SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número27Las teorías materialistas y la antropología de la religiónDimensão e fluxo material das plantas em um terreiro de umbanda índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.27 Posadas dic. 2015

 

DOSSIER

O curioso caso de padre Eustáquio: catolicismo, curas e fluxos de materiais

 

Juliano Florczak Almeida

Doutorando em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Correio eletrônico: juliano-florczak@hotmail.com

Fecha de recepción del original: enero de 2016.
Fecha de aprobación:
julio de 2016.


RESUMO

Este trabalho investiga a ação dos não humanos nas práticas de cura do padre Eustáquio (1890-1943). Milhares de pessoas buscavam a bênção do sacerdote, sua água benta e o bentinho que distribuía. A análise das biografias de Eustáquio e da farta documentação que os livros reproduzem, especialmente recortes de jornais e testemunhos de cura, permite pelo menos duas reflexões. A primeira diz respeito à persistente narrativa da romanização. As práticas de cura de Eustáquio parecem salientar que a vinda de sacerdotes estrangeiros na virada do século XIX ao século XX não necessariamente produziu uma crise do catolicismo popular, mas promoveu circulações de sensibilidades acerca do mundo. Isso remete à segunda reflexão, que se refere aos materiais em fluxo. Os materiais agenciados pelo padre em suas práticas de curas não são somente objetos com agência. São antes reuniões de divindades, da personalidade do sacerdote, enfim, de todo um mundo em fluxo.

PALABRAS CLAVE: Flujos de materiales; Catolicismo; Prácticas de sanación; Padre Eustáquio (1890-1943).

ABSTRACT

The action of non-humans in Father Eustáquio's practices of healing are analyzed on this study. Eustáquio (1890-1943) was a Dutch priest who was known by his miracles which were performed in Poá (SP). Thousands of people have looked for the priest's bless, his blessed water and his "bentinho". The reflection was based on an analysis of Eustáquio's biographies and documents which are reproduced by the books, especially press clipping from newspapers and testimonials about healing. This analysis suggests at least two notes. On the one hand, Eustáquio's practices seemed to indicate that the priest's arrival from abroad (which happened in the late nineteenth and early twentieth century) did not necessarily cause a crisis on popular Catholicism. On the other hand, the non-humans in which Eustáquio's practices of healing acted were not only objects with agency. This nonhumans were things that met deities, the priest's personality and others flows of materials.

KEYWORDS: Flows of materials; Catholicism; Practices of healing; Father Eustáquio (1890-1943).


INTRODUÇÃO

É sabido que os estudos em antropologia da religião são tão antigos quanto a própria disciplina. E já nos primeiros textos dessa área da antropologia, materiais religiosos eram objeto de reflexão. O animismo de Edward B. Tylor, um dos evolucionistas considerados precursores da antropologia, implica em uma teoria da religião atenta aos animais, às árvores, às pedras e a outros seres e objetos (Cf. Barnard, 2000: 36; Barth et al., 2015: 8). Algo similar pode ser dito da magia simpática descrita pelo também evolucionista James Frazer (1982).

Materiais como esses também aparecem em trabalhos posteriores que marcaram a antropologia da religião. Em "As formas elementares da vida religiosa", clássico que há pouco completou seu centenário, Emile Durkheim (2000) tornou célebre os churinga dos aborígenes australianos. As noções de mana e hau propostas nos famosos ensaios de Marcel Mauss (2003), autor que deu sequência às análises de seu tio e, por vezes, foi além, permitiram avanços no entendimento das práticas religiosas e da presença de objetos nessas práticas. Em outra tradição antropológica, Victor Turner (2005) também apresenta preocupação em descrever os materiais envolvidos em rituais.

Desde então, cada vez mais pesquisas em antropologia da religião têm contribuído para o desenvolvimento das reflexões sobre objetos ou materiais. Recentemente, a revista Religiao e Sociedade, importante periódico das ciências sociais da religião, publicou um dossiê incluindo artigos sobre materialidades do sagrado (Menezes e Rabelo, 2015). Esse movimento é bastante compreensível. Um campo de pesquisas como a antropologia da religião, povoado por uma série de coisas sobrenaturais e perpassado pelas mais diversas potências, dificilmente ficaria ileso à chamada virada ontológica (Henare, Holbraad e Wastell, 2007).

Esses trabalhos que versam sobre a interface entre religiosidades e materiais almejam estabelecer uma perspectiva dos materiais. Uma perspectiva dos materiais não pode ser somente uma antropologia que segue objetos, coisas, enfim, não humanos2. Trata-se de uma outra mirada para alguma temática. Uma mirada que não coloca a priori os humanos em posição de destaque, seja entendendo-os como aqueles que devemos compreender, seja tomando-os como interpretes em cujas mentes o mundo antropológico realmente acontece. Uma perspectiva dos materiais coloca todas as coisas do mundo em uma posição inicial simétrica3 para, no tempo dois, descobrir como cada coisa contribui para transformar o mundo.

Voltar-se, então, novamente aos humanos, especialmente a seus corpos, talvez traga algum insight interessante para essa abordagem. Apostando nesse caminho, este trabalho aborda as práticas de cura de padre Eustáquio (1890-1943), sacerdote holandês que ficou conhecido pelos milagres que realizou em Poá (São Paulo). Para tirar proveito da crítica ao antropocentrismo, é preciso ter em conta, contudo, os não humanos agenciados pelo padre Eustáquio, como sua água benta e do bentinho que distribuía.

Este artigo, portanto, busca salientar como as ações desses não humanos fazem crescer4 o próprio padre Eustáquio (a congregação à qual fazia parte e, como tentarei mostrar, São José e assim por diante), e vice-e-versa, dado a participação da personalidade do religioso nas coisas. Por outro lado, a reação dos agentes da igreja católica às práticas de cura do padre podem dar pistas para entender o processo de romanização que, em larga medida, foi o responsável pela vinda de Eustáquio ao Brasil.

Para tanto, baseio-me nas biografias escritas sobre o padre (Andrade, 20045; Hulselmans, 1944), principalmente na mais antiga e completa, que reproduz matérias de jornais, correspondência do sacerdote e testemunhos de cura. Ao escrever com base nessas biografias, sou atravessado por dois movimentos. Por um lado, isso contribui para que me aproxime do modus operandi dos agentes da hierarquia católica6, pois são textos escritos por um sacerdote da mesma congregação que Eustáquio –Venâncio Hulselmans– e por um professor universitário –José Vicente Andrade– que fora religioso e abandonou a batina, mas não se afastou da igreja, tornando-se o biógrafo oficial de Eustáquio para fins de sua canonização (Peixoto, 2006: 129-130). Por outro lado, essa proximidade impõe certos dilemas e requer alguma reflexividade, o que, no entanto, não difere de outras situações de pesquisa. Iniciamos essas investigações seguindo essas águas que o padre Eustáquio povoou e que o fizeram famoso.

UM BENZEDOR DE ÁGUA?

Em seu livro sobre padre Eustáquio, Venâncio Hulselmans (1944) apresenta a descoberta das potências de sua água benta por meio de uma descrição dos pensamentos que o padre teria à época. Estava-se em meados da década de 30. Padre Eustáquio, que havia chegado ao Brasil em 1925, como um dos três primeiros sacerdotes da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e Maria a atuarem na América Latina, era pároco em Poá (SP).

Hulselmans conta que o espiritismo7 progressivamente se fortalecia no município. E o pároco não conseguia ignorar o crescimento dessa – para usar o termo do próprio biógrafo– "heresia". Segundo a narrativa de Hulselmans (1944: 74-78), Eustáquio percebia que "...as águas exerciam no povo forte poder sugestivo. Era preciso fazer alguma coisa!! Mas o que???... Ah, se pudesse substituir as águas espíritas por simples água-benta da Igreja!...".

Essa intenção de contrabalançar o sucesso das águas espíritas conjugouse com uma viagem que o padre havia feito à Europa, na qual passou pelo Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, de quem era devoto desde sua infância. Dessa viagem trouxe "...um garrafao como o líquido precioso tao almejado: a verdadeira água-de-Lourdes.". Padre Eustáquio tomou essa água e a multiplicou, isto é, misturou com água comum, "...tendo o cuidado de que a percentagem da última nao excedesse a da primeira. Multiplicando essa operaçao, conseguiu um tanque cheio com água, dita de Lourdes." (Hulselmans, 1944: 76-77).

Há, neste ponto, algumas questões boas para se pensar. Primeiro, é interessante perceber que o autor qualifica a água vinda de Lourdes, singularizando-a: "a verdadeira água-de-Lourdes". Isso se deve ao fato de a Virgem de Lourdes participar dessa água, tornando-a potente, inclusive milagrosa. Não é preciso dizer que essa água é antes uma coisa no sentido que Tim Ingold (2012) dá ao termo do que um simples objeto. Segundo, o procedimento utilizado para multiplicar a água deve ser visto como um meio de reproduzir sem perder a aura, para citar o famoso artigo de Walter Benjamin (1975). De fato, a água distribuída pelo padre não foi distinguida, em termos de potências, da água vinda do garrafão8.

Não apenas padre Eustáquio multiplicou a água como tentou difundir suas propriedades curativas: "Avisou ao povo da força [sic] milagrosa daquela água, aconselhando seu uso frequente [sic], tanto no interior como no exterior" (Hulselmans, 1944: 77). Cabe destacar que o autor da biografia utiliza o verbo avisar para se referir ao processo educativo relacionado à água. Isso remete à noção de educação da atenção de Ingold (2010), pois mais do que tradição de representações sobre a água, o padre estava orientando os seus paroquianos a atentarem para as forças do líquido, suas capacidades de ação.

Essas capacidades, contudo, não eram superiores às das águas espíritas: "Na boca do povo as águas espíritas eram melhores, e poucos foram os visitantes a gruta". Hulselmans comenta que os fieis buscavam a água, mas sem tanto entusiasmo. Dois anos se passaram e padre Eustáquio suspeitou da "autenticidade da água", como escreve o biógrafo, referindo-se à multiplicação, e decretou que a água-de- Lourdes havia acabado. No entanto, disse para seus paroquianos que poderiam continuar buscando água, pois o próprio padre Eustáquio a benzeria.

Para surpresa do padre, a água benta foi mais procurada: "Para grande espanto seu, essa água operou o que a outra nunca conseguira. Trouxe-lhe uma verdadeira romaria, e nao só em Poá, mas em toda redondeza, a fama da água corria como miraculosíssima" (Hulselmans, 1944: 77). Não raro, o sacerdote teve que pedir ajuda dos bombeiros para encher os tanques, dado o consumo do líquido.

Junto com a fama da água, crescia o renome do padre. Não demorou a se formarem filas de pessoas pedindo bênçãos particulares para o religioso. "Mas estas bençaos particulares... mais poderosas eram do que a água já famosa" assevera Hulselmans.

Muitos queriam alguma lembrança dessa bênção particular. "Pensou [Eustáquio] durante vários dias, e achou uma soluçao tipicamente Eustaquiana", lê-se na biografia aqui referenciada. Padre Eustáquio possuía uma relíquia de São José, padroeiro da sua Congregação. Hulselmans (1944: 80) afirma que Eustáquio teria pensado em aproveitar esse momento para propagar a devoção a esse santo: "E se aproveitasse agora esse [sic] movimento desusado para implantar e espalhar a devoçao ao chefe da Sagrada Família?". Então, segundo o princípio do contágio, similar ao envolvido na reprodução das águas de Lourdes, capaz de difundir potências sem se esgotar, encostou a relíquia de São José em uma fazenda que, em seguida, cortou em pedaços e colou em uma cartolina onde se lia: "São José, rogai por nós!". Eram os "bentinhos", que ainda recebiam uma bênção.

"Daquele dia em diante, padre Eustáquio vinculou a devoçao a S. José a todas as suas bençaos (...) Os 'bentinhos', assim se chamavam as lembranças, tiveram a mesma acolhida que a água e a bençao, e em breve, proclamavase milagrosa casa lembrança separadamente. Bastava trazer o 'bentinho' no bolso do colete para ter garantia de saúde, e, se alguem [sic] bebesse da água, a cura era certíssima; se, por cúmulo de felicidade, alguem [sic] conseguisse estar ao pé de padre Eustáquio e receber a bençao pessoal, qualquer que fosse a moléstia, ela nao resistia e a pessoa podia contar que havia recebido um quase penhor de vida eterna..." (Hulselmans, 1944: 79-80). É possível perceber que esse "bentinho" de padre Eustáquio era, pois, uma composição de várias coisas. Ao mesmo tempo em que era fortemente perpassado por São José, imbricado seja pela relíquia, seja pela súplica, carregava a personalidade do padre, que dava bênção. Trazer no bolso, como sugere Hulselmans no trecho acima, significava estabelecer relações com eles e receber, portanto, proteção de ambos. Por outro lado, o "bentinho", assim como as bênçãos e as águas bentas, modificava a trajetória de São José, em alguma medida e, largamente, a do padre Eustáquio, como veremos a seguir9.

SANTO DE CASA FAZ MILAGRE?

Observando os testemunhos de cura reproduzidos por Hulselmans, não é difícil perceber que cada cura relacionada à água benta pelo padre Eustáquio provoca uma série de crescimentos. Não apenas a fama do caráter miraculoso da água cresce, mas também o próprio padre Eustáquio, bem como São José (e a Sagrada Família, imbricados nas práticas curativas de Eustáquio) e Deus, que engloba (ou encompassa, para usar o neologismo do jargão antropológico) os demais.

Assim, frequentemente, os testemunhos de cura apresentam expressões como "graças a Deus" ou "graças a São José", como é possível ver no trecho reproduzido a seguir:

"Eu, com a graça de Deus e do meu glorioso S. José, eu tinha uma ferida na perna em cima do osso... Mas quando foi as seis horas eu entrei e disse a ele [sic]: padre, (...) vim pedir-lhe uma graça, ele [sic] me disse: lave com esta água e reze a S. José. (...) Vi instantaneamente um grande milagre, gritei a todos de minha casa para que vissem o grande milagre recebido de padre Eustáquio, com a vontade de Deus. No dia seguinte tornei a lavá-la com esta bendita água e fiquei perfeitamente boa. Sao Paulo, 19 de outubro de 1943 – Maria de Orio" (Hulselmans, 1944: 82-83 – grifos meus).

É flagrante o constante deslocamento: ora é padre Eustáquio, ora é Deus ou São José o responsável pelas ações. A água, capaz de carregar as bênçãos e suas potências, não recebe os créditos pelas curas. Coube ao antropólogo reconhecer sua crucial mediação.

Esse caso, no entanto, não é exceção. No relato a seguir, novamente, há a referência a São José, mas algumas frases adiante o milagre é atribuído ao padre Eustáquio:

"Em 1941, comecei o ano com uma grande nevralgia no rosto (...) Aconselhada por vizinhos, fui a Poá (...) Lá chegando, nao consegui falar com Frei Eustáquio. Mas ele [sic] benzeu a todos, e a água que trazíamos e disse-nos que podíamos ir para casa com a paz de Deus, que S. José nos daria a cura desejada (...) Eu vim embora, boa como se nunca estivesse doente. Êste [sic] foi o milagre que recebi do saudoso Frei Eustáquio. Sao Paulo, 20 de outubro de 1943 – Joanna Campos Agretti" (Hulselmans, 1944: 84 – grifos meus).

É relevante destacar outro caso, pois fica claro o crescimento da devoção a São José promovida pelas práticas curativas de Eustáquio. O fiel ainda suplicou pela canonização de Eustáquio, o que seria uma ação de Nosso Senhor (colocando Jesus Cristo nesta história toda):

"Em cumprimento de um dever de gratidao pelo saudoso Frei Eustáquio, venho relatar um milagre da água de Poá. Minha mae estava sofrendo muito do fígado. (...) Ela tomou [a água benta por padre Eustáquio] com bastante fé, rezando a S. José. Até hoje sente-se [sic] completamente curada só com a água e continua rezando ao glorioso S. José. Que Nosso Senhor faça subir logo aos altares nosso bondoso Frei Eustáquio" (Hulselmans, 1944: 85 – grifos meus).

Manchetes de jornais atribuíam as curas milagrosas ao padre Eustáquio. Um periódico destacou o salvamento de um médico, remetendo também aos diálogos entre os vários tipos de curandeiros: "O médico foi curado pelo santo de Poá", noticiou jornal, que ainda detalhou: "'Anda, doutor, deixas as muletas'... e o clínico andou, enquanto a multidao chorava de emoçao" (Hulselmans, 1944: 94).

Mas nas entrevistas que o sacerdote concedia, afirmava que não era responsável pelos milagres: "Eu nunca fiz milagres, meu filho, tudo isso é obra da fé", disse padre Eustáquio a jornalista. "O milagre pertence a Deus", declarou à 'Folha da Noite' Padre Eustáquio (Hulselmans, 1944: 93 y 96). Nos períodos em que não pôde atender aos fieis, os dispensava dizendo não ser capaz de curar: "Não sou médico, não faço milagres; só Deus os faz", dizia padre Eustáquio aos que o procuravam já em Belo Horizonte para pedir curas (Hulselmans, 1944: 181).

Um tanto isso se devia ao desconhecimento que próprio Eustáquio tinha de suas potências, o que é relatado pelo biógrafo Hulselmans:

"Queixa-se porém, de nao saber a extensao do carisma, nem quando e em que circunstâncias o possa aplicar. Daí, talvez, o seu dito predileto: 'Deus é grande, vamos ver; nao há de ser nada, se Deus quiser!' Pelo mesmo motivo causava, muitas vezes, a impressao de experimentar simplesmente; era como se desse bençao sem saber se, naquele momento, teria ou nao algum resultado" (Hulselmans, 1944: 209).

Muito mais do que um simples desconhecimento, está aí implícito uma rica noção de pessoa. Isolar padre Eustáquio do mundo, diferenciálo de divindades –especialmente de São José e de Deus– é um trabalho inglório. Para recuperar o termo proposto por Roy Wagner (2011), padre Eustáquio é uma pessoa fractal10, um exemplar (ou instanciação, como está na tradução para o português) de toda uma cadeia, que inclui Deus, São José, mas também suas bênçãos, seu "bentinho" e sua água, a igreja, sua congregação, e assim por diante. Não é à toa, pois, que, quando foi mandado a uma fazenda em julho de 1941, usou o pseudônimo de padre José, porque não poderia ser identificado (Hulselmans, 1944: 145). Em alguma medida, era um José que lá atuava.

Somam-se a isso os fatos de que um sacerdote é outro Cristo e que, ao benzer, um padre faz lembrar os apóstolos. Assim, a cadeia vai, progressivamente, ficando maior: "...que lhe pedissem conselhos e bençaos pessoais, tambem [sic] nao apresentava nada de extraordinário. O sacerdote é um outro Cristo; os Apóstolos usaram bençaos especiais para doentes e o ritual conservou-as" (Hulselmans, 1944: 79).

Por outro lado, ao negar sua ação nas curas, padre Eustáquio remete à lógica do dom no cristianismo. Se curar é um dom divino, é preciso exercê-lo e fazê-lo sem intenção de conseguir alguma recompensa por isso. Observa-se isso entre benzedeiras do catolicismo popular e todos os dilemas que envolve o recebimento de contra-dons (Almeida, 2014). Como consequência desse não reconhecimento da autoria das curas, decorre a implícita afirmação do caráter fractal da pessoa e a diluição da capacidade de transformar o mundo. Assim, distribuir a agência na rede, como advoga Latour (2012), é bastante cristão.

Não deixa de ser estranho, portanto, que padre Eustáquio tenha escrito para superior atribuindo a si mesmo alguma capacidade de curar, mesmo que em seguida afirme não se gloriar por isso:

"Entao escreveu a Dom José Gaspar [arcebispo de São Paulo à época] dizendo-se com uma missao: 'O bom Deus me mostrou visivelmente o caminho para tomar. Sim, hoje me vejo constrangido, se minha palavra convier, de acudir a todos que sofrem e padecem. Até o dom de curar alguma doença ou aleijões, que a ciência humana já teve por incurável, Deus me deu. Mas nisso nao me glorio'" (Hulselmans, 1944: 129 – grifos meus).

Deve-se, contudo, ler essas linhas sabendo que elas também carregam certos imbróglios que padre Eustáquio tinha com superiores, o que tentarei pincelar no próximo tópico.

O QUE O MILAGRE FAZ?

As biografias sobre padre Eustáquio se tornam dramáticas quando passam a falar do modo como a instituição lidou com o padre Eustáquio, capaz de arrastar multidões em busca de bênçãos. Muitos peregrinos iam, diariamente, até Poá para ver o padre. Hulselmans afirma que, em média, Poá recebia de três a quatro mil peregrinos por dia. Esse grande número de pessoas provocou uma série de problemas na cidade, como inflação nos preços, lotação do trem, falta de acomodações, de instalações sanitárias, de higiene e água, de policiamento.

Talvez tenha sido por causa desses problemas provocados pelas grandes aglomerações de pessoas que os superiores de Eustáquio tenham agido contra suas bênçãos. O interventor do Estado chegou a sugerir "...a transferencia de padre Eustáquio para um centro maior, com mais recursos higienicos e sanitários". Encontrou-se uma fábrica onde havia amplas instalações hidráulicas. O padre, possivelmente porque deixaria de ser pároco, se opôs às medidas "Declarou que se ordenára [sic] sacerdote e nao só benzedor de águas!" (Hulselmans, 1944: 99).

O biografo também escreve que o padre estava muito cansado e os regulamentos e proibições impostos por superiores poderiam estar relacionados a isso: "Padre Eustáquio estava esgotado. Grandes olheiras denunciavam um cansaço exaustivo (...) A este [sic] modo impraticável de vida, o Superior pôs fim, prescrevendo um regulamento que o padre Eustáquio devia observar, sob pena de suspenderem as bençaos" (Hulselmans, 1944: 88-89).

Os receios com relação às multidões podem ter emergido da obrigação de os santos fazerem suas boas ações sem esperar qualquer reconhecimento ou retribuição. Quando cardeal Leme o recebeu no Rio de Janeiro, impôslhe a condição de não curar "espetacularmente":

"Assim devia ser: curar e converter, mas nao espetacularmente, e por isto, evitar as curas de paralíticos que sempre chamavam, demasiadamente, a atençao. Neste intuito recusou a bençao a Madame Martins, senhora que usava bengala por estar meio paralítica de uma perna. Vários doentes haviam-se reunido em casa do Sr. Francisco Oliveira, esperando a bençao. Padre Eustáquio deu-a a todos, pois, alí [sic] nao havia cegos, mudos ou paralíticos, e por isto, se houvesse cura, só mais tarde ela se verificaria e nao no momento" (Hulselmans, 1944: 132).

Depois de o cardeal Leme não mais o querer no Rio, Eustáquio foi transferido para uma espécie de noviciado no Triângulo Mineiro. Em Minas, precisou seguir uma série de condições, sendo a primeira não chamar a atenção (Hulselmans, 1944: 173; Andrade, 2004: 73). Hulselmans também testemunha que, ainda em Poá, alguns colegas de padre Eustáquio o criticavam porque estaria "fanatizando o povo" e "exibindo-se":

"O clero tambem [sic] dedicou uma reuniao especial ao assunto [a saber, o que fazer diante da situação de Poá, tida por muitos como caótica] e, como sempre acontece quando se trata de formar um critério objetivo, as opinioes estavam divididas. Alguns queriam proibiçao imediata de todas as bençaos; outros defendiam, ardorosamente, o caso de Poá, alegando que o povo nao podia ser prejudicado pela proposta de proibiçao, uma vez que o povo se achava bem com as bençaos de padre Eustáquio. Um ou outro ensaiou uma insinuaçao, falando em 'fanatizar o povo' (...) 'exibiçao em grande escala' (...), mas o Sr. Arcebispo, Dom José Gaspar da Fonseca e Silva, cortou imediatamente, toda crítica pessoal. Respondeu, pois, aos que julgaram padre Eustáquio um charlatao, que ele [sic], o Arcebispo o conhecia como um sacerdote virtuoso e abnegado; que em Poá nada acontecia, diretamente, contra o direito canônico ou contra os costumes da Igreja, pois lá se pregava, ouviam-se confissões em massas, davam-se bênçãos litúrgicas conforme o ritual" (Hulselmans, 1944: 98-99 – grifos meus).

O trecho sublinhado, contudo, remete a outra possibilidade. O fato de o arcebispo garantir que Eustáquio não violava o direito canônico indica que ele foi questionado nesse sentido. Observa-se que, para refutar a hipótese da infringência de regulamentos eclesiásticos, o arcebispo cita a prática de sacramentos. Em Belo Horizonte, onde viveu seus últimos dias, foi nomeado pároco sob ordens que permitiam a prática da bênção apenas depois da confissão e através das grades do confessionário (Hulselmans, 1944: 180). Não passa despercebida a semelhança para com debates acerca da catolicidade de práticas do catolicismo popular. Steil (2004), analisando a renovação carismática católica, apontou a ação objetiva do sacramento como promotora de divisões e fronteiras, mesmo em um ambiente de fluxos de religiosidades que não respeitam denominações religiosas.

E Hulselmans documenta que também a vivência religiosa do padre Eustáquio incluía intensas trocas de práticas religiosas, especialmente com o espiritismo. À época de sua morte, espíritas o apresentavam como reencarnação de um espírito benfazejo ou como "o maior médium do século XX". A imprensa espírita dizia que o espírito de Eustáquio baixaria em sessões de centros para continuar praticando curas. "O próprio padre Eustáquio deu-lhes ensejo a que o tomassem por um espírita!", escreveu Hulselmans (1944:160). Em dado momento, deixou de pregar contra o espiritismo, de exigir sacramentos e adotou elementos rituais que costumeiramente eram vistos nos centros espíritas:

"Sabendo que a imposiçao das maos estava muito em voga nos 'centros', e que um toque com um tremular dos dedos nos lugares doloridos inspirava muita confiança, usava tudo isto e recomendava que os pacientes voltassem, tal como os médiuns o faziam. Receitava o uso da água-benta em gotas que se deviam misturar com café, chá ou outras bebidas" (Hulselmans, 1944:160).

Não são, entretanto, apenas esses atravessamentos com outras religiosidades e os dilemas para se manter dentro do catolicismo que lembram o catolicismo popular. Na trajetória do padre, várias situações remetem a eventos bíblicos, o que a literatura tem tratado como uma cultura bíblica (Steil, 1996; Velho, 1987)11. Os casos de cura mais emblemáticos são os bíblicos: mudos que falam, cegos que enxergam, paralíticos que andam. O autor da biografia testemunhou a cura de uma paralítica:

"As dez horas veiu [sic] o esperado [padre Eustáquio]. Desceu do carro no princípio das filas, e, benzendo aos dois lados, avançou, lentamente, até a porta.

De vez em quando, agitavam-se as filas, demonstrando que acontecia algo de anormal.

Esta bençao levou, mais ou menos, meia hora. Quando padre Eustáquio entrou, suspirou profundamente: 'estou morto de cansaço'. Mas ainda nao era tempo para descansar. Chamei-lhe a atençao para uma moça paralítica que chorava num canto do hall.

- 'Que é que a senhora tem, quer andar?'

- 'Quero!!!'

- 'Entao levante!'

- 'Nao posso, nao posso!!...' entre copiosas lágrimas.

- 'Póde [sic], sim! Venha cá' e estendendo-lhe um indicador, levantou-a.

A mae da moça, que nesse meio tempo entrára [sic] tambem [sic], desmaiou ao ver a filha, moça de uns 25 anos de idade e que nunca tinha andado, levanta-se de chofre.

Padre Eustáquio afastou-se uns tres passou mandou-a vir na sua direçao. Pé ante pé, ela o conseguiu.

'Esse [sic] eu vi', dizia de mim para mim; agora gostaria de saber como estará daquí [sic] há uns quinze dias.

Nao a vi nesse curto prazo de tempo, mas depois de um ano reencontrei-a. Andava de bengala e vinha pedir nova bençao para andar perfeitamente" (Hulselmans, 1944: 141).

Não é difícil perceber algumas similaridades entre essa cura e a cura bíblica do paralítico de Cafarnaum (Mateus 9:1-8, Marcos 2:1-12 e Lucas 5:17-26). A própria dedicação aos doentes não pode ser entendida senão cotejada com a parábola do bom samaritano (Lucas 10:30-37). Hulselmans descreve o padre Eustáquio depois que é expulso do Rio como um "eremita" (Hulselmans, 1944: 143 e seguintes). Poderia se dizer que essa interpretação diz mais sobre o biógrafo do que sobre o biografado. Mas não se pode esquecer que Hulselmans era um sacerdote. E o próprio padre Eustáquio assim escreveu sobre sua situação, ainda quando estava no Rio de Janeiro:

"Deus sabe... Na minha vida atual, o Domingo de Ramos e a Sexta-Feira da Paixao se sucedem, sem parar... A única diferença é que o 'fora com ele' segue mais rapidamente a entrada triunfal. Sou um segundo Ahasverus, um autentico judeu errante, e só Deus sabe onde ainda irei parar!" (Andrade, 2004: 57).

No momento de se defender das acusações de ter se transformado em um médium espírita, padre Eustáquio também deixa ver certa cultura bíblica:

"Os senhores enganam-se. É cedo ainda para falar abertamente, e é preciso combater o espiritismo com suas próprias armas. Os espíritas é que nos roubaram as cerimônias da Igreja. A imposiçao das maos em doentes já era usada pelos apóstolos e a liturgia conservou essa cerimônia. Os espíritas a usam porque nós sacerdotes abandonamos o que nos pertence de direito; ou se quiserem, nós a nao usamos porque os espíritas a praticam. Mas está errado isto! Nós é que devemos usá-la a exemplo dos apóstolos, e Nosso Senhor mesmo ensinou-lhes que deviam tocar os doentes, se quisessem curálos" (Hulselmans, 1944: 161-162).

NOTAS FINAIS

Para atingir os objetivos traçados neste texto, falta preencher algumas linhas sobre o processo de romanização. Esse é o nome que se dá às reformas promovidas pela Igreja no final do século XIX e início do século XX. Essas transformações tentaram dar feições romanas às práticas da religião católica de várias partes do mundo, especialmente da América Latina (Bautista García, 2005), onde a religião católica "havia sido mais ibérica que romana até entao" (Dussel, 1998: 76). Mallimaci (2000) observa que, nessa região, a romanização constituiu em uma reação da Igreja à conjuntura político-social imposta pela independência das antigas colônias ibéricas. No Brasil, esse processo teria provocado uma adequação do catolicismo popular ou catolicismo tradicional brasileiro às diretrizes romanas (Teixeira, 2009). A romanização foi particularmente baseada na vinda de religiosos de congregações europeias comprometidos com essas mudanças. Como já dito, foi esse processo que trouxe padre Eustáquio ao Brasil.

Não há dúvidas de que muitas coisas mudaram nesse período. Com o afluxo desses atores, vieram novas devoções, novas sensibilidades. Eram outros ventos que chegavam ao Brasil, ventos que às vezes se contrapunham às práticas aqui arraigadas. Hulselmans conta que na primeira localidade em que Eustáquio trabalhou no Brasil, município que se chamava Água Suja (Minas Gerais), havia um santuário de Nossa Senhora da Abadia. Anualmente, acontecia uma grande romaria para o santuário, na qual era imprescindível o foguetório. Na primeira vez que o padre participou da romaria, um acidente incendiou o depósito e fez explodir todos os fogos. Os padres, incluindo Eustáquio, não teriam de todo desgostados: "Os padres lamentaram o acidente, mas interiormente, nao deixaram de sentir um certo alívio, julgando que aquilo os livraria de tanto barulho estrondoso, tao incompatível com suas idéias [sic] estrangeiras de romarias silenciosas e recolhidas". O mesmo biógrafo afirma que a intenção do padre Eustáquio era modificar a festa: "Se Deus quiser, espiritualizaremos esta festa, transformando-a em verdadeira romaria!" (Hulselmans, 1944: 34 y 35 – grifos meus).

Tomar isso, porém, como uma luta entre dois catolicismos, o oficial –romanizado e não sincrético– e o popular ou tradicional é incorrer no equívoco que Strathern vincula ao especialista: "O especialista é como o desenhista industrial: tudo que está envolvido em uma situaçao, qualquer tipo de material, tem que ser ajustado para que possa servir de evidencia" (Strathern, 2014: 488). Pois muito mais do que oposições entre as práticas de cura de padre Eustáquio e o que a literatura tem apontado como características do catolicismo popular, nessas páginas, abundaram aproximações. Havia devoções cá e lá, bem como sincretismos e culturas bíblicas. A romanização não põe em crise o catolicismo popular. Se analisada com vagar, põe em crise a clivagem radical entre leigos e religiosos e permite ver circulações.

Essa crítica de Strathern ao especialista pode ser relacionada à atitude proposta por Ingold ao tomar a educação não como uma transmissão de representações, mas antes como um desenvolvimento de habilidades (Ingold, 2010). Para esse antropólogo, um observador –melhor dizendo, um praticante– habilidoso, isto é, aquele que despende a atenção ao que lhe envolve, está aberto às evidências e às suas mais variadas circunstâncias. Isso, por sua vez, parece remeter à questão metodológica a respeito do uso de fontes produzidas por pessoas ligadas à instituição, questão que levantei na introdução deste artigo. Se de fato essas fontes exigem uma certa reflexividade, essa não pode ser confundida com descrever as determinações ou as condições sociais que informam as práticas do pesquisador, o qual conseguiria observar a si mesmo como se fora da prática estivesse12. O praticante habilidoso não tenta sair de cena: engajase nas suas fontes, pois refletir não é se ausentar. É participar ou somar para produzir algo. Então, mais importante que abrir bem os olhos porque o escritor é um sacerdote é aguçar a percepção para sentir o que cresce no mundo.

NOTAS

2 A expressão nao humanos é aqui usada para designar uma plêiade de coisas que podem se mostrar significativos em uma situação, por assim dizer, social. Quando Latour (2012) sugere observar os processos associativos que formam o social, está afirmando que as relações sociais podem envolver não somente humanos, mas também animais, plantas, micro-organismos, espíritos, objetos e o que mais estabeleça associações com humanos. Essa perspectiva sensível a ações cujas origens sejam as mais diversas pode também ser encontrada na concepção de coisa postulada por Ingold (2012). Como lembra Silla (2013: 13), para Ingold, "...las formas de las cosas no son impuestas desde afuera sobre un sustrato de matéria inerte sino que son continuamente generadas y disueltas entre los flujos de material a través de la interfase entre las substancias y los medios que las rodean".

3 Trata-se do convite feito por Latour (2012: 248) para manter o social plano, isto é, imaginá-lo não como assimétrico de antemão, mas visualizar a produção das escalas e assimetrias.

4 Ao utilizar o verbo crescer, estou tentando fazer uma leitura menos sociológica dos processos de difusão de devoções e de práticas religiosas (e mais próxima do modo como eles são vividos pelas pessoas). Sem dúvida, a inspiração vem da antropologia proposta por Tim Ingold (2012). É uma preocupação do antropólogo britânico documentar o crescimento das coisas no mundo (e do mundo nas coisas).

5 José Vicente Andrade escreveu ainda outra biografia, que serviu para o processo de beatificação do padre Eustáquio.

6 "...os modos de operaçao, os valores, a cultura política dos grupos, os sentimentos vigentes na hierarquia, os padroes de relacionamento, enfim todas as características materiais e mentais das elites, estao como que inscritas nas fontes que elas mesmas produzem (ou subsidiam ou encomendam) e que, via de regra, falam desses grupos como eles apreciam que se fale deles." (Pessôa de Barros, 1985)

7 Como é sabido, o espiritismo está ligado à doutrina Allan Kardec, pseudônimo de um pedagogo francês autor de obras como "O livro dos espíritos e Evangelho segundo o espiritismo". Chegou ao Brasil ainda no século XIX e em terras brasileiras foi além do kardecismo com o surgimento do Racionalismo Cristão e da Umbanda (Giumbelli, 1997: 32). Giumbelli mostra que o espiritismo era objeto de preocupações dos médicos e cientistas sociais na virada do século XIX para o século XX, inclusive emergindo campanhas contra a religiosidade. De certa forma e por outra via, que não a da ciência, padre Eustáquio entra nesse movimento de reflexão sobre –e questionamento do– espiritismo.

8 Merece ser lembrado o bonito artigo de Renata Menezes (2011) sobre a reprodução de imagens de santos.

9 Também da igreja: "Naturalmente, nada cobrava, mas para aqueles que quisessem dar um obulozinho para as obras da Matriz em construçao, colocára-se [sic] um cofre a parte" (Hulselmans, 1944: 81)

10 Fractal é o termo que o antropólogo estadunidense Roy Wagner (2011) recupera da matemática para apresentar a noção de pessoa cara à antropologia, que foi sistematizada por Marilyn Strathern. Em matemática, explica Wagner (2011), o termo remete às elementos que não podem ser expressos por números inteiros. Torna-se interessante metáfora para pensar a noção de pessoa, pois, assim como o fractal, um objeto geométrico cujas partes remetem ao todo, a pessoa não é parte de um todo que a engloba, tampouco é um indivíduo, isto é, uma coisa indivisível. É uma forma de apresentação do todo. "A fractalidade, escreve Wagner, lida com totalidades, não importa quão finos sejam os cortes". Da mesma forma, a noção de pessoa que a biografia de padre Eustáquio implica é compósita e imbricada em coisas, divindades e assim por diante.

11 A noção de cultura bíblica foi cunhada por Velho (1987) para dar conta do material sobre a religiosidade dos camponeses da frente de expansão na região amazônica brasileira. No artigo, Velho (1987: 25) mostra que certa "reserva de sentido" de mitos como o Êxodo garante a possibilidade de que novas significações sejam adquiridas por esses mitos, bem como novos eventos também possam ser aproximados à narrativa mítica. Assim, é possível viver o cativeiro no norte do Brasil milhares de anos depois do Êxodo bíblico.

12 Essa parece ser a postura de Bourdieu (2005), que se volta para sua própria trajetória a fim de intentar uma análise sociológica.

BIBLIOGRAFÍA

1. Almeida, Juliano Florczak 2014. Bom Jardim dos Santos: Trazendo as plantas de volta à vida (fluxo dos materiais e religiosidades populares em Guarani das Missões, RS). Dissertação de mestrado, Mimeo. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social-UFRGS.         [ Links ]

2. Andrade, José Vicente 2004. Venerável Padre Eustáquio: Missionário da saúde e da paz. Belo Horizonte: Congregação dos Sagrados Corações.         [ Links ]

3. Barnard, Alan 2000. History and theory in Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

4. Barth, Fredrik; Parkin, Robert; Gingrich, Andre & Silverman, Sydel 2015. One discipline, four ways: British, German, French, and American anthropology. Chicago and London: The University of Chicago Press.         [ Links ]

5. Bautista García, Cecilia Adriana 2005. "Hacia la romanización de la iglesia mexicana a fines del Siglo XIX." En: História Mexicana LV, N°1, pp. 99–144.         [ Links ]

6. Benjamin, Walter 1975. "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução." En: Textos de Walter Benjamin, 10–34. São Paulo: Abril.         [ Links ]

7. Bourdieu, Pierre 2005. Esboço para uma auto-análise. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

8. Durkheim, Émile 2000. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

9. Dussel, Enrique 1998. "Historia del fenómeno religioso en América Latina." En: Hans-Jürgen Prien (ed.) Religiosidad e Historiografía: la irrupción del pluralismo religioso en América Latina y su elaboración metódica en la Historiografía. Madrid: Iberoamericana y Vervuert, pp. 71–82.         [ Links ]

10. Frazer, James George 1982. O ramo de ouro. São Paulo: Zahar.         [ Links ]

11. Giumbelli, Emerson 1997. "Heresia, doença, crime ou religião: o espiritismo no discurso de médicos e cientistas sociais." Em: Revista de Antropologia, Vol. 40, N°2, pp. 31–82.         [ Links ]

12. Henare, Amiria; Holbraad, Martin e Sari Wastell (eds.) 2007. "Introduction: Thinking through Things." Em: Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London and New York: Routledge.         [ Links ]

13. Hulselmans, Venâncio 1944. Padre Eustáquio Van Lishout SS. CC. - O Vigário de Poá. Rio de Janeiro: Centro Nacional de Entronização.         [ Links ]

14. Ingold, Tim 2010. "Da transmissão de representações à educação da atenção." En: Educaçao Vol. 33, N°1, pp. 6–25.         [ Links ]

15. Ingold, Tim 2012. "Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais." En: Horizontes Antropológicos Vol. 18, N°37, pp. 25–44.         [ Links ]

16. Latour, Bruno 2012. Reagregando o social. 1a ed. Salvador; Bauru, SP: Edufba; Edusc.         [ Links ]

17. Mallimaci, Fortunato 2000. "Catolicismo y Liberalismo: las etapas del enfrentamiento por la definición de la modernidad religiosa en América Latina." En: Sociedad y Religión Vol. 20, N°21, pp. 22–56.         [ Links ]

18. Mauss, Marcel 2003. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

19. Menezes, Renata de Castro 2011. "A imagem sagrada na era da reprodutibilidade técnica: sobre santinhos." En: Horizontes Antropológicos Vol. 17, N°36, pp. 43–65.         [ Links ]

20. Menezes, Renata de Castro; Rabelo, Mirian (Orgs.) 2015. "Dossiê Materialidades do Sagrado". En: Religiao e Sociedade Vol. 35, N°1.         [ Links ]

21. Peixoto, Maria Cristina Leite 2006. Santos da porta ao lado: Os caminhos da santidade contemporânea católica. Tese de doutorado, Mimeo. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia-UFRJ.         [ Links ]

22. Pessôa de Barros, Sergio Miceli 1985. A elite eclesiástica brasileira (1890-1930). Tese de Livre Docência, Mimeo. Campinhas: Departamento de Ciências Sociais-Universidade Estadual de Campinas.         [ Links ]

23. Silla, Rolando J. 2013. "Tim Ingold, neo-materialismo y pensamiento pos-relacional en Antropología" Em: Papeles de Trabajo, Vol. 7, N°11, pp. 11–18.         [ Links ]

24. Steil, Carlos Alberto 1996. O Sertao Das Romarias: um estudo antropológico sobre o Santuário de Bom Jardim da Lapa. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

25. Steil, Carlos Alberto 2004. "Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou de saída do catolicismo? Uma Etnografia do Grupo São José, Porto Alegre (RS)." En: Religiao & Sociedade, Vol. 24, N° 1, pp. 11–36.         [ Links ]

26. Strathern, Marilyn 2014. "A pessoa como um todo e seus artefatos." En: O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, pp. 487–510.         [ Links ]

27. Teixeira, Faustino 2009. "Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo." En: Teixeira, Faustino e Menezes, Renata (eds) Catolicismo Plural: Dinâmicas Contemporâneas. Petrópolis, RJ: Vozes, pp. 17–30.         [ Links ]

28. Turner, Victor W. 2005. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói, RJ: EdUFF.         [ Links ]

29. Velho, Otávio 1987. "O cativeiro da besta-fera." En: Religiao & Sociedade, Vol. 14, N°1, pp. 4–27.         [ Links ]

30. Wagner, Roy 2011. "A pessoa fractal." Em: Ponto.Urbe N°8, pp. 1–12.         [ Links ]

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons