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Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.33 Posadas dez. 2018

 

DOSSIER: “INTELECTUALES INDÍGENAS Y CIENCIAS SOCIALES EN AMÉRICA LATINA”

O intelectual indígena nascido da teologia da libertação

 

Florêncio Almeida Vaz Filho*

* Professor no Programa de Antropologia e Arqueologia (PAA) da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). E- mail: florencioalmeidavaz@gmail.com

Fecha de recepción del original: 17/09/2018.
Fecha de aprobación: 05/10/18.


RESUMO

O autor faz um relato autoetnográfico de sua trajetória como intelectual indígena, mostrando a decisiva influência que teve nas suas escolhas acadêmicas e políticas a Teologia da Libertação, corrente de pensamento que teve grande influência em setores da Igreja Católica na América Latina entre os anos 1970 e 1990. Destaca ainda a politização de amplos setores sociais e as lutas por direitos civis após a ditadura, e as mobilizações dos movimentos sociais, incluindo os movimentos indígenas, na passagem dos 500 anos da conquista das Américas. Assim, ele seguiu a formação como frade franciscano, a carreira na antropologia, que o levou aos estudos sobre a história, a cultura e a identidade indígena. A pesquisa e a atuação no âmbito da igreja em uma região onde se acreditava que os indígenas haviam desaparecido, acabou por favorecer a emergência de um movimento indígena, que hoje envolve 70 aldeias e 12 povos indígenas.

PALAVRAS-CHAVE: Intelectual Indígena; Teologia da Libertação; Amazônia; Autoetnografia.

ABSTRACT

The author makes a self-ethnographic account of his trajectory as an indigenous intellectual, showing the decisive influence that his theological and political choices had on Liberation Theology, a current of thought that had a great influence in sectors of the Catholic Church in Latin America between the 1970s and 1990. As part of the context, the politicization of broad social sectors and civil rights struggles after the Dictatorship, as well as the mobilizations of indigenous movements during the 500th anniversary of the conquest of the Americas, stand out. So he followed the formation as a Franciscan friar, his career in Anthropology, which led him to studies on history, culture and indigenous identity. Research and action within the Church, in a region where the Indians were believed to have disappeared, eventually favored the emergence of an indigenous movement, which today involves 70 villages and 12 indigenous peoples.

KEYWORDS: Indigenous Intelectual; Liberation Theology; Amazonia; Autoethnography.


INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, na América Latina, tem crescido cada vez mais o número e a importância dos intelectuais indígenas1 atuando junto às suas comunidades. Ainda que em geral eles estejam também ligados a outras instituições e ao Estado, e por isso mesmo vivam em meio a dois (ou mais) mundos com interesses diferentes ou até antagônicos, o fato de serem intelectuais e líderes nativos é um fenômeno novo e interessante a ser observado. Até porque sua atuação tem desdobramentos políticos bem diferentes daqueles resultantes das dinâmicas anteriores. Não é uma revolução, mas é algo que aponta minimamente no rumo de um projeto de maior autonomia indígena.

Aqui tratarei dos indígenas que conseguem formação acadêmica e posição de referência em instituições com alta incidência sobre a sociedade em geral, e a partir daí desenvolvem, junto às comunidades e organizações indígenas, ações político-educativas voltadas para o fortalecimento da autonomia indígena, como a garantia de seus territórios, a proteção dos recursos naturais e a educação indígena, por exemplo.

Minha visão de intelectual indígena neste artigo se aproxima do conceito de “intelectual orgânico”, desenvolvido por Gramsci que, por sua vez, seguia a tradição de Marx, para quem o intelectual deveria desvendar as contradições da sociedade capitalista e se colocar ao lado dos injustiçados, na sua luta revolucionária rumo a uma sociedade alternativa e verdadeiramente democrática (Semeraro, 2006). Para Gramsci, o intelectual orgânico, diferente do tradicional que se acredita neutro, mantém de forma consciente os vínculos com sua classe e seus movimentos políticos e culturais. Ele a ajuda de forma decisiva com ações culturais, educativas e organizativas em vista do avanço do projeto coletivo de dirigir a sociedade, superando as antigas relações de dominação (Semeraro, 2006).

No nosso caso, o vínculo do intelectual indígena se dá com seu povo e suas organizações. Mas é preciso considerar também as especificidades do projeto coletivo dos povos indígenas, que não almejam, por exemplo, tomar o poder ou dirigir a sociedade toda, mas viver em países onde diferentes mundos ou culturas possam coexistir de forma respeitosa, como afirmam os zapatistas no México (Benzaquén e Benzaquén, 2015).

Como tem sido a trajetória desses intelectuais, e como se deu o seu acesso ao mundo acadêmico ou a outras instituições externas a partir das quais ganharam visibilidade? Quais as motivações ideológicas para as suas escolhas? Como foi o seu retorno à sua comunidade ou às organizações indígenas?... Certamente as respostas são muitas e diferentes, pois os processos têm sido distintos. Gostaria de contribuir com a resposta a estas questões, colocando a minha própria história, como ativista indígena, professor universitário de antropologia e frade franciscano2. Falarei de como a Teologia da Libertação (TL) entrou no curso da minha vida e ajudou a definir as minhas escolhas. Esta corrente da teologia cristã latino-americana, que condenava o capitalismo e defendia profundas transformações na sociedade, teve grande influência em setores da igreja católica (Löwy, 2000), principalmente nas áreas rurais e periferias das metrópoles na América Latina, entre os anos ‘70 e ‘903.

Do ponto de vista da metodologia, meu relato pode ser visto como uma autoetnografia (Versiani, 2002)4, um texto sobre um indivíduo (seu discurso e suas práticas) na sua relação com seu contexto político-cultural. Sendo este texto escrito pelo próprio sujeito etnografado, é preciso pensar para além da dicotomia sujeito vs. objeto e no rumo de novas possibilidades de fazer ciência sobre os processos sociais. Ainda mais agora, que cresce o número de nativos fazendo etnografias sobre suas próprias culturas. Mas não estou abdicando de toda objetividade, baliza necessária nestas reflexões. Este esforço de pensar teoricamente minha própria atuação como antropólogo começou na pesquisa do doutorado (Vaz Filho, 2010), e aqui avanço ainda um pouco mais, sempre considerando outros elementos além de minha própria visão dos fatos.

Devo explicar que além de pesquisador, eu sou também um nativo e um dos principais líderes do movimento indígena na região do baixo rio Tapajós, no Estado do Pará, na Amazônia brasileira. Assim, este meu escrito vale como um testemunho que deixo para outros estudiosos interessados em compreender como se forjaram os intelectuais indígenas na América Latina no final do século XX. Além do mais, ciência e ativismo indígena estão mesmo bem interligados em minha trajetória. Meu encontro com as Ciências Sociais e com a pesquisa marcou também o início da minha atividade política como indígena. Minha trajetória como intelectual está intimamente ligada com a história da organização indígena na região onde vivo. Por isso, falar desta é falar daquela também.

O AGITADO CONTEXTO DOS ANOS ‘80 E ‘90

A conjuntura do final do século XX pode ajudar a entender minha trajetória e minhas escolhas como intelectual indígena. Mudei-me do povoado Pinhel, no rio Tapajós, para a cidade de Santarém, no Pará, aos 12 anos de idade em 1976, para continuar os estudos. Foi quando intensifiquei minha participação nas atividades da Igreja Católica, que experimentava naquela época uma efervescência política, com muitas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), grupos de jovens e participação nos movimentos sociais. Havia um discurso bastante politizado sobre o compromisso social do cristão em favor de mudanças na sociedade. Estávamos nos últimos anos da Ditadura (1964-1984). Em 1981 entrei para o seminário, para iniciar a formação de sacerdote, com a motivação de, assim, ajudar nas desejadas transformações sociais. Passo a detalhar mais aquele contexto.

Na região, o trabalho da Igreja Católica com a formação de lideranças já havia começado nos anos ‘60. A Diocese de Santarém inaugurou a Rádio Emissora de Educação Rural em 1964 e iniciou, através do Movimento de Educação de Base (MEB), um trabalho de alfabetização de adultos que alcançou centenas de povoados. O MEB envolvia os próprios estudantes como agentes da sua educação, através de programas de rádio e acompanhamento de monitores. Este processo, aliado com o trabalho pastoral da Diocese, resultou na criação das comunidades5, termo que passou a ser usado para se referir aos povoados no interior da Amazônia e a sua estrutura organizacional. O alcance da atuação do MEB e das dioceses e prelazias na organização comunitária das populações ribeirinhas na Amazônia foi amplo e profundo, contribuindo na promoção de projetos emancipatórios e ajudando a congregar “aquelas unidades sociais e políticas em fluxos horizontais e verticais, agrupando e interconectando ribeirinhos para viverem entre comunidades” (Neves, 2008: 75)6. Este destaque ao potencial organizativo e libertador dos ribeirinhos está na raiz da reconfiguração étnica de indígenas na região, a partir dos anos ‘80 e ‘90.

É importante lembrar que a partir dos anos ‘60, os bispos na Amazônia passaram a demonstrar preocupação com a implantação dos grandes projetos governamentais ou empresariais e com o destino das populações “marginalizadas”: imigrantes de outras regiões do país, camponeses que perdiam suas terras para o “latifúndio”, indígenas etc. (Almeida, 2014). Eles denunciavam a marginalização social como resultado estrutural do tipo de desenvolvimento econômico que se implantava no país, e definiram como linhas prioritárias de ação pastoral “a encarnação na realidade e a evangelização libertadora” (Mata, 1992:363).

O discurso do clero justificava a “opção pelos pobres” e um maior compromisso social e político dos cristãos. A formação de lideranças ganhou força em Santarém nos anos 1970 através do trabalho da Catequese Rural, que tinha como uma das metas despertar uma visão crítica sobre a realidade. A Bíblia era usada para fundamentar a ideia de que era do povo oprimido e organizado que iria surgir a libertação.

Na mesma época, associado com a Igreja, teve início o movimento sindical dos trabalhadores rurais de Santarém, que alterou profundamente a configuração dos movimentos sociais na região (Leroy,1991). A Oposição Sindical começou a disputar o controle político do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Santarém, então alinhado com o governo militar. A Oposição venceu as eleições para a direção do STR em 1980, quando seus membros já haviam desencadeado uma ampla mobilização que envolveu moradores de quase todas as comunidades da área rural. O movimento passou a destacar a ideia classista de um coletivo de trabalhadores rurais, organizados em uma luta de classes sociais, contra os patrões, empresas latifundiárias e o governo, seu aliado (Leroy, 1991). A ideia era combater os inimigos, na defesa dos seus direitos. Os líderes do STR eram os mesmos formados pela Igreja. E muitos destes seriam, a partir de 1998, os líderes indígenas, confirmando o que falei acima sobre a influência da atuação do MEB na emergência destes processos de reorganização étnica (Neves, 2008).

Os moradores das comunidades localizadas nas margens rio Tapajós estabeleceram os limites do que pensavam ser a sua terra, e resistiram contra o Governo Federal que tentava retirá-los da área da Floresta Nacional (FLONA) do Tapajós, criada em 1974 (Vaz Filho, 2010). Na outra margem do rio os moradores também resistiram contra uma empresa madeireira que pretendia expulsá-los dali. Argumentando a defesa do seu direito, demarcaram uma faixa de terra, e ali permaneceram. O cerne dessa resistência foi a certeza de serem os legítimos donos da terra (Alloggio, 2004). Essa firme convicção por parte desses moradores era algo novo na região.

Enquanto isso, sacerdotes e religiosos, influenciados pela TL, visitavam as comunidades, estimulando os moradores a reavivar as suas tradições culturais de origem indígena, que haviam sido combatidas pela própria igreja até meados do século XX. Eles incentivavam a retomada da celebração das festas de santo, com mastros e cantorias7, como faziam antes da proibição. Muitas comunidades voltaram a fazer suas festas no estilo antigo. Era um processo muito similar ao que ocorreu no Nordeste na mesma época, quando agentes da igreja progressista jogaram papel decisivo nas etnogêneses indígenas, ao passar da opção pelo “pobre” à defesa e “resgate da cultura” (Arruti, 2006).

Surgiu em 1993 o Grupo de Reflexão dos Religiosos Negros e Indígenas (GRENI), com o objetivo de “possibilitar aos religiosos e religiosas afrodescendentes e indígenas uma maior conscientização sobre a própria identidade em vista da superação de todos os obstáculos que impedem uma plena e sadia autoestima” (CRB Nacional-GRENI, 2004:11). A prática dos militantes do GRENI era a valorização de uma identidade étnico-racial que se supunha pré-existente. E eu também era um participante entusiasmado do GRENI, buscando recuperar e valorizar minha identidade indígena. Foi de dentro do GRENI em Santarém que emergiu, em 1997, por minha iniciativa, o Grupo Consciência Indígena (GCI), reunindo freiras, religiosos e leigos que se identificavam já como indígenas. Mais uma evidência de que a promoção das culturas indígenas pela igreja da TL (Arruti, 2006), somada a processos de “etnogênese individual” indígena, como foi o nosso caso, influiu sobremaneira no que ocorreu no Nordeste brasileiro e no baixo rio Tapajós.

No contexto mais geral, desde os anos 1980 ocorre em todo o planeta o “despertar étnico” (Dietz, 2005). Na América Latina, o retorno dos movimentos indígenas acontece também em vários países. Tais lutas, a partir da década de ‘90, ganharam muito mais força e poder de mobilização no contexto dos 500 anos da conquista das Américas. No Brasil, o chamado Movimento Indígena surgiu a partir dos anos 1970, e se fortaleceu no processo da Assembleia Nacional Constituinte (Luciano, 2006). A Constituição de 1988 teve um enorme impacto positivo sobre os povos indígenas, pois significou a remoção da tutela do Estado sobre os indígenas e da visão integracionista, bem como garantiu o reconhecimento do seu direito à diversidade cultural e étnica e ainda os direitos à demarcação das terras, à educação e à saúde diferenciadas. A partir daquele momento cresceu o número de associações indígenas na Amazônia, resultado não só da sua mobilização política, mas também da expansão do “mercado de projetos” na região (Albert, 1995), com o apoio da cooperação internacional, preocupada com o meio ambiente, os direitos e o desenvolvimento dos povos indígenas. Interessados em acessar tais projetos, os indígenas tiveram que se organizar em associações.

As mobilizações em torno dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil também proporcionaram maior divulgação de informações sobre os povos indígenas, seu modo de viver e suas reivindicações. Também serviram de estímulo para que mais povos indígenas se organizassem e se articulassem com outras entidades indígenas e indigenistas. No âmbito de um processo já iniciado décadas atrás, outros coletivos considerados camponeses passaram a se identificar como indígenas e reivindicar, junto ao Estado, a demarcação das suas terras. Este foi o caso que ocorreu no baixo rio Tapajós.

A AUTOETNOGRAFIA DE UM INTELECTUAL INDÍGENA NA AMAZÔNIA

Como falei acima, entrei para a formação religiosa nos anos ‘80. Em 1982, fui viver com os frades franciscanos, em uma casa em um bairro na periferia de Santarém, onde as condições de vida da população eram muitos precárias. E nós, estudantes, entramos na dinâmica da vida daqueles moradores, participando das reuniões de estudos bíblicos e organização da reivindicação de água encanada ou luz elétrica. Eu comecei a ler livros de teologia bíblica que me impressionaram muito pelo modo como eram narradas e interpretadas as histórias antigas do povo hebreu saindo da escravidão no Egito, e como aquilo era relacionado com vida dos brasileiros empobrecidos e também lutando por sua libertação na atualidade. E os textos mostravam Deus bem próximo das pessoas, ouvindo seus clamores e conduzindo-as para uma terra melhor.

Um livro que me marcou profundamente foi “A Força histórica dos pobres” (Gutierrez, 1981) onde encontrei fundamentações mais consistentes para as minhas novas atitudes e opções. O peruano Gustavo Gutierrez me abriu uma porta que mostrava os empobrecidos não mais como merecedores de esmolas, mas como sujeitos que podem construir uma outra sociedade livre. Vi que realmente os pobres têm uma força enorme, bem maior do que a força da classe dominante. Isso hoje pode parecer uma ideia comum, mas 40 anos atrás, o normal era pensar que as esperanças dos pobres estavam nas mãos de líderes políticos, fazendeiros e comerciantes ricos.

Depois li “Teologia do Cativeiro e da Libertação” (Boff, 1976) e tantos outros livros e artigos de autores da TL, que eu não tinha mais dúvidas quanto ao caminho a seguir: estar junto às pessoas simples e pobres, participar dos movimentos populares para conseguir melhores condições de vida e a sonhada “libertação”. Ser frade franciscano me pareceu como o melhor caminho para ajudar a “mudar o mundo”, a partir da perspectiva dos “pobres”, como falávamos à época. E esta perspectiva de transformar as estruturas da sociedade era mesmo algo muito real para nós todos.

Em 1983 fiz o noviciado e passei a ser um frade franciscano. Entre 1984 e 1989 estudei sistematicamente filosofia e teologia, no Instituto de Pastoral Regional (IPAR), em Belém. Escolhi como tema do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da filosofia a guerra da Cabanagem (1835-1840) como uma luta de libertação na Amazônia (Rither e Vaz Filho, 1988). Para isso, li muito sobre as lutas indígenas de resistência na região, e pude entender mais a respeito do processo histórico da dominação sobre os povos indígenas.

Naquela época, a TL já começava a ser enfraquecida devido às investidas dos setores conservadores da Igreja, liderados pelo Papa João Paulo II. Muitos institutos de teologia adeptos da linha da TL foram fechados, as CEBs começaram a definhar e veio o “silêncio” imposto ao teólogo Leonardo Boff a partir do Vaticano. Vivemos aquilo como uma grande frustração com a alta hierarquia da Igreja.

Meu interesse pelos empobrecidos e pelas explicações para a situação de desigualdade social foi se encaminhando também para uma perspectiva mais latino-americana, principalmente após a leitura de “As Veias abertas da América Latina” (Galeano, 2007), e para o estudo das Ciências Sociais. A TL usava tanto a sociologia e a ciência política nas suas reflexões, que decidi que queria ser sociólogo, pois, conhecendo mais profundamente as causas da opressão, eu poderia ajudar os oprimidos e movimentos populares a seguir construindo a tão falada “libertação”. Abandonei o curso de Teologia e entrei para as Ciências Sociais, na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, curso que concluí em 1995 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Já no Rio de Janeiro, em 1992, passei a me interessar pelos temas de cultura e identidade indígena, a partir das disciplinas antropológicas. Os textos e as discussões em sala de aula destacavam a identidade étnica indígena como dinâmica e resultado de processos de contato contrastantes com outros povos. Até então eu pensava identidade étnica em termos substanciais, como algo que estaria dado objetivamente nas pessoas e grupos.

Foi aí que comecei a estudar as comunidades que viviam às margens dos rios amazônicos, e que normalmente eram vistas como caboclas8. Eu procedia de um desses povoados, e a antropologia me levou a pensar também sobre a minha identidade. Ao mesmo tempo, foi no Rio de Janeiro que as pessoas passaram a me chamar de “índio”, devido aos meus traços físicos. Na Amazônia, quase todos os nativos apresentam esse biótipo e dificilmente alguém chama o outro de índio, e quando o faz trata-se de ofensa. De repente, longe de casa, eu era “o índio”. Mas eu me perguntava: “eu sou índio mesmo?” Daí, meu interesse em estudar as minhas origens e a minha identidade.

Desenvolvi o projeto de pesquisa “Caboclos do rio Tapajós: identidade e ecologia na Amazônia”, que me levou a tomar conhecimento da vasta bibliografia sobre a história e a cultura das populações amazônicas. Esta pesquisa me levou a problematizar, cientificamente, as questões da cultura e da identidade dessas populações, que visitei durante o trabalho de campo (Vaz Filho, 1996). Com olhos mais atentos e críticos, vi um mundo rico de saberes tradicionais, relacionados ao xamanismo (pajelança) e à crença nos espíritos encantados que, acredita-se, vivem nas águas e na floresta, e que mantém uma intensa relação com os humanos.

Entre 1994 e 1995 fui duas vezes à comunidade de Takuara, no rio Tapajós, para fazer uma entrevista com o conhecido pajé Laurelino, que demonstrava profundo conhecimento sobre as crenças e a vida naquela região. O idoso senhor não tinha vergonha de dizer que era índio. Gravamos várias horas de entrevista. E a pesquisa me levou à conclusão de que, se os moradores detestavam ser rotulados tanto de caboclos como de índios, os mais velhos e os xamãs pensavam o contrário (Vaz Filho, 1997). Então, nós éramos mais indígenas do que costumávamos pensar.

Foi, então, que tomei contato pela primeira vez com a dinâmica dos povos indígenas no Nordeste brasileiro, onde grupos que foram declarados extintos ou integrados nos séculos passados, nos anos 1980 floresceram como povos indígenas, remetendo seus rituais e tradições aos ancestrais, o que os legitimava como índios. Eles passaram a recusar o termo caboclo e a fazer questão de ser reconhecidos como indígenas, reinventando a sua indianidade no contexto da luta para reaver o território perdido. Concluí que formalmente os caboclos do rio Tapajós poderiam fazer também aquele caminho, e que eu poderia ajudar nesse processo.

Em 1995, ainda no Rio de Janeiro, entrei no mestrado, no Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Agricultura (CPDA/UFRRJ). Prossegui com minhas leituras sobre antropologia e as populações amazônicas, procurando sempre a história indígena e tentando entender como nós havíamos deixado de ser indígenas. A obra que me respondeu a essa questão foi “Índios da Amazônia: de Maioria a Minoria (1750-1850)”, onde Carlos A. Moreira Neto (1988) demonstra que a política do Diretório pombalino e a Cabanagem (1835-1840) foram decisivas para a exclusão dos indígenas da sociedade amazônica.

Excluídos como categoria social, os tapuios, termo usado na época para designar os indígenas desaldeados, continuaram vivendo às margens dos rios e da sociedade amazônica, como ocorreu no baixo Tapajós. Para sobreviver, essa gente teve que negar sua história e identidade indígena. A história dos povos indígenas na Amazônia era uma história de negação de si. Para mim, naquela época, o grande desafio passou a ser “resgatar” e valorizar a verdadeira história indígena.

Eu vivia no Rio de Janeiro quando aconteceu a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92, onde pude observar a importância dos povos indígenas nesses eventos e neste tipo de discussão. Conheci líderes indígenas, entre eles Álvaro Tukano, que desde a primeira vez me trataram como indígena, sem nenhum questionamento. Conversei longamente com outros indígenas que passavam pela cidade. Comungávamos as preocupações de ajudar os nossos parentes indígenas. E eu fui me convencendo, cada vez mais, que eu era realmente indígena, além do que a literatura e a pesquisa de campo já me haviam ensinado.

Em 1996, fui designado para participar de um encontro de pastoral indígena promovido pela Conferência Latino-americana de Religiosos (CLAR), em Iquitos, no Peru, onde conheci padres, religiosos e freiras indígenas dos países vizinhos. A convivência e as discussões que tivemos muito me ajudaram no fortalecimento de uma consciência indígena. Fui ainda a Cusco e Machu Picchu, onde fiquei deslumbrado com as grandiosas realizações dos indígenas, com a sua resistência contra a colonização e com a sua espiritualidade. Cada vez mais eu tinha orgulho de ser indígena.

Na minha pesquisa de mestrado (Vaz Filho, 1997), ficou ainda mais evidente a importância da crença nos encantados9, da economia da reciprocidade e do forte sentimento de coletividade nas comunidades do rio Tapajós, pois lhes mantinha vivas. As famílias trocavam alimentos de forma ritual entre si, o que chamavam de putáua, palavra do nheengatu (Tupi) que significa presente, mas um presente que obriga a retribuição, de forma que se evitava o acúmulo e a fome, ao mesmo tempo.

Aqueles descendentes dos povos indígenas tinham vergonha de se dizer indígenas, pois predominava a ideia de que os índios eram violentos, preguiçosos e atrasados. Eles não tinham sua terra tradicional demarcada, e empresas madeireiras se aproveitavam disso para explorar os recursos da floresta, aproveitando inclusive a mão de obra barata dos nativos. Como a sua produção de farinha de mandioca era vendida a preços baixos, restava um crescente empobrecimento. De vários modos os nativos eram muito explorados. Os jovens fugiam para as cidades em busca de estudos e empregos.

Era 1996, iniciei os contatos com lideranças que queriam impedir a ação das empresas madeireiras nas suas terras. Fui mostrando, através da história, que eles tinham direito àquela terra porque eram os filhos dos antigos indígenas que já estavam havia séculos. As suas atuais comunidades eram o resultado da resistência dos seus antepassados em ficar no seu território.  Eles podiam exigir do Governo brasileiro a demarcação da área e a expulsão das empresas dali, pois era uma reivindicação legítima.  Isso era dito em um demorado processo de reuniões e conversas com os moradores.

Como a grande preocupação dos moradores era a defesa do seu território, após conversar com ativistas de ONGs e autoridades governamentais em Brasília, eu apresentei a proposta de criação de uma Reserva Extrativista (Resex) na área, pois seria uma forma legal de garantir a terra de modo coletivo nas mãos daqueles moradores. A ideia foi aceita por todos, pois meu discurso tinha peso acadêmico e político considerável: eu era um nativo, com mestrado no Rio de Janeiro, relacionado com autoridades em Brasília e, ainda, um religioso, em uma região onde a igreja católica goza de grande respaldo social.

Também realizei o estudo sócio-econômico da população, mostrando a sua história, modo de vida e a sua relação com a floresta, o que dava a base de sustentação em favor do seu pedido de criação da Resex. Aquela população era tradicional e, pelas suas práticas e costumes, não iria devastar a floresta, pois dependia dela para viver. Legalmente, uma Resex pode ser criada onde haja população tradicional, e, nesse sentido, a minha pesquisa evidenciava cientificamente a presença desse tipo de populações na área.

Junto com várias organizações, entidades da igreja e líderes comunitários, formamos um movimento pela criação da Resex Tapajós-Arapiuns. Eu era agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) à época, e estimulava as autoridades da Igreja a darem apoio ao processo, o que foi estratégico para o seu sucesso. Eu havia criado o coletivo Ajuricaba10, para representar nossas ideias indígenas, e ele influenciou bastante na disseminação da valorização da história e da identidade indígena no meio naquela mobilização, que incluía muitos encontros e estudos sobre o direito à terra.

O Ajuricaba em poucos meses se transformou no Grupo Consciência Indígena (GCI), e seus militantes ajudavam no fortalecimento da consciência histórica dos moradores e na revalorização dos seus costumes. Nossa mensagem era que, eles eram os herdeiros dos primeiros moradores da floresta, e por isso eram os donos da terra, e poderiam se tornar, novamente, sujeitos da sua história. Nos encontros, dramatizávamos as primeiras lutas da resistência indígena em defesa da terra, dando ênfase à guerra da Cabanagem (1835-1840), fato que continuava bem vivo na memória dos mais velhos.

No GCI, éramos todos participantes de movimentos da Igreja. Éramos provenientes de vários povoados da região, e estávamos estudando ou trabalhando em Santarém. Além de estudar a fundo a história e as culturas indígenas na Amazônia e no Brasil, o GCI começou a visitar as comunidades nos finais de semana, para realizar rituais, que consistiam em celebrações, geralmente à noite, ao redor de fogueiras ao ar livre. Nestas ocasiões, cantávamos e dançávamos, relembrando os nossos “antepassados”, tomando as bebidas fermentadas feitas de mandioca. A adesão e participação dos moradores era enorme. Idosos, jovens e até crianças, todos queriam participar.

Um fato a se considerar nesta minha atuação é que em 1998, passei a apresentar um programa na Rádio Rural de Santarém voltado para essa população rural. No ano seguinte eu já apresentava um programa diário com uma hora de duração, e o impacto positivo foi maior ainda, pois as famílias da zona rural costumam ouvir muito o rádio. É o meio de comunicação mais popular do que a televisão. Eu falava da mobilização pela Resex como um exemplo de luta em defesa das terras, da história e da cultura indígena e ribeirinha, dos direitos desses povos etc. O programa multiplicou o alcance desta mensagem.

Estou seguro de que este processo de encontros, assembleias e audiência com autoridades, e a sua divulgação no rádio, elevou muito a autoestima desses moradores, que passaram a se orgulhar mais da sua história e dos seus costumes, além de se sentirem reconhecidas como sujeitos de direitos. A Resex Tapajós-Arapiuns foi criada em 1998, época do governo de Fernando Henrique Cardoso, que incluiu no seu programa de reforma agrária os “povos da floresta” e as Reservas Extrativistas como uma forma de regularização fundiária na Amazônia, apoiado pela cooperação internacional. Era um contexto bem favorável. E assim, as madeireiras foram colocadas para fora da área, e as associações dos moradores começaram a assumir parte da gestão da Resex.

No final de 1997, após concluir o mestrado, voltei para a região e me dediquei inteiramente às atividades do movimento da Resex e também ao movimento indígena. Eu dava uma atenção especial aos mais velhos, pois eles demonstravam claramente orgulho de ser indígenas. Recolhi fragmentos da sua memória oral e divulguei de forma escrita e no rádio. Era a voz e a sabedoria dos mais velhos ecoando: seus mitos, xamanismo, histórias dos “índios” e das guerras passadas etc. Parte desse material recolhido, junto com os resultados das minhas pesquisas, resultou em uma cartilha fotocopiada sobre a história dos povos indígenas na região. O texto agradou muito, já que em algumas comunidades até passou a ser usado como parte da sua história escrita.

Ainda em 1998, os moradores do vilarejo Takuara, no rio Tapajós, assumiram publicamente sua identidade indígena. A decisão foi tomada após o falecimento do já citado pajé Laurelino (31/05/1998). Após escutarem a entrevista que ele me concedera, em 1994 e 1995, lhes causou comoção e profunda reflexão os trechos em que ele dizia que era índio, filho de pais “puro índio”, e que não se envergonhava disso. Considerando tais palavras, os descendentes do xamã e os demais moradores decidiram buscar junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a demarcação das suas terras (Vaz Filho, 2010).

Tal fato causou grande surpresa entre os demais moradores. Afinal, pensavam que os índios haviam sido extintos na região. Nós do GCI celebramos a iniciativa daquele povo de se assumir indígena em meio a muitos preconceitos. E o fato foi amplamente divulgado por mim no programa de rádio, onde eu mostrava que era legítima a sua reivindicação, pois as raízes históricas e culturais da região eram indígenas.

Por minha sugestão, através do GCI, os líderes de Takuara organizaram uma festa pública para se apresentar como indígenas e explicar essa sua decisão. Representantes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e das Pastorais Sociais de Santarém, líderes do movimento da Resex e jornalistas, e moradores vizinhos foram a Takuara participar desse evento (19-20/12/1998). O fato foi também comentado por mim no rádio, sempre reforçando a autoestima dos moradores, agora auto-identificados como indígenas.

Divulguei, através de artigos em jornais, a emergência política do povo Munduruku de Takuara, e, quando convidado a participar de palestras sobre os indígenas, eu convidava seus líderes para se apresentar. Desde 1999 eu passei a ser professor na Universidade Federal do Pará (UFPA), no campus de Santarém. E envolvia os alunos e a instituição em atividades ligadas ao tema indígena, como visitas às aldeias e a realização de seminários, onde os líderes indígenas fizeram-se presentes como palestrantes, nas mesas-redondas, entre antropólogos, autoridades do governo e ativistas de movimentos sociais. Eram oportunidades onde os indígenas se legitimavam e obtinham o reconhecimento social. E as assembleias indígenas passaram a contar, sempre, com a presença de estudantes universitários.

Por iniciativa do GCI, foram realizados vários encontros com a participação dos indígenas de Takuara, que apresentavam seus cantos e rituais, explicando também sua decisão de se identificar como indígenas. E assim, pessoas de outros povoados próximos a Takuara começaram a se contagiar pelo desejo de também se assumir como indígena.

Surgiu a necessidade de realizar um grande encontro com as outras comunidades que já aderiam ao movimento iniciado por Takuara. O 1º Encontro dos Povos Indígenas do rio Tapajós foi realizado na Virada de ano de 1999 para 2000, em Jauarituba, com o objetivo era celebrar os “500 anos de resistência indígena” e discutir o resgate da história, identidade e tradições indígenas. Estiveram presentes 150 representantes de dez comunidades, que participaram de cantorias, danças e dos rituais. Os presentes concordavam que também eram indígenas, e queriam discutir seus direitos. Euclides Macuxi, o coordenador da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (COIAB), esclareceu suas dúvidas, com destaque para a demarcação das terras. A sua presença significava que a entidade reconhecia politicamente aqueles grupos como indígenas. COIAB e CIMI convidaram todos para a Marcha Indígena dos 500 Anos.

Em abril de 2000 esses indígenas do baixo Tapajós realizaram uma manifestação nas ruas da cidade de Santarém, para recepcionar outros grupos que participavam da Marcha Indígena dos 500 Anos, que descia o rio Amazonas rumo a Porto Seguro, Bahia. De Santarém seguiu com a caravana uma delegação de 17 indígenas. Eu também fui para a Bahia. Vivemos todas as emoções, ricas discussões e até a repressão à manifestação no dia 22 de abril. Os líderes que voltaram da Bahia trouxeram a ideia de criar um conselho indígena, para articular as comunidades indígenas. E assim foi criado, o Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns (CITA), que passou a coordenar o movimento, com o apoio do GCI. Em março de 2001, CITA e GCI abriram um escritório em Santarém, que passou a ser a referência dos indígenas na cidade.

Desde 2001, GCI e CITA passaram a realizar anualmente o Encontro dos Povos Indígenas dos rios Tapajós e Arapiuns com um número sempre crescente de aldeias . Em 2001, já havia 18 aldeias; em 2002, eram 25. E o número crescia a cada ano. Os participantes variavam entre 400 e 500 indígenas. Tais encontros contavam com a presença, além da COIAB e CIMI, de várias organizações indígenas e não-indígenas, o que demonstrava aos presentes um reconhecimento e legitimidade. Havia um otimismo com as perspectivas da luta pelo território e o atendimento das demais reivindicações do movimento indígena. A dimensão dos direitos indígenas era sempre destacada nas falas dos participantes, bem como a luta organizada e a pressão política para tê-los respeitados. Hoje, início de 2019, já são 70 aldeias rurais pertencentes a 12 povos indígenas.

Devo realçar que naqueles encontros o aspecto espiritual desde o início teve um papel muito especial, através do uso de símbolos (fogueira, dança em círculo, defumação etc.), em rituais que envolvem a todos os participantes. Esses rituais continuaram tendo espaço de destaque nos eventos coletivos indígenas. São momentos de lembrar os encantados, os antepassados, o pajé Laurelino e outros líderes mortos. Servem para reforçar a identidade indígena, a partir de um apelo às origens e às crenças compartilhadas.

Estes grandes encontros serviram para fortalecer a convicção das identidades cultural e étnica desses indígenas, e a sua consciência de serem sujeitos de direitos, e da necessidade de lutar de forma organizada por eles. Por isso, em geral, os líderes saem destes encontros com decisões coletivas de pressionar ainda mais os órgãos governamentais, como a FUNAI, em favor de seus direitos. Ou saem com outras estratégias, como a ideia de auto demarcação dos seus territórios, depois de esperar em vão que o Governo inicie as demarcações oficias. Afinal, dos 19 territórios indígenas na região, apenas cinco tiveram seus processos de demarcação iniciados, mas o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) de dois deles nunca foi publicado.

Antes de concluir, registro meu apoio ao processo de aprendizado da língua nheengatu, que era falada até fins do século XIX e que devido à repressão que se seguiu à Guerra da Cabanagem (1835-1840), quase desapareceu. Quando os moradores voltaram a se identificar como indígenas, e se deram conta de que careciam de uma língua indígena, foi instantânea a associação com o nheengatu. E iniciaram com muito gosto o que chamavam de “resgate da nossa língua”, processo que, na verdade, é a revalorização do nheengatu, que continuava sendo utilizado ao longo dos anos, em geral, de modo irrefletido . Aprender o nheengatu dá aos atuais indígenas a sensação de conexão com sua origem diferenciada em relação à sociedade nacional, e ao mesmo tempo reforça sua identidade indígena.

Ainda em janeiro de 1999, o GCI realizou a primeira oficina de nheengatu em Santarém, ministrada por uma indígena da região de São Gabriel da Cachoeira, rio Negro (AM), com o objetivo era revalorizar e revitalizar a língua e a cultura indígena. Nos anos seguintes, em conjunto com o CITA, o GCI trouxe outros indígenas do rio Negro, que ministraram cursos e viajaram pelas aldeias nos rios Tapajós e Arapiuns, ensinando o nheengatu. E assim, a língua está voltando a ser usada na região, dando sentido a velhas palavras e fazendo novas conexões com o passado, e com o futuro. Os indígenas demonstram gosto especial pelos cantos em nheengatu, muito usados nos seus rituais.

Desde 2007, com a implantação da educação escolar indígena nos municípios do baixo Tapajós, os indígenas reivindicaram o ensino das línguas indígenas nas escolas municipais, no que foram atendidos em 2010. E, então, surgiu a necessidade de capacitação formal para os professores de nheengatu que começaram a atuar nestas escolas.

Foi nesse contexto que surgiu o Curso de nheengatu, oferecido pelo GCI e pela Diretoria de Ações Afirmativas (DAA) da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), como um curso de extensão sob minha coordenação. Na época eu era Diretor de Ações Afirmativas na UFOPA, e pude intermediar este apoio fundamental para a iniciativa. O curso, que teve ainda o apoio da Custódia São Benedito da Amazônia (Frades Franciscanos), iniciou em julho 2014 e terminou em 2017, formando aproximadamente 100 professores indígenas, parte deles já atuando nas escolas indígenas. Estes estudantes/professores produziram um CD com músicas em nheengatu e publicaram o livro “Nheengatu Tapajowara”. Tudo isso teve um impacto altamente positivo no processo de reafirmação identitária indígena na região.

Nos últimos anos os diretores do CITA, em sua maioria estudantes universitários (oriundos das famílias que vivem nas aldeias não mais ligados diretamente à igreja) com idade entre 20 e 30 anos, assumiram a liderança das mobilizações e de todo o processo organizativo dos indígenas no baixo Tapajós (ganharam esta posição pela carisma e poder de liderança). E os militantes do GCI ficaram como assessores mais discretos, ligados ao trabalho de animação nas aldeias e formação de lideranças, feita através de minicursos de até três dias sobre análise da conjuntura, direitos indígenas e a atuação de liderança indígena. Porém, continuam os intelectuais indígenas (do CITA e do GCI) tendo um papel decisivo na definição dos rumos do processo. E sua atuação não é concorrente com o trabalho dos líderes tradicionais das aldeias, que em geral não concluíram nem o 9º ano do Ensino Fundamental.

Numa convergência de interesses, a atuação dos militantes do GCI e dos diretores do CITA é sempre articulada com os líderes tradicionais, dos quais recebe apoio e legitimidade, renovados nas assembleias gerais e nas reuniões bimestrais do Conselho de Lideranças, quando os caciques das aldeias e representantes dos territórios se reúnem com os diretores do CITA e militantes do GCI. As propostas de ação dos diretores do CITA são apresentadas, discutidas e, geralmente, aprovadas. É verdade que nos últimos anos tem ocorrido tensões entre, de um lado, alguns diretores do CITA e gestores indígenas da educação escolar, e de outro, os caciques das aldeias e o GCI, quando aqueles parecem se inclinar mais para uma política de acomodação à burocracia institucional, rechaçada por líderes mais críticos com apoio do GCI. Ainda assim, isso é bem diferente do que ocorreu com os intelectuais mapuche no Chile a partir dos anos 1990, cuja atuação era vista com desconfiança pelas autoridades tradicionais por seguir padrões supostamente alienígenas (Chicahual, 2012).

CONCLUSÃO

Neste relato tentei demonstrar como minha construção e atuação enquanto intelectual indígena foi resultado de múltiplas condições, contextos e influências. Por questão de espaço, enfatizei, de um lado, a TL e a vivência dentro da Igreja Católica e, de outro, as ciências sociais e a vivência dentro da universidade. Igreja e academia foram dois caminhos que escolhi para seguir e dois espaços institucionais, para atuar. Porém, o fim foi e continua sendo o serviço aos povos indígenas.

A partir de uma visão romântica e idealizada dos indígenas como os pobres ou culturas oprimidas (como portadoras de valores evangélicos que apontavam para a superação da sociedade capitalista), no âmbito da Igreja, cheguei a uma realidade concreta dos povos indígenas no baixo rio Tapajós, estimulado pela ideia de inculturação, como pregava a TL. E esta realidade, do índio oprimido que se organiza como sujeito da sua libertação, eu também ajudei a construir, de certa forma, com as ideias da TL (Peres, 2003) e o instrumental da Antropologia.

Reconhecer a importância que a TL teve na minha trajetória e na minha formação intelectual e militante tem um aspecto de gratidão e de justiça. Se sou o que sou enquanto sujeito consciente do seu lugar e do seu papel político enquanto parte de um coletivo étnico, isso devo a meus mestres e aos eventos dos quais tomei parte. Reconheço também que eu soube interpretar o que se me apresentava à frente, e pude me apropriar do que havia de melhor em oferta.

Não fiz nada sozinho, como se fosse um mágico. Aliás, gostaria de enfatizar nesta conclusão que uma das coisas que me deixa feliz foi ter encontrado nesta trajetória muitos outros intelectuais indígenas e não-indígenas, gente da academia e gente que não passou do 4º ano do ensino escolar. E até anciãos(ãs) analfabetos(as). Estes também foram meus mestres imprescindíveis. Trabalhei e continuo trabalhando com diversos agentes que tem perspectivas próximas às minhas em favor do projeto de autonomia indígena. E também dialogo ou confronto aqueles que tem outros objetivos para os povos indígenas. Isso também faz parte do papel do intelectual.  

Olhando para trás, relembro o semblante de meus companheiros e companheiras, das CEBs, do GRENI, da Resex, do GCI... Muitos professores, estudantes, freiras, religiosos, padres etc. Eram pessoas que ofertaram seus conhecimentos num esforço coletivo de promover mudanças qualitativas na vida dos outros, ajudando-os a conhecer seus direitos e se organizar. A partir da visibilidade que já tínhamos, tornamos os outros mais visíveis. Penso que em grande parte conseguimos nosso objetivo. No caso dos coletivos indígenas no baixo Tapajós, hoje eles se movem com muita liberdade diante e entre as instituições do Estado e empresas privadas ou políticos. Não dependem tanto de nós do GCI, mas mantém uma interlocução em bases mais simétricas.

Fico feliz em olhar os indígenas hoje, e não ver mais tantos caboclos, pobres ou oprimidos, mas vejo sujeitos coletivos que, através do processo pedagógico libertador dos trabalhos que realizamos (não livre de contradições), estão rompendo com as velhas estruturas de dominação colonial e capitalista. Do seu jeito, estão construindo um outro mundo mais justo, igualitário e de mais respeito com a Mãe Terra. Este é o caminho seguro, porque “a libertação das populações indígenas ou é realizada por elas mesmas ou não é libertação”, como afirmou a Declaração de Barbados.

NOTAS

1 A expressão “intelectuais indígenas” é exógena às comunidades indígenas, porém tem sido cada vez mais usada, inclusive pelos próprios indígenas (Bergamaschi, 2014). Entendo intelectuais indígenas como agentes vinculados a coletivos indígenas, com capacitação educacional formal ou acadêmica, que atuam junto aos seus coletivos como assessores, animadores, líderes ou ativistas políticos e culturais, transitando constantemente entre os dois mundos, dos “brancos” e dos indígenas. Há aqueles que seguem um projeto em favor da “tradição cultural” e maior autonomia política dos seus coletivos, mas há outros também com perspectivas bem diferentes, como os líderes de igrejas neopentecostais, por exemplo. Mas estes não são intelectuais indígenas orgânicos e nem objeto de nossa preocupação neste artigo.  

2 Na minha geração de intelectuais indígenas, que estão agora entre os 55 e 65 anos, eram mais comuns os casos de quem estudou nos seminários católicos ou colégios internos de missionários, como Daniel Munduruku, Álvaro Tukano e Gersem Baniwa, por exemplo. Naquela época, na educação escolar indígena, não havia muitas opções além da Igreja. Já os intelectuais da geração mais recente, em sua maioria, passaram pela escola pública e foram beneficiados pela política de ações afirmativas no ensino superior, como é o caso do advogado Eloy Terena e do antropólogo Felipe Tuxá, por exemplo.

3 A TL teve suas origens nos anos 1960, e foi primeiramente exposta na II Conferência do Episcopado Latino-Americano (CELAM), em Medellín, em 1968, tendo seu auge nos anos 1970-1980. Seus autores buscavam falar a partir dos pobres e das suas aspirações de libertação, e denunciavam as injustiças sociais como inaceitáveis na perspectiva evangélica (Boff, 1996). A partir de aproximações com o marxismo e sua crítica ao capitalismo e às doutrinas liberais, a TL anunciava que os pobres e as culturas oprimidas são os responsáveis pela sua própria emancipação. O velho proletariado deu lugar a uma diversidade de grupos com grande potencial de libertação, incluindo os negros e os indígenas, cujas culturas passaram a ser valorizadas em vista desse fim (Löwy, 2000).

4 A descrição autoetnográfica é também uma possibilidade de fazer etnografia para compreender melhor os contextos sociais, e chegar a um melhor entendimento de certos aspectos que outros métodos não alcançam.  

5 Usarei o itálico para termos nativos, ainda que sejam da língua portuguesa, com um sentido particular na Amazônia brasileira ou no país. O uso da palavra comunidade para denominar os povoados na Amazônia é fruto do trabalho da catequese da Igreja Católica a partir da década de ‘50 do século XX. Comunidade é a reunião efetiva de um grupo de famílias que vivem próximas umas das outras na zona rural, realizando cultos religiosos semanais, festas, trabalhos, torneios de futebol e outras atividades coletivas, coordenadas por líderes eleitos entre seus membros. Geralmente ela possui um barracão para eventos, escola, capela e campo de futebol.

6 Antes da criação das comunidades, as famílias viviam em parte dispersas pelo centro da floresta e pelas margens de igarapés, lagos e rios, reunindo-se esporadicamente nas festas de santos ou visitas dos padres. Aqueles moradores eram articulados também pelas redes de parentesco.  

7 Tais festas, que duravam vários dias, eram dedicadas aos santos católicos e realizadas inteiramente pelos leigos do lugar. Os foliões, tocando tambores e outros instrumentos, visitavam as casas das famílias recolhendo donativos que seriam consumidos durante os dias de festa. Nas noites, cantavam ladainhas e dançavam, sempre animados por bebidas fermentadas feitas de mandioca ou batata doce. Por tomarem tais festas como profanas, os missionários proibiram a sua realização em meados do século XX.

8 Na Amazônia brasileira o termo caboclo significa algo como descendentes de índio, mestiço, ex-indígena, pessoa rude, matuto ou morador de área rural. A palavra tem um forte sentido pejorativo.

9 No Pará, os encantados são seres sobrenaturais que, acredita-se, vivem no fundo dos rios, lagos e igarapés, em cidades encantadas. Outros vivem nas matas e pontas de pedras. Eles são considerados protetores da natureza, dos peixes e dos animais. Por isso também são chamados de mães e pais. Eles se manifestam nas sessões de cura dos pajés, quando conversam com as pessoas e ajudam a solucionar suas enfermidades.

10 Ajuricaba foi um líder do povo Manáo que, entre 1723 e 1727, comandou uma guerra contra os portugueses em torno da região onde, hoje, está localizada a cidade de Manaus.  

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