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Avá

versión On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.33 Posadas dic. 2018

 

DOSSIER: “INTELECTUALES INDÍGENAS Y CIENCIAS SOCIALES EN AMÉRICA LATINA”

Descolonizando a escola: em busca de novas práticas

 

Bruno Ferreira*

* Mestre e Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; kaingang professor no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, Terra Indígena Inhacorá, São Valério do Sul- RS, Brasil. E-mail: brunokaingag@gmail.com

Fecha de recepción del original: 12/09/2018.
Fecha de aprobación: 22/12/2018.  


RESUMO

A busca de novas práticas para a construção de uma escola que respeite os processos próprios de construir conhecimentos dos indígenas e valorize as práticas educativas é necessária. Para tanto é preciso descolonizar velhas práticas da escola branqueadora e civilizadora que está presente nas terras indígenas. É necessário vislumbrar possíveis cominhos para superar ou, pelo menos, colocar em questionamento conhecimentos já cristalizados nas escolas. ¿Por que os conhecimentos indígenas são (in)visíveis e (in)compreendidos? A escola colonizadora nega a existência de outras culturas e, dessa forma, (in)visibiliza os povos indígenas, que são colocados numa categoria subalterna e inferior da chamada sociedade civilizada branca. Diante disso, a descolonização da educação escolar é urgente, a fim de valorizar e considerar os conhecimentos indígenas, sobretudo suas histórias, culturas e línguas, bem como as práticas educativas. Esse artigo aborda em especial a escola do povo kaingang a partir de relatos vivenciais do autor.

PALAVRAS-CHAVE: Escola Indígena; Práticas Descolonizadoras; Educação Kaingang.

ABSTRACT

The search for new practices in order to constitute a school that respects the indigenous own processes to build knowledges and that values their educational practices is needed. For this purpose, it is necessary to decolonize old practices of the whitening and civilizing school that are present in indigenous schools. It is necessary to foresee possible ways to overcome or, at least, question knowledges that are entrenched in the schools. ¿Why are indigenous knowledges (in)visible and (mis)understood? The colonizing school denies the existence of other cultures and, this way, (in)visibilizes indigenous peoples, that are placed in a subordinate and inferior category in the so called civilized white society. Therefore, the decolonization of schooling is urgent, in order to value and consider indigenous knowledges, their stories, cultures and languages, as well as their educational practices. This article addresses in particular the school of the kaingang people based on the author’s experiences.

KEY-WORDS: Indigenous School; Decolonial Practices; Kaingang Education.


PRIMEIRAS PALAVRAS

O presente trabalho decorre da pesquisa de doutorado e busca desencobrir novas práticas para a construção de uma escola que respeite os processos próprios de construir e transmitir conhecimentos dos kaingang. Busca, igualmente, uma melhor definição do papel da educação escolar, principalmente na valorização dos conhecimentos e práticas educativas. Nesse sentido é preciso descolonizar velhas práticas “branqueadoras”, ainda presente nas Terras kaingang, que no decorrer do texto serão evidenciadas. Buscar e pensar outras práticas é necessário. Acredito que é preciso apostar em outras possibilidades de contar a história, a partir de outras vertentes, indígenas, que vão para além do mundo ocidental, como chama a atenção Mignolo (2008) e, dessa forma, fazer emergir falas, saberes e conhecimentos indígenas, ameríndios, uma opção descolonial que põe em questionamento outras ideologias.

Considerando isso, na construção do trabalho da pesquisa procuro percorrer caminhos que vão afirmar a existências de outros conhecimentos, afirmando um pensamento baseado nas tradições histórico-culturais dos indígenas. Procuro vislumbrar possíveis caminhos para superar ou, pelo menos, colocar em questionamento conhecimentos já cristalizados nas escolas indígenas e de modo especial nas comunidades kaingang, onde componentes curriculares, conteúdos, visivelmente são voltados para o fortalecimento dos conhecimentos não indígenas, fazendo com que esses indígenas assumam outros valores. 

Diante disso, é necessário compreender porque os conhecimentos indígenas são (in)visíveis e (in)compreendidos. Parece-me que tais conhecimentos são ignorados, em detrimento do saber ocidental, que está muito mais disponível pelos veículos de divulgação, entre elas a escola, que através de suas práticas antigas, ainda muito presentes, de opressão cultural, forçam os povos oprimidos e marginalizados a aceitar a cultura europeia imperialista (Fanon, 2005).

Acredito que a partir dos questionamentos acima é possível traçar novos caminhos para pensar outras práticas nas escolas indígenas, fazendo emergir sua importância como instituição de ensino para compreender a história e práticas que foram negados aos kaingang durante muitos tempos e, assim, mostrar a força dos processos próprios de construir e transmitir conhecimentos às gerações presentes. São conhecimentos e técnicas imprescindíveis para a organização como indígenas em contextos próprios, considerando as complexidades de sua presença no mundo ou nessa sociedade.

Sendo assim, a escola indígena precisa ter presente, de forma muito concreta, as experiências e as vivências baseadas na reciprocidade, que tem o papel de reguladora social na vida indígena. Nesse sentido, a escola indígena é um espaço de negociação das desigualdades sociais, econômicas e políticas, negociadora dos conflitos de poder que foram ao longo dos tempos sendo instalados e impostos aos indígenas. A educação escolar precisa estar referenciada nos conhecimentos indígenas, sobretudo, na história das vivências indígenas e, com o passar do tempo, ir buscando os demais conhecimentos e tecnologias necessários para sua sobrevivência nos contextos atuais.

Essas possibilidades de descolonização escolar, em parte fortalecidas pela Constituição Federal de 1988, em que a escola passa a ter o papel importante de dar continuidade à história dos povos indígenas, por muito tempo negada ou sufocada por outra história. O cumprimento dessas atribuições passa a ser o desafio da escola indígena contemporânea. O desafio de transformar a antiga escola colonizadora e branqueadora numa escola promotora dos costumes, das línguas, das crenças, das tradições e dos direitos originários dos indígenas em diálogo com outras culturas, conhecimentos e valores. É pensar em uma escola focada no acesso a conhecimentos mais direcionados para a revitalização, a transmissão e a valorização das tradições culturais que identificam o povo indígena, fortalecendo sua identidade como povo diferente. Por outro lado, criando caminhos necessários para o diálogo com os demais conhecimentos.

A compreensão mais ampla da educação escolar indígena é uma definição de espaço de política de luta, uma ferramenta para garantir os processos próprios de construção de conhecimentos. Ao referir-se ao processo próprio dos kaingang ensinar e aprender, é fundamental destacar um de seus principais instrumentos: a língua kaingang. É a partir dela que podemos entender e compreender a construção do aprendizado. Isso é possível quando partimos de outra compreensão de educar e de construir conhecimentos, que estão presentes no diálogo entre as crianças e os velhos, entre as pessoas e a natureza, onde ambos não vivem separados um do outro. O conhecimento não é fracionado na visão dos kaingang.

Diante disso, o trabalho que venho desenvolvendo tem como fundamento a busca por novas práticas que estão na ancestralidade indígena, em especial a kaingang, acreditando que são possíveis e que venham a valorizar os diversos modos de saber. É a busca por superar uma escola colonizadora, que por muito tempo tem negado a existência de outras culturas e, dessa forma, (in)visibilizado os povos indígenas, colocando-os numa categoria subalterna e inferior da chamada sociedade civilizada branca. Assim, acredito que sejam possíveis novas práticas de descolonização da educação escolar, com base na valorização dos conhecimentos dos ancestrais kaingang para as gerações futuras.

O LUGAR DE ONDE VENHO FALANDO

A Terra Indígena Guarita, do povo kaingang, se localiza no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, entre os municípios de Redentora, Tenente Portela e Erval Seco. Nos limites da Terra Indígena tem a cidade de Miraguaí, que mantém uma forte relação com a população indígena, de importância econômica, pois os kaingang são os principais consumidores dos produtos comercializados naquela cidade. No mapa abaixo a localização da terra indígena Guarita.


https://www.google.com/search?q=terra+indigena+guarita+no+mapa
. Acessado 06/03/19

Guarita possui uma população em torno de oito mil pessoas e está organizada em 16 setores1. Destas, 14 são kaingang: Pedra Lisa, ABC, Três Soitas, Linha Esperança e KM 10, que estão próximas dos limites do município de Tenente Portela. As demais: Missão, Estiva, São João do Irapuá, Bananeira, Pau Escrito, Mato Queimado, Katiú Griá, Linha São Paulo, Linha Mó e Laranjeira têm como limite o município de Redentora. As duas aldeias do povo guarani são Gengibre e Capoeira dos Amaros, que se localizam no município de Erval Seco, totalizando os 16 setores acima anunciados.

A Terra Indígena Guarita, já dentro de um processo de demarcações iniciado pelo governo estadual, teve sua área total oficializada em 1917. A oficialização foi realizada pela Diretoria de Terras e Colonização de acordo com as orientações do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), mas somente em 1918 apareceu oficialmente nos relatórios, contando com uma área oficial de 23.183 hectares.

É importante também dizer que na Terra Indígena Guarita existe 13 escolas indígenas, sendo 11 kaingang. Dessas, uma é de ensino médio e as demais com alunos do 1º ao 9º ano. Duas escolas são específicas do povo Guarani. Nessas escolas trabalham professores indígenas e não indígenas, em que a maioria dos professores indígenas atua nos anos iniciais. Do total dessas escolas, quatro tem professor(a) kaingang na direção, além de algumas com a vice direção indígena e a coordenação pedagógica é de professores indígenas e não indígenas.

Penso que protagonizar a gestão da escola é um avanço para a educação escolar indígena, considerando que num passado próximo os cargos diretivos e a docência eram desenvolvidos somente por professores não indígenas, que alfabetizavam na língua portuguesa. Isso tinha o objetivo de negação dos valores do povo, na clara intenção de “civilizar”os indígenas, na busca da integração destes na sociedade nacional e, assim, ocupar seus territórios.

A Terra Indígena Guarita foi palco de muitos acontecimentos, como o projeto missionário do Pastor Norberto Schwantes, da igreja evangélica de confissão luterana do Brasil. O projeto missionário foi instalado no setor Missão no final da década de 1950, tendo como prioridade a educação, religião, agricultura e saúde. O projeto da educação, foi iniciado em 1963, com a fundação da Escola de Aplicação Marechal Cândido Rondon, que pretendia formar professores indígenas. Conforme relatos dos Kofá (velhos), ninguém sabia ler nem escrever, daí então foi criado primeiro um curso de alfabetização em português e kaingang e que, mais tarde, formou monitores bilíngües. Pela primeira vez em toda a história do Brasil, no ano de 1967, criou-se a Escola Normal Indígena, paralela à escola primária, objetivando a formação de jovens indígenas para alfabetizar e instruir na língua materna. A escola, conduzida pela igreja luterana, iniciou suas atividades letivas em fevereiro de 1970 (Luckmann, 2011: 86) e encerrou suas atividades em junho de 1981, por discordâncias filosóficas e por problemas financeiros com a FUNAI.

A primeira turma de alunos que o Centro habilitou como professor-monitor, em número de 19, originou-se de um grupo de 35 jovens que foram indicados pelos chefes de postos para frequentar o curso. Segundo a direção do Centro da época, “a falta inicial de critérios para a seleção provocou vários problemas e a necessidade de eliminar alguns estudantes”. Dos alunos habilitados, três não quiseram ingressar como professores-monitores. Restaram assim 16, que ingressaram na FUNAI (Santos, 1975: 67). Os outros três assumiram outras funções na FUNAI. Além desses, mais duas turmas foram formadas.

Os professores-monitores deviam cumprir o objetivo da educação para os indígenas previsto no artigo 50 do Estatuto do Índio (Lei Nº6.001/1973), que estabelecia: “A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processos de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais”.

Diante disso, venho evocar na memória momentos importantes na vida como kaingang. Relato algumas delas que estão estreitamente vinculadas aos processos de educação própria, bem como com a história da escola. Nasci na Terra Indígena Guarita e, aos 4 anos de idade, passei a morar com minha bisavó e meu bisavô maternos, Dona Julia e seu Manuel Amaral. Morávamos numa casa de madeira construída pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), casa essa que tinha dois quartos, uma sala e cozinha, uma área de estar aberta de frente para a rua. Além disso, tinha um anexo, onde era feito o fogo de chão. Essas casas eram enfileiradas ao longo de ruas principais e na estrada principal de acesso à sede do Posto da FUNAI na área indígena.

Esse modo de organização espacial modificou as formas próprias de organização das moradias dos kaingang, obrigando a conviver em espaços pequenos2. Isso também fazia parte do projeto violento de transformar os kaingang em colonos3, na ideia de integrá-los ao progresso e à sociedade civilizada. De forma mais prática, tratava-se de mudar o modo de vida dos kaingang, com a proibição de rituais tradicionais, o ensino da língua portuguesa e a substituição das lideranças tradicionais por hierarquias militares.

Relembrando a história, a partir dos anos de 1950, as terras kaingang foram vítimas da exploração de madeiras e arrendamento, que perdura até os atuais dias. Isso também foi constatado por Luckmann (2011:62): “os modelos de agricultura na década de 1950, além de serem introduzidos de forma exploratória nas terras indígenas, influenciaram na alteração do modo de ser e produzir kaingang”.

Inserido nesse contexto, morando com meus bisavôs, assistia o movimento dos kaingang, homens e mulheres realizando trabalhos para os administradores do posto da FUNAI. Nessa época, o Posto contava com uma empresa que beneficiava as madeiras retiradas das matas da Guarita que eram vendidas para os não indígenas e uma pequena parte, as de baixo valor econômico, eram servidas aos kaingang desta terra. Compondo o aparato introduzido no território pelo SPI e mantido pela FUNAI, havia também um moinho para beneficiar produto como milho e trigo, uma enfermaria e, é claro, a escola.

Apesar das dificuldades da época, a nossa Nỹ kófa (bisavó), soube nos educar conforme suas vivências. Esteve sempre muito próxima de nós, pois nossos pais estavam envolvidos com atividades do Posto. Um dos principais ensinamentos da época foi como conviver com a natureza e que era dessa natureza que podíamos compreender a importância da vida kaingang. Desse modo, aprendemos a fazer nossas primeiras leituras. Íamos ao mato colher frutas e outras plantas comestíveis. É importante dizer que cada colheita era feita em sua época, assim como a retirada dos remédios que eram passados em nossas pernas e braços para sermos fortes e resistentes. Era dessa forma que Nỹ kófa ia passando seus conhecimentos para nós: na língua kaingang se fala “Ki kajró”, ou seja, conhecimento específico. Nossa Nỹ kófa tinha a compreensão que, quando crescidos, também iriamos trabalhar como nossos pais, para o Posto.

Mas também, o nosso Bisavô passava seus ensinamentos através de suas histórias de caçadas, pescarias e histórias de animais –os Ó, os seus remédios para sermos bons guerreiros, para sermos homens capazes de compreender o contexto vivido pelos kaingang–. Ensinava-nos a escutar para sermos Kri há (inteligentes) e, assim, sermos capazes de encontrar estratégias para as adversidades vividas por nosso povo. Entre tantos ensinamentos que tive com meus velhos, destaco aqui o principal marcador de tempo kaingang, o prỹg, um mandruvá4.

O aparecimento desse tipo de lagartas significava que era o tempo de preparar as roças para um novo plantio e, além disso, fazer uma previsão de como ocorreria a vida dos kaingang para o ano que iniciava, aprendermos a fazer a leitura do que a natureza podia nos oferecer. Igualmente, aprendemos a fazer a escolha das plantas para remédios específicos. Em suma, aprendemos a conviver de forma mais intensa com a natureza, dialogando com as mais variadas linguagens.

Quero ainda, destacar o papel do meu pai, mas antes disso, dizer que meu avô paterno foi um grande conhecedor de remédios, um Kujá (xamã), sendo assim, meu pai é conhecedor da mata. Ensinou-me que a mata é lugar de desafios e de respeito, onde testamos nossos limites de compreensão do mundo kaingang através do exercício de ouvir as mais diversas formas de comunicação, pois tudo se movimenta. Cada movimento precisa ser compreendido dentro de seu espaço e tempo, o dia todo. Diante disso, podemos pensar sobre as diversas estratégias de sobrevivência que os kaingang foram adaptando a cada contexto vivido ao longo dos tempos de contato com outras sociedades.

Como vinha contando, entre as coisas que assistia na época, acredito que seja por volta de 1970, quando tinha uns 5 anos de idade, via, da casa de minha Nỹ kófa –naquela área aberta de frente para rua– as crianças mais velhas irem à escola com seus materiais escolares. Acredito que devia ser um caderno e lápis. Pareciam felizes, mas o que mais gostava de ver e sentia vontade de estar junto era na hora do intervalo das atividades escolares, o recreio, pois era nessa hora que brincavam, corriam, jogavam bola. Eu nem pensava em aprender a escrever algo qualquer, mas sim, brincar. Talvez porque os velhos com os quais vivi passavam seus conhecimentos com alegria, sabedoria e inteligência, brincavam e ensinavam. Vivia a experimentação do aprendizado, os comandos eram dados em nossa língua materna, o kaingang. Mas também, eu tinha a curiosidade de estar sentado num banco escolar. Essa curiosidade escolar se passa no setor de Irapuá, sede do Posto do SPI e, mais tarde da FUNAI.

Depois de certo tempo, mudamos para perto de meus avós paternos, no setor Pedra Lisa. Mas esses meus avós só falavam na língua portuguesa. Onde, finalmente, vou conhecer os bancos escolares: a Escola Municipal Aeroporto, de Tenente Portela. Aquele primeiro período foi marcado pela violência do ensino da língua portuguesa para mim e para os alunos indígenas da minha classe, pois essa escola atendia também crianças não indígenas, filhos de colonos arrendatários que moravam na Terra Indígena, além de crianças vindas da vila Operaria, da cidade de Tenente Portela. Nesse período, a escola marca a minha vida, pela sua violência com o “outro”.

A ESCOLA E SEUS (DES)ENSINAMENTOS

Eu e as demais crianças kaingang que iniciavam o ano letivo éramos proibidos de falar na nossa língua: deveríamos falar o português. Tive muitas dificuldades no início, pelo menos nos dois primeiros anos de escola. Muitas vezes fiquei de castigo de frente para a parede para pensar as palavras em português, sem o tão sonhado recreio; a professora batia nossas cabeças com régua, uma madeira. Acredito que tinha um metro de comprimento, tudo por não entender a professora que estava falando na língua portuguesa. Marcas da escola, pela qual tinha tanta curiosidade. É importante lembrar que a escola estava desempenhando sua principal função, a de civilizar e integrar os indígenas na sociedade nacional através da imposição dos valores ocidentais, da língua portuguesa e a desvalorização da história e da vida dos povos indígenas. Segundo Santos (1975:73): “A educação oferecida às comunidades indígenas, na forma de ensino monolíngue, está coerente com os anseios de dominação e espoliação dos índios por membros privilegiados da sociedade envolvente. Assim, a escola, o programa de ensino e o professor, efetivamente, representam o domínio exercido pelo mundo dos brancos, seja quando orientam os componentes das novas gerações indígenas para o aprendizado da língua portuguesa, preparando tais contingentes para a ocupação de funções no mercado de trabalho regional”.

A escola desconsiderou valores indígenas, os processos de aprendizagem própria do povo, o de aprender juntos, em que a língua indígena é fundamental, pois as narrativas e outras formas de transmissão de conhecimentos se dão pela oralidade e sua experimentação. Assim, fui sendo alfabetizado na língua portuguesa e aos poucos substituindo a língua kaingang e, junto com isso, a educação indígena recebida pelos meus Kofá kaingang.

Mas, por outro lado, não posso negar a importância da escola, que já faz parte da vida dos kaingang e através dela podem acessar outros conhecimentos do mundo branco e suas tecnologias. Segundo Luciano (2013:127): “Não há individuo ou grupo indígena com algum grau de contato que não deseje o acesso, o domínio e a apropriação de uma lista enorme de bens, tecnologias e valores do mundo branco para aperfeiçoar seus conhecimentos e modos de vida, sobretudo se os atuais contextos de pós-contatos são levados em conta. Trata-se, repito, não apenas de tecnologias, mas também de valores e modo de vida”.

Acredito que a experiência escolar em escolas indígenas que tive dos anos de 1974 aos dias atuais, tem proporcionado boas reflexões, que no nosso idioma se diz To jykrén. Por um lado, deixei de falar a língua kaingang e passei a falar a língua portuguesa, mas nem por isso deixei a sabedoria kaingang, o Ki kajró. Como os ensinamentos que tive junto aos Kofá antes de ir para escola e substituir minha língua por outra, permaneceram muito vivos. Mais tarde, retomei à língua indígena com o auxílio da própria comunidade indígena do setor Pedra Lisa, onde a escola estava e ainda está inserida.

Nesse setor, na época (1980), tinha um time de futebol que se chama Esporte Clube Aimoré, em que seus atletas jogadores falavam somente a língua kaingang e os poucos que não falavam entendiam. Então passei a conviver nesse clube. Tinha um momento especifico que se falava em português, a hora do “catecismo”, nos sábados, pois ali também a igreja católica rezava suas missas. Porém, depois das rezas, nós nos reuníamos na casa de um velho kaingang, seu Augusto Bento e sua mulher a Dona Pedra Bento.

Nessa casa, nós jogávamos cartas-baralho, jogo do tigre/onça, búzios, 61 e outras brincadeiras, além das comidas que esse casal de velhos preparava para nós durante as noites e suas histórias. Assim, fui retomando a língua kaingang novamente. Dona Pedra faleceu com 124 anos5. Muito bom lembrar esses momentos mágicos da casa dos velhos e pensar na escola.

A ESCOLA E AS RESSIGNIFICAÇÕES

No Rio Grande do Sul existem hoje 56 escolas kaingang distribuídas em 31 municípios que possuem Terras Indígenas já demarcadas e nos acampamentos de retomada de terras com processo de demarcação. Essas escolas recebem aproximadamente 5 mil alunos kaingang, que são atendidos por 250 professores kaingang, sendo que 217 atuam nos anos iniciais e os demais nos anos finais e no ensino médio, nos diversos componentes curriculares comuns às escolas nacionais e nos componentes curriculares específicos, como Língua Kaingang e Valores Culturais.

Tem também o Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, que fica na Terra Indígena de Inhacorá, município de São Valério do Sul. Este Instituto atende alunos de ensino médio e forma professores kaingang em nível de magistério, atuando no regime de alternância. Essa organização temporal é somente para o magistério, em que se alternam: quinze dias são no educandário e quinze dias na comunidade, como uma tentativa de buscar novas alternativas para a educação escolar indígena. O Instituto tem como um de seus objetivos, “Oportunizar a formação de professores através da compreensão do que é aprender, de como se aprende e onde se aprende, considerando que construir conhecimento decorre da relação com o outro e com o objeto a ser conhecido, estabelecendo uma constante relação entre teoria e prática; e possibilitar ao estudante o entendimento da infância, em seu processo social e histórico e da criança na situação de sujeito de direitos” (Regimento do Instituto, 2014:06).

É importante dizer que na grande maioria das escolas kaingang, a Direção (condução da instituição) é exercida por professores fóg (não indígenas). Na maioria das vezes, os professores kaingang ocupam cargos secundários, como vice direção, com menor poder de decisão. Nessas escolas, assim como na esfera administrativa, temos também as coordenações pedagógicas, igualmente ocupadas por professores fóg (não indígenas) e, em alguns casos, compartilhadas com professores indígenas. Essa situação tem criado enormes dificuldades para uma escola que precisa respeitar os processos próprios de aprendizagem dos alunos indígenas, dificultando a superação da escola integracionista civilizadora. Podemos ainda incluir os materiais didáticos inadequados para essas escolas.

É inegável a importância do material didático na educação escolar, pois auxilia o professor no ensino-aprendizagem dos alunos. No caso das escolas indígenas, a maioria desses materiais está voltada para o ensino dos conhecimentos e valores ocidentais, história, a língua não indígena e, assim, negando as línguas indígenas e os conhecimentos tradicionais desses povos. Diante disso, o problema é que esses livros didáticos são adotados pelos professores como um manual do ensino, mesmo com conteúdos não coerentes com os alunos indígenas. Não estou aqui negando o direito de o aluno indígena conhecer os demais conhecimentos e tecnologias, mas sim, que é necessário valorizar, antes de tudo, os seus conhecimentos que têm raízes na ancestralidade de seu povo. Considerando isso, é necessária uma política para a construção de material didático específico, com toda a sua complexidade. Existem muitos elementos que fazem parte dessa complexidade e que não podem ser desconsiderados, entre os quais estão: a autoria do professor indígena, o tempo e espaço6, o trabalho coletivo e a demanda da escola e do povo indígena.

Penso que o material didático inadequado nas escolas indígenas, junto à postura invasiva e a pose de superioridade dos(as) professores(as) não indígenas se soma a falta de formação adequada para trabalhar nas escolas indígenas, além de falar somente a língua portuguesa. Essas são questões que têm contribuído para a desvalorização dos conhecimentos indígenas, nivelando por baixo a qualidade da escola indígena, pela incompreensão do que seja educação específica e diferenciada. Isso tem atrapalhado o desempenho do professor indígena, que domina a língua indígena e a língua portuguesa, fato que lhes possibilita produzir um diálogo intercultural.

Mesmo com esses problemas, a escola tem se tornado um valor considerável como espaço de educar entre os kaingang, muito em decorrência dos novos contextos. A escola pode ser uma ferramenta importante para as lutas indígenas e, consequentemente, contribuir para avançar na melhoria de vida desse povo. Mas também é importante reconhecer que as novas leis, a partir de 1988, têm possibilitado repensar os objetivos da escola, alterando seu papel de “escola para os índios”, colonizadora e integracionista, como esteve presente na proposta do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em parceria com o Summer Institute of Linguistics (SIL)7, quando da formação dos professores-monitores para atuarem junto às comunidades indígenas, nos anos de 1970.

Ainda pensando nos objetivos integracionistas da escola, é evidente que era sabido sobre a diversidade de povos indígenas existentes no Brasil, pois se a desconhecessem, não apontariam como ponto de chegada o fim dessa diversidade. A partir desta constatação, os agentes colonizadores buscaram incorporar os índios à sociedade nacional, tornando-os brasileiros, civilizados, fazendo-os abandonar suas próprias identidades. Pensando nisso, me faz lembrar o tempo de escola, que tínhamos que ficar em fila para cantar o Hino Nacional do Brasil ou ainda dizer versos como esse: “Bandeira minha, de encantos mil, imagem linda do meu Brasil”. Ou ainda, sair marchando e contando: “Marcha soldado, marcha soldado, se não marchar direito vai preso no quartel”.

Também presente nas lembranças do Professor kaingang Miguel Ribeiro, os versos que diziam: “Na frente da minha escola há um bonito sinal, viva a nossa professora e a bandeira nacional”. Essas lembranças foram possíveis graças a uma conversa com os professores Miguel Ribeiro e Zaqueu Claudino. São situações vivenciadas por nós indígenas e que evidenciam atividades de incentivo à perda da identidade, dos valores próprios e do desuso da língua materna, como fala o professor Zaqueu, lembrando o tempo de escola: “nós não podíamos pedir nada em kaingang, tudo tinha que ser em português”8.

Essa escola introduziu novos hábitos, novas necessidades, novos valores, tornando-se assim um instrumento do Estado para o processo civilizatório dos povos indígenas, desestruturando os modos próprios de aprendizagem que estão baseados nos costumes, rituais, tradição, espaços e tempos próprios de cada povo indígena. Nesse sentido, a escola discriminou e excluiu as línguas, a oralidade, o saber e a arte dos povos e afirmou o seu papel de transmitir os conhecimentos e valores da cultura branca, machista europeia. No máximo, as línguas indígenas serviriam como ferramenta de tradução, a fim de tornar mais fácil a aprendizagem da língua portuguesa.

Esse modelo de escola rompeu o fazer, o brincar, o viver e o conviver. De forma mais geral, podemos dizer que rompeu as ações das crianças kaingang que estavam muito bem vinculadas à cultura do povo. Diante disso, se faz necessário perguntar: ¿até que ponto a educação escolar dialoga com a educação indígena? Nos dias mais recentes, ¿será que as práticas da educação escolar indígena são de envolvimento, compreensão, diálogo e troca, sem descontinuidades com os processos próprios de constituir conhecimento das crianças e dos jovens indígenas?

Diante dessas questões, me arrisco a dizer que a escola indígena deve ser compreendida como um território, produtor de cultura, de outras culturas. Sendo um território, faz parte de um processo histórico das relações sociais. Dessa forma, só é possível pensar na escola indígena, se considerarmos seus respectivos processos históricos. Silva e Azevedo (1995:150) nos lembra que: “desde a chegada das primeiras caravelas até meados do sec. XX, o panorama da educação escolar indígena foi um só, marcado pelas palavras de ordem ‘catequizar’, ‘civilizar’ e ‘integrar’ ou, em uma capsula, pela negação da diferença”.

Diante disso, uma nova perspectiva de pensar a educação escolar é necessária e tem avançado na direção de uma educação que ajude na recuperação de valores culturais perdidos em tempos passados, superar a escola que, em muitos casos, levou os próprios indígenas, os Kaingang, a se sentirem envergonhados de sua identidade, de sua língua, o qual propiciou que muitos a deixassem de praticar.

Como já foi dito, destaco novamente o papel da Constituição Federal do Brasil de 1988, evidenciado no capitulo VIII, que trata dos direitos indígenas, como o Artigo 231, que afirma: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Nesse novo contexto brasileiro, fortemente marcado pelo reconhecimento aos direitos indígenas registrados na Constituição Federal, as lideranças kaingang se organizaram e passaram a discutir seu território tradicional. Os kaingang buscaram a recuperação de suas terras perdidas em épocas passadas, se inserindo na problemática fundiária do sul do Brasil, e assim, defrontando-se com outros atores na luta pela terra.

De maneira geral, a terra é tudo para os indígenas! A partir dessa perspectiva, a luta por direitos é bem mais ampla, como saúde, educação e modos de sustentabilidade. Dessa forma, os povos indígenas passam a discutir as políticas públicas que lhes dizem respeito, entre elas a educação escolar, uma das suas prioridades.

Nesse sentido, a educação escolar como direito, é muito mais amplo do que pensar a escola. Com essa compreensão, as lideranças kaingang participam ativamente na efetivação da educação escolar diferenciada e, com esse movimento, as escolas existentes nas terras kaingang vão, aos poucos, ganhando uma nova forma, pensamento de valores que estão penetrados na alma de cada indígena.

Como parte desse processo, os nomes das escolas, antes referenciando personagens nacionais e coloniais, são trocados por nomes kaingang, que são significativos dentro da sua cultura e história. Estas e outras ações visam revitalizar os valores da educação indígena na escola, baseadas nos ensinamentos ancestrais. Só para lembrar, a educação escolar indígena não existe sem a terra, pois é nesse espaço que se produz e se reproduz a cultura. Este movimento por educação diferenciada está apoiado na Constituição Federal, contidas no Artigo 210, parágrafo 2º: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. Isso garante e possibilita a construção de políticas públicas que assegurem a efetivação de ensino específico e diferenciado, intercultural e bilíngüe, aproximando a comunidade indígena e a escola e os demais espaços de construção de conhecimentos dos indígenas.

Esse pensamento, de aproximar escola e comunidade, sugere que características semelhantes entre os membros de uma comunidade ou grupo sejam partilhadas e assim serem reivindicadas como vontades próprias e verdadeiras. Para isso, é necessário reconhecer os limites da escola e da comunidade, sobretudo, perceber que a escola não pode ser dona da comunidade e decidir por ela, definindo as importâncias e prioridades. Sabendo disso, compreender que, no sistema tradicional de educação indígena, todos têm a obrigação de ensinar e aprender. Isso torna ainda mais importante ouvir as reivindicações da comunidade sobre a importância do que ensinar na escola. A partir de esse ouvir tomar as devidas medidas metodológicas de aprendizagem presentes entre os indígenas, com muita atenção nas necessidades e prioridades das comunidades indígena e escolar. Importante lembrar que o ouvir não está presente como prioridade no modo de educar dos não indígenas.

Diante desse contexto de busca constante de evidenciar os conhecimentos dos povos indígena, em especial dos kaingang, é preciso cada vez mais fortalecer as reflexões dos professores sobre educação específica e diferenciada, bem como a efetivação desses como protagonistas do saber escolar, e suas atuações junto às lideranças tradicionais kaingang nas questões que envolvem suas comunidades. Tendo a consciência que a construção de uma política pública condizente com os anseios das comunidades indígenas ainda é um desafio. Desafio este que nos provoca a buscar novas reflexões e ações práticas.

Desse modo, o reconhecimento de métodos e processos próprios de construção de conhecimentos e saberes do povo kaingang se faz necessário. Se a escola quiser atender às expectativas da ressignificação e revitalização cultural, linguística e a sustentabilidade dos kaingang, ela não pode simplesmente ficar repetindo os modelos colonizadores, os quais simplesmente repassam informações ou conhecimentos da sociedade europeia, negando a existência do conhecimento indígena que desenvolveu ciências e tecnologias próprias desde tempos ancestrais.

Importa compreender que a educação indígena não se desvincula da vida cotidiana de toda a comunidade e que o território é um espaço educativo. Portanto, para pensar uma escola indígena, temos que nos apropriar dos processos pedagógicos indígenas, e isto significa trazer de forma reconhecida e contundente os conhecimentos indígenas para dialogar, no espaço escolar, com os demais conhecimentos. Respeitar os processos próprios de aprendizagem é direito constitucional. Para isso, se faz muito importante buscar os conhecimentos na sua fonte primaria que é a memória dos nossos velhos e aprender a ouvir.

Acredito que, dessas lembranças, se constitui a vida escolar, junto a isso é necessário trazer os conhecimentos indígenas para o debate nas universidades e dessa maneira ir aos poucos mostrando a relevância que esses conhecimentos têm para as outras sociedades. E mais do que isso, retirá-los da invisibilidade, da ideia de que os indígenas não possuem conhecimentos, que são incapazes.

É preciso aprofundar questões relevantes para a vida kaingang, como as políticas públicas para educação escolar indígena, a maior visibilidade de seus conhecimentos, o jeito de estar e viver, sua organização social, sua pedagogia, o jeito de educar a partir da convivência entre todos os membros de suas comunidades, suas concepções de mundo, sua relação com os elementos da natureza e o respeito pelos mais velhos. Enfim, a partir disso, abrir o acesso dos indígenas às técnicas e aos conhecimentos não indígenas, sem que estes se sobreponham aos valores fundamentais para a sobrevivência como povo diferente, consciente de não negar a esses indígenas o acesso à vida moderna. Como um exemplo disso cito uma cena, em que presenciei uma mulher kaingang preparar seu kumĩ, comida da culinária kaingang, e para seu preparo utilizou o liquidificador, ao invés do pilão. Porém, nem por isso deixou de ser kaingang. E isso me parece ser lógico: é mais fácil carregar o liquidificador em seus deslocamentos do que um pilão.

FALAS FINAIS

Refletindo sobre tudo isso, “ligando o radar”, vejo que a caminhada da resiliência, da negociação, do diálogo e da proposição é importante na busca de colocar em pauta os desejos do povo indígena, trazendo para a sociedade novas formas de compreender esse mundo que está entrando em colapso com seus modelos suicidas. Tempos se passaram, porém, na memória dos povos indígenas estão presentes as lutas para sobreviverem às políticas de destruição de suas sabedorias, razões de suas existências como povos diferentes.

Sendo assim, a escola indígena precisa ter presente, de forma muito concreta, as experiências e as vivências baseadas na reciprocidade, que tem o papel de reguladora social. Dessa forma, ir descolonizando a educação escolar envolve se referenciar nos conhecimentos indígenas, sobretudo, na cultura e história das vivências do povo kaingang.

Ao referir-se ao processo próprio dos kaingang, ensinar e aprender, é fundamental destacar um de seus principais instrumentos: a língua kaingang. É a partir dela que podemos entender e compreender a construção do aprendizado. Isso é possível quando partimos de outra compreensão de educar e de construir conhecimentos, que estão presentes nas culturas indígenas, que produz diálogo entre as crianças, os velhos e todos os membros de sua comunidade em espaço e tempo conforme sua cultura.

Perceber que esse modelo de escola colonizadora rompeu o fazer, o brincar, o viver e o conviver, isso deve ser continuamente lembrado. De forma mais geral, podemos dizer que rompeu as ações das crianças kaingang e limitou seu espaço de aprender. Diante disso, se faz necessário perguntar: ¿até que ponto a educação escolar dialoga com a educação indígena? Olhar para o sistema tradicional de educação indígena, onde todos têm a obrigação de ensinar, torna ainda mais importante ouvir os kaingang sobre a importância do que ensinar na escola. A partir de esse ouvir podemos tomar as devidas decisões metodológicas e pedagógicas, com muita atenção na compreensão das prioridades das comunidades escolares indígenas.

Concluindo, o reconhecimento de métodos e processos próprios de construção de conhecimentos e saberes do povo kaingang torna-se fundamental, bem como a compreensão de que a escola indígena não deve se desvincular da vida cotidiana da criança e dos demais espaços educativos. Portanto, para construir uma escola indígena, é preciso se apropriar dos processos pedagógicos indígenas, e isto significa trazer de forma contundente os conhecimentos indígenas para dialogar, no espaço escolar, com os demais conhecimentos, buscar os conhecimentos na memória dos nossos velhos e aprender a ouvir. Assim, a educação escolar indígena precisa dar maior visibilidade aos conhecimentos indígenas, o seu jeito de estar e viver, sua organização social, sua pedagogia, o jeito de educar a partir da convivência entre todos os membros de suas comunidades, as concepções de mundo, sua relação com os elementos da natureza e o respeito pelos mais velhos. Precisa ainda reativar as experiências adormecidas numa prática transdisciplinar como uma das formas de transmissão de conhecimentos ancestrais. Considero também que os conhecimentos indígenas precisam ter mais circulação nos meios acadêmicos, mostrando sua existência, produzindo outras reflexões. Nesse sentido, a presença dos intelectuais indígenas é muito importante.

NOTAS

1 Cada setor tem um responsável, chamado de capitão e suas lideranças. Lideranças são os ajudantes do capitão. Esses, por sua vez, obedecem a um cacique, que é eleito por toda a comunidade da Terra Indígena e todos os capitães compõem a liderança do cacique. Os guarani têm autonomia em sua aldeia, com seu próprios caciques e suas lideranças.  

2 Os Kaingang, antes, viviam livres em suas terras, caçavam, pescavam, coletavam e plantavam suas roças onde podia ser melhor a produção.

3 Política de um território ocupado e administrado por um grupo de indivíduos com poder militar, representantes do governo de um país. Acontece contra a vontade dos seus habitantes, que muitas vezes são desempossados dos seus bens e direitos. Foi o que aconteceu com os kaingang, suas terras foram invadidas e colonizadas pelos não indígenas. Na TI Guarita não foi diferente.

4 Mandruva é uma espécie da lagarta. Elas vivem amontoadas, nunca são vistas subindo em árvores. Esse tipo de lagarta aparece durante os meses de agosto e setembro.

5Morreu na madrugada desta terça-feira (27) em Tenente Portela, município da Região Noroeste do Rio Grande do Sul, uma índia caingangue que tinha 124 anos. Pedra Bento deixa três filhos, 20 netos, 60 bisnetos e quatro tataranetos. A idosa, que vivia na reserva indígena do Guarita, no setor de Pedra Lisa, completaria 125 anos em 29 de junho” (g1. globo.com/rs. Acessado 28/05/2014).

6 Tempo e espaço não são separados, ambos se completam. São um conjunto de ideias que fazem parte da cosmologia indígena, são seus mitos, suas histórias, sua relação com a natureza, onde o passado e o presente se completam.

7 O Summer Institute of Linguistics promoveu o curso de formação de professores-monitores bilíngues kaingang na Terra indígena da Guarita, onde foi criado o Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão. Para aquele curso foram enviados jovens kaingang dos três estados do sul do Brasil: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.

8 Algumas lembranças de Miguel Ribeiro e Zaqueu Claudino do tempo que frequentavam as aulas na Escola Sepé Tiaraju, hoje, Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Antônio Kasin Mig, no setor São João do Irapuá, Terra Indígena Guarita.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. Fanon, Frantz 2009. Códigos Tribunais; Processo Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva.         [ Links ]

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4. Luckmann, Sandro 2011. Educação escolar indígena na Terra Indígena Guarita: Um olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLB e COMIN. Dissertação, apresentado na UNIJUI.         [ Links ]

5. Mignolo, Walter 2008. “Novas reflexões sobre ‘Ideia da América Latina’: a direita, a esquerda e a opção descolonial”. Em: Caderno CRH, Vol. N°21, N°53, pp. 239-252.

6. Santos, Silvio Coelho dos 1975. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Ed. Movimento.         [ Links ]

7. Silva, Marcio Ferreira e Azevedo, Marta Maria 1995. “Pensando as escolas dos povos indígenas no Brasil: o movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre”. Em: A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1 e 2º graus. Brasília, MEC/MARI/UNESCO, 1995.

 

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