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Avá

On-line version ISSN 1851-1694

Avá  no.27 Posadas Dec. 2015

 

DOSSIER

Ecovilas: aprendizagens, espiritualidade e ecologia

 

Luciele Nardi Comunello * e Isabel Cristina de Moura Carvalho **

* Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS. E-mail: lelicomunello@gmail.com
** Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS. E-mail: isabel.carvalho@pucrs.br.

Fecha de recepción del original: febrero de 2016.
Fecha de aprobación: octubre de 2016.


RESUMO

Este trabalho está inserido em um projeto mais amplo que investiga a ambientalização de práticas educativas e religiosas, articulando elementos culturais, éticos e políticos imbricados nas epistemologias que fundamentam propostas de Educação Ambiental. Neste recorte abordamos práticas ecologicamente orientadas e seu entrelaçamento com a experiência de uma espiritualidade imanente, em uma Ecovila, sublinhando sua potencialidade para a compreensão da participação do mundo material na construção de sentidos em um mundo mais-quehumano. Ecovilas se apresentam como fenômeno emergente e, segundo a Rede Global de Ecovilas, propõem o combate 'à degradação dos ambientes sociais, ecológicos e espirituais'. Os resultados apresentados provém de observação participante e entrevistas em uma Ecovila no Sul do Brasil. As informações coletadas conduziram a um diálogo com o campo da espiritualidade New Age e com as questões que são cerne da abordagem dos Novos Materialismos, além da Fenomenologia, ao problematizarem as fronteiras entre natureza-cultura. Rituais, práticas de saúde, cura e autoconhecimento, como o Temazcal, entre outras experiências vividas nesta comunidade, parecem reposicionar a relação humano-ambiente, trazendo luz aos fluxos de vida dos materiais.

PALAVRAS-CHAVE: New Age; Ecovilas; Epistemologias Ecológicas; Espiritualidade; Aprendizagem.

ABSTRACT

This paper is part of a wider research project that investigates environmentalization of religious and educational practices, intertwining cultural, ethical and political elements entangled in epistemologies that support Environmental Education. With this framework, we address ecological practices intertwined with experiences of an immanent spirituality, in an Ecovillage, stressing their potencial to comprehend materials participation on meaning production in a more-than-human world. Ecovillages are a presentification of an emergent phenomenon and, according to the Global Ecovillage Network, they propose to struggle against "the degradation of social, ecological and spiritual environments". The presented results come from an ethnographic experience -with participant observation and interviews- in an Ecovillage in South of Brazil. The obtained information led us to a dialogue with the field of New Age, spirituality and with topics that are central in the New Materialisms approach, in addition to Phenomenology, since they address the problems on frontiers between nature-culture. Rituals, health, healing and selfknowledge practices, as Temazcal, among other experiences lived by the community, seem to replace the relation human-environment, bringing light to life flow of materials.

KEY-WORDS: New Age; Ecovillages; Ecological Epistemologies; Spirituality; Learning.


INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de um programa de pesquisa mais amplo, que vem sendo desenvolvido no Grupo de Pesquisas Sobre Naturezas. Trata-se de uma proposta de investigar a 'ambientalização' de práticas educativas e religiosas, articulando elementos culturais, éticos e políticos imbricados em epistemologias que, ao se contrapor às dicotomias clássicas tais como natureza e cultura, corpo e mente, são denominadas como Epistemologias Ecológicas.

Estas 'Epistemologias Ecológicas' (Steil & Carvalho, 2014) são compreendidas como uma região de debates que inclui pensadores de diversos campos do conhecimento, consonantes em alguns pontos centrais de suas obras, quais sejam: a busca da superação das dualidades cultivadas pelo pensamento moderno; a defesa de uma 'ontologia simétrica' que considera a participação de humanos e não humanos na coprodução do mundo; a defesa de uma epistemologia relacional; e, por fim, o foco na materialidade. Por compreendermos a intrínseca relação entre a produção da Crise Ambiental e as bases da epistemologia moderna (Jonas, 1995; Steil & Carvalho, 2014) é que partimos deste background para discutir, desde nossa experiência de campo, modos de aprender por meio de práticas situadas em um mundo mais-que-humano. A região de debates das Epistemologias Ecológicas inclui contribuições tais como as dos Novos Materialismos e a busca por uma ontologia simétrica, na obra de De Landa e Escobar, a antropologia ecológica de Tim Ingold, a ecologia da mente em Gregory Bateson, as perspectivas de aprendizagem situada em Jean Lave.

Em nosso campo de pesquisa travamos contato com conjuntos de práticas que incluem o cuidado de si e do ambiente "como parte da formaçao de um sujeito virtuoso, em harmonia consigo e com o ambiente. Estas práticas poem em evidencia as relaçoes entre natureza e cultura que vem se construindo no interior do pensamento ecológico" (Carvalho & Steil, 2009: 82).

Essas práticas de cuidado de si e do ambiente, aparecem no entrelaçamento com a experiência de uma espiritualidade de tipo New Age, que constitui experiências ecológicas na medida em que integra uma espécie de sensibilidade ecológica1. Não raramente encontramos, em grupos ecologicamente orientados, a incorporação de uma noção de saúde holística, que envolve as dimensões física, mental e espiritual. A busca por esse ideal de saúde inclui práticas ecológicas e práticas religiosas, como "peregrinaçoes, vivencias, meditaçao, rituais xamânicos" (Carvalho & Steil, 2008: 1), de modo que uma série de procedimentos ecológicos passa a ser vivida como busca do sagrado, no sentido de que a reconexão com a natureza integra a experiência do sagrado.

Na Ecovila Arca Verde, o entrelaçamento dessas dimensões também se faz presente. Ecovilas são comumente definidas como 'assentamentos sustentáveis', comunidades criadas com o propósito de viver em "equilíbrio com a natureza", considerando as diversas dimensões da vida: econômica, social, cultural, ecológica, espiritual. São comunidades que escolheram viver de um modo sustentável, em harmonia com os outros (humanos e não humanos) e com a Terra (Jackson & Svensson, 2002). Conforme a Rede Global de Ecovilas, ecovilas são comunidades tradicionais ou intencionais que tem o objetivo de "regenerar ambientes sociais, naturais e espirituais" (gen.ecovillage.org), buscando reverter sua desintegração progressiva, por meio de um processo de participação que envolve todos os seus membros.

Por considerarem a relação com o entorno em suas diversas dimensões -econômica, ecológica, ambiental, espiritual- e que práticas pedagógicas, ecológicas e espirituais (por meio de rituais e vivências) se sobrepõem neste território. Pelo caráter sagrado dos elementos naturais (fogo, água, plantas, pedras e cristais) é que eles se fazem presentes em rituais, práticas espirituais e cotidianas (pois estas dimensões não são compreendidas com dimensões apartadas) atuando na significação de um mundo mais-quehumano. Encontra-se nessas práticas a participação das coisas, a ampliação das sensibilidades e o borramento de fronteiras que desenham objetos2, sujeitos e seus invólucros.

Inspiramo-nos no trabalho de pesquisadores sobre aprendizagem na prática em contextos rituais/espirituais/religiosos (Bergo, 2010; Rabelo & Santos, 2011) e, junto com elas, pensamos os processos de aprendizagem como dimensões das práticas sociais, como participação em um mundo social (Lave & Wenger, 1991) e como educação da atenção (Ingold, 2010), abordagem que considera que o desenvolvimento de habilidades -capacidades para ação e percepção do ser orgânico como um todo- se dá por um engajamento ativo em contextos multissensoriais carregados de significado. Buscamos estabelecer aqui uma ponte entre a perspectiva de aprendizagem por engajamento ativo no ambiente (Ingold, 2013) -neste caso, um Temazcal realizado em fevereiro de 2014, na Ecovila Arca Verde- com a experiência estética, sublinhando a importância da aisthesis (dos sentidos) no acesso ao mundo e na conformação de aspectos incorporados que, de certo modo, definem um ethos, uma forma de estar no mundo e de se relacionar com ele.

Assim, objetiva-se, com este artigo, refletir sobre a relação entre humanos e não humanos (mundo mais-que-humano) em seus entrecruzamentos com a espiritualidade e a experiência estética, produzindo ambientes onde se aprende uma espécie de ethos, em que há uma centralidade da busca por conexão com a natureza. Neste sentido, buscamos compreender como esta experiência, mediada por corpos e outros materiais, constitui-se uma experiência de aprendizagem.

APRENDENDO COM A IMERSÃO: A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE COMO MÉTODO

Os campos analisados neste artigo são parte de uma pesquisa etnográfica que incluiu a observação participante com registros em diário de campo e entrevistas em profundidade, num período de setembro de 2013 a setembro de 2014, em que tivemos a oportunidade de participar de cursos, vivências e voluntariado na Comunidade Arca Verde. Entre estas experiências selecionamos o ritual do Temazcal realizado em fevereiro de 2014 nessa comunidade.

Entendemos aqui o papel da Observação Participante como uma forma de juntar-se às pessoas nas suas especulações do que seja a vida e do que ela deveria ser, produzindo um profundo entendimento do que ela seja num tempo e lugar particulares (Tim Ingold, 2010). O pesquisador está situado, com seus sentidos e modos de atenção, "na convergencia de linhas e fluxos de materiais que o atravessam e constituem como uma unidade generativa que chamamos mundo ou ambiente" (Steil & Carvalho, 2014: 1). Entendida dessa forma, a etnografia é sinônimo de participação, que deixa de ser o oposto da observação para tornar-se condição para o conhecimento em um mundo em movimento contínuo, em que o pesquisador, imerso, é atravessado por estes fluxos (luz, sons, texturas...).

A Observação Participante, nesta abordagem, pressupõe um comprometimento ontológico por parte do pesquisador. Esta virada de perspectiva transforma a maneira como nos relacionamos com os fenômenos que desejamos conhecer, assumindo que nós devemos o que somos justamente ao mundo que decidimos "seguir" para conhecer. Assim, produzir conhecimento e "conhecer desde dentro" (Ingold, 2013a: 5).

Não há, portanto, uma contradição entre participação e observação, pois uma coisa depende da outra. Esta compreensão do trabalho de pesquisa exige a abertura e o engajamento do sujeito "no mundo e no coraçao da matéria por meio da participaçao e do compartilhamento de uma experiencia comum que atravessa os seres e as coisas que habitam a mesma atmosfera" (Steil & Carvalho, 2014: 1). Diante disso, em consonância com o pensamento de Tim Ingold também buscamos assumir um compromisso com a vida, com o aprender com as pessoas no caminhar, expandindo fontes de conhecimento e trazendo-as para a reflexão sobre como podemos construir uma "humanidade" para todos nós (Mafra, Bonet, Velho & Prado, 2014).

As questões aqui apresentadas são fruto de um ano de imersão na Ecovila Arca Verde, por meio da participação em cursos, vivências, e dois voluntariados no período que se estendeu entre setembro de 2013 e setembro de 2014. A Observação Participante foi enriquecida com entrevistas. Consideramos que estas ferramentas combinadas se prestam a nos auxiliar a compreender as formas discursivas de construção da realidade, ao mesmo tempo em que percebemos como o mundo dos materiais corrobora, colabora ou resiste a essa construção. Essa perspectiva vem ao encontro do projeto dos Novos Materialismos que considera que "a sociedade é simultaneamente materialmente real e socialmente construída: nossas vidas materiais sao sempre culturalmente mediadas, mas elas nao sao somente culturais" (Coole & Frost, 2010: 27). O desafio, portanto, é dar à materialidade o seu papel na produção do mundo, reconhecendo suas dimensões plurais e suas manifestações complexas e contingentes.

O CONTEXTO DA PESQUISA: A ARCA VERDE

A Ecovila -ou Instituto- 'Arca Verde' foi fundada em 2005, na cidade de São José dos Ausentes, um dos pontos mais altos da Região Sul e mais frios do país. Em uma de nossas conversas, uma das fundadoras conta como a iniciativa começou, a partir da reunião de um grupo de jovens de classe média, urbanos, alunos do Núcleo de Fotografia da UFRGS e que faziam saídas de campo em São José dos Ausentes. E foi no campo que algumas pessoas se conheceram e começaram a pensar "sobre a possibilidade de viver de uma maneira diferente" (citação extraída de entrevista realizada com Brigit, moradora e membro fundador da comunidade, em agosto de 2014). Outro membro deste grupo havia feito um treinamento em Ecovilas, em um Instituto próximo dali (o Integria). Mais tarde, outras experiências foram incluídas como a Aldeia da Paz, do Fórum Social Mundial em 2005. O projeto começou em novembro do mesmo ano, com um mutirão para construir a primeira moradia adaptada, feita com uma Pipa de vinho reciclada.

De acordo com o blog da 'Arca Verde', a comunidade foi criada como um ponto de confluência de "talentos, conhecimentos e vibraçoes positivas na construçao de promoçao da vida sustentável". Consideram que sua maior missão é "criar um terreno fértil para que a natureza seja plena em sua abundância e as pessoas empoderadas em seus dons e sua espiritualidade pessoal, realizando novas ideias e tecnologias ecológicas, econômicas e sociais". (www.arcaverde.org)

Durante os primeiros anos, apenas um casal e, eventualmente, alguns amigos, moravam na propriedade. Em função das dificuldades climáticas (muito frio e dificuldades para o plantio) o grupo, então um pouco maior, decidiu mudar-se. Nesta época já tinham formalizado sua existência como um Instituto (Organização Não Governamental) 'Arca Verde', pela necessidade de ter uma identidade jurídica, tornando possível oferecer cursos, vivências e voluntariados formalmente, o que, inclusive, representa uma parte significativa da vida econômica da comunidade. Uma identidade jurídica também possibilita criação de conta em banco e um manejo mais coletivo da propriedade da terra/espaço da comunidade.

Em 2009, a Ecovila estabeleceu-se no município de São Francisco de Paula, que também faz parte da paisagem dos chamados Campos de Cima da Serra, caracterizados pelo clima oceânico e pela vegetação composta por campos e matas de araucárias (símbolo da região). Encontraram um terreno onde já havia cinco chalés de madeira, uma construção arredondada de madeira no centro e um lago. Do outro lado do lago fica a Casa Grande -o alojamento que abriga cerca de 17 pessoas, e que também já existia antes da vinda da Ecovila para a área-. No alojamento ficam hospedadas as pessoas que vão até a Ecovila para os cursos, vivências e voluntariados, como também os moradores de curto prazo e os amigos da 'Arca Verde', que visitam o lugar periodicamente.

O terreno antigamente havia sido um "pesque e pague", local comercial para a prática de pesca esportiva. A área total de 25 hectares, que pertence ao Instituto, está dividida em uma área coletiva e vários lotes individuais, que não foram totalmente ocupados até o momento. Para poder se candidatar à compra de um dos lotes, o morador precisa ser aprovado pela comunidade e ter passado pelo processo de "integraçao", que pode durar de seis meses a um ano, aproximadamente.

Durante sua primeira década de vida, a 'Arca Verde' tornou-se uma referência em Permacultura3 entre as comunidades da região do sul do Brasil, ao buscar compartilhar o conhecimento adquirido com a prática e a experiência. Trata-se de um lugar de experimentação e aprendizagem, onde se aprende na medida em que se experimenta, aprende-se ao fazer.

Ao andar pelo território da 'Arca Verde', é possível perceber as expressões da espiritualidade local nas paredes das casas, no interior dos ambientes: imagens de Buda, orações em bandeirinhas coloridas ao vento e o quadro dos sete chakras remetem às tradições orientais; um pequeno altar, feito de uma base de tronco de árvore, com cristais, ervas, conchas, velas, remete às tradições indígenas4 e mágicas. Há ainda o labirinto para a meditação, o recanto da Deusa, o calendário que indica a regência dos planetas e sua influência astrológica nos dias do mês. Cada chalé também possui um pequeno altar composto de diferentes elementos, de acordo com as características dos seus moradores, de pedras e plantas a referências a matriz africana (fotos de mulheres negras e ornamentadas com artefatos de suas tribos), oriental (referências a Shiva, Tara, Buda) e xamânica (tambores, penas, conchas, imagens de animais).

Em 2014, a comunidade se constituía como um terreno transnacional, com moradores e visitantes de diversos lugares do mundo: Equador, Espanha, Alemanha, França, Argentina. Sua composição, entretanto, é significativamente flutuante em termos de número, visto que pessoas vem e vão, percorrendo uma rede alternativa, formada por: parceiros de produção agrícola, cooperativas de agricultores e outros produtos e serviços, espaços de cura e espiritualidade, espaços de terapias alternativas, outras ecovilas, movimentos urbanos, sítios e eventos de agricultura orgânica, sítios de práticas xamânicas, coletivos de inspiração anarquista, coletivos de alimentação vegana, iniciativas de educação informal, libertária e homes chooling, comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas), centros de formação de parteiras, movimentos sociais, movimentos de ocupação urbana, metodologias de autoconhecimento, antroposofia, magia, centros de Yoga e meditação, elementos das tradições hindu, africana, celta, indígena etc. Este mapa advém das conexões estabelecidas pelas pessoas que frequentam a 'Arca Verde', de forma que essas conexões os conduzem ate lá.

No mesmo ano, a comunidade era composta de cerca de 12 moradores. Além deles, havia um considerável fluxo de pessoas -incluindo amigos, simpatizantes, curiosos, participantes de cursos e voluntários-. Essa característica da comunidade faz sentir quão difusas são suas fronteiras: alta rotatividade de pessoas e, com elas, dos acordos de convivência da comunidade e, até mesmo, dos rituais partilhados. A comunidade parece estar em um contínuo processo de formação.

Com relação ao aspecto processual característico desta comunidade, consideramos que o conceito de 'Formação Estética', que aparece como uma alternativa ao de 'Comunidade Imaginada', ajuda a pensar. A perspectiva dimensão 'Estética' retoma a importância do papel dos sentidos e das sensações, da materialidade das coisas na construção da imaginação e dos significados sobre o mundo e sobre o sagrado. "Esses processos de formaçao 'moldam' sujeitos particulares através de imaginaçoes compartilhadas que se materializam através de formas estéticas incorporadas" (Meyer, 2009: 7). Já a dimensão da 'Formação' -no lugar de comunidade- se dá no sentido de olhar menos para a comunidade como um grupo social fixo, com fronteiras claras e delimitadas, e mais para a formação de comunidades como um processo contínuo. O termo 'Formação' garante uma compreensão mais dinâmica, tornando possível que façamos referência à comunidade como uma 'entidade social' -não abandonando a própria ideia de comunidade- mas também, e principalmente, ao seu caráter de 'processo' de contínua constituição/produção (Meyer, 2009).

Há uma mescla de práticas espirituais que nós identificamos como espiritualidade New Age, apesar desta categoria não ser utilizada pelos moradores para definir sua experiência de espiritualidade. A experiência da espiritualidade da qual falamos aqui, então, se traduz em uma multiplicidade de práticas, uma vez que o caminho espiritual é considerado como uma espécie de bricolage, criado pelo praticante ao lançar mão das várias correntes, escolas e tradições existentes, conferindo a essas práticas a interpretação oriunda de sua própria experiência. Neste sentido, o caminho da espiritualidade é individual, embora a experiência do coletivo na vida em comunidade e nos rituais tenha significativa importância para alavancar este processo. O caminho espiritual e, portanto, um empreendimento ao mesmo tempo individual e coletivo. Abriga a noção de autodesenvolvimento, uma aposta no melhoramento humano para os novos tempos, apresentando também propostas terapêuticas, de cura, contemplando experiências místicas e filosofias holistas. Inclui elementos esotéricos, tradição oriental e indígena. Está ligada ao movimento de "sacralizaçao da natureza e encontro cósmico do sujeito com sua essencia e perfeiçao interior" (Amaral, 2000: 16).

Diferentes práticas são vividas nos cursos, nas imersões e no cotidiano da comunidade: as danças circulares sagradas, em que a mediação da música e dos corpos produz uma espécie de comunhão e, através dela, um acesso ao sagrado; a presença do fogo como elemento que transmuta emoções e é capaz de operar limpezas (emocionais - psíquicas - espirituais) assim que se chega ao local, ou mesmo se misturando com pedras e ervas para provocar o suor e purificação em um Temazcal; cristais e incensos que atuam na purificação dos ambientes; animais de poder que ensinam com suas aparições e plantas de poder que curam, ensinam e aprendem.

Os rituais e práticas compartilhados pelo grupo dependem das pessoas que estão vivendo na comunidade. Se celebrarão um Temazcal, vocalização de mantras, meditação na chama de uma vela, encontro em torno da fogueira ou ainda danças circulares sagradas, dependerá da tradição seguida pelos que lá se encontram em um dado momento.

"A gente já... vao sendo meio que processos ou fases digamos... teve uma época aqui que a gente cantava todas as manhas mantras, acordava as seis da manha e até as sete e meia a gente ficava cantando mantras, ou seis e meia até as oito, dependendo as vezes fazíamos uma meditaçao antes ou depois. E isso era a nossa realidade por um x tempo, era todos os dias e era aquilo e a gente tava muito... e aí percebi que era também uma pessoa muito que puxava isso, que era o D. ... Ele trazia muito essa questao da espiritualidade. Ele passou muito tempo em Figueira [comunidade espiritualista liderada pelo líder espiritual Trigueirinho, em Minas Gerais]" (citação extraída de entrevista com Leo, membro da comunidade, focalizador de cursos, em agosto de 2014)

Essa postura traduz referenciais flexíveis e provisórios que parecem transbordar para outras esferas da vida, como por exemplo, nos acordos de convivência realizados pela comunidade, que também são mutáveis e contingentes, o que exige um exercício de diálogo constante. O lugar da diversidade, abertura e ecletismo com relação às práticas espirituais vividas na 'Arca Verde' vem ao encontro da percepção do Movimento New Age acerca da busca individual, no sentido de que a 'Nova Era' enfatiza "a 'liberdade da diferença', tanto em termos culturais, quanto nos aspectos idiossincráticos das personalidades individuais" (Amaral, 2000: 33). Com relação a isso, a Arca Verde apresenta-se como espaço que abriga uma multiplicidade cultural intensa, acolhendo pessoas de distintas nacionalidades e línguas, do mesmo modo que inclui distintas práticas e tradições como caminhos para o desenvolvimento espiritual.

ESPIRITUALIDADE E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO CONTEXTO DE APRENDIZAGEM

Uma vez ao ano, acontece na comunidade um Temazcal: a tenda do suor. Em geral, quem a conduz são Índio e Luz, um casal (ele mexicano, "descendente dos mexicas", como afirma quando pergunto sobre sua origem; ela é brasileira, do sul). Ambos moram no México e chegaram à comunidade dois dias antes do ritual.

A tenda que acolhe o Temazcal é construída para cada ritual. Índio trabalha em sua construção ao pé de um monte: oito bambus formam uma espécie de domo -se curvam e se entrecruzam, com suas extremidades enterradas no solo, em dezesseis buracos que formam um círculo-. Três cipós compridos são amarrados em volta do domo, demarcando os quatro diferentes planos de existência, do mais denso (corporal) ao mais sutil (cósmico). Sobre esta estrutura diversos cobertores são colocados e são responsáveis por manter o calor dentro da tenda que pode chegar a sessenta graus durante o ritual. O calor acelera a circulação sanguínea, intensificando o potencial de oxigenação e purificação do corpo (eliminação de toxinas), como informa Índio. Ao lado de fora da tenda, uma fogueira, armada com as pedras na base e, em torno delas, grossos galhos de árvores que foram apanhados nas proximidades, formando uma espécie de cone invertido ao redor das pedras (que, após ficarem um tempo em meio ao fogo, serão conduzidas para o centro da tenda).

No ritual, mulheres que 'estão em sua lua' (período menstrual) devem carregar uma "proteçao": uma linha amarrada na cintura com três "rezos"5. Os "rezos" são pequenos pacotinhos de tecido recheados com tabaco, feitos pela mulher que os carrega. Durante um pequeno ritual de confecção dos "rezos", a mulher deve pedir proteção e também "que sua energia nao afete a do grupo e que a energia do grupo nao afete a sua" (orientação recebida de Luz), enquanto recheia o tecido com o tabaco. Ao fim, os três "rezos" de pano devem ser amarrados por um fio (no caso, um fio de lã), sem que haja um nó. Brigit, uma das moradoras mais antigas da comunidade, me ensina, demonstrando, as manobras com o fio de lã. Eu a imito, tentando, com movimentos improvisados em minhas parcas habilidade manuais, manobrar o fio de lã do mesmo modo que ela o faz.

Por fim, fio de lã com os três "rezos" é amarrado na cintura. Isso acontece porque em sua lua, a mulher fica "mais aberta", seu "campo energético fica aberto". O tabaco, que em outros momentos poderia ser fumado para também produzir limpeza espiritual, une-se ao tecido e às amarras de fio de lã para garantir proteção; o tabaco se encarrega da proteção. A intencionalidade (pensamentos e orações) posta sobre a confecção dos rezos se mistura ao poder de proteção do tabaco.

Caminhamos até o pé do monte onde está localizada a tenda e, ao lado dela, a enorme fogueira onde as pedras esquentam. É noite e, finalmente, o grupo todo está reunido em frente à fogueira, Índio e Luz pedem silêncio e concentração para evocar as entidades dos "quatro portais", das "quatro direçoes". Conduzem para que todos, em pé, se voltem para as quatro direções, uma de cada vez. Para cada direção, a concha que Luz traz nas mãos soa com um sopro, produzindo um som similar a um berrante. A cada assobio da concha, um rezo feito pelos dois (Índio e Luz) pede proteção e licença/permissão às entidades que guardam os "portais" para que o ritual seja realizado. Neste momento, entram em jogo, elementos não-humanos, forças associadas as quatro direções, recebidos com certa reverência que se expressa nas posturas corporais de introspecção e no silêncio de todos enquanto Luz as evoca.

Após saudar e pedir permissão para as quatro direções e seus respectivos guardiões, pede-se permissão também para entrar na tenda: em fila indiana, ligeiramente abaixados, entramos formando um círculo da esquerda para a direita. Nas extremidades da tenda, sentamos em círculo, acompanhando a sua circunferência. No centro do círculo, um buraco, que receberá as pedras incandescentes.

Segundo Índio e Luz, a tenda do suor é a vivência de aproximação com "o útero da mae terra", também um ritual de "purificaçao e renascimento". Índio explica que existem muitas formas de realizar um Temazcal, mas que este ritual que faremos pertence à tradição Nahuatl. Inicia um "rezo" em voz baixa, em Nahuatl, evocando deuses e pedindo sua proteção. Não compreendo a língua, mas reconheço quando evoca Quetzacoatl (ou a serpente emplumada, uma das principais entidades do panteão mesoamericano nas culturas pré-cristãs).

As pedras, chamadas de "abuelitas" (avozinhas), apresentam-se como ancestralidade da terra, suas memórias, presentificando também a ancestralidade humana. Cada vez que, incandescentes pela presença do fogo em si, entram na tenda trazidas por Índio, são anunciadas: "Entra, abuelita sagrada" e todos respondem em variações: "Bem-vinda!", "Aho" ou "Aha". Após as pedras, é a vez das ervas aromáticas e resinas sagradas, com seus potenciais curadores e de limpeza -por isso chamadas de "medicina"-. Primeiro pede-se permissão para que entrem na tenda, a que se responde: "Entra, medicina sagrada". E por fim a água, onde as ervas medicinais também se encontram imersas: "Entra, água sagrada!". Junto das pedras, dos baldes com água e ervas e das resinas, estão chocalhos e tambor, instrumentos que, associados às forças da terra, acompanharão a execução dos cantos durante o ritual.

As pedras, ao entrarem na tenda, assentam no centro do círculo. Então, são marcadas com um pedaço de "cobal" 6, enquanto se faz um rezo, acompanhado de intenções de cura, de harmonização, comunicação e conexão, evolução de todos os seres. Após o primeiro rezo, fizemos uma rodada de partilha de intenções, em clima de introspecção, vozes em baixo volume e pausas silenciosas enunciam intenções de cura de relações, clareza de comunicação, purificação, transmutação de emoções, benefícios a todos os seres vivos, completa abertura ao desconhecido… essas vozes carregam consigo as emoções vividas pelos participantes no momento presente, no início do ritual.

Após os rezos para cada "porta" é a vez da água com as ervas ser cuidadosamente jogada, com o auxílio de um maço de ervas, sobre as pedras para que se produza o vapor responsável pelo calor, pelo suor e pela "purificaçao". O vapor é também um emaranhado, cruzamento do fogo, das pedras, da água, das plantas e suas propriedades curativas transferidas para a água em que estão imersas. O vapor é sentido na pele, pelo tato -temperatura e umidade- e as ervas são experimentadas em seu aroma, pelo olfato. As ervas também circulam, em dado momento, por meio de um chá, envolvendo na experiência ritual o sentido da gustação e a incorporação das propriedades curativas das ervas.

Cada etapa de entrada das pedras chama-se "porta" e cada uma delas é dedicada para um dos 4 pontos cardeais, ou "quatro portais" -e para as entidades imateriais relacionadas a eles-.A cada porta, a disposição corporal exigida se diversifica -dedicada ao masculino, música (atividade); ao feminino, silêncio (passividade); a integração de feminino e masculino (união), sombra e luz, mãe e pai-. A última porta e de gratidão, de celebração da criança interior e preparação para o re-nascimento.

"Da mesma forma como somos formados por terra, fogo, ar e água e, por isso, contemos em nós o cosmo, devemos harmonizar pai e mae, céu e terra, luz e sombra, positivo e negativo dentro de nós", explica Índio. "O ritual do Temazcal também trabalha esta integraçao", complementa. E interessante observar que a cada uma dessas polaridades, corresponde uma disposição corporal, uma expressão em performance. Do mesmo modo, cada etapa do Temazcal mobiliza distintas emoções, disposições, insights e aprendizados.

Berthomé e Houseman (2010) oferecem um breve apanhado histórico das análises antropológicas sobre a relação entre rituais e emoções, defendendo que ocasiões rituais -como processos de interação relacional- são uma área potente para a investigação de emoções. Para estes autores, rituais são contextos interativos dinâmicos e as emoções são ao mesmo tempo propriedades emergentes e componentes que integram as relações humanas (Berthomé e Houseman, 2010: 57-75). Ao considerarmos as emoções como elementos emergentes em um contexto ritual, propomos migrar a atenção para além das interações entre humanos, observando como a ação do fluxo de materiais (pedra, fogo, ar, água, plantas, corpos, sons) permite igualmente esta emergência, compreendendo as emoções como forças que podem ser mobilizadas, transformadas, liberadas em um ambiente conformado por materialidades (Ingold, 2013a): corpos humanos e não-humanos, densos como terra e sutis como presenças.

A cada porta, as pedras entram na tenda e os rezos (orações) são realizados novamente, com intenções, pedidos e agradecimentos. A cada porta, Luz convida uma pessoa para fazê-lo. Na última porta, Luz passa o "cobal" para mim, que esboço orações e intenções enquanto marco as pedras incandescentes com o macerado de ervas com odor intenso, como havia observado os outros fazendo anteriormente. Esta ação nos faz pensar que, neste ritual, é difícil diferenciar veteranos e novatos. A não ser pela demarcação do casal Índio e Luz, como os dirigentes, todos os demais, novatos e veteranos, tomam igualmente parte nas ações rituais.

Ao final da segunda porta, Luz pergunta como estão todos. Leo já está deitado no chão, sentindo um pouco de desconforto pelo calor. Aproximar o rosto do solo auxilia a melhorar o desconforto. Luz esclarece que estamos em uma tenda de limpeza, afirmando que se precisássemos cuspir, urinar, vomitar, poderíamos fazê-lo dentro da tenda, procurando um espaço adequado na sua periferia -são reações comuns em rituais destinados a limpeza-. Enuncia, de certo modo, uma relação de continuidade e não separação entre a experiência corpórea e a espiritual. Corpo e espírito são dimensões de um contínuo, visível e invisível. A limpeza do corpo e também a limpeza do espírito, a liberação de toxinas corporais e também a liberação de emoções e quaisquer males espirituais.

Durante a realização do ritual, aproximadamente 4 horas, a experiência de "dissoluçao" é corpórea. Os corpos desnudos e relaxados pelo calor, imersos em vapor dão passagem às emoções. A sensação da fronteira corporal se torna difusa pela ausência da diferença de temperatura entre o corpo e o ambiente ou ainda do invólucro dos tecidos. O corpo se abre para o mundo através da dilatação dos poros, sensação de fusão com a imersão no vapor. A fusão também se faz sentir pela visão, quando não é possível enxergar absolutamente nada -visualmente, todos imersos em um corpo escuro-. O escuro era quebrado somente quando da entrada das pedras que, incandescentes são colocadas dentro do buraco central, deixam vazar feixes tímidos de luz que se esvaem aos poucos até o breu (dissolvem-se as formas claras, visualmente bem definidas e involucradas); a fusão também é sentida através do som, estamos imersos, sintonizando os tons e intensidades das vozes em um mesmo e único corpo sonoro. As sensações convergem para a vivência de mistura com a terra (chão e pedras), o ar (compartilhado), o fogo7 (das pedras incandescentes), a água8 (vapor) e as plantas com suas propriedades curadoras e intenso aroma.

A música, o chá de ervas, o vapor e o suor, atuam na purificação e transmutação de um corpo-mente-espírito, que se conecta com o útero da Terra e se prepara para renascer. Na saída, um a um, agachados, passamos por uma pequena -e única- porta na tenda. Como em um nascimento simbólico (e corpóreo) o mundo foi novamente ganhando formas, que surgiam pela luz que a fogueira emanava, fazendo com que os olhos voltassem a se acostumar com elas. Já fora da tenda, os participantes se abraçam e agradecem uns aos outros. Sinto aquele momento de abraços como um ato que sela a cumplicidade diante da partilha da experiência sensível, em suas dimensões visíveis e invisíveis.

Ao analisar o papel da estética no contexto religioso, Meyer (2009) ressalta os modos como a imaginação se materializa, sendo experienciada como real, através de incorporação que invoca e perpétua experiências, afetos e emoções compartilhadas que são ancoradas e ativadas por um mundo de "common sense" (e aqui a expressão tem duplo sentido, dizendo respeito tanto a senso comum, quanto a sentidos/sensações comuns). A partilha de experiências sensoriais, através de rituais que buscam retomar as 'tradições ancestrais' parece atuar na construção de um território/ mundo comum e fazer parte dos processos em que se aprende, com o mundo, consigo, com o outro, com a vida.

Conforme afirma Bergo (2010), ao falar sobre as aprendizagens em um terreiro de umbanda, em práticas rituais podemos aprender sobre gestos, significados, emoções, disposições corporais etc. Do mesmo modo, consideramos que no Temazcal, aprende-se a habilidade de escutar, de silenciar, ser atravessado por afetos e emoções em uma experiência compartilhada, a sintonizar através do canto. Aprende-se também formas de se falar do mundo e a educar os sentidos (visão, audição, tato, gustação e olfato) para perceber a ação de materiais/elementos (fogo, pedras, tambores e chocalhos, vapores, cheiro e gosto de ervas) e suas forças visíveis e invisíveis. De modo mais sutil, as forças presentes no Temazcal podem se manifestar na emergência de emoções e insights sobre os "processos"9 vividos pelos participantes. Esta espécie de abertura dos sentidos também se relaciona à possibilidade de perceber e engajar-se no mundo de modos mais 'sensíveis', ensaiando outros modos sintonizar com o mundo, com seus efeitos, forças, afetos, luzes e cores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao olharmos para o entrelaçamento entre práticas ecológicas e espiritualidade no contexto da ecovila estudada, encontramos uma aprendizagem que se expressa na capacidade de estabelecer sintonia e ressonância com um mudo mais que humano, composto de materiais e forças. Neste cenário, a experiência compartilhada aparece como elemento de conexão entre as pessoas e as coisas, na prática de uma espiritualidade imanente em que a conexão com o sagrado se dá através de elementos da natureza.

A co-existência de elementos humanos e não-humanos, que participam mutuamente na construção de sentidos para o mundo, aparece claramente no ritual de Temazcal, em que purificação física, mental e espiritual é fruto da ação conjunta do fogo, das pedras, das ervas aromáticas e resinas sagradas e medicinais, da água jogada sobre as pedras, do ar que se torna meio para a viagem das partículas de vapor e das forças ou entidades evocadas para permitir e proteger o ritual. O ritual é, assim, um entrelaçamento de coisas: a pedra no fogo, a erva na água, a água na pedra, vapor no ar e no corpo, corpo na terra.

Em sendo um "emaranhado" de materiais e forças em movimento, "um encontro e entrelaçamento de matérias em movimento" (Ingold, 2013: 4), mais do que de objetos separados entre si, o ritual realizado parece conter três tipos de continuidades: uma continuidade interior-exterior, como a fita de moebius10, quando a presença e harmonização/equilíbrio dos quatro elementos conformam um ambiente em que se torna possível harmonizar/ equilibrar os mesmos elementos e forças que nos constituem enquanto seres/indivíduos; uma continuidade microcosmo-macrocosmo, em que a busca de harmonização das relações naquele microcosmo é capaz de emanar harmonização para o macrocosmo. O esforço individual, assim, de aprendizagem, integração, limpeza e cura, é também um empreendimento coletivo. Dai, decorre que a busca de equilíbrio e contato com a natureza como caminho para uma integração pessoal apresenta como indissociáveis a saúde do planeta e a do indivíduo (Carvalho & Steil, 2008); e, por fim, a continuidade das diferentes dimensões e densidades da existência, pois a limpeza do corpo, da mente e do espírito é uma só, em um contínuo de dimensões diversas que se correspondem. Estas dimensões não são vistas como separadas ou como possuidoras de uma natureza distinta, senão como fenômenos contínuos. A relação direta entre menstruação -no plano físico- e a abertura do campo energético/espiritual, do mesmo modo como as excreções corporais são correlatas à purificação e transmutação mental e espiritual. Essas continuidades percebidas desafiam as dicotomias mentecorpo, espírito-matéria, propondo uma linha contínua que conecta esses elementos no lugar de um abismo que os separa.

NOTAS

1 Pesquisa "Cultivo de si nas paisagens da ecologia e do sagrado", Coordenada pela Professora Dra. Isabel Cristina de Moura Carvalho, concluída com o apoio do CNPq.

2 Tim Ingold (2012; 2013; 2013a entre outras obras) discute a distinção entre a noção de "coisa" e "objeto", que reflete seu posicionamento crítico em relação ao hilemorfismo.

3 Permacultura refere-se a um sistema criado na década de 70, na Austrália, e que, resumidamente, pode ser definido como "paisagens planejadas para reproduzir padroes e relaçoes que nos encontramos na natureza, com objetivo de produzir alimento, fibras e energia para prover as necessidades locais" (Holmgren, 2013: 33). Este sistema propõe a articulação das diversas dimensões da vida: cuidado com a terra, construções, tecnologias, cultura e educação, economia, governança e bem-estar espiritual. Em outras palavras, seguindo o mesmo autor, este sistema retoma técnicas tradicionais para criar ecossistemas harmônicos e diminuir o nível de prejuízos que o humano pode fazer ao ambiente, auxiliando a aumentar a biodiversidade.

4 Conforme lembrado por espiritualidades como a Nova Era tendem a apresentar uma relação direta da natureza com o sagrado, resgatando elementos das "tradiçoes pré-cristas, orientais e indígenas" (Carvalho & Steil, 2009: 85). O resgate de filosofias e tradições antigas como formas de contestar valores capitalistas e o materialismo da sociedade de consumo foi marca dos movimentos de contracultura, bem como a reivindicação de um olhar distinto sobre a natureza da espiritualidade individual e o conhecimento racional e experimental (Torre Castellanos, 2012).

5 O termo "rezo" apareceu algumas vezes no campo de pesquisa, associado a rituais como este que descrevo, com mais de um sentido empregado. Ora para designar os pequenos pacotes feitos de tabaco, acompanhado de rezas/orações; ora para designar as própias rezas/orações: "rezos", como aparecerá na sequência do texto. Provavelmente este termo também esta ligado a palavra em espanhol "rezo" usada no sentido de "reza ou oração", em português. A final, o Indio que conduziu o ritual é mexicano.

6 Como é chamado uma espécie de mascerado de ervas, com um aroma intenso e coloração muito escura.

7 O fogo também aparece como agente de purificação em outros contextos, como quando em um dos cursos, os participantes foram convidados a passar alguns minutos junto ao fogon as boas vindas, para passar por uma espécie de purificação ou limpeza "deixar de fora as preocupaçoes e as coisas todas/energias que trazemos com a gente lá de fora". A fogueira pode ser ainda "transmutadora" de energias e intenções, estando presente no ritual de passagem de ano, quando fazem a partilha ao redor do fogo.

8 A água igualmente aparece como agente de purificação no lago, localizado no centro do terreno da 'Arca Verde'. Alguns gurus, de diferentes tradições, já alertaram sobre o malefício de tomar banhos no lago, uma vez que este lago tem uma função de limpeza do lugar.

9 "Processo" e um termo utilizado pelos membros da comunidade para designar uma espécie de desafio de autoconhecimento, ou desafio emocional que conduz a um melhor entendimento sobre questões pessoais, características, relações, comunicação, etc.

10 A fita de Moebius (ou Möbius) é uma faixa colada nas suas extremidades, após efetuar meia volta em uma delas. Assim, forma-se uma superfície contínua que permite a passagem por dentro e por fora do círculo.

REFERÊNCIAS

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5. Carvalho, Isabel Cristina de Moura & Steil, Carlos Alberto 2009. "O habitus ecológico e a educação da percepção: fundamentos antropológicos para a educação ambiental". Em: Educaçao e Realidade, Vol. XXXIV, N°3, Porto Alegre: UFRGS - FACED.         [ Links ]

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