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Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.30 Posadas jun. 2017

 

DOSSIER

Tradicional e pacífico, contemporâneo e interdito: o discurso francês dos ritos de morte

 

Andreia Vicente da Silva*

* Professora de Antropologia do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Brasil. Email: deiavicente@gmail.com

Fecha de recepción del original: 20/03/2017.
Fecha de aprobación: 07/02/2018


RESUMO

A partir de meados do século XX houve um grande crescimento das produções das ciências sociais europeias, notadamente francesas, a respeito da vivência da morte. Nestas produções há uma tendência em trabalhar o tema a partir da composição de pares de oposição entre a expressão tradicional de convivência pacífica e natural com o morrer e o modelo contemporâneo caracterizado pela interdição e pelo afastamento da morte e dos mortos. Neste artigo bibliográfico, acompanho a formação desse campo de debates na França entre os anos de 1949 a 1985 apresentando algumas das teorias e metodologias explicativas que embasam os argumentos dos autores da época. Em seguida, apresento exemplos de estudos do último quarto do século XX que evidenciam os desdobramentos do caso francês para a análise dos ritos de morte.

PALAVRAS-CHAVE: Morte; Ritual; Convivência; Desritualização; Afastamento. 

ABSTRACT

From the middle of the twentieth century there was a great growth of the productions of the European social sciences, especially French ones, regarding the experience of the death. In these productions there is a tendency to work on the theme from the composition of pairs of opposition between the traditional expression of peaceful and natural coexistence with dying and the contemporary model characterized by the interdiction and remission of death and the dead. In this bibliographical article, I follow the formation of this field of debates in France between the years of 1949 to 1985 presenting some of the theories and explanatory methodologies that support the arguments of the authors of the time. Next, I present examples of studies from the last quarter of the twentieth century that show the unfolding of the French case for the analysis of death rites.

KEYWORDS: Death; Ritual; Coexistence; Desritualization; Removal.


INTRODUÇÃO

A partir de meados do século XX houve um crescimento das produções das ciências humanas e sociais europeias, notadamente francesas, a respeito da vivência da morte. Essas publicações abrangem tanto o enterro quanto o luto.  Em grande parte desses estudos, tende-se a trabalhar o tema a partir da composição de pares de oposição entre a expressão tradicional de convivência pacífica e natural com o morrer e o modelo contemporâneo caracterizado pela interdição e pelo afastamento da morte e dos mortos1.

Neste artigo bibliográfico, demonstrarei a formação desse campo de debates no contexto francês.  Primeiramente, apresento argumentos utilizados nas obras produzidas por alguns autores clássicos do campo dos anos de 1949 a 1985 apostando que estes analisaram as transformações históricas a partir da perspectiva da retração das expressões rituais. Em seguida, demonstro como a partir dos anos 1990, aconteceu uma mudança nos referenciais teóricos dos estudos franceses. Minha intenção é exemplificar de que forma os estudos da área vão se transformando a partir da adoção de novas modalidades analíticas. Meu objetivo mais geral será apresentar elementos que compõem as discussões a respeito das transformações na vivência da morte e que teorias e metodologias explicativas embasaram os argumentos dos autores.

É importante ressaltar que os autores franceses utilizados nesta revisão bibliográfica são referências internacionais nos estudos da morte e seguem sendo amplamente citados. Por isto mesmo, acredito que debater alguns pressupostos deste campo de estudos pode ser imprescindível para pensar a vivacidade e a pluralidade teórico-metodológica da categoria e da própria vivência ritual. Assim sendo, compreendo que o conhecimento aprofundado a respeito do discurso de simplificação e desritualização da morte contemporânea pode lançar luz para os estudos da morte em diversos contextos já que nos permitiria questionar essa concepção e ao mesmo tempo alargar as possibilidades de utilização do conceito tanto para aquelas atividades que tradicionalmente já são reconhecidas como tal, quanto para as novas modalidades de rito.

Por isto mesmo, a substituição do termo "ritual" pela expressão "ritualização" não significa só uma mudança de palavras. Diferentemente do "rito", o termo "ritualização" implica na assunção de que na contemporaneidade o sistema formal mais rígido foi gradativamente sendo substituído por formas diversificadas de vivência do fenômeno. A ritualidade é assumida como um quadro de gestos e palavras colocadas em prática e não como rito clássico que exigiria tradicionalidade, repetição e formalidade. Nela, perde-se a obrigação da realização das convenções.

Catherine Bell (1997:138) explicou que tendemos a pensar ritual como aquelas atividades que estão fora do cotidiano e na maioria das vezes pensamos que esse tipo de manifestação não tem lugar na modernidade. Contudo, ela chama atenção para o fato de que a "ritualização" persiste embora existam atividades que são ritualizadas em menor ou em maior grau do que outras. A ritualização é uma maneira estratégica de ação e não é qualquer ação que é representativa de um ritual.

Os recortes temporal e espacial escolhidos por mim tomam como ponto central de discussão o conceito de rito2. Minha aposta é que o uso contínuo desse aparato conceitual em sua formatação clássica, ou seja, a participação em cerimoniais formais, com objetivos institucionalizados e com procedimentos padronizados, foi um dos responsáveis pela compreensão datada de que a morte contemporânea estaria sendo gradativamente desritualizada. Na busca por esta modalidade teórica, em cada um dos contextos específicos trabalhados, aqueles autores se deixaram influenciar por uma visão romântica das sociedades pretéritas nas quais o rito aparecia como parte do aparato religioso coletivo hegemônico. A partir desse parâmetro, questionaram a existência dos rituais nas sociedades contemporâneas ocidentais –sociedades pós-modernas­– dominadas pelos paradigmas científico, individualista e laico.

Após exame da literatura em questão verifiquei que o afastamento contemporâneo da morte foi apresentado principalmente como resultante do abandono das ideias religiosas, da diminuição das manifestações coletivas e da adesão ao individualismo e do cientificismo –o que provocou uma vivência cada vez mais laica e solitária do fenômeno–. Os estudiosos argumentam que com a perda das crenças na eternidade da alma e diante de um mundo onde a luta pela cura e pelo prolongamento da vida é uma prática cotidiana, "aceitar pacificamente" o fim se transformou numa realidade intratável. Diante dessas transformações, os rituais deixaram de ser realizados ou foram transformados irremediavelmente. Esses deslocamentos acabaram dando a impressão de um esquecimento ou afastamento dos mortos.

Primeiramente3, retomo o conceito de "pornografia da morte" e quais são as suas consequências para a literatura da segunda metade do século XX. No momento seguinte que corresponde às teses apresentadas em fins do século XX e início do século XXI na Europa houve um salto nesta mesma produção que caracteriza cada vez mais a morte e a imortalidade a partir de expressões associadas a "laicização" e a construção da "memória social" –o que obrigou os autores à construção de outro tipo de conceito de rito–. Esse exercício é interessante, pois o campo de debates brasileiro, por exemplo, é amplamente influenciado pelas perspectivas temáticas e teóricas francesas que pretendo salientar.

Saliento que durante a apresentação das ideias deste estudo, minha ênfase estará sempre nos "ritos de morte". Para facilitar meu trabalho de descrição da literatura optei por utilizar esse termo como englobando os "ritos de enterro" (realizados para dar conta do corpo morto) e as "ritualizações de luto" (que objetivam estabilizar sentimentos surgidos a partir da perda ocasionada pela morte). Já que compreendo os "rituais de morte" como um processo complexo com formas e intensidades diversas e variáveis, enfatizo que a utilização do termo não tem a finalidade de simplificar os acontecimentos ou privilegiar um item sobre o outro.

A partir de agora analisarei as obras produzidas pelos cientistas sociais a respeito dos rituais de morte focalizando o conceito de rito e salientando os entraves e as saídas propostas pelos especialistas para cada um dos contextos escolhidos.

PORNOGRAFIA, TABU E INTERDIÇÃO DA MORTE

De acordo com Áries (1975), Geoffrey Gorer foi o primeiro a chamar atenção para os perigos da configuração contemporânea da morte. Em Pornography of death, Gorer (1955) explicou que a atual interdição da morte estava sendo causada pelo declínio das crenças religiosas e pelo abandono da realização dos "rituais de morte". Para confirmar essa hipótese, ele realizou um estudo que deu origem ao livro Death, grief and mourning in contemporary Britain (1965), no qual apresentou os resultados de uma enquete realizada por ele na Inglaterra4. A partir das respostas dadas a essas perguntas, Gorer defendeu que ocorria um processo de retração da participação pública nos rituais de enterro e a diminuição da realização dos ritos formais de luto.

Gorer explicou que a sociedade inglesa do início do século XX tinha regras de comportamento socialmente definidas para os enlutados como, por exemplo, a participação em cerimônias funerárias, o uso de roupas pretas, os penteados específicos e a reclusão familiar. No entanto, aconteceram transformações nesse padrão de exposição pública da dor que foi aos poucos sendo modificado até que em meados do século XX, as regras coletivas de luto haviam praticamente desaparecido. No momento seguinte, surgiu um tipo de luto mais "interiorizado" que foi caracterizado pela perda de modelos coletivos de como proceder diante de uma morte. A interpretação de Gorer era que no contexto do desaparecimento do "luto social" a demonstração pública da dor pela morte de um parente ou amigo se tornou signo de fraqueza.

A partir dos argumentos de Gorer outros especialistas se dedicaram à análise do tema. No contexto de explicitação da tese do "afastamento da morte", Áries (1975) teve papel importantíssimo. Ele aprofundou ainda mais as colocações de Gorer ao estudar as transformações das atitudes dos homens diante da morte num espaço temporal que vai desde a Idade Média até a contemporaneidade. Ao tomar de empreitada um período de tempo tão grandioso, seu objetivo foi demonstrar que no curso de uma história de "longa duração" houve alguns momentos de mudança das estruturas de pensamento a partir dos quais surgiram novas formas sociais de viver o fenômeno. Entre as transformações detectadas por ele, estava aquela que opunha a vivência da morte nas sociedades urbanas laicas contemporâneas ocidentais àquela católica tradicional que existiu durante diversos períodos da Idade Média Ocidental. Baseado nestas diferenças, ele denominou a morte medieval de "morte domesticada" e a morte contemporânea de "morte interdita", explicando que entre os dois períodos aconteceu uma inversão na forma de viver o fenômeno. Demonstrar o crescimento desse campo de discussões e explicar como se construiu teoricamente essa contraposição é o ponto central desse exercício bibliográfico.

Tanto Gorer (1965) quanto Ariès (1949; 1975) reconheceram as dificuldades encontradas pelas sociedades contemporâneas no trato com a morte. A partir da circulação dos seus livros ocorreu uma explosão de publicações que verificaram a tendência contemporânea de afastamento da morte chamando atenção para as consequências sociais e individuais desastrosas desses comportamentos. Em solo francês, outros autores como Thomas (1980), Vovelle (1983) e Chaunnu (1984) também questionaram estas mudanças. Chamo atenção do leitor para o fato de que as obras desses autores franceses são utilizadas amplamente nos estudos sobre "ritos de morte" nas Américas.

É um ponto de acordo entre muitos desses estudiosos dos "rituais de morte" a diagnose de que aconteceram recuos enormes na quantidade e na qualidade das expressões fúnebres em nossos tempos. Nesse contexto, poder-se-ia dizer que a defesa da tese da "simplificação contemporânea da morte" –da qual estamos remontando o início– já faz parte de um tipo de "senso comum" historiográfico. A partir desta constatação datada, defendo a hipótese de que a teoria social utilizada por muitos desses especialistas foi a responsável pela criação desse tipo de enunciado. Por isto, além de discutir o uso irrestrito da "teoria formal dos rituais", começarei apontando que nessa época havia grande dificuldade em discutir a realidade social a partir de modelos analíticos que permitissem trabalhar com terrenos de multiplicidade simbólica. Um dos primeiros reflexos desse obstáculo apareceu quando se desenvolveu aquilo que chamarei da "variável inversamente proporcional ciência e religião". De acordo com esta interpretação, o paradigma científico como expressão dominante dos hábitos e comportamentos decorrentes de uma morte se sobrepôs, na medida em que diminuía a influência religiosa nesse terreno. Essa tendência cresceu e tomou corpo também nos estudos baseados no positivismo e no protestantismo.

Para resolver essa primeira questão, entendo ser necessário compreender que o que estava sendo visualizado não era apenas o decréscimo religioso e o aprofundamento do conhecimento científico do morrer. O estudo da configuração do sistema da morte contemporânea pressupunha, e ainda hoje exige, diversos elementos. O reconhecimento dessa complexidade teórica foi o principal entrave para esses autores. Com o objetivo de oferecer outra interpretação para este debate é preciso utilizar um arsenal teórico que assuma a realidade social a partir da convivência de múltiplos referenciais simbólicos que se expressam através de diversos mecanismos rituais. Assim, primeiramente demonstrarei como os autores estão apresentando o sistema de morte para em seguida propor outro tipo de conceito de ritual que de acordo com meu entendimento seria mais adequado para o estudo dos contextos complexos e múltiplos.

Aqui esclareço que não se trata de uma crítica aos autores franceses. Meu objetivo é mais apontar esses encaminhamentos específicos do período para gerar questionamentos no atual campo de estudos. Afinal, como já demonstrei em artigo anterior (Vicente da Silva, 2011b), é justamente a romantização de um modelo de expressividade ritual (formal, institucional) que faz com que modelos de ritualizações mais individualizados e/ou desinstitucionalizados sejam examinados a partir da perspectiva da retração ou mesmo da ausência. No caso brasileiro, no qual há predominância de pesquisas feitas a partir da análise dos sistemas religiosos este argumento pode ficar bastante claro. Aqui é evidente a ênfase no desenvolvimento de estudos em contextos em que há previsão institucional para comunicação entre os vivos e os mortos, como, por exemplo, no caso católico (Reesink, 2009), nas religiosidades de matriz africana (Cruz, 1995) ou mesmo no espiritismo (Cavalcanti, 2004). Já as expressividades religiosas nas quais não há esta ênfase ou mesmo nos contextos laicos, a vivência da morte é apresentada como evidência do afastamento e da simplificação (cf. Soares, 1990).

Daqui por diante eu apresento os elementos que sustentam a argumentação de alguns autores franceses do período selecionado. Ao mesmo tempo, a proposta é utilizar esses mesmos materiais para comprovar que é possível, a partir do mesmo campo empírico, aplicar outro modelo teórico que permita visualizar a multiplicidade de outros contextos rituais.

Para iniciar tomo como exemplo um dos escritos de Ariès. Ao longo do seu "Ensaio sobre a história da morte no Ocidente" (1977), ele apresentou os elementos que ajudaram a sedimentar a transição dos "modelos de rituais de morte".

Ariès explicou que durante boa parte da Idade Média, a morte era vivida como uma cerimônia pública onde havia a presença de um ato religioso comandado pelo moribundo e centrado sucessivamente na figura do morto. A eficácia das explicações religiosas conferia ao momento um caráter natural onde o fim da vida era aceito serenamente como uma das etapas da existência humana. Mudanças lentas aconteceram e estas desprivilegiaram a característica coletiva dos rituais de morte. As crenças religiosas e os ritos coletivos foram substituídos pela individualização e laicização do fenômeno. Os testamentos deixaram de possuir conteúdos religiosos. Ao mesmo tempo, a morte passou a ser questionada dando origem tanto a um exagero no luto quanto ao culto moderno das tumbas. A introdução do positivismo ajudou a produzir um outro modelo para lidar com a morte marcado pela desritualização e pela diminuição da eficácia das explicações religiosas principalmente aquelas que diziam respeito à continuidade da existência da alma. O momento da morte deixou de ser vivido na casa da família para ser vivido no hospital sob a direção de uma equipe médica e técnica. Neste movimento, os antigos "ritos de morte" foram abandonados e houve uma decomposição da morte médica em pequenas etapas mecanizadas praticamente imperceptíveis que dão a impressão de que ela não aconteceu. Num processo de longa duração, a morte se tornou um dos grandes tabus da atualidade.

A partir dessa breve apresentação é possível perceber quais são os principais termos que compõem o debate. Sabe-se que as evidências empíricas apresentadas por Ariès são extremamente complexas e foram sucessivamente reiteradas na obra de diversos autores. No entanto, a forma como estes elementos foram interpretados acabou reforçando a tese da dicotomização temporal entre religião e ciência –o que, por sua vez, favoreceu o crescimento da ideia de desritualização–. Creio ser útil demonstrar que havia neste trabalho de Ariès, e em diversos outros, as evidências empíricas que possibilitariam a visualização da multiplicação de referenciais simbólicos para os ritos de morte– o que poderia provocar uma classificação diferente para o fenômeno–. No entanto, o tipo de teoria social utilizado por estes analistas não permitia a adoção dessa vertente interpretativa.  A partir da retomada desses tópicos será possível perceber quais as transposições construídas na montagem dos argumentos.

Decompondo o modelo teórico que rege a análise de Ariès percebo um sistema social que funciona através de símbolos oficiais e de ritos formais. Os primeiros são as ideias e os segundos as ações sociais coordenadas que sustentam a criação e a manutenção das primeiras (Durkheim, 2000). É importante perceber que esse padrão de análise foi desenvolvido a partir de uma documentação oficial retirada dos acervos dos Estados e da Igreja. De acordo com esse modelo, os ritos auxiliam na manutenção da estrutura social que funciona coagindo seus integrantes à realização de um repertório de atos. Nesta concepção, uma mudança nas práticas sociais –a exemplo desta nas atitudes diante da morte– se dá pela transformação da estrutura que coordena as consciências individuais através de um outro padrão simbólico coletivo.

A adoção desse corpo explicativo fica muito clara nos textos de Ariès. Para ele, no mundo Ocidental contemporâneo a dominância religiosa diminuiu e o padrão científico individualista se sobrepôs. Nele, a morte técnica e a busca por desenvolvimentos advindos da experimentação e da ciência para o prolongamento da vida seriam os motores da ação. A adesão à crença na vida eterna da alma diminuiu deixando de ser evocada. Por isto, os modelos religiosos de comportamentos coletivos praticamente desapareceram e surgiu um outro escopo de ideias dominantes advindo da ciência. Nelas, os indivíduos estão sós diante de uma morte que se caracterizava pela intervenção técnica. A influência religiosa e familiar saiu de cena dando lugar à predominância médica. A aceitação pacífica do fim deixou de existir e surgiu um modelo alternativo onde se buscava a cura e o prolongamento da vida. É todo esse conjunto de ideias e práticas que se tornou dominante e que facilitou a afirmação, num segundo momento, do progressivo desaparecimento dos ritos formais de morte5.

O primeiro passo para a elucidação da questão parece-me estar presente no reconhecimento de que as abordagens que privilegiam uma estrutura dominante que se afirma através de ritos formais não dão conta da análise da morte na contemporaneidade que deve partir do reconhecimento do individualismo como um dado irrefutável. A observação dos exemplos dados pelos autores da época nos ajuda a perceber como esse modelo teórico fez com que a multiplicação dos referenciais simbólicos e práticos associados ao morrer fosse apresentada como prova do decréscimo da influência das ideias religiosas e como argumento para a não visualização dos rituais.

Antes de partir para a análise do termo ritual mais especificamente, gostaria de chamar atenção para o fato de que não quero dar a impressão de que a formação do campo de discussão a respeito da morte contemporânea nesse período guardava em seu seio a calmaria das concordâncias. Existiam várias discordâncias e no seu cerne novas interpretações foram sendo construídas.

Um bom exemplo dessa disparidade pode ser dado a partir da análise do trabalho de Michel Vovelle que foi um dos primeiros autores a fazer referência explícita a essa multiplicação dos referenciais contemporâneos. No livro La mort et l'Occident (1983) ele decidiu analisar os "rituais de morte" a partir de três pontos diferentes: a morte sofrida, a morte vivida e o discurso da morte. Essa tríade o ajudou a explicar como o sistema de morte se transformou. Uma das suas hipóteses é que a organização das ideias científicas teria ajudado a modificar as percepções da morte (Vovelle, 1983:24). Por exemplo, no nível do "discurso da morte" Vovelle explicou que os especialistas sempre tiveram papel preponderante na construção de certas ideias influentes na sociedade. Para ele, o surgimento da "morte interdita" seria resultado tanto de uma ideologia construída pelo discurso científico e laico –médico ou sociológico, por exemplo– quanto da diminuição das publicações religiosas a esse respeito. Vovelle percebeu que houve o gradativo encolhimento da literatura religiosa explicativa da finitude humana que antes era difundida em todos os setores das sociedades ocidentais. Com essa diminuição, o discurso religioso passou a ser mais um dentre diversos outros existentes. Não mais uma ideia oficialmente imposta. Para o autor, com a perda desse monopólio cristão explicativo6, a morte adquiriu certa invisibilidade na sociedade mais ampla (Vovelle, 1983:720).

Com esse exemplo pode-se facilmente perceber como aconteciam avanços e recuos no sentido de construir uma interpretação mais coerente para a "morte contemporânea". Entretanto, para que meu objetivo seja alcançado, será necessário partir para o segundo tópico da análise e discutir o conceito de ritual nessas obras.

Antes de iniciar propriamente a exposição, quero enfatizar que não estou negando as transformações na maneira de viver a morte nem a retração da sua visibilidade pública. Minha intenção na continuidade deste texto é explicar que o tipo de teoria ritual utilizada, também ajudou a gerar a caracterização da "interdição da morte".

'INTERDIÇÃO E DO TABU DA MORTE CONTEMPORÂNEA'

Louis Vincent Thomas, um dos criadores do Boletim da Sociedade Francesa de Tanatologia e grande especialista no assunto, fez uma crítica à forma como a sociedade francesa da época tratava os mortos em seu livro Rites de mort (1985). Thomas afirmou que, ao contrário das sociedades arcaicas que possuíam um "arsenal de ritos", as sociedades industriais urbanas possuiriam um número "limitado de crenças e sequências rituais invariantes fundamentais". O autor percebeu e questionou a escassez das sequências rituais, etapas e regras de comportamento. Foi a partir da lógica da falta que ele caracterizou a vivência atual da morte como sendo dominada pela desritualização. Ele sustentou que na concepção técnica e científica do fenômeno o pragmatismo dominava o cenário.

No entanto, de dentro de sua própria obra surgem alguns elementos que permitem contestar essas afirmações. Por exemplo, Thomas percebeu o ressurgimento de práticas antigas entre os franceses baseadas no que ele chamou de "crenças exóticas": a reencarnação e a regressão hipnótica (Thomas, 1985:104) –o que prova que havia formas alternativas de ritualizar a morte–. Contudo, ao invés de reconhecê-las como possibilidades de ressignificar a finitude, ele justificou esse surgimento através de uma pretensa falha dos condutores simbólicos coletivos anteriormente existentes. Foi justamente a ausência de mecanismos simbólicos específicos para a vivência coletiva e formal da morte que fez surgir ideias desordenadas. Assim, o autor explicou que essas mélanges thanatiques7 foram ocasionadas pela ausência de estruturas sociais e "ritos formais" disponíveis para lidar com a perda.

A partir das ideias de perda de referenciais tradicionais é possível compreender que para Thomas havia um pretenso enfraquecimento dos símbolos e ritos tradicionais que dava abertura para o surgimento de "ideias desordenadas" ineficazes para produzir uma vivência plena da finitude. A desordem, neste caso, parece ser fruto da mudança no modelo hegemônico anteriormente praticado, sobretudo nas sociedades ocidentais europeias. Ao mesmo tempo, a associação entre religião e ciência nas novas práticas fúnebres parece trabalhar num eixo de pluralidade de sentidos que não encontrou enquadramento no conceito clássico por ele utilizado.

Fica mais fácil comprovar essa percepção, fazendo uma retrospectiva da carreira de Thomas. Seus estudos foram realizados em sociedades africanas. Nessas comunidades "tradicionais"8 da África ele encontrou um padrão de relacionamento com a morte onde os ritos eram utilizados como mecanismo de equilíbrio do grupo e ao mesmo tempo propiciavam a sobrevida individual. Os comportamentos padronizados eram ferramentas que ajudavam a canalizar a incerteza provocada pelo fim da vida. Em seus livros, os rituais foram apresentados como evidências de um modelo de vida onde a solidariedade funcionava através de um padrão religioso dominante (Thomas, 1978 e 1985).

Em comparação com o modelo africano, Thomas descreveu a morte urbana como uma morte técnica e desumanizada na qual o luto seria escamoteado. Ao realizar uma produção comparativa, ele, assim como muitos outros especialistas, buscou nas sociedades urbanas o mesmo tipo de material ritual que encontrara naquelas comunidades tradicionais. Ao perceber que esse tipo de rito diminuía sua abrangência, o caminho para a afirmação da sua inexistência é praticamente direto. Acredito que esse tipo de descompasso foi um dos grandes produtores da ideia de simplificação dos "rituais de morte".

Para sedimentar ainda mais essa hipótese, examinarei trabalhos realizados no âmbito do positivismo e do protestantismo – apenas para dar poucos exemplos – que oferecem outros elementos capazes de comprovar a continuidade dos ritos a partir de formas diferenciadas. 

O surgimento do positivismo evidencia mudanças nas representações e práticas dos "rituais de morte". Afinal, o padrão positivista se tornou um dos grandes concorrentes do discurso católico dominante no período em questão. Na morte positivista, a ideia era valorizar as contribuições individuais do morto à sociedade criando um outro tipo de noção de imortalidade. Não uma imortalidade religiosa através da crença na sobrevida da alma e sim uma imortalidade baseada na ideia de "memória social".

Entretanto, mesmo que esse deslocamento do plano religioso para o laico tenha criado um grande recorte nos rituais de enterro e luto, percebe-se o surgimento de outras expressões que podem ser caracterizadas como representativas dos "novos rituais de morte". Se, os enlutados não viam mais a necessidade de preces e velas como auxiliares do morto no seu caminho após a morte e se não faria mais sentido confeccionar placas para os túmulos nas quais se pedisse a salvação eterna daquele que se foi, outras formas expressivas se desenvolveram. As lápides nas quais se valorizava a vida daquele que morreu e suas realizações em sociedade (Ariès, 1975; Freund, 1975); a criação das homenagens póstumas com a mudança dos nomes de ruas e praças e a disposição de placas em pontos centrais das cidades são exemplos dos diferentes ritos de luto positivistas.

O protestantismo foi utilizado em diversos textos como uma das maiores evidências da simplificação da morte contemporânea. Apesar de compartilhar com o catolicismo a cosmologia do cristianismo, essa nova religiosidade foi apresentada como evidência de atitudes distintas no que diz respeito à prática dos rituais. Pierre Chaunnu (1978) explicou que a ruptura do protestantismo com a ideia de purgatório produziu intensas modificações nos rituais de luto. Na religião reformada, os vivos não teriam papel possível de intercessão pelos mortos. O julgamento do destino da alma levaria em consideração os atos praticados em vida. Sendo assim, acender velas e fazer preces diante dos túmulos foram práticas banidas.

Numa evolução destas simplificações, a Inglaterra, país de influência protestante, apresentou aumento no número de cremações (Ariès, 1975). No entanto, mesmo com a diminuição do uso dos cemitérios tradicionais e com o desaparecimento rápido dos corpos –que agora passaram a serem cremados– novos rituais de morte e luto foram apresentados por esses mesmos autores. A retirada das cinzas do crematório para a sua transposição em jarros guardados em pequenos altares domésticos ou mesmo a cerimônia familiar de jogar esses resíduos em local escolhido pelo morto ou que ele admirasse são desdobramentos rituais da morte no âmbito do protestantismo britânico.

Até aqui creio ter deixado claro como se formou a concepção da desritualização da morte contemporânea e como os textos dos autores oferecem elementos capazes de produzir um outro modelo explicativo para este campo. Vejamos como acontece a transposição para um modelo mais contemporâneo.

A MORTE CONTEMPORÂNEA: TECNOLOGIA E IMORTALIDADE SOCIAL

Em estudos mais recentes –sobretudo a partir dos anos 1990 na França– é possível perceber várias transformações nas ideias relacionadas aos "rituais de morte". De maneira geral, os especialistas passaram a atribuir às novas práticas o conceito de "ritualização". Essa revisão conceitual trouxe novo fôlego às pesquisas. Contudo, neste universo de discussão, a mudança no entendimento da configuração dos rituais, não excluiu a continuidade do argumento de laicização da sociedade. Neste sentido, a criação do termo "novos rituais de morte contemporâneos" ilustrou tanto a necessidade de explicar comportamentos e ideias que circundavam a ocasião de um falecimento quanto a desvinculação da noção de morte e imortalidade do sistema simbólico religioso dominante.

Como já demonstrei na primeira parte deste artigo, os pesquisadores de meados do século passado analisaram a passagem pela doença e pela morte como marcada por uma profunda ruptura que se estabeleceu principalmente a partir da perda dos referenciais religiosos e familiares que até então eram reconhecidos como dominantes para a realização dos rituais de enterro e de luto. Em fins do século XX e início deste século, aconteceu uma mudança nesse perfil de argumentação dos cientistas sociais. O foco maior dos autores, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, se modificou. O uso do conceito de ritual se intensificou, embora sua abordagem tenha sido transformada. As novas análises reconheceram –e valorizaram como fonte de estudos– o crescimento das tendências mais individualizadas e privadas de luto. Ao mesmo tempo, as noções de morte e de imortalidade não foram mais predominantemente afirmadas a partir do aporte religioso da passagem ou da sobrevivência da alma –ou do duplo, como defendem alguns desses autores–. O recurso das novas tecnologias e do conceito de "memória social" foram ferramentas através das quais esses processos passaram a ser analisados.

Ao contrário do que acontecera anteriormente, houve um crescente estado de crítica ao jargão da desritualização generalizada da morte. Contudo, ao mesmo tempo, admitiram-se mudanças nas formas rituais. Por isso mesmo, buscaram-se outros entendimentos dessas práticas tendo em vista o reconhecimento da crescente laicização da sociedade. No mundo contemporâneo, o conteúdo religioso foi visto como esvaziado e os cerimoniais coletivos obrigatórios não se realizavam a partir dos mesmos referenciais (Segalen, 2002:61). Diante desse panorama, alguns autores chegaram a confirmar a desritualização social. Contudo, eles explicaram que ela não foi nem comunitária nem individual (Legros et Herbé, 2006).  Na verdade, acreditava-se que a perda do lugar de predominância do religioso no rito não fora suficiente para diminuir a sua prática nem para fazê-lo desaparecer. Houve mudança na estrutura e nas ações que circundavam a sua realização. Nesse processo, o que continuava imprimindo obrigatoriedade ao ritual de morte não era mais aquela convenção social rígida existente no período anterior. Contudo, a velha necessidade de transformar o morto em morto e de colocá-lo em seu novo lugar persistiu, o que garantiu a permanência das ritualizações.

Com o objetivo de continuar analisando algumas tendências discursivas dos estudos baseados nos rituais de morte, darei alguns exemplos de como essas novas modalidades de ritualizações se evidenciaram nas pesquisas e quais os principais argumentos utilizados para explicá-las. Minha intenção é apresentar esses novos aportes como ferramentas para a exploração do tema através da utilização de um outro modelo teórico-metodológico. Para tanto, primeiro abordo algumas transformações sofridas na compreensão do que é a morte e quais as possibilidades explicativas da imortalidade. Esta primeira parte será importante, pois estas modificações afetaram diretamente a vivência dos rituais e sua caracterização. Meu objetivo será verificar as implicações dessas opções teóricas para a visualização do fenômeno e para a configuração dos "novos rituais de morte contemporâneos" –ideia com a qual já venho trabalhando há algum tempo–.

Diante do enorme desenvolvimento científico e tecnológico, do avanço do individualismo e da laicização, os sistemas explicativos simbólicos relacionados à finitude sofreram mudanças. No que diz respeito à noção de morte, o primeiro ponto polêmico passou a ser a determinação do momento exato de sua ocorrência. A partir da criação da ideia de "morte clínica" desenvolveram-se mecanismos para a constatação da "morte cerebral"9 (para a qual passaram a ser utilizados critérios técnicos). No novo contexto médico, a ocorrência e a validação da falência do corpo passaram a ser objeto de interrogação sendo necessárias discussões e testes comprobatórios do fim da vida (Mohen, 1995). Já que não se acreditava na sobrevivência eterna da alma, a morte deixou de ser um momento de passagem para ser compreendida apenas como começo do processo de decomposição do corpo. O que modificaria toda a experiência posterior à paralisação do corpo.

Os autores analisados a partir daqui –principalmente franceses– reconheceram a transformação na conceituação do que é a morte. Ao mesmo tempo em que ela passou a ser objeto de questionamentos –necessitando ser cada vez mais regulada e legislada– à própria ideia de imortalidade foram acrescentados significados novos. Bussières (2007:73) explicou que a maior parte dos contemporâneos vê a morte como uma "ida para o nada". Os referenciais religiosos da imortalidade –entre os quais a sobrevida num outro mundo melhor do que este10 (Weber, 2004b)– ficaram perdidos nas consciências dos contemporâneos. Diante dessa constatação, a definição da vida como período de transição perdeu sua validade. Esses autores assinalaram a tendência de que entre nós, o abandono da esperança na sobrevivência futura da alma, seria cada vez maior.

Contudo, mesmo que os vivos e os mortos estejam separados pela fronteira reguladora médica e jurídica (Barraud et al., 1983:510) e mesmo que as interrogações a respeito da ocorrência de uma morte e as incertezas a respeito das possibilidades de sobrevida da alma sejam predominantes, muitos autores afirmam que é impossível e infactível a "tese do abandono dos mortos" (Mohen, 1995; Baudry, 2006). O argumento para essa contestação é justamente aquele que propiciou sua criação –a impossibilidade individual de imaginar-se finito–. De forma surpreendente, num mundo onde –de acordo com esses mesmos estudiosos– a crença religiosa diminuiu e tendeu a desaparecer, foi através do cuidado dos mortos e da manutenção da sua memória que os sobreviventes se investiram de imortalidade (Baudry, 2006; Legros et Herbé, 2006).

Os pesquisadores verificaram a existência de um jogo obrigatório de continuidade da ideia de imortalidade. Neste caso, o que ocorreu foi o desdobramento e a convivência de diversas formas de observação do fenômeno. A construção da "imortalidade social" foi uma delas e esteve associada à criação e produção de mortos célebres e também à utilização de outros recursos –inclusive familiares– de eternização. Os cemitérios virtuais, as placas de ornamentação urbanas, as homenagens póstumas e os aniversários de morte passaram a ser momentos marcantes da celebração da imortalidade. Neste cenário, pode-se dizer que os ritos funerários se distanciaram da lógica dos rituais de passagem e focalizaram noções de tempo e espaço distintas àquelas anteriores. No novo modelo exaltam-se o momento e o local onde se viveu as realizações e contribuições que o finado deixou. As novas relações entre vivos e mortos passaram a se organizar no cotidiano e a envolver considerações e manipulações de objetos dos mortos (Baudry, 2006:11), utilização de recursos tecnológicos (Gamba, 2007), valorização das realizações do morto quando era vivo (Bussières, 2007) e modalidades de luto mais íntimo (Segalen, 2002).

Neste novo momento buscaram-se transformações e modernizações na "ritualidade dos mortos" (Baudry, 2006:42). Diante deste desafio, afirmou-se que os novos rituais de morte contemporâneos podem envolver sucessivas simplificações ou bricolagens múltiplas. Na verdade, seu triunfo está relacionado a sua natureza. Os autores estão apostando na ideia de que o que leva os indivíduos pós-modernos a realização das "ritualizações" não é mais a obrigatoriedade das convenções sociais coletivas e sim a necessidade dos sobreviventes de transformar aquele que estava vivo em morto (sem, contudo, esquecê-lo). Neste contexto, o papel da família se tornou ainda mais importante. É ela que detém a incumbência de abolir a morte como ruptura. Ela assume um lugar de ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Os filiais mantêm o morto nas relações, lhe outorgando o direito de continuar a existir através dos seus (Legros et Herbé, 2006:81).

Por isto mesmo, como já disse na introdução deste artigo, o conceito de ritualização surge justamente do reconhecimento da diversidade de vivências do fenômeno da finitude, sem, contudo, estabelecer rigidez, repetição e tradicionalidade como únicas alternativas conceituais para a vivência "ritual". (Bell, 1997)11. Assim, os ritos individuais e privados convivem e/ou distanciam-se dos ritos formais e coletivos. No enfrentamento da morte, passamos por diversas fases e em cada uma delas, podemos ter uma experiência diversa com a ritualidade.

Estudando o cotidiano dos "ritos de morte" os especialistas deram exemplos que facilitam a compreensão dessas modificações. O primeiro deles pode ser retirado do ambiente do cemitério que foi transformado e tornou-se espaço propício para diversas práticas. Ao mesmo tempo, as necrópoles perderam exclusividade na realização dos rituais de morte quando se criaram outros possíveis depósitos da essência do morto. Atualmente, os enterros, as obséquias e os ritos de luto podem ser realizados em locais distintos. A partir desses dados visualiza-se um duplo fenômeno. Os cemitérios se transformando em locais de encontro social e não mais apenas em lugares de homenagens aos mortos e a criação de outros suportes (principalmente tecnológicos) e lugares (relacionados à trajetória da vida do morto) para a realização dos rituais de luto. Nesse sistema, a questão dos objetos dos mortos –os souvenires– ganhou extrema importância (Legros et Herbé, 2006).

Um bom exemplo da pluralização dos cemitérios foi estudado por Fiorenza Gamba (2007). A autora explicou como os "cemitérios virtuais" têm sido utilizados como recurso de imortalidade. Eles podem ser criados por parentes, amigos ou conhecidos daquele que morreu. Gratuitos ou pagos, os cemitérios virtuais são espaços onde se podem fazer homenagens aos mortos. O tipo de ritual realizado nesses sítios da Internet é caracterizado pela necessidade simbólica de transformação da morte em imortalidade. Nesse sentido, é possível depositar flores virtualmente compradas, escrever textos, postar fotos. Os recursos estão disponíveis e as possibilidades de luto são diversas.

Enfim, as análises dos autores desse período se distanciaram da "pornografia da morte" embora ainda enfatizem a perda dos referenciais religiosos. Contudo, no cenário que se visualiza, os "novos ritos de morte contemporâneos" continuam a ser realizados embora os suportes e as formas utilizadas para engendrá-los estejam profundamente transformadas.

CONCLUSÃO

Neste artigo bibliográfico argumentei que a fonte para a defesa teórica da desritualização da morte contemporânea na bibliografia francesa de meados do século XX localizou-se principalmente na teoria ritual utilizada para analisar os fenômenos sociais ligados à morte. No momento posterior da literatura francesa, com o reconhecimento da multiplicação dos referenciais simbólicos contemporâneos, o que se percebe é a utilização de outras ferramentas teóricas associadas aos novos rituais contemporâneos, que deem conta de analisar as diferentes realidades de ritualização mais cotidianas e ou informais.

Contudo, a influência da teoria clássica ainda é forte nos estudos sobre os ritos de morte no Brasil. Afinal, a ênfase na literatura das ciências humanas e sociais ainda está em estudos que se debrucem sobre universos religiosos nos quais há rituais formais e previstos institucionalmente. Os estudos sobre ritos e ritualizações mais individuais e informais da morte ainda caminham num ritmo muito lento. Acredito que a diferença numérica de estudos, se deva em parte, à persistência desse modelo teórico de desritualização que ganhou força primeiramente em solo francês e posteriormente entre os estudiosos da realidade brasileira.

Contudo, os estudos mais contemporâneos têm trilhado caminhos múltiplos e a partir deles é possível perceber diversas ritualizações da morte que levam em novos suportes, rituais individuais, comunidades alternativas, recursos tecnológicos. Enfim, um campo de estudos rico e aberto de possibilidades. Afinal, o desejo de ritualizar e de imortalizar os mortos, impõe a todos nós, saídas simbólicas a serem construídas e repensadas nos planos de vida das sociedades contemporâneas.

NOTAS

1 A utilização do par "tradicional e contemporâneo" tem um objetivo metodológico específico que é justamente demonstrar como os autores franceses clássicos contrapõem modelos sociais numa escala temporal linear a partir da noção de ritual. Note-se que Áries, por exemplo, utiliza a longa duração histórica para defender que o afastamento da morte e dos mortos é uma realidade de sua época. Neste sentido, há um argumento de fundo de que a saída da religião da esfera institucionalizada do estado e sua consequente transferência para o plano do privado contribuiu para a retração dos rituais. Tenciono questionar esta argumentação demonstrando que o que a provoca é justamente o modelo teórico utilizado pelos autores selecionados.

2 Em inúmeras obras de antropologia, o rito descreve momentos especiais, separados do cotidiano, onde através da repetição de comportamentos, fórmulas, etapas e hábitos se produziam e reproduziam simbologias capazes de integrar os componentes de uma sociedade. Através dos ritos ultrapassa-se momentos de tensão social e / ou individual e reafirma-se ou transforma-se uma estrutura social. Para estudo dos rituais ver, por exemplo: Durkheim (2000), Van Gennep (1977), Douglas (1976) e Turner (1953).

3 Os argumentos utilizados neste artigo fazem parte da minha tese de doutorado (Vicente da Silva, 2011).

4 Durante o mês de maio de 1963, Gorer (1965:16) realizou uma enquete na Inglaterra com 1628 pessoas de ambos os sexos de idades e acima de 16 anos. Ao longo do livro em questão, o autor analisa as respostas e é a partir delas que ele constrói seus argumentos.

5 Norbert Elias (2001) em "A solidão dos Moribundos" complexifica os argumentos citados por Ariés. Ao invés de se deter unicamente na análise das estruturas sociais, Elias associa este campo a perspectiva individualista - o que traz elementos novos para o debate. O autor dá alguns exemplos para pensar o problema da morte na contemporaneidade ocidental: a extensão do tempo de vida individual; a morte cientificamente controlada; crescente grau de pacificação das sociedades contemporâneas que leva a informalização dos ritos; individualização (homo clausus).

6 Vovelle (1983:725) explicou que no fluxo dos discursos que proliferaram sobre a morte, o religioso se tornou mais um. Retirado do seu habitual lugar hegemônico, a igreja cedeu as novas sensibilidades quando tomou consciência de que o domínio da morte mais e mais lhe escapava e teve de ligar com essas transformações na sua liturgia e ritual.

7 Título de um de seus livros.

8 Ouso do termo tradicional é complexo. Nos preâmbulos dos estudos antropológicos, as sociedades estudadas eram as tradicionais que naquele momento eram entendidas como grupamentos humanos que não haviam tido contato com a cultura Ocidental (Laplantine, 2000:20). Foi assim que no contexto da literatura antropológica internacional "cultura tradicional" apareceu como reconhecimento de uma dada realidade anterior ao encontro com os impérios europeus (Appiah, 1997:155).

9 Depois de 1967, data do primeiro transplante cardíaco na Universidade de Kansas nos EUA, um grupo de cirurgiões criou a definição de morte cerebral que foi à base da declaração de Harvard em 1968. Quatro critérios foram introduzidos para a constatação da morte clínica: não-receptividade e não resposta ou ausência total de resposta ou estímulo; ausência de movimentos respiratórios; ausência de reflexos ou estado de coma irreversível com fim da atividade do sistema nervoso central; confirmação da paralisação da atividade cerebral através do encefalograma (Mohen, 1995:14).

10 O problema da teodicéia foi um assunto ao qual Weber se dedicou bastante. Afinal, com o surgimento da concepção de um Deus único, universal e supramundano apareceram os questionamentos sobre o mundo imperfeito criado por ele. Esse problema de base foi resolvido de diversas maneiras ao longo da história da humanidade. Uma das soluções é a previsão da ida da alma para outro mundo. Existem outras vertentes como, por exemplo, a doutrina indiana do carma ou a metempsicose (Weber, 2004b: 351- 355).

11 Segalen (2002:15) dando um passo adiante afirmou que "se a simples repetição de um comportamento fosse suficiente para determinar a realização de um ritual, poderíamos afirmar que os animais têm um comportamento ritual".

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