (como uma malha), quanto pode ser a imagem de um cerco.

Entretanto, não basta dizer que estas intervenções estão carregadas de ímpetos securitários ou quase policialescos. Foucault (2008a [1978]) nos lembra que a governamentalidade é uma arte de governar porque o seu dilema é achar a medida suficiente do exercício de poder13. A partir dos fisiocratas, no século XVII, nos fala o autor, a arte de governar encontrou seus princípios da racionalidade na economia, introduzindo no exercício político (nos governos propriamente) o princípio da administração dos indívidios, das condutas, dos bens e das riquezas. O impasse desta ciência de governo se realizou na mensuração de dosagens precisas de intervenções, porque a arte do governo é ajustar a medida exata das ações. Como o filósofo rejeita a hipótese repressiva do poder (Foucault, 1999 [1988]), porque está mais atento às estratégias das relações de força, as tecnologias de poder sobre a vida, sobre ela e seus fenômenos, é chamado por ele de biopoder, a partir de uma tecnologia calculada sobre a população, o seu objeto de intervenção política (Foucault, 2008a [1978]). Um biopoder não visa reprimir a vida, mas maximizá-la, "Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a ';população' enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de ';fazer viver'" (Foucault, 2005 [1976]: 294).

A dimensão do cálculo envolvido no planejamento das ações biopolíticas, nos fala Rose (1999 [1989]: 6), depende de inscrições no mundo material, por meio de relatórios, mapas, gráficos, números, desenhos. É através de documentos que se atam os nós, porque no papel é possível enxergar o caminho dos usuários, as possíveis parcerias, as intervenções já feitas e as possibilidades futuras. Aqui a burocracia entrelaça as malhas da rede, em outras etnografias, artefatos burocráticos podem criar outros tipos de aparatos de gestão. A malha burocrático-administrativa para refugiados no Brasil produz visibilidade para os governos estatais, por isso os documentos permitem que estes sujeitos sejam mantidos num "campo de refugiados sem cerca", como nos mostra Perin (2013).

Quando o momento do parto se aproxima, o cerco fecha ainda mais. O protocolo de atendimento seguido pelo Hospital para os casos de gestantes em situação de rua, e seguindo também as exigências previstas no protocolo da Rede Cegonha, é não liberar a paciente e o filho recém-nascido sem antes encontrar um responsável pela sua tutela. De acordo com o procedimento padronizado, a equipe da maternidade do hospital que fez o parto da paciente (HMU ou CAISM) deverá acionar a assistente social do próprio estabelecimento de saúde para averiguar se a mãe tem condições de ficar com a guarda materna de seu filho. Caso a mãe não tenha direito à guarda, é necessário acionar a Vara da Infância e o Conselho Tutelar.

O apelo às instâncias judiciárias não devem ser imediatas e recorrentes, ao menos se na rede de saúde não houver nenhuma condição de acolhimento, isto porque a retirada do filho de sua mãe é uma solução drástica e pouco humanizada,de acordo com os preceitos humanistas compactuados entre os trabalhadores da Saúde Pública. Casos complexos como estes exigiram algumas adaptações na rede de saúde de São Bernardo do Campo, de modo que foi necessário encontrar uma resolução para a demanda das gestantes usuárias de drogas em situação de rua, senão o fluxo deste público específico estaria falho e ineficiente. Para arrematar o fluxo das gestantes, de maneira que houvesse um aparato de busca e encaminhamento para a rede, diversos serviços de acompanhamento e tratamento e a porta de saída; os trabalhadores da rede de saúde adaptaram a antiga Casa de Acolhimento Transitória (para usuários de drogas em situação de rua) para receber algumas gestantes, com perspectiva de criação de uma Unidade de Acolhimento Transitório exclusiva para mulheres com seus filhos recém-nascidos14.

O cuidado humanizado às gestantes não é consensual entre todos os trabalhadores da rede, isto porque é mais comum entre assistentes sociais dos hospitais acionarem imediatamente o Ministério Público e o Conselho Tutelar para estes casos. Houve muitos esforços, protagonizado sobretudo pela equipe do Consultório na Rua, para sensibilizar as equipes da maternidade dos hospitais, para que também elas discutissem a resolução das gestantes com os demais parceiros da rede. Com isso, foi criado um espaço específico de discussão entre todos os parceiros da Rede Cegonha, em cujas reuniões mensais fossem elaborados projetos terapêuticos singulares em conjunto. Foram envolvidos profissionais do Programa Saúde da Família, HMU, CAISM, Consultório na Rua, CAPS AD e República Terapêutica; todos os parceiros possíveis para a articulação de uma rede densa na qual a gestante tenha diversos pontos de apoio.

Outros empreendimentos feitos pelo Consultório na Rua também seguiram em direção ao aprimoramento da Rede Cegonha, tal como a ampliação do acesso nas UBS, com a flexibilização dos horários de atendimento, isto quer dizer que para priorizar o atendimento às gestantes em situação de rua não era necessário exigir a documentação para abertura de cadastro, nem o agendamento para consultas, coleta de exames, realização de ultrassonografia e outras ações necessárias ao acompanhamento de pré-natal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que as diretrizes políticas enrijeçam em grande medida o processo criativo da arte da governar, esses enunciados não são como pacotes da governamentalidade, esse conjunto de medidas e manuais aplicáveis em qualquer lugar. Muito embora a governamentalidade abarque a ideia de processos múltiplos e variados de governo, e o neoliberalismo seja expressão contemporânea de uma gestão embasada em preceitos de economia política, ainda padece em muitos estudos de antropologia uma concepção uniforme e global destes processos. O potencial antropológico para o qual o termo governamentalidade aponta é desvanecido, nos dizeres de Kipnis o liberalismo é reificado à medida que deixa de ser multivalente, porque "no uso de um único termo emocional e politicamente carregado para referir-se a diversos fenômenos, a análise antropológica do liberalismo arrisca reificá-lo, obstruindo mais do que revelando" (2007: 384). Não busquei tecer teorizações acerca dos modos de governo neoliberais, mas antes, procurei mostrar num contexto etnográfico como a ideia de gestão pode ser elaborada a depender dos empreendimentos políticos (quando se escolhe uma gestão mais humanizada ou mais securitária), os técnicos (ao recorrer aos artefatos documentais, aos softwares, os saberes que irão compor o corpo de trabalhadores) e pessoais (todos os afetos e motivações pessoais envolvidos nos processos de trabalhos).

Busquei mostrar que há algum espaço para a inventividade e o reconhecimento de que tais esforços são soluções que podem servir mais como inspiração do que arquétipo. Em São Bernardo do Campo, para o problema do combate à mortalidade materna e infantil, as tentativas para solucionar um impasse da governamentalidade foram protagonizadas pela equipe do Consultório na Rua, embora inúmeras outras possibilidades poderiam ser pensadas15. Também vimos que muitos empreendimentos dos gestores e trabalhadores da saúde municipais são acionados para visualizar a expansão da rede,pois acreditam que é no processo de articulação dos parceiros que se alcança uma gestão mais próxima à ideal, ao planejamento previamente traçado, digamos assim.

A abertura dos canais institucionais é trabalho minuscioso, detalhado, artesanal, portanto. Sua confecção é realizada por meio de muitos registros. É o processo mesmo de feitura desse aparato que busquei examinar. As inscrições materiais sobre as pessoas e os territórios valem-se de tamanha importância nas gestões à medida que, como já apontou Scott (1998), são instrumentos para tornar a sociedade legível, por isso são também ferramentas de "tradução" para o Estado. É precisamente o problema de tornar perceptíveis e palpáveis informações sobre a sociedade que disparou procedimentos de simplificações (medições, padronizações, cadastramentos), tão comuns e fundamentais nos Estados contemporâneos. Hacking verificou que na primeira metade do século XIX os números representaram uma resposta política dada pelo Estado para otimizar o governo. Esse modo de governar exigiu uma "avalanche dos números impressos" (1982: 281).

Os empreendimentos todos descritos neste artigo, e tantos outros que ficaram de fora, mostram o aspecto peculiar e criativo da gestão. Todas tentativas, algumas fracassadas, outras bem sucedidas de não deixar que, por um lapso, algo escape. Por isso os empreendimentos são matérias fecundas para uma abordagem antropológica, porque neles concentram-se toda a força criadora de um projeto de gestão. Em reuniões, na produção dos documentos e nas ferramentas administrativas, acompanhamos de perto o modo como se buscam alternativas locais, até circunstanciais, para administrar com antecipação e em detalhes tudo que envolve a produção da saúde de uma população.

Sem os documentos, uma gestão com doses equilibradas de liberdade e de controle seria inviável. Eles são a materialização da governamentalidade, mas, sobretudo são artefatos dos governos, instrumentos de cálculos, ferramentas de visibilidade. Nesses registros estão implicados inúmeros empreendimentos para tornar a gestão palpável, para enxergar e seguir pessoas, objetos, ideias. Também os seus vestígios são perseguidos, acompanha-se o movimento dos atendidos e dos profissionais, dos bens materiais, do dinheiro. Um monitoramento que se pretende draconiano, se os planos fossem realizados em completude. Para os fins de uma análise antropológica da governamentalidade pouco importa os êxitos, porque calcular os índices de funcionalidade é tarefa gloriosa aos interessados em gestão. Mais, fundamental a nós antropólogas e antropólogos é atentar-se para os esforços que visam solucionar problemas que não cessam de chegar por todos os lados. Para governar é preciso lidar a todo momento com impasses.

NOTAS

1O humanismo que menciono faz referência ao processo de reelaboração das políticas públicas baseadas nos direitos humanos, no período de redemocratização do sistema político brasileiro. Os setores sociais foram profundamente modificados com a assunção desta exigência. Na Saúde Pública, uma política transversal é também reivindicada por atores ligados aos movimentos da antipsiquiatria, chamada de humanização da saúde, instituída legalmente em 2004 como uma política nacional (SUS/PNH 2004).

2 Uma boa descrição etnográfica desta ambigüidade na dinâmica estatal na Cracolândia paulista é feita por Taniele Rui (2012a, 2012b). Indissociáveis umas das outras, sem com tudo funcionarem de maneira harmoniosa, as atuações estatais são contraditórias: "o Estado que fere é o mesmo que socorre" (2012b: 343).

3Três medidas governamentais marcam a reorganização do setor de saúde para os assuntos de drogas. Em 2009 foi lançado o Plano Emergencial de Ampliação ao Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e Outras Drogas. Em 2010 viria o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack, e, em 2011, o Programa Crack, é possível vencer.

4 A pesquisa de campo para o âmbito do doutorado foi realizada junto ao Consultório na Rua, ao Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD), também fizeram parte da investigação seguir o movimento das pessoas e dos documentos pela rede de saúde. Para tanto, participei das reuniões intersetoriais, acompanhei os apoiadores, investiguei os documentos que produzem as parcerias e os softwares utilizados para enxergar as matérias das quais a rede é composta.

5Optei por diferenciar a elaboração conceitual feita pelos trabalhadores da saúde para reforçar a abordagem antropológica que pretendo desenvolver, ou ainda, para seguir uma teoria nativa da rede.

6A equipe tem o caráter multidisciplinar. Ela é composta por três técnicos, quatro agentes redutores de danos, um médico, um enfermeiro, um técnico em enfermagem, um psicólogo, um assistente social e um motorista.

7A atuação dos profissionais nas cenas de uso de droga ou sobre qualquer sujeito é chamada de intervenção. Toda ação dos profissionais nas pessoas abordadas e nos espaços que frequentam, nunca são neutras, mas, antes, são interposições, cujos efeitos interferirão sobre a vida do sujeito, são intervenções. Deste modo, as ações produzem novas situações e condições, outros modos de ser. Por isso, as ações são calculadas, debatidas e combinadas previamente pela equipe.

8Goffman (1987 [1966]) chamou de instituições totais os lugares fechados e apartados da comunidade, como as prisões e os hospitais psiquiátricos. Toda instituição, para ele, tem uma tendência ao fechamento, cujos "aspectos impermeáveis do estabelecimento" suprimem as distinções sociais dos internados.

9 A linguagem mobilizada para alegar a criação das demandas é o idioma dos direitos. "Conceder direitos" é a expressão usada para justificar a cobertura de serviços a um público o qual as instituições não alcançavam anteriormente e que, a partir da demanda criada, passarão a atingir.

10Em setembro de 2010, o Secretário Geral das Nações Unidas, lançou a Estratégia Mundial para a Saúde da Mulher e da Criança, com foco na redução da mortalidade materna e infantil. Esta estratégia foi pactuada pelo Brasil em maio de 2011, juntamente diversos países. Sobre as diretrizes internacionais e os elementos constitutivos das redes de atenção à saúde no Brasil, em especial a Rede Cegonha (ver Giovanni, 2013).

11Este documento registra a adesão do município à Rede Cegonha, por esta razão ela firma um compromisso com o Ministério da Saúde. Nele deve conter as informações do grupo condutor municipal, a descrição do plano de ação, as metas quantitativas e a programação física e financeira. Disponível em: http://aplicacao.saude.gov.br/sisredes/

12A metáfora da isca aparece em outros aparatos de assistência. Missionários batistas que atuam num programa de evangelização no centro de São Paulo dizem que o atendimento por eles oferecido é a "isca" para apresentar aos consumidores de drogas um novo projeto de dia (Fromm, 2014).

13Sobre essa premissa, Foucault (2008b [1979]) sinaliza que o princípio da autolimitação do governo, problema da razão governamental moderna do século XVIII, foi buscado no mercado, lócus também da verdade: "na medida em que, através da troca, o mercado permite ligar a produção, a necessidade, a oferta, a demanda, o valor, o preço, etc., ele constitui nesse sentido um lugar de verificação, quero dizer, um lugar de verificabilidade/falsificabilidade para a prática governamental" (2008b: 45).

14Até o final de 2014 ainda não havia sido finalizado o projeto, embora muitas discussões já vinham sendo feita para a criação de uma unidade exclusiva para este público.

15O Consultório de Rua de São Bernardo do Campo recebeu o prêmio pelo projeto de "atenção às gestantes de alta vulnerabilidade" no município, na X Mostra de Experiências Exitosas dos Municípios, realizada em Marília durante o XXVI Congresso de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo.

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