SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número35EL CAMINO DE VENUS BAJO EL CIELO APINAYÉ REFLEXIONES SEMÁNTICO-ENUNCIATIVAS SOBRE LA NOMINACIÓNIDENTIFICANDO CORPOS CELESTES DO PONTO DE VISTA DA ICONOGRAFIA TIKUNA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.35 Posadas dez. 2019

 

DOSSIER EXPERIENCIAS HUMANAS ENTRE EL CIELO Y LA TIERRA

CÉU E CLIMA: UMA METÁFORA JURUNA?

Cristina Martins Fargetti1  2  3 

1Faculdade de Ciências e Letras, UNESP

2grupo LINBRA – Grupo de Pesquisa de Línguas Indígenas Brasileiras, pelo CNPq

3UNICAMP

Resumo

Os juruna, povo tupi, do Parque Indígena do Xingu, observam constelações de estrelas no céu. Elas se relacionam com os conhecimentos sobre o meio ambiente na aldeia, e com a passagem do ano. Saberes sobre animais e seus costumes, de importância para os deslocamentos no ambiente e para a caça e a pesca, são apontados por estrelas, em seus surgimentos no céu, em nascer helíaco matutino, em geral. Hoje, estes conhecimentos podem estar modificados e mesmo em parte esquecidos pelas gerações mais jovens, expostas a mudanças climáticas sentidas já há bom tempo. O Xingu tem sofrido com o seu entorno poluído em larga escala com agrotóxicos, e com queimadas de áreas cada vez maiores, vivenciando verdadeiros incêndios, anualmente. O rio e a floresta têm mudado, os animais têm mudado e diminuído. Num jogo de sentidos, as palavras para céu e clima apontariam para uma metáfora?

Abstract

The Juruna, Tupian people of the Xingu Indigenous Park, observe star constellations in the sky. They are related to knowledge about the environment in the village, and the passing of the year. Knowledge about animals and their customs, of importance for environmental movements and for hunting and fishing, are pointed by stars, in their appearances in the sky, in the morning heliacal sunrise, in general. Today, this knowledge may be modified and even partly forgotten by younger generations, exposed to long-term climate change. The Xingu has been suffering with large-scale pollution with pesticides, and burning of larger and larger areas, experiencing real fires annually. River and forest have changed, animals have changed and diminished. In a game of senses, would the words for sky and climate should point to a metaphor?

Keywords Juruna people; Xingu; Constellations; Astro nomy in Cultures

INTRODUÇÃO

As mudanças climáticas têm sido sentidas em todo planeta, há bom tempo.[2] Sobre isso, estudos mostravam no passado a seca, o estresse hídrico e a fome, que pareciam tão distantes, localizados na África subsaariana (ISA, 2015). Mas, em poucos anos, a situação realmente mudou e o mundo todo enfrenta, de uma forma ou de outra, uma verdadeira crise climática. Falta água em muitos lugares e sobra água e catástrofes em outros.

Do assoreamento e desmatamento das matas ciliares do rio São Francisco, em Minas Gerais, e da mesma ocorrência percebida no rio Tocantins, em Tocantins, pode-se observar o mesmo fenômeno: a escassez de água no Brasil, em todos os cantos, e as suas terríveis consequências à vida. Que isso aponta mudanças no clima é óbvio, contudo, tenta-se responsabilizar as travessuras de El niño, as possíveis tendências a mudanças no clima, e outas mais, por esse estado de coisas. Como se os três erres dos ambientalistas “reduzir, reutilizar e reciclar” pudessem ser substituídos, impunemente, por “comprar, consumir e conspurcar”, ou, para mudar ainda a letra, “destruir, desmatar e desperdiçar”. Ou seja, a sociedade segue padrões de consumo dos recursos naturais que não são compatíveis com a preservação do meio ambiente, e, embora seja claro que esse consumo prejudique a vida de humanos e do restante da natureza, segue-se acreditando que o problema está fora, que as causas não podem ser esse modelo de vida. Este estado de coisas é apontado há bastante tempo pelos cientistas e ambientalistas, tais como José Lutzenberger, que nos anos 1980 pude ouvir falar sobre a hipótese de Gaia, a Terra como um grande organismo vivo, que teria mecanismos de defesa para sua sobrevivência, diante dos abusos cometidos pelos que nela vivem. Tal hipótese foi levantada por James Lovelock (1983) o qual postula Gaia como: “(...) um sistema fisiológico porque parece dotada do objetivo inconsciente de regular o clima e a química em um estado confortável para a vida” e que se Gaia se vinga, com as catástrofes que temos presenciado, é porque “pensando de forma egoísta apenas no bem-estar dos seres humanos e ignorando Gaia, teremos causado nossa própria quase-extinção” (Lovelock, 2006: 27). Na década de 1980, quando começamos a ouvir sobre Lovelock, o discurso ambientalista, embora embasado em pesquisa científica, pouco demovia as pessoas de práticas de poluição e consumo inconsequente, o que nos trouxe aos dias atuais, em que uma pandemia causada por um vírus, possivelmente devido a problemas ambientais, alterou de maneira significativa a vida no planeta, embora muitos façam dessa catástrofe uma disputa política e pouco ainda se preocupem com o meio ambiente.

Há quase vinte anos, eu conversava com Kanapayu Juruna sobre o clima e ele me dizia que via diferenças no Xingu, que as coisas não eram mais como antes. Mas naquele tempo, as borboletas ainda apareciam em grande quantidade na época da seca, na beira do rio; havia peixes em abundância e ainda havia um pouco de mata, no entorno ao Território Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil.[3] Hoje, seu filho Tarinu e o chefe Tininin me apontam um outro cenário. Infelizmente, assustador. Neste texto, vou procurar tematizar isso, abordando o conhecimento sobre as constelações e sobre uso de metáforas.

SOBRE DIÁLOGOS ENTRE CIÊNCIAS

Estas reflexões, devo dizer, partem de uma linguista que não estudou a Astronomia como uma ciência que ela é. Na verdade, sou cientista da linguagem e enxergo o céu com óculos[4] emprestados dos juruna. Apenas óculos, daquela cultura, é bem verdade, e sem equipamentos, com os pés no chão. Ou seja, apesar de olhar para o nosso Cruzeiro do Sul e saber de sua existência desde que era criança, não o vejo mais no céu como uma cruz, como seria de se esperar em minha cultura. Eu o vejo como o pássaro kanapi, lembrando-me de seu mito entre os juruna.[5] Não manuseio lunetas, não domino toda terminologia específica, nem teorias sobre o universo, o que, apesar de não necessário, enquanto método, na astronomia nas culturas, seria de se esperar para aquele que se dedica ao estudo do céu. Então, solicito a meu leitor compreensão e um voto de confiança em quem realizou trabalho de campo em muitos momentos, ao longo dos anos, e pôde ter um entendimento que busco compartilhar. Devo dizer que vejo apenas as constelações dos juruna quando observo o céu, no hemisfério Sul, e elas costumam me bastar, elas me dizem respeito. A partir delas, dialogo com o conhecimento da Astronomia, também no que me diz respeito, ou seja, o que permite um diálogo com o que vejo. Assim, curiosamente, minha compreensão do céu veio de fora de minha cultura, me fazendo recortar o mundo de uma forma diferente e mesmo não prevista para alguém que não nasceu indígena. Devo ao povo juruna a generosidade de comigo compartilhar esse conhecimento, a paciência para me explicar as coisas, me apontar estrelas de madrugada, me contar histórias, me ajudar a entender essas histórias, e me aceitar como eu sou. E devo a Marcio D’Olne Campos a orientação para a pesquisa que fiz, o encorajamento, as leituras e a amizade. Seus textos inspiraram e motivaram a busca de um diálogo (Campos, 2002, 1999), que já dura bons anos. Como direi em seguida, minha proposta de abordagem em estudos do léxico, que chamo Terminologia Etnográfica (Fargetti, 2018), tem seu início de discussão com os trabalhos desse pesquisador, quando ele problematiza a noção de ciência (C&T – Ciência e Tecnologia), ao pensar que saberes de outros povos, por sua especificidade, não poderiam ser classificados como áreas da ciência ocidental.

Minha dissertação de mestrado (Fargetti, 1992), sob orientação de Lucy Seki (quem me apresentou aos juruna), constituiu um primeiro estudo fonológico do juruna, basicamente pikeano[6], que determinou os fonemas consonantais e vocálicos, a existência de propagação regressiva da nasalidade e da oposição entre os tons baixo e alto, sendo o acento tônico previsível pela alternância de tons. Devido a esse estudo, foi possível elaborar uma proposta de escrita para a língua (Fargetti,1994), processo que se deu em conjunto com os professores juruna. A partir de então, foram possíveis o ensino bilíngue, nas escolas das aldeias, e a elaboração de textos em língua indígena, que aos poucos vem sendo publicados (Fargetti, 2010b; Fargetti e Martins, 2012).

Dando prosseguimento ao estudo, em tese de doutorado (Fargetti, 2001, publicada como Fargetti, 2007), também sob orientação de Lucy Seki, apresentei uma breve reanálise da fonologia e um estudo da morfossintaxe da língua, definindo as classes de palavras, fenômenos relacionados à sentença e tipos de sentença (com textos em juruna, em anexo, glosados e traduzidos e um pequeno vocabulário). A partir desses estudos, que constituem os primeiros trabalhos linguísticos sobre o juruna, foram levantadas inúmeras questões que motivaram estudos fonológicos (Fargetti, 2012c, 2008, 2006c, 1993a), morfológicos (Fargetti, 2003, 2002a,1997), morfossintáticos (Fargetti, 2007a) histórico-comparativos (Fargetti, 2007c; Fargetti e Rodrigues 2009a,2008,2005; Fargetti e Sumaio, 2015), etnográficos e de astronomia das culturas (Fargetti, 2019a, 2006b, 2002c, 2000, 1993b), lexicológicos/lexicográficos (Fargetti, 2019b, 2012a, 2012b, 2008, 2007c, Fargetti e Martins, 2016; Fargetti e Rodrigues, 2009a), sobre educação bilíngue e sistemas de escrita (Fargetti, 2011, 2006a, 2002b, 1998a, 1998b, 1995; Fargetti e Moscardini, 2013) e sobre a relação entre linguística, antropologia e música (Fargetti, 2017).

Podem ciências dialogar? Sim e não. Às vezes o que se tem é diálogo (ou monólogo?) entre cego e surdo. O que um diz, o outro não ouve; e o que um sinaliza, o outro não vê. Mas ambos chegam a conclusões de seu diálogo! Isso ocorre quando se pressupõe demais, quando se infere sem comprovação em dados e conhecimento. Então, para dialogar é preciso tentar entender o outro, compreender sua linguagem, mesmo que para isso seja necessário um bom intérprete. Tanto nas ciências dos caraíbas entre si, quanto nas ciências dos caraíbas em diálogo com as ciências de povos indígenas.

Este diálogo pode levar a um conhecimento diferente, mas se eu uso o recorte da minha cultura, com todos os seus pressupostos, se eu uso os seus “óculos” e tento “achar” na cultura do outro as constelações que minha sociedade delimita, o que vou encontrar? Talvez uma imagem borrada daquilo que esperava encontrar, num decalque apenas. As constelações de povos diversos, embora abranjam várias estrelas coincidentes, não são as mesmas. Não significam as mesmas coisas, não referenciam histórias semelhantes. Pensar que todos os povos recortam o que veem da mesma forma é, portanto, um engano metodológico e também etnocêntrico, que leva a resultados insatisfatórios, ou o que chamei de “imagem borrada” de mim mesmo. Isso porque, tentando atender a meus pedidos de informação, dizendo que algo existe e está visível, meu informante[7] pode me dar uma resposta aproximada do que pedi, criando, portanto, algo que não existe em sua cultura, com o objetivo de satisfazer à minha curiosidade estranha de pesquisadora. Tenho vários exemplos anedóticos de ter vivido essa situação, que ficam para relato em outro momento.

Na Linguística, ciência da linguagem, entre as diversas áreas de estudo, temos os Estudos do Léxico, que englobam Lexicologia, Lexicografia, Terminologia e Terminografia. Os estudos lexicológicos procuram descrever e analisar, em sua constituição mórfica e complexidade semântica, os itens lexicais, que, contudo, estariam compreendidos na língua utilizada nos mais diversos contextos, menos o especializado. Para os itens lexicais relacionados a áreas de especialidade, chamados “termos”, os estudos terminológicos procuram compreender sua constituição dentro da ciência específica a que pertencem. Estes estudos são essenciais para aplicações em dicionários, em abordagens, portanto, lexicográficas ou terminográficas. Com isso, podemos ter dicionários gerais de uma língua, como o Houaiss[8], ou dicionários terminológicos, como um dicionário de termos da Linguística. Mas a Terminologia traz em si a questão do diálogo entre ciências, de maneira mais evidente:

Si la Lexicología es el estudio de la formación de palabras, su estructura y busca por definiciones adecuadas, ¿la Terminología trataría de términos de ámbitos específicos? Pero si el pueblo tiene saberes holísticos, ¿podría tener ciencias distintas? ¿Qué es Ciencia? Esta pregunta debe ser hecha siempre, y en conjunto con los hablantes de la lengua, pues pienso que clasificaciones de saberes son posibles entre hablantes de lenguas minoritarias, con fronteras diferentes y con respuestas diferentes sobre qué es el mundo. Intentar aproximar las clasificaciones de nuestras ciencias es difícil, como, por ejemplo, saber sobre las estrellas y el cultivo de plantas comestibles, ¿esto sería Astronomía + Agronomía? Ciencias diferentes, con recortes diferentes. Por lo tanto, Terminología en sociedades minoritarias, como las indígenas, implica en diálogo entre los saberes técnicos de los indígenas y los nuestros; registro del conocimiento para enseñanza en la escuela y para recuperación por las generaciones más jóvenes. E incluso, la interlocución es lo que puede disminuir la asimetría entre investigador y hablante, presuponiendo diálogo posible entre especialistas – el especialista indígena en un asunto y el lingüista, el lexicógrafo/terminógrafo, especialista en estudios de lenguaje/léxico. (Fargetti, 2018)[9]

Com estas considerações, vejo a Terminologia como algo mais amplo, pois, se assim não for, nunca reconheceríamos o saber especializado de outros povos, estaríamos presos a uma Ciência única e imutável. Meu posicionamento vai contra o princípio básico da Terminologia como uma área de saber, pois, ela havia surgido como voltada à normatização de termos de ciências específicas (Wüster, 1979 - fundador da Teoria Geral de Terminologia), em que tais termos eram pensados como não pertencentes ao léxico geral da língua. Com Cabré (1999), passamos a ter a Teoria Comunicativa da Terminologia (en adelante TCT), em que os termos passam a ser compreendidos como parte do léxico geral da língua, e como termos em contextos específicos, de especialidades, trazendo finalmente a Terminologia para o campo de estudo da Linguística. Apesar deste avanço, a TCT de Cabré ainda se baseia em uma noção de ciência como universal, tendo o termo uma definição única em todas as sociedades. Minha posição na Terminologia Etnográfica acompanha Cabré vendo o termo como pertencente à língua, mas amplia a noção de ciência, em que os saberes de outros povos, distintos da sociedade ocidental, podem ser descritos em obras terminológicas, pensando que estes saberes constituem ciências específicas que devam ser conhecidas dentro do pensamento da sociedade em questão. Este posicionamento, dito assim, parece óbvio, mas não é. Isto não tem sido considerado em pesquisas que vemos, por exemplo, com línguas indígenas, em nosso país. Há quem se dedique a terminologias[10] com uma comunidade indígena apenas perguntando ao falante como seriam os termos específicos de uma ciência como a Linguística, para citar um exemplo. Assim, o falante da língua, que nunca pensou em “fonema”, “morfema” e toda parafernália dos estudos linguísticos, mesmo porque nunca fez reflexões metalinguísticas, por não precisar delas obviamente, se vê obrigado a criar esses termos, para que sua língua os tenha, para que seu léxico se renove, e a isso o pesquisador chama “estudo terminológico”. Pena que esse pesquisador não se dedique a conhecer os termos que já existem nas ciências do povo com quem trabalha.

Podemos pensar que a renovação lexical é algo comum em toda sociedade, mas ela ocorre sempre a partir da necessidade dessa sociedade, e não por uma imposição; pois como postula Everett (2012), a língua é uma ferramenta cultural[11], ela serve às necessidades de uma dada cultura. Portanto, se os falantes de uma língua precisarem aumentar um campo lexical, encontrarão formas de fazer isso, seja por empréstimos seja por formação de novos vocábulos, seguindo regras previsíveis na sua gramática. Por isso, penso que para eles a metalinguagem de uma ciência que não lhes diz respeito, no momento, não significaria uma real renovação lexical. Além disso, suas próprias ciências[12]é que seriam dignas de registro, de pesquisa atenta, procurando o pesquisador “trocar de óculos”. Ou seja, o pesquisador poderia deixar de lado o que compreende como Botânica, por exemplo, com suas categorias e classificações, e entender como um membro da comunidade com que trabalha classifica o que vê.

Numa busca de metodologia diferente, propus a Terminologia Etnográfica (Fargetti, 2018), pela qual um pesquisador então passaria a descrever os termos de uma ciência de uma sociedade diferente, a qual, geralmente, ele não pertença, embora ele possa, sim, ser membro dela e tenha sobre o que estuda um posicionamento de observador. Em texto posterior (Fargetti, 2019b), apontei alguns caminhos metodológicos para um trabalho com conhecimentos sobre o céu, que, por sua urgência de documentação, também devem ser abordados por linguistas.

Uma metodologia equivocada sempre leva a resultados equivocados, não confiáveis. Por isso, não basta uma teoria interessante e muita boa vontade. É preciso ter um olhar não etnocêntrico. Mas como fazer isso, num estudo terminológico, sobre os saberes sobre o céu? Uma abordagem equivocada seria perguntar ao informante como chamam o Cruzeiro do Sul. Isso é um problema, porque o pesquisador pressupõe que o povo conheça a denominação em português e que reconheça a mesma constelação no céu, ou seja, que ligue, da mesma maneira, as mesmas estrelas. O povo pode não saber nada disso. Assim, para compreender a visão do outro, não se deve partir de nosso recorte, de nossa visão, pois isso seria etnocentrismo. (Fargetti, 2019b)

Como propõem Sakel e Everett (2012), um trabalho de campo envolve uma atividade de pesquisa junto a uma comunidade de fala, o qual aborda partes de uma língua (e nunca sua totalidade), que pode ou não ser a do pesquisador, mas prototipicamente não é. Ou seja, a atitude de observador poderia ser considerada trabalho de campo, fundamental para uma abordagem etnográfica (Guber, 2001). E esta seria sempre um diálogo entre cientistas; no nosso caso, o cientista não-indígena – o linguista, o antropólogo - e o cientista indígena, conhecedor de saberes específicos, mesmo pertencendo a uma sociedade em que os limites entre os saberes não sejam rotulados/compartimentalizados.

Para dar um exemplo de abordagem em uma obra terminográfica, que segue os princípios do que chamo Terminologia Etnográfica, apresento a seguir um verbete de objeto pertencente à cultura material dos juruna. Trata-se do termo aka, “casa”. A cabeça do verbete vem com o lema em forma ortográfica, seguido de sua transcrição fonética, onde aparecem informações como localização do acento de intensidade e os tons, baixo e alto. O corpo do verbete não é constituído por um equivalente único, “casa”, uma vez que a sinonímia não é total, de cultura a cultura. Faz-se necessário apresentar a descrição de uma habitação do povo, com detalhes de sua construção, que, inclusive, são de interesse para mais pesquisas sobre relação céu e terra. São apresentadas suas partes constitutivas, com termos na língua e sua tradução literal, sempre que possível. Uma abonação se segue, que foi escrita por um professor da etnia, seguida de sua tradução. Finalmente, as remissivas, que remetem o consulente a verbetes cuja semântica se relacione a este. Foram omitidas aqui, por economia de espaço, as fotos do interior e exterior de várias casas, que estarão na versão final do vocabulário terminológico (Fargetti, no prelo). Este tipo de abordagem se distingue do que aparece em dicionários de línguas indígenas, em que ocorre apenas um equivalente para uma palavra, como se a sinonímia pudesse ser perfeita.

“Aka n. [a’ká] Casa, habitação. Construída pelos homens, que podem ser auxiliados por seus familiares. Quando um jovem se casa, mora por um tempo com seu pai, mas posteriormente, seu pai o ajuda a construir sua própria casa. Esta pode ser grande, com dois esteios, ou pequena, com um esteio só. A casa para habitação tem telhado de quatro águas e planta baixa elíptica. Para sua construção, coletam madeira quando a chuva para, de junho a novembro, em geral. Mas uma construção pode ocorrer em época de chuva, caso haja necessidade. Para sua construção, mede-se o terreno primeiramente, hoje com trena, antigamente, com o uso de vara. Então, com as medidas, já se marcam os lugares do esteio e das colunas. São feitas escavações para colocá-los e estas são medidas para que o tamanho seja equivalente. Em seguida, são colocadas as travessas de sustentação das paredes (frechais), o tronco de sustentação sobre o esteio (longarina), as ripas de sustentação das palhas. Podem então ser colocadas as palhas ou as paredes primeiro, dependendo da necessidade do dono da casa. Por último, a porta. Tanto as paredes quanto a porta são feitas de tábuas que hoje são obtidas na própria comunidade, serrando-se troncos de árvores com o uso de motosserra. A amarração das paredes é obtida por enlace com cipó, encaixe a partir de extremidades escavadas e uso de pregos. O começo da amarração das palhas do telhado é sempre pelo Oeste, onde o sol se põe. Isso porque, se começar a amarrar pelo Leste, há perigo, porque a alma da pessoa pode ir embora para o Oeste. O sol puxaria a sua alma, que o acompanha para o horizonte, onde ele entra (se põe). Então a pessoa fica doente e pode morrer porque a alma fica perdida no escuro e não volta mais para seu corpo. A porta da frente da casa é voltada para o lado do centro da aldeia. Só havia anteriormente uma porta na casa, mas agora está sendo feita uma nos fundos também. Casas maiores podem ter até três portas. A aldeia antiga, Tubatuba, é utilizada para interações sociais com não-índios, principalmente, pois a aldeia atual, Matxiri, situa-se mais afastada, menos próxima do rio, como as demais aldeias do povo no Xingu. A posição das casas na aldeia Matxiri é circular, hoje em dia; no centro, realizam-se as festas, com danças e cantos, ao longo do ano, além de partidas de futebol entre os rapazes. No passado, as casas eram posicionadas de frente para o rio, com posição semi-circular, em estratégia de proteção contra ataques de inimigos (de outras etnias e também seringueiros), inclusive em localização insular. O interior de uma casa apresenta, em geral, redes de dormir posicionadas próximas e amarradas na estrutura com cordas, podendo ter ou não mosquiteiros; em prateleiras e baús são dispostos objetos de uso pessoal e em jiraus posicionados sobre as travessas, abaixo do teto (constituem-se de uma estrutura de madeiras horizontais, sobre a qual são guardados utensílios, alimentos, e também podem servir como moradia para meninas em reclusão). Em geral, os alimentos são preparados fora da moradia, em casa anexa, mas pode haver um fogão dentro da casa também, o qual se constitui de três pedras dispostas em triângulo, sobre as quais se posicionam panelas ou mesmo jiraus de ferro e tachos. Em noites frias, é aceso um fogo dentro da casa para aquecer as pessoas. Algumas famílias têm fogões de metal, a gás, adquiridos na cidade. Mora em uma casa um grupo familiar. A casa tradicional tinha suas paredes constituídas de palha, assim como seu teto, tendo sido observada já no século dezenove, por Adalbert e Steinen, e posteriormente, na década de 1960, por Oliveira. Em 1989, ano de nosso primeiro contato, havia ainda uma casa semelhante a essa, porém com dimensões reduzidas. Hoje não é mais utilizada, tendo sido substituída pelo modelo mais usual no Território Indígena do Xingu, que faz uso de madeira para compor as paredes (epa iwakawaka, kadïka), esteio (amïpa, kuaxihã pïziha), ripas (epa iwakawaka, kurinãnã). O telhado é construído em quatro águas, coberto com palha (upiha). Há construções em alvenaria na aldeia Tubatuba, para a escola e para o posto de saúde (UBS – unidade básica de saúde), que são mantidos pelo governo do estado. As partes constitutivas da casa são nomeadas, em geral, em referência ao corpo humano; esta é uma característica de diversas culturas, apontando o antropomorfismo das moradias. Em Fargetti (2012), há discussão sobre a nomeação de partes de uma árvore, também com referência direta ao corpo humano. Vejam-se fotos a seguir, para a compreensão da estrutura da casa juruna, em suas partes constitutivas: aka xipa “esteio da casa”; aka yubia “tronco de sustentação, horizontal, sobre o esteio; cumeeira”; akïriha “parede da casa; cerca”; aka akïrïha itxade mïnuyãhã “trave (horizontal) que sustenta a parede sobre si; frechal”; aka yãwïn “boca da casa (liter.); porta”; aka yãwïn apikarakarayãhã “onde a boca da casa gruda (liter.), batente”; aka ikïn “perna da casa (liter.), coluna lateral de sustentação da casa”; aka kaxiwãrïnhã “parte traseira do telhado da casa”; aka pakïrïa “travessa horizontal, que cruza o esteio, ligando as laterais da casa”; aka ili’i “costela da casa (liter.), parte da frente do telhado da casa”; aka awa “ripa que sustenta a palha do telhado”; aka xibia wadukaha “que segura a traseira/cobertura da casa (liter.);beiral do telhado ”

Aka si pee yãhã. Itxïbï aka anu, kanea wïnyãhã ha aka si dakïn aka dju anu.

“A casa é onde moramos. São várias casas, também usamos a cozinha junto com a casa”.

Cf. kanea wïnyãhã, maritxa aka”. (Fargetti, no prelo)

Retiro desse verbete um trecho que julgo interessante brevemente discutir, que reproduzo novamente abaixo:

O começo da amarração das palhas do telhado é sempre pelo Oeste, onde o sol se põe. Isso porque, se começar a amarrar pelo Leste, há perigo, porque a alma da pessoa pode ir embora para o Oeste. O sol puxaria a sua alma, que o acompanha para o horizonte, onde ele entra (se põe). Então a pessoa fica doente e pode morrer porque a alma fica perdida no escuro e não volta mais para seu corpo. (idem, ibidem)

Estas são orientações de como se cobre o telhado da casa com palha, com amarração nas ripas, seguindo um sentido para seu início: de Leste para Oeste. Isso se relaciona com o Sol e sua localização ao longo do dia e seu caminho no céu, segundo os juruna, passando, à noite, por baixo da Terra, que seria quadrilátera. Nesse outro lado da Terra, não haveria vida, o Sol, que é antropomorfo embora não seja propriamente humano, retiraria seu cocar de fogo e tudo ficaria em escuridão, sendo o cocar recolocado no raiar do novo dia. Por isso, o perigo de uma alma ser atraída pelo Sol quando este se põe, porque essa alma estaria perdida na escuridão, incapaz de voltar a seu corpo. Em Fargetti (2017), discuto problema semelhante das cantigas juruna de ninar, que, quando cantadas à noite, podem também levar a alma da criança acompanhar o sono, um ente forte, que a perturbaria e não lhe permitiria voltar a seu corpo, causando-lhe a morte; por isso, tais cantigas são cantadas apenas durante o dia, para embalar um soninho do bebê. Percebe-se que tanto o Sol quanto o sono são entidades com poderes, temidos na vida cotidiana, lembrando-se que o Sol, em seu mito, é definido como antropófago. Sobre a moradia kayapó, Campos e Bajgielman (2009) fazem considerações sobre o fato de observações astronômicas levarem à localização precisa de uma casa em uma aldeia desse povo, o que leva a uma simetria em sua organização social, possibilitando a um visitante da mesma etnia saber em que ponto da aldeia visitada se localizam seus parentes, divididos em clãs. Todas as considerações que fiz sobre o Sol estão implícitas no verbete, que não pode, contudo, abarcar em sua extensão todo conhecimento a ele relacionado. Portanto, parto de uma seleção do que pode ser apresentado sobre aka, “casa”, sabendo que, embora o verbete tenha ficado mais extenso que apenas um único equivalente, como muitas vezes ocorre em dicionários de línguas indígenas, ele pode ainda ser estendido, principalmente com as pesquisas dos professores juruna, que fazem cursos universitários atualmente. Então, o que significa uma casa de seu povo deverá ser repensado por eles, com correções e ampliações, inclusive com outras informações sobre a relação com o céu, provavelmente.

CONSTELAÇÕES JURUNA

Em trabalho anterior (Fargetti, 2006b), apresentei o mito de Kanapi, uma constelação juruna, e fiz considerações a seu respeito[13]. Ela apresenta as mesmas estrelas que compõem a constelação que chamamos de Cruzeiro do Sul[14], mas não é compreendida como uma cruz e sim como um pássaro. Seu aparecimento no céu, em nascer helíaco[15], em meados de abril, marca, para os juruna, o começo de um novo ano. O rio está abaixando, a estação da seca começando.

À noite, em final de julho de 2017, na aldeia Tubatuba, com dois orientandos (meus alunos na Unesp) e um jovem juruna, tentávamos fazer uma foto do céu que pudesse, minimamente, registrar a beleza magnífica que observávamos, pois as estrelas eram bem visíveis devido à inexistência de luz elétrica. Não fomos lá bem sucedidos, apesar dos tripés, das diversas tentativas com três máquinas fotográficas. A que ficou mais aceitável foi a foto do juruna, cinegrafista e fotógrafo de seu povo. Indaguei a ele se conhecia Kanapi, se poderia apontá-lo no céu. Ele não conhecia. Tampouco as demais constelações e suas histórias. Se elas sempre foram tão importantes para sua comunidade, podemos nos perguntar como ele, e provavelmente os de sua geração, compreendem o passar do tempo, as épocas adequadas para roça, para coleta e pesca, sem ter o conhecimento sobre o céu. Não tenho explicações no momento para a perda e/ou substituição desse conhecimento. Elas requerem pesquisa. Mas é fato que, em diversas comunidades, as gerações mais velhas é que têm se dedicado ao plantio de roças para sua comunidade, e são elas que ainda dominam o conhecimento sobre o céu e suas relações com a vida na terra.

A seguir, apresento o desenho feito de Kanapi por Tarinu Juruna, em 1997. Ele desenhou para mim todas as demais constelações de seu povo. Por uma questão de espaço elas não são reproduzidas aqui. Sobre uma discussão desse desenho de Kanapi, veja-se meu texto, Fargetti (2006b).

Figura 1 Kanapi, em desenho de Tarinu Juruna, reproduzido de Fargetti (2006b)  

Como todos os povos, os juruna observam o céu e, como aponta Verdet (1987), ligam as estrelas mais brilhantes e belas. Contudo, as ligações podem não se dar da mesma forma, os desenhos podem ter formatos diversos e inclusive incorporar espaços escuros da Via Láctea; variação esta que pode ocorrer mesmo entre povos vizinhos. Além disso, cada povo tem mitos próprios para suas constelações, que por vezes se repetem ou se assemelham em localidades diferentes, mostrando influências e intercâmbios, como já pude constatar. As semelhanças podem, por isso, mostrar contatos entre os povos no passado, o que nem sempre é fácil de determinar.

Tenho estudado o céu com os juruna desde meus primeiros contatos com eles. As primeiras tentativas foram para seguir questionários em que se listavam para perguntar aos falantes da língua os nomes de céu, sol, lua, estrela, arco-íris. Minhas experiências eram nulas nos estudos do céu e minha abordagem em etnografia, nos meus vinte e poucos anos de idade, era realmente muito deficiente. Eu coletava palavras e sentenças, a princípio, sem muita compreensão da cultura do povo. O foco era a compreensão da fonética e da fonologia e posteriormente da morfossintaxe. Equívocos foram inevitáveis e servem de boas anedotas, para lembrar do passado. Apenas anos mais tarde pude ter mais leituras, mais experiência e orientação de Campos, quanto ao uso de carta celeste, bússola, forma de realizar as pesquisas. Pude então registrar e reconhecer as constelações (com o apoio de Campos), gravar seus mitos (hoje todos transcritos e traduzidos para posterior publicação) e compreender como seu aparecimento no céu se relaciona com a vida na aldeia. As constelações que os juruna observam, ao longo do ano, parecem ser pelos contatos que tive no campo, ao todo catorze. Contudo, cinco são como pontos de referência mais notados e reconhecidos pela geração mais velha, na composição de seu calendário. Elas são: kanapi, anaintxïtxïbï, kananamã, uhu e awã taba. Falarei sobre elas, na sequência, abordando as demais em estudo posterior, uma vez que foram estas cinco as apontadas por dois informantes, com a mesma sequência de observações, frisando que são as referências para marcar o tempo, que podemos chamar de calendário, atualmente. Além disso, a grande quantidade de dados, incluindo os extensos mitos transcritos, não permite abordar todas as catorze aqui pela limitação de espaço. Vou falar dessas cinco constelações, sem tratar de seus mitos, e como o calendário era observado anteriormente, para em seguida dizer o que sentem que mudou.

Como mencionei, Kanapi, (a ave mergulhão) se compõe das estrelas de nossa constelação do Cruzeiro do Sul (para detalhes, cf. Fargetti, 2006b, e veja-se a Figura 1 acima). Ela sinaliza o começo do ano, em abril, em seu nascimento helíaco, quando o rio Xingu começa a baixar e a seca inicia. Em julho, perto do nascer do Sol, nasce Anaintxïtxïbï (palavra composta de anainbïa (estrelas) + itxïtxïbï ( muitas) – “muitas estrelas”), que corresponderia ao que chamamos de Plêiades, e, diferentemente de nossa cultura, os juruna não percebem 7 estrelas apenas, mas muitas outras nesse conjunto; ela traz o vento forte e o frio intenso e está ligada à derrubada do mato para a roça; a mata fica com flor, pássaros botam e o tracajá começa a desova na praia no final do mês de julho; ainda observando esta constelação, é feita a queimada do mato e o plantio da roça em começo de setembro. Então é observado Kananamã (um tipo de jabuti grande, conhecido como peda), cujas estrelas correspondem em parte a Órion, com o que vemos como seu cinturão serem tidos como os ovos do jabuti; isso em final de setembro, trazendo o começo das chuvas, muito esperadas para a germinação das sementes plantadas. Em outubro, observam Uhu (“urubu”), que corresponde às estrelas Sirius (α Canis Minoris), Canopus (α Carinae) e Achernar (α Eridanae); pássaros como papagaio e periquito nascem nessa época. Então vem a observação de Awã taba (“cabeça de fantasma”), cujos brincos correspondem a duas estrelas de 2ªmagn. em Vela, com cabeça correspondendo a estrelas de 4ªmagn. e parte da Via Láctea; chega a época das chuvas fortes e o rio torna a encher bastante. Como disse, há mais constelações, e cada uma das mencionadas e as que faltam aqui, todas, têm seus mitos e, se não são marcantes no calendário, têm sua importância na observação de fatos durante o ano e mesmo servem de orientação à noite, constituindo o que chamam de “relógio” da noite. Estes acontecimentos, ao longo do ano, são considerados marcadores temporais (ou poderíamos chamá-los de calendário tradicional) e, com tanta mudança climática, podemos pensar em como tais marcadores têm sido percebidos, como mudaram, o que discuto a seguir. Campos e Bajgielman (2009: 268) afirmam, para os kayapó: “Sky markers are constantly confronted with terrestrial markers, allowing the Kayapó to verify if the terrestrial rhythms are in accordance with the celestial ones”[16]; ou seja, assim como os juruna eles também observam constelações cujo surgimento coincide com eventos do clima e também verificam se céu e clima estão em consonância.

Segundo o chefe Tininin Juruna, “o Sol ficou mais quente”, pois o caraíba (o não-indígena) cortou todas as florestas. Faz muito mais calor durante o ano, mas em julho faz muito mais frio, que começa antes do tempo. Ele também observa que hoje há menos borboletas na beira do rio, pois antigamente havia mais. O tracajá[17] tem demorado um pouco mais para desovar. A quantidade de chuva é menor, o que faz com que o que se planta em setembro demore mais para crescer. A banana nasce bem, mas com o calor extremo, seca muito, produz pouco, com cachos menores; o mamão não cresce, quando antes era grande; a mandioca cresce mais devagar. Por isso, estão pensando em alterar o plantio para mais tarde, para esperar as chuvas caírem. Com a diminuição das chuvas, o rio não enche como antes e tem menos peixe. Ainda não há fome, mas a situação preocupa muito.

Tarinu Juruna diz que a terra secou muito, trazendo muita poeira nas casas com o vento seco. Devido a essa secura, qualquer faísca corre o chão, transformando-se em grande incêndio, dificilmente controlado; a terra muito seca, mesmo abaixo da camada de folhas, faria o fogo se alastrar com facilidade, o que não ocorria no passado. Antes, chovia mais, o rio enchia mais e havia abundância de peixes como tucunaré. As aves estão botando seus ovos no mês de junho, antecipadamente. O fato de as borboletas não aparecerem mais em grande quantidade é temeroso, pois segundo a explicação cosmológica, elas descem do céu para procurar embira e trocar o cipó que segura o céu e se deixam de fazer isso, o céu pode cair.

Assim, o céu que ainda existe, o terceiro e último, pode cair e destruir toda criação. Esta é uma ameaça temida por todo juruna, para quem Sela’ã, o herói mítico, pode tomar a decisão de derrubar o céu; ele pode fazer isso se os juruna deixarem de existir, fisicamente, e/ou se deixarem de conhecer sua cultura, se deixarem de viver como sempre viveram. Então, por amor próprio e por amor a todo ser vivo, os juruna existem e mantêm o que os define, os singulariza.

Mas podemos pensar nas ocorrências não esperadas no céu, como eclipses, cometas e o que sociedades indígenas fariam diante delas. Se a ordem na terra, para os juruna, não deve ser rompida, pode-se pensar como agiriam com mudanças no céu. Segundo Campos (2006: 69-71), “a contrariedade nas expectativas induz muitas vezes à realização de um ritual de atos normalmente proibidos, com o objetivo de manter a ordem entre Terra e Cosmos. Por exemplo, um eclipse ou uma conjunção de dois astros como Vênus e Lua pode sugerir a prática ritual de incesto.” Sem dúvida, os juruna fazem rituais quando algo muda no céu, como eclipses do Sol ou da Lua (veja-se Fargetti, 2019a, sobre eclipse solar total que observei entre eles), e devem se preocupar com tantas mudanças hoje na terra, vendo falhar, talvez, muitos de seus rituais, como cânticos para fazer germinar plantações[18], festas para celebrar colheitas e mesmo rituais para a chuva, com uso de instrumentos de sopro e de percussão. Apesar de todo cuidado, apesar da vida seguir seus rituais e cerimônias, as plantações já não são tão produtivas, o rio tem menos peixe, as queimadas ocorrem com mais frequência e em proporções alarmantes. Essas mudanças no meio ambiente são sentidas como causadoras das mudanças no clima, no calor mais escaldante e no frio mais intenso, nas chuvas em épocas e quantidades diferentes. Com isso os juruna, bem como os demais xinguanos, responsabilizam os “caraíbas”, ou não indígenas, por esse estado de coisas, prevendo um futuro pouco promissor para seus filhos e netos, com maior escassez de alimentos e piores condições de obtê-los.

A seguir, trato de metáfora e sua possibilidade ou não de utilização em uma análise que parte de dados etnográficos, fazendo a relação entre céu e clima, apontada pelos juruna.

UMA METÁFORA?

Tarinu me disse, em agosto de 2017, quando conversávamos sobre as mudanças climáticas no Xingu[19]:

Kaapa duzide maku anu. Anainbïa wãbi anu. Lupakaun anu.[20]

“O clima está diferente. As estrelas estão iguais. Não mudaram.”

Amana kïn lupaku anu. Kuadï akupa lupaku anu.

“Só a chuva mudou. A quentura do sol mudou.”

Kuaka dakïn lupaku anu. Urahu lupaku anu. Urahu kuaku.

“O frio mudou também. Mudou muito. Muito frio.”

A sentença acima Kaapa duzide maku anu pode ter duas traduções: “O clima está diferente” e “O céu está diferente”. Interessante notar que a palavra para “clima”, kaapa, que se pronuncia [ka:’pa], é a mesma palavra para “céu”, com a mesma pronúncia de consoantes e vogais, com a mesma primeira vogal longa, com os mesmos tons baixos nas sílabas[21]. Uma palavra que com essa constitui um par análogo para tom (não é par mínimo por ter a distinção também da duração vocálica) é: kapá [ ka’pá ] “marimbondo”, cujo significado não tem ponto de contato com o significado “céu”, embora se saiba que marimbondos possam atacar uma alma de um falecido, a caminho de sua morada final, na aldeia celeste. A aparente semelhança, para nossos ouvidos, entre essas palavras não nos pode induzir a uma aproximação semântica, uma vez que a alma de um falecido pode passar por outros perigos, e estes também não são apenas próprios de um ambiente do céu. Para se proteger desse ataque, a alma leva consigo exemplares de todos os objetos da cultura material de seu povo, por ela confeccionados em vida. Isto explica, em parte, porque um falecido deve ser sepultado junto com todos os seus pertences, o que ainda é observado na sociedade.

Portanto, ao tomarmos a palavra kaapa, com os significados possíveis “céu” e “clima”, poderíamos pensar em homonímia, polissemia ou mesmo em uma metáfora. Com isso, podemos pensar que em juruna temos: 1) um caso de metáfora, em que a observação do céu, que permite compreender a vida na terra, equipara “céu” a “clima”; 2) um caso de polissemia, apontando que nessa cultura, “clima” e “céu” teriam proximidade semântica, assim como em português cabeça pode ter significados relacionados (como cabeça do grupo, cabeça do compasso, etc.); 3) um caso de homonímia, com a mesma palavra referindo-se a dois significados totalmente distintos, como em português manga (“fruta” e “parte de vestimenta”).

Em estudo anterior (Fargetti, 2015)[22], discuto a respeito de metáfora, assunto antigo e controverso, que passa a ser complexo quando toca valores semânticos de duas culturas, com línguas diferentes. Duas perguntas que proponho são: 1- como entender o que é metafórico em outra língua/cultura? 2 – pode uma metáfora que compreendemos em outra língua/cultura autorizar uma explicação, uma análise linguística ou antropológica? Discuto então a teoria da Metáfora Conceptual, de Lakoff e Johnson (2002), através da qual analiso um tipo de metáfora antropológica. Longe de desautorizar um estudo, na verdade proponho uma problematização, via questões acima, com vistas a contribuições na área.

Sendo a metáfora, seguindo Lakoff e Johnson (2002), um conceito que emerge em uma sociedade, cujo sentido deve ser conhecido para que haja interação entre as pessoas, ela pode ser por vezes inconsciente e é uma forma de expressar um domínio de experiência humana em termos de outro domínio. Por exemplo: ISOLAMENTO SOCIAL É UMA PRISÃO, em que um estado de isolamento em casa, para proteção contra uma pandemia, é igualado a uma prisão, o que está em outro domínio de experiência – uma prisão tem celas, carcereiro, falta de conforto, como punição a atos criminosos etc., o que a torna um domínio diferente de uma casa, por mais que esta esteja fechada.

Metáfora é algo diferente de comparação. Por exemplo, se comparo viola e violão, como instrumentos de corda, sem arco, ambos tocados por dedilhar, me utilizo da ideia de tais instrumentos, sobre categorias pré-existentes, sobre as quais passo a discorrer em termos linguísticos. A metáfora é diferente, por não se dizer “violão é como um tipo de viola”, mas algo como “aquela moça é um violão”; obviamente, a moça não é um instrumento de cordas, seu corpo, sinuoso, é que faz lembrar um violão; então, moça é o tópico, violão é o veículo da metáfora, e a categoria criada refere-se à forma sinuosa do corpo, que não é pré-existente. Metáforas estão por toda parte em nosso cotidiano, inclusive na ciência. Uma metáfora pode explicar uma proposta analítica e mesmo teoria, e isso não é incomum. O fato é que por vivermos envolvidos por jogos metafóricos, não os percebemos como tais e por vezes, uma metáfora envelhece quando a análise que ilustra é suplantada por outros desenvolvimentos teóricos e analíticos. Além disso, o que podemos entender como uma metáfora foi, na verdade, uma exata compreensão do mundo, no passado. Por exemplo, segundo dados que coletei no passado, para os antigos juruna, a terra é um quadrilátero, com dois sapos segurando o céu em suas cabeças, em pontas opostas. Hoje, um jovem juruna não pensaria em terra plana, contudo, isso não nos autoriza a pensar o quadrilátero com os sapos como uma antiga metáfora. Ele não o foi no passado, e nem o é no presente, quando as explicações cosmológicas diferentes convivem, lado a lado, como aqueles que as postulam. Então, tomar essa terra plana cosmológica para uma análise linguística, como um quadro fixo de pronomes, ou algo assim, tomando esse formato como uma metáfora de compreensão de algo simétrico, em outro nível, seria uma metáfora que essa cultura/língua indicaria? Ou seja, que possibilidades temos de uso de imagens vindas da cultura como essencialmente metafóricas? Possíveis na linguística e na antropologia? Em que medida? Em Fargetti (2015) abordo essas questões, através da observação de análises. De maneira resumida, concluo:

Finalmente, para responder à pergunta-título, qual o alcance de uma metáfora? acredito que precisamos também entender as metáforas alheias através dos seus próprios mapeamentos, e não daqueles que pensamos serem interessantes para nossas análises. Isso é possível e desejável. É preciso, para tanto, pensar a relação língua-cultura, língua-pensamento, de uma forma profunda, em que se dissolvam dicotomias no fazer teórico, como aponta Moura (2008), percebendo-se que uma metáfora é criada pela cognição, mas através da língua, que, como aponta Everett (2012), pode ser pensada como uma ferramenta cultural. (Fargetti, 2015:110)

Retomando o que disse antes, a sentença acima Kaapa duzide maku anu tanto pode significar “O clima está diferente” quanto pode significar “O céu está diferente”, pensando-se que kaapa pode ser tanto “clima” quanto “céu”. Isto me fez pensar no jogo das palavras, porque o céu não mudou, segundo Tarinu, ou seja, as estrelas continuam as mesmas, mas o clima mudou. Então, se mantivermos a hipótese de uma metáfora, teremos um paradoxo, dizermos o contrário do que afirmamos, porque o céu não está diferente, ele se mantém exatamente com suas constelações. Portanto, estaríamos autorizados a dizer que se trata de uma metáfora, ao pensarmos que o céu traz a marcação do tempo e que esse tempo mudou? Pelos tempos imutáveis do céu percebemos que a terra e suas temporalidades têm mudado e que portanto a metáfora não se sustenta mais. Céu não pode mais ser clima. Se não é uma metáfora para os juruna, de quê nos serviria? Pode uma metáfora em ciência ter validade em si mesma, se está baseada em um equívoco? Estas perguntas são provocações e talvez o que digo aqui traga algumas respostas.

Em Fargetti (2015) discuto metáforas feitas por antropólogos, questionando sua validade por partirem de um equívoco analítico. Cito a metáfora de Lima (1995), que afirma que o sistema de parentesco juruna seria um batateiral, sendo Selã’ã a batata que dá origem ao povo, e assim o sistema de parentesco recebe dela essa metáfora, BATATEIRAL. Ela se baseou na tradução de Selã’ã, “nossa batata, ou nosso tubérculo”, mas Selã’ã é um batateiral porque é imortal, segundo os juruna, sempre brotando e permanecendo vivo, como uma plantação de batatas. Este fato um homem juruna não compartilha com ele, por isso sua genealogia não pode ser um batateiral. A metáfora juruna, portanto, serve apenas a seu herói mítico, Sela’ã, não se aplicando ao sistema de parentesco, pois um avô não é imortal. Assim, usar uma metáfora que parta do povo em que se faz a etnografia para explicar uma estrutura em outro domínio não se justifica dentro dessa cultura e põe em cheque a imagem que se pretende adotar na interpretação. Outra metáfora analisada por mim é a de Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, que comparou a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, a uma boca desdentada, entre outras metáforas pouco lisonjeiras vindas de um pesquisador que muito deveu ao Brasil. Termino o texto defendendo o uso de metáforas na ciência que tenham mínimo compromisso com as sociedades analisadas, seus mapeamentos culturais, em uma atitude de aproximação do esteticamente também adequado, e por que não dizer, agradável. Portanto, respondendo à indagação anterior, uma metáfora em ciência não pode ter validade em si mesma, se ela se baseia em um equívoco, de tradução ou de interpretação, ao analisar dados, e, com isso, descarto a possibilidade aqui de metáfora na relação “céu” – “clima”.

Então pensemos na hipótese de polissemia. Se o céu e o clima estão imbricados, se o primeiro aponta(va) o que ocorreria com o segundo, “céu” e “clima” seriam sentidos aproximados? Poderíamos pensar que sim, para a cultura juruna, embora isso seria suposição que adentraria o terreno da etimologia, que não é exata, baseia-se em hipóteses, mesmo entre os falantes de uma mesma língua, quer sejam eles linguistas ou não. Ou seja, mesmo em português, a origem de uma palavra e de seu sentido, seu étimo, pode ter várias hipóteses, que não podem ser totalmente comprovadas, apesar da língua ter extensa tradição escrita. Como afirma Viaro (2011:97), “a pesquisa etimológica, como uma edição crítica, deve passar por muitas etapas rigorosas e, mesmo assim, as soluções de étimo são múltiplas e sujeitas a revisão”. O que ainda é mais complexo para o caso de uma língua indígena, até pouco tempo ágrafa. A datação de uma etimologia, o étimo, pode ser alterada, como foi o caso do dicionário Houaiss de língua portuguesa, que teve etimologias com datação antecipada, depois do trabalho realizado no Laboratório de Lexicografia da Unesp, com o DHPB (Dicionário Histórico do Português Brasileiro), que reuniu 17 lexicógrafos brasileiros e portugueses, em projeto iniciado por Maria Teresa Biderman e concluído por Clotilde Murakawa.[23]

Então, ainda com a ideia de polissemia, a sentença de Tarinú estaria dizendo que o céu mudou, quando sabemos que não mudou. Por esse motivo, provavelmente, Tarinu acrescenta logo a seguir em sua fala que “As estrelas estão iguais. Não mudaram” (veja-se acima: Anainbïa wãbi anu. Lupakaun anu.). Afinal, semanticamente, “céu” e “clima” a mim pareciam ter um ponto em comum, em juruna, uma vez que um implica no outro, ou seja, o que se vê no céu faz uma previsão do que ocorrerá na terra. Então podemos pensar em algo como a palavra estrela, em português, que pode se referir a um corpo celeste mas também a uma artista de cinema, por exemplo, “estrela de cinema”, uma atriz que sobressai entre outras. Polissemia porque ambos significados se relacionam ao nos fazer pensar em brilho, em beleza superior. Obviamente, uma busca a um dicionário geral da língua portuguesa permitiria encontrar mais significados possíveis, e, de acordo com os contextos variados, também sentidos outros. Aqui, “céu” foi escrito entre aspas, inclusive porque seu sentido não foi delimitado.

Quadro I 

Reproduzido de Campos, 1995:19

Em Campos (1995:19 – Quadro I acima), temos um quadro com possibilidades diferentes de sentido para “céu” e “terra”, utilizando inclusive iniciais maiúsculas ou não. Não tenho clara a possibilidade dessas distinções entre os juruna. Céu como firmamento seria distinto de céu sagrado? Não sei. Isso demanda pesquisa. O que sei é que, além das estrelas, no mundo sagrado, existe Sela’ã e os que com ele vivem. Aldeia celeste? Local para onde viajam as almas no pós-morte? Mas Sela’ã tem uma estrela-telescópio, com a qual vê os juruna, na Terra. Estão Sela’ã e os que com ele vivem separados de todas as estrelas, do “caminho do porco”[24]? Acho que tudo se imbrica e talvez seja difícil separar. As constelações marcando um tempo e portanto um clima que sempre se repete, assim como elas. Isso nos faz pensar em polissemia, com um item lexical apenas, tendo apenas variações de significado, mas dentro de um mesmo campo semântico.

Contudo, a realidade tornou-se outra, pois o céu não aponta mais um clima invariável, o céu se mantém (com suas variações esperadas como os eclipses), mas o clima não lhe corresponde, ele se refere a outra coisa. Isso faz pensar em uma homonímia, em que, pela ocorrência de significados muito diferentes, temos dois itens lexicais diversos. Algo como manga, em português, que pode ter os significados de uma fruta e de uma parte de uma roupa. Por não terem qualquer ponto de semelhança, constituem dois itens lexicais diferentes, como apenas homonímia, ou seja, com somente o mesmo nome e significado diferente. Céu e clima, nos dias de hoje, não podem mais ter pontos em comum para os juruna (e também para nós). Nem metáfora, nem polissemia. Apenas o mesmo nome, homonímia, o que traz implicações para estudos do léxico, com vistas a obras lexicográficas e terminográficas. A homonímia é comum nas línguas do mundo, não seria algo apenas da língua juruna. Se pensarmos que os velhos juruna olham o céu para saber em que época do ano estão, é tentador pensar que kaapa, “céu”, é uma metáfora para “clima”, que isso sempre foi assim, até que o clima na terra mudou. Não temos como saber como as coisas eram no passado, quando borboletas apareciam na época costumeira, assim como andorinhas. Talvez então houvesse metáfora, ou mesmo polissemia. E é sempre tentador pensar que a língua do outro é metafórica, menos a minha. Algo como: “curioso o índio juruna dizer “canoa que voa” para o avião[25]; que língua metafórica!” Talvez o juruna diga a mesma coisa da nossa língua quando dizemos algo como “estrela de cinema”. Mas o que nos autoriza a dizer que o outro tem metáfora e eu não? Incrível jogo de discursos ocorre na relação entre pessoas de línguas e culturas diferentes. Seria bom se nos apercebêssemos disso. E o mais inquietante então seria questionarmos todas as hipóteses de metáfora e quem deteria a palavra final sobre os sentidos.

Penso que mais do que um problema linguístico (para linguistas caraíbas ou indígenas), observa-se que a ordem da vida está mudada no Xingu. O que pensa Sela’ã disso? Que o céu não nos caia na cabeça...

DE PÁSSAROS E BORBOLETAS

Lançado em 2016, o documentário Para onde foram as andorinhas? (ISA; CAITITU, 2016) trata das mudanças climáticas percebidas no Xingu, com relatos de lideranças e imagens preocupantes da região. Foi premiado em festivais e apresentado na Conferência do Clima em Paris, em 2016, tendo suscitado debates no exterior. Com quase 22 minutos, o curta começa com as palavras de Tininin Juruna, chefe da comunidade juruna do Xingu, a quem me referia acima. Ele se apresenta com tatuagem preta, de jenipapo, em seu corpo, principalmente ao redor de sua boca, o que recorda a antiga tatuagem perene que os juruna (em nheengatu, juru “boca”, una “preta”) utilizavam há mais de 100 anos, que lhes conferiu esse nome por parte de outros povos, e que pareciam ter esquecido. Com tal pintura, portando um cocar e uma borduna, arma de guerra, ele conta que Sela’ã tinha dito aos juruna sobre o perigo de os brancos terminarem com seu povo, o que o faria derrubar o céu, afastando os dois sapos que o seguram sobre suas cabeças. Ele, portanto, começa sua fala com este temor sobre o qual os juruna sempre conversam. O fim do nosso mundo, com a queda do céu. O documentário prossegue, com lideranças kayabi e wauja falando das mudanças climáticas, da baixa produtividade de suas roças hoje em dia e de seu medo de, num futuro próximo, passarem fome. As borboletas não aparecem mais em grande quantidade, nem as andorinhas que anunciavam as chuvas.

Essa situação apresentada no filme é assustadora, mas, no Brasil, tem causado pouco interesse. Observo que o cidadão comum se preocupa em consumir, em ter sempre mais, e descartar o que não lhe interessa, mesmo com pouco uso. Não percebe a manipulação da mídia, comprada pela bancada ruralista, e acredita mesmo que agro é tech, agro é pop. Queimadas criminosas, desmatamento sem precedentes, florestas em cinzas.[26] Para muitos isso tudo é apenas retórica, pois o que vale é a soberania, ser dono de tudo e usar os recursos naturais sem pensar no amanhã, mesmo com crianças e jovens gritando em manifestações, se indignando e exigindo a existência de um futuro. Penso que as mudanças climáticas não comovem a muitos, mas há a esperança de que a falta de água na torneira possa fazer muita gente despertar, ou mesmo uma pandemia baste para alertar sobre os riscos que corremos ao destruir o meio ambiente. Esta é uma esperança, mesmo diante de tanto pessimismo em relação a mudanças.

Como apontam os estudiosos do clima e do meio ambiente, o que estamos vivendo, em termos de catástrofes naturais, é o prenúncio do que virá, com cada vez menos água, com mais poluição, epidemias, e, com isso, menos comida e menos condições de viver (Lovelock, 2006). Há os que se resignam e nos dizem para apenas sobrevivermos, enquanto pudermos. Entretanto, juntamente com tantos outros, acredito que, embora a crise climática vá piorar nos próximos meses e anos, é possível existirem atitudes para melhorar nossas condições de vida. E, assim como apontam alguns, para mim talvez o “homem branco”, ou seja, o não-indígena possa aprender a viver de maneira mais simples, cultivando seu alimento, cuidando de sua água, utilizando dos recursos naturais o mínimo indispensável, o essencial. Isso eu tenho convicção de que ele aprenderá não em tratados sobre a exploração do solo através de agrotóxicos, não em tratados sobre transgenia, não em uso indiscriminado de drogas/remédios, não em catálogos dos últimos lançamentos da mais moderna tecnologia, e etc... Aprenderá com os indígenas, com os ribeirinhos, com os quilombolas, com os agricultores familiares (responsáveis por, hoje, 70% do alimento que chega à nossa mesa[27]), e com isso voltará a olhar para o céu, procurando referências para sua vida. Não haverá outro caminho, em minha opinião, pois caso contrário, não haverá céu e não haverá um clima propício à vida.

CONCLUSÃO

Neste texto, procurei refletir sobre as mudanças climáticas observadas pelos juruna no Território Indígena do Xingu, Mato Grosso. Elas têm sido percebidas ao longo dos últimos vinte anos, e têm se intensificado nos últimos anos, segundo dados do Instituto Socioambiental ISA (ISA; CAITITU, 2016). Isso afeta a todas as etnias xinguanas, quinze além dos juruna.

Através de um posicionamento que parte da Linguística, mencionei as constelações sentidas como referências percebidas e observadas como marcadoras de tempo ao longo do ano, sua relação com o ambiente natural e social, com o clima tradicionalmente percebido e as mudanças observadas. Apresentei uma discussão sobre metáfora, sobre sua (im)possibilidade com relação à palavra kaapa, cujos sentidos são “céu” e “clima”, sem que possamos, hoje, dizer se tratar de algo metafórico, ou mesmo polissêmico, uma vez que, se houve no passado uma relação estreita entre a observação do céu e as mudanças climáticas ao longo do ano, ela se alterou, com as novas condições do clima em nosso planeta; a relação semântica, inclusive, não poderia ser polissêmica porque os sentidos não se referem mais a alguma característica que os pudesse unir. Resta apenas a análise como homonímia: dois itens lexicais totalmente diversos, com significados distintos, apesar da mesma forma da palavra. Isto pode trazer desconforto para uma obra terminográfica, em que um termo, pela constituição conceitual do que ele seja, deve ter, em uma área de conhecimento específica, um significado único. Resta saber como tratar, então, em um vocabulário terminológico, a homonímia. A dúvida que se coloca é se “céu” e “clima” estariam em um mesmo campo de saber. Então a pergunta volta aos juruna, que devem nos dizer como compartimentalizam o conhecimento. E isso o fazem, porque há especialistas, por exemplo, em aves, em peixes, clima, etc. Minha opinião, como linguista, é que uma tal obra terminográfica, que aborde os saberes sobre o “céu” e sua relação com a vida na sociedade juruna, deva incluir também o verbete com lema homônimo para “clima”, em nova entrada.

Sendo a metáfora, seguindo Lakoff e Johnson (2002), um conceito que emerge em uma sociedade, na relação entre culturas, como no trabalho etnográfico, devemos ter em mente as metáforas que propomos, se partem de uma compreensão adequada do que analisamos. Afinal, se uma metáfora que utilizamos não corresponde aos mapeamentos entre domínios de experiência, vividos pelo povo com que trabalhamos, podemos nos questionar de que pode nos servir, que pode explicar. Estes questionamentos podem trazer um bom incômodo, que nos permita repensar nossas práticas na ciência.

Não há outros estudos sobre o céu entre os juruna, portanto, há muito ainda a pesquisar, o que me move em projetos futuros, e, provavelmente, a elaboração de estudos sobre o céu e sua relação com a vida na terra possa estimular os jovens juruna a buscar este conhecimento de seu povo, revitalizá-lo e, por que não?, disponibilizá-lo à população não-indígena, que deveria se conscientizar de que o que ocorre na Amazônia interfere no clima de sua região, e vice-versa, o que ocorre em sua região interfere na Amazônia, e que as lições de comunidades indígenas podem ensinar a todos como sobreviver às crises, como viver com menos, e, com isso, ter vida em abundância, enquanto os juruna existirem. Oxalá, para sempre.

Agradecimentos

Agradeço pelos apoios financeiros ao CNPq (477669/2013-1), ao Departamento de Linguística, Literatura e Letras Clássicas e à Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa, da FCL-Ar. Agradecimentos a Marcio D’Olne Campos pela leitura e comentários, bem como a dois pareceristas da Revista AVA. Suas contribuições colaboraram muito com a versão final do texto.

REFERENCIAS

B01 Borges, Luiz Carlos; Lima, Flávia 2009. The Tupinambá and Guarani contribution towards the understanding and control of weather. Em: Vladimir Jankovic; Christina Barboza (Org.) Wheather, local knowledge and everyday life: issues in integrated climate studies. Rio de Janeiro: MAST, p. 251-262 [ Links ]

B02 Cabré, Maria Teresa 1999. La terminología: representación y comunicación. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra & Institut Universitari de Lingüística Aplicada. [ Links ]

B03 Campos, Marcio D’Olne 2006. A cosmologia dos caiapó. Em: Etnoastronomia - Scientific American (Brasil), Número 14, março. Disponível em: http://sulear.com.br/texto11.pdf . Acesso em 22/10/2017. [ Links ]

B04 Campos, Marcio D’Olne 2002. Etnociência ou etnografia de saberes e técnicas? Em: Maria Christina de Mello Amorozo, Lin Chan Ming e Sandra Maria Pereira da Silva. Métodos de coleta e análise de dados em etnobiologia, etnoecologia e disciplinas correlatas. Rio Claro: UNESP. Disponível em http://sulear.com.br/texto02.pdf . Acesso: 10/10/ 2017. [ Links ]

B05 Campos, Marcio D’Olne 1999. SULear x NORTear: representações e apropriações do espaço entre emoção, empiria e ideologia. Série documenta, v. 6, n8, Rio de Janeiro: EICOS/Cátedra UNESCO. Disponível em http://sulear.com.br/texto03.pdf . Acesso: 10/10/ 2017. [ Links ]

B06 ­­­­­Campos, Marcio D’Olne 1995. Sociedade e Natureza: Da Etnociência à Etnografia de Saberes e Técnicas. Em “Discussão Teórico-Metodológica: Aspectos Etnocientíficos”, Cap. III, pp. III-3.1 a III-3.10, Relatório Técnico-Científico do Projeto Temático FAPESP: “Homem, Saber e Natureza”, vol. I, Campinas, Aldebarã: Observatório a Olho Nu -UNICAMP. (mimeo). Disponível em: http://sulear.com.br/texto04.pdf . Acesso: 22/10/2017. [ Links ]

B07 Campos, Marcio D’Olne; Bajgielman, Tamar 2009. Weather dependent methods for observing the sky and reckoning time among the Kayapó of Gorotire, Brazil. Em: Vladimir Jankovic; Christina Barboza (Org.) Wheather, local knowledge and everyday life: issues in integrated climate studies. Rio de Janeiro: MAST, p. 265-271. [ Links ]

B08 Cardoso de Oliveira, Roberto 2006. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15. São Paulo Editora Unesp. [ Links ]

B09 Everett, Daniel Lee 2012. Language, the cultural tool. Nova York: Vintage Books. [ Links ]

B10 Fargetti, Cristina Martins (no prelo) Vocabulário terminológico da cultura material juruna. [ Links ]

B11 Fargetti, Cristina Martins 2019a. O Sol ao Sul: um eclipse juruna SULeado. Em: Revista Interdisciplinar SULEAR. Edição Especial Dossiê SULear. Ano 2, número 2, pp. 83-100. Disponível em: http://revista.uemg.br/index.php/Sulear/article/view/4145/2214 . Acesso:18/5/2020. [ Links ]

B12 Fargetti, Cristina Martins 2019b. Linguística e Línguas Indígenas: Léxico, Terminologia, Astronomia. In: Lucas Nascimento; Tania Conceição Clemente de Souza. (Org.). Gramática(s) e Discurso(s): ensaios críticos. 1ed.Campinas: Mercado de Letras, pp. 337-364. [ Links ]

B13 Fargetti, Cristina Martins 2018. Estúdios del léxico de lenguas indígenas: ¿terminología?. Em: Manuel González González; María-Dolores Sánchez-Palomino; Inés Veiga Mateos. (Org.). Terminoloxía: a necesidade da colaboración. Madrid: Vervuert, pp. 343-368. [ Links ]

B14 Fargetti, Cristina Martins 2017. Fala de bicho, fala de gente: cantigas de ninar do povo juruna. São Paulo: SESC. [ Links ]

B15 Fargetti, Cristina Martins 2015. Qual pode ser o alcance de uma metáfora? Em: Revista Brasileira de Linguística Antropológica, v. 7, pp. 101-111. Disponível em: https://www.periodicos.unb.br/index.php/ling/article/view/16291 . Acesso: 18/5/2020. [ Links ]

B16 Fargetti, Cristina Martins 2012a. I Encontro do Grupo LINBRA: abordagens sobre o léxico. Campinas: Curt Nimuendaju. [ Links ]

B17 Fargetti, Cristina Martins 2012b. Plantas entre los juruna: en busca de una metodología para el estudio del léxico. Em: LIAMES, v. 12, pp. 179-188. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/liames/article/view/1488 . Acesso: 18/5/2020. [ Links ]

B18 Fargetti, Cristina Martins 2012c. Dicionários de Línguas Indígenas e Questões de Prosódia. In: Cristina Martins Fargetti. (Org.). I Encontro do Grupo LINBRA: abordagens sobre o léxico. Campinas: Curt Nimuendaju, pp. 65-80. [ Links ]

B19 Fargetti, Cristina Martins 2012d. (produção) Fala de gente, fala de bicho - Abïa ali ma’iyaha - cantigas de ninar do povo juruna. Manaus: Ágata Tecnologia Digital Ltda, (CD de música). [ Links ]

B20 Fargetti, Cristina Martins 2012e. (direção e produção) Cantigas de ninar do povo juruna – documentário. São Paulo: Ponto4 Digital, (DVD). [ Links ]

B21 Fargetti, Cristina Martins 2011. Política Linguística entre os juruna. Em: Ana María Cestero Mancera; Isabel Molina Martos; Florentino Paredes García (eds.). Actas del XVI Congreso Internacional de la ALFAL, pp. 3265-3272. (Alcalá de Henares 6-9 de junio de 2011). [ Links ]

B22 Fargetti, Cristina Martins 2010a. Cultura material indígena: questões lexicográficas. Em: Ana Suelly A C Cabral; Aryon D’Igna Rodrigues; Fábio Bonfim Duarte. (Org.). Línguas e Culturas Tupí. Campinas: Curt Nimuendajú, v. 2, pp. 117-129. [ Links ]

B23 Fargetti, Cristina Martins 2010b. (Org.) Kanemãi ‘a’ahã dju’a papera- livro do artesanato do povo juruna (yudjá). Campinas: Curt Nimuendajú. [ Links ]

B24 Fargetti, Cristina Martins 2008. Nasalidade na língua juruna. Amérindia (Paris), v. 32, pp. 269-281. [ Links ]

B25 Fargetti, Cristina Martins 2007a. Estudo Fonológico e Morfossintático da Língua Juruna. Série Lincom Studies in Native American Linguistics, 58, Muenchen: Lincom-Europa (publicação de tese de doutorado defendida na UNICAMP em 2001). [ Links ]

B26 Fargetti, Cristina Martins 2007b. Os estudos de línguas indígenas brasileiras hoje e a contribuição de Mattoso Câmara. Em: Massini-Cagliari, Gladis; Berlinck, Rosane. A.; Guedes, Marymarcia.; Oliveira, Taísa.P. (Org.). Trilhas de Mattoso Câmara e outras trilhas: Fonologia, Morfologia, Sintaxe. São Paulo: Cultura Acadêmica. [ Links ]

B27 Fargetti, Cristina Martins 2007c. Empréstimos do português na língua juruna. Em: I Congresso Internacional de Estudos Lingüísticos e Literários na Amazônia I CIELLA, 2007, Belém - PA. Programação e Resumos do I CIELLA. Belém - PA: Universidade Federal do Pará. [ Links ]

B28 Fargetti, Cristina Martins 2006a. Breve história da ortografia da língua juruna. Em: Estudos da Língua(gem) Questões de Fonética e Fonologia: uma Homenagem a Luiz Carlos Cagliari. Vitória da Conquista: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, v.3, pp.123-142. Disponível em: http://periodicos2.uesb.br/index.php/estudosdalinguagem/article/view/1012/863 . Acesso: 18/5/2020. [ Links ]

B29 Fargetti, Cristina Martins 2006b. Céu e terra: relações em um mito juruna. Em: Impulso, v. 17, pp. 105-119. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/read/27585116/impulso-piracicaba-v-17-n-43-p-1-unimep/117 Acesso: 18/5/2020. [ Links ]

B30 Fargetti, Cristina Martins 2006c. Tom, acento e duração em juruna. Em: 54 Seminário do GEL. Caderno de resumos. Araraquara: Ferrari Editora. [ Links ]

B31 Fargetti, Cristina Martins 2003. Verbos estativos em juruna. Estudos Lingüísticos XXXII (CD-ROM), São Paulo: USP. [ Links ]

B32 Fargetti, Cristina Martins 2002a. Modo e aspecto no verbo em juruna. Anais do “Encontro do Grupo de Trabalho de Línguas Indígenas da ANPOLL”, Belém: UFPA, 8 a 12/10/01. [ Links ]

B33 Fargetti, Cristina Martins 2002b. Escrita em língua jurúna: desafios e parcerias. Anais do “Encontro do Grupo de Trabalho de Línguas Indígenas da ANPOLL”,Belém: UFPA , 8 a 12/10/01. [ Links ]

B34 Fargetti, Cristina Martins 2002c. Rindo com os juruna. Em: LIAMES, v. 2, pp. 129-139. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/liames/article/view/1408 . Acesso 18/5/2020. [ Links ]

B35 Fargetti, Cristina Martins 2000. Sãluahã, o retorno à festa, Piracicaba: UNIMEP, 55’, 2000 (vídeo em VHS) [ Links ]

B36 Fargetti, Cristina Martins 1998a. (org.) Yudja kamena dju’a papera (livro de alfabetização na língua jurúna) MEC-SEF/ ISA/RFI. [ Links ]

B37 Fargetti, Cristina Martins 1998b. Ensino bilíngüe em escolas indígenas: um desafio de parceria para os lingüistas. Em: XLVI Seminário do Grupo de Estudos do Estado de São Paulo, 1998, São José do Rio Preto. XLVI Seminário - Programação e Resumos. São José do Rio Preto: UNESP - IBILCE. [ Links ]

B38 Fargetti, Cristina Martins 1997. Re-re-reduplicação em Jurúna, Actas de las III Jornadas de Lingüística Aborigen, Buenos Aires: UnBA. [ Links ]

B39 Fargetti, Cristina Martins 1995. Escola e escrita juruna. Em: 10 Congresso de Leitura - COLE - Encontro Interno : Leitura e Escrita em Escolas Indíngenas: domesticação x autonomia, 1995, Campinas. Leitura e Sociedade - Programação Oficial. Campinas: UNICAMP. [ Links ]

B40 Fargetti, Cristina Martins 1993a. Considerações sobre acento e tom em Jurúna. Em: Anais do XLI Seminário de Lingüística do GEL, Ribeirão Preto: UNESP. [ Links ]

B41 Fargetti, Cristina Martins 1993b. Uma abordagem preliminar da etnografia da comunicação da comunidade Jurúna. Em: Lucy Seki (org.) Lingüística Indígena e Educação na América Latina, Campinas: Ed. UNICAMP, pp. 365 –375. [ Links ]

B42 Fargetti, Cristina Martins 1992. Análise Fonológica da Língua Jurúna. 124 f. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. [ Links ]

B43 Fargetti, Cristina Martins; Martins, Marcia 2016. Léxico de plantas em dicionários indígenas. Em: Clotilde Almeida de Azevedo Murakawa; Odair Luiz Nadin; Anise de Abreu Gonçalves D’Orange Ferreira (Orgs.) Léxico em cena: contribuição para os estudos lexicais. Série Trilhas 28. São Paulo: Cultura Acadêmica, pp. 35-56. Disponível em: https://www.fclar.unesp.br/Home/Instituicao/Administracao/DivisaoTecnicaAcademica/ApoioaoEnsino/LaboratorioEditorial/serie-trilhas-linguisticas-n28---e-book.pdf . Acesso: 18/5/2020. [ Links ]

B44 Fargetti, Cristina Martins; Martins, Marcia 2012. (Orgs.) Makaxi papera: livro do milho do povo juruna. Campinas: Curt Nimuendaju. [ Links ]

B45 Fargetti, Cristina Martins; Moscardini, Lígia Egídia 2013. Escrever em português: desafios para uma escola indígena (juruna) Em: D’Angelis, Wilmar Rocha.(org.) Ensino do português em comunidades indígenas: 1ª e 2ª língua. Campinas: Curt Nimuendaju, pp. 55-65. [ Links ]

B46 Fargetti, Cristina Martin; Rodrigues, Carmen Lucia Reis. 2009a. Termos para partes do corpo em Juruna e Xipaya: um estudo comparativo. Em: Germana Maria A Sales; Marlí Tereza Furtado (org.). Linguagem e Identidade Cultural. João Pessoa: Idéia, pp. 237-246. [ Links ]

B47 Fargetti, Cristina Martin; Rodrigues, Carmen Lucia Reis. 2009b. Relativização em xipaya e em juruna. Em: II CIELLA - Congresso Internacional de Estudos Lingüísticos e Literários na Amazônia, 2009, Belém PA. Programação e Resumos do II CIELLA. Belém PA: UFPA, pp. 84-84. [ Links ]

B48 Fargetti, Cristina Martin; Rodrigues, Carmen Lucia Reis. 2008. Consoantes do Xipaya e do Juruna: uma comparação em busca do proto-sistema. Em. Alfa. São Paulo: UNESP, v. 52, pp. 535-563. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/1532/1238 . Acesso: 18/5/2020. [ Links ]

B49 Fargetti, Cristina Martin; Rodrigues, Carmen Lucia Reis. 2005. Estudo comparativo do sistema de pessoa em xipaya e juruna (tupi). Em; Resumos. 53° Seminário do GEL, São Carlos: UFSCAR. [ Links ]

B50 Fargetti, Cristina Martins; Sumaio, Priscilla Alyne 2015. Numerals in Juruna. Em: LIAMES. v.15, pp.375 -392. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/liames/article/view/8642307 . Acesso: 18/5/2020 [ Links ]

B51 Guber, Rosana 2001. La Etnografía. Método, campo y reflexividad. Bogotá: Grupo Editorial Norma. [ Links ]

B52 ISA 2015. Negociações climáticas ignoram questão da água em um mundo com escassez cada vez maior. https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/negociacoes-climaticas-ignoram-questao-da-agua-em-um-mundo-com-escassez-cada-vez-maior . Acesso em 15/5/2020 [ Links ]

B53 ISA; CAITITU 2016. Para onde foram as andorinhas? São Paulo: Vimeo, 21’:47’’. Disponível em www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/premiado-curta-lancado-para-internet-alerta-para-mudancas-climaticas-no-xingu . Acesso:13/10/2017. [ Links ]

B54 Lakoff, George; Johnson, Mark 2002. [1980]. As metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras/EDUC. [ Links ]

B55 Lima, Tania Stolze 1995. A parte do cauim – etnografia juruna. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ. [ Links ]

B56 Lovelock, James 2006. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Instrínseca. [ Links ]

B57 Lovelock, James 1987. Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra. Lisboa: Edições 70. [ Links ]

B58 Miranda, Marlui 2014. Fala de bicho, fala de gente. São Paulo: SELO SESC (CD) [ Links ]

B59 Sakel, Jeanette; Everett, Daniel Lee 2012. Linguistic Fieldwork. Nova York: Cambridge University Press. [ Links ]

B60 Verdet, Jean-Pierre 1987. O céu, mistério, magia e mito. Rio de Janeiro: Objetiva. [ Links ]

B61 Viaro, Mário Eduardo 2011. Etimologia. São Paulo: Contexto. [ Links ]

B62 Wüster, Eugen 1979. Einfübrung in die Algemeneine Terminologielebre um Terminolische Lexicographie. Viena: Springer. [ Links ]

[2]Este texto é resultado de comunicação apresentada durante a XII RAM, ocorrida em Posadas, Misiones, Argentina, de 4 a 7 de dezembro de 2017 (GT 64 Relaciones cielo-tierra: astronomía cultural, cosmo-políticas y patrimonio). Embora siga em parte o que foi apresentado, me beneficiei aqui das discussões no evento, de contribuições posteriores e fiz uma ampliação da abordagem, incluindo o tema da metáfora, que não havia sido tratado.

[3]O povo juru na, também conhecido por sua autodenominação yudjá (“dono do rio”), vive em aldeias localizadas no Rio Xingu, Território Indígena do Xingu, MT. A situação linguística é favorável à língua indígena (juruna, família juruna, tronco tupi), com existência de monolíngues entre os jovens, segundo pude observar em minha viagem a campo em 2017. Estudo antropológico recente pode ser encontrado em Lima (1995), autora também de verbete no site do ISA sobre o povo (ver yudjá. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yudj%C3%A1/Juruna)

[4]Esta metáfora dos óculos não me faz porta-voz dos juruna, obviamente. Sou apenas uma observadora de fora e isto é bem claro para mim. O que quero dizer é que vejo o céu como aprendi com os juruna. Cardoso de Oliveira chama a observação do pesquisador de olhar domesticado teoricamente; assim, em trabalho de campo, o objeto de estudo já é previamente selecionado em um esquema conceitual, que funciona como “uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração” (Cardoso de Oliveira, 2006, p. 19). Não há como negar isso, mas, penso que através da esperada observação participante, essa refração causada por esse prisma ou “óculos” teóricos acaba levando a uma interpretação (compreensiva ou explicativa) que tende a nos aproximar do olhar do outro, ou do que pensamos ser o seu olhar. A meu ver, entre refrações de prismas diferentes, na procura de evitar distorções na comunicação, chegamos a um entendimento, a partir do diálogo, e, no meu caso, esse entendimento influenciou a minha forma de ver.

[5]Pelo menos entre os juruna mais velhos, que ainda se lembram dele.

[6]Kenneth Pike, que conheci pessoalmente quando de sua visita à Unicamp no final da década de 1980, foi um linguista norte-americano, cujo trabalho missionário com povos indígenas tinha objetivo de prover-lhes uma escrita, para o que ele desenvolveu o método de descoberta de fonemas, largamente ainda utilizado. Este método é eficaz para se distinguir o fonético do fonêmico (ou fonológico), constituindo o par ético x êmico uma herança de tal metodologia, que não constitui uma teoria fonológica propriamente dita. Há inúmeras teorias fonológicas, mas o conhecimento dos fonemas é essencial e a metodologia pikeana se mostra adequada nos primeiros estágios de estudo de uma língua. Devo dizer que, apesar de utilizá-la, não tenho, nem nunca tive, objetivo missionário.

[7]Utilizo o termo “informante” para me referir às pessoas que participam de minhas pesquisas fornecendo-me dados, traduções e explicações linguísticas e culturais. Sei que o termo tem sido evitado por alguns pesquisadores, sofrendo substituições por “colaborador” (o que pressupõe autoria e autonomia na pesquisa, que, neste caso, não se aplica), “consultor” (que não me parece apropriado por ser termo relacionado à área de negócios, vendas), entre outros. Como não tenho problemas com o termo “informante”; como sei que um item lexical pode e deve ter sempre mais de um significado, dependendo da área ou domínio; como não classifico os informantes como meros repetidores de palavras, mas sim como sábios com quem dialogo, continuo utilizando tal termo, embora para mim os informantes sejam mais do que parceiros nas pesquisas, pois constituem uma segunda família, a que pertenço, que me inclui e que me aceita com minhas diferenças.

[8]Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Coordenado a princípio por Antônio Houaiss, tem, inclusive, versão on-line. Trata-se de dicionário geral de língua, com abordagem etimológica também, constituindo o que se comumente chama um thesaurus, por não ter um recorte sincrônico da língua e procurar registrar, de maneira exaustiva, o seu léxico geral.

[9]“Se a Lexicologia é o estudo da formação de palavras, sua estrutura e busca por definições adequadas, a Terminologia trataria de termos de áreas específicas? Mas se o povo tem saberes holísticos, poderia ter ciências distintas? Que é Ciência? Esta pergunta deve ser feita sempre, e em conjunto com os falantes da língua, pois penso que classificações de saberes são possíveis entre falantes de línguas minoritárias, com fronteiras diferentes e com respostas diferentes sobre o que é o mundo. Tentar aproximar as classificações de nossas ciências é difícil, como, por exemplo, saber sobre as estrelas e o cultivo de plantas comestíveis, isto seria Astronomia + Agronomia? Ciências diferentes, com recortes diferentes. Portanto, Terminologia em sociedades minoritárias, como as indígenas, implica em diálogo entre os saberes técnicos dos indígenas e os nossos; registro do conhecimento para o ensino na escola e para a recuperação pelas gerações mais jovens. E inclusive, a interlocução é o que pode diminuir a assimetria entre investigador e falante, pressupondo diálogo possível entre especialistas – o especialista indígena em um assunto e o linguista, o lexicógrafo/terminógrafo, especialista em estudos de linguagem/léxico.” (tradução deste trecho de meu texto, originalmente publicado em espanhol)

[10]Utilizo uma convenção da área, para a qual, a palavra “Terminologia”, com inicial maiúscula, refere-se à área de estudo, e “terminologia”, com inicial minúscula, se refere a um estudo específico.

[11] Everett (2012) faz extensa discussão para postular esta tese de língua como ferramenta cultural. Mas para brevemente resumi-la, deve-se pensar que seu autor, anteriormente gerativista, pelo trabalho de campo com os pirahã, mudou totalmente sua forma de pensar a ciência Linguística, pois postulados tidos como universais pela teoria gerativa, tais como os da existência de recursividade em toda língua humana, não foram encontrados na língua e na cultura pirahã. Se os pirahã são humanos, e isso não podemos negar a eles, nem o fato de que os resultados da pesquisa de Everett foram inclusive comprovados por vários outros cientistas, então a teoria gerativa apresenta inconsistência, não é adequada para explicar a linguagem humana. Assim, Everett defende que uma língua surge como uma ferramenta de uma cultura, para servir à interação entre seus falantes e lhes permitir a sobrevivência. Além da falta de recursividade (comprovada pelos computadores do MIT), a língua não tem marcação de tempo no verbo, não tem termos para numerais e o povo não narra narrativas míticas e de origem, portanto, o pesquisador pontua que eles vivem o presente, o agora, e isso o faz propor para eles o “princípio da imediatez da experiência”, o que definiria a relação língua-cultura para esse povo, postulando que essa relação seria específica em cada sociedade.

[12]Sei que o uso da palavra “ciência(s)” é temeroso, indutor a mal-entendidos, reduções e preconceitos. Com Campos (2002: 69) compreendo isso, percebo o risco e mesmo armadilha desse uso. Mas o mantenho aqui, ao pensar a possibilidade de haver tantas ciências, acadêmicas ou não, quantas culturas e formas de pensar. Não reduzo, portanto, o conhecimento indígena. Eu o valorizo e o singularizo. Talvez minha concepção de cultura me leve a isso, ao defini-la como forma de pensar e estar no mundo através de uma língua (ou de mais de uma língua). A relação língua-cultura-pensamento não é única, não pode ser universal, não se deixa fixar em estruturas e é justamente a mutabilidade o traço que une os humanos. Assim, não poderíamos pensar em uma gramática universal, como pensam os gerativistas, mas talvez na universalidade de estratégias de adaptação, como propõe Everett (2012). Portanto, penso que para compreender o humano, é preciso compreender cada uma das sociedades humanas, cada uma das línguas e seus dialetos ou variedades, o que nos leva a uma multiplicidade de teorias e não a uma só, que desse conta de todas as línguas-culturas do mundo. Apesar de podermos traçar estudos tipológicos, compreender estruturas que se repetem, observar influências areais, estabelecer filiação genética, apesar de tudo que possa apontar para o universal, penso que chegaremos sempre ao detalhe, ao diferente, fazendo-nos compreender que o universal é o mutável.

[13]Nesse texto, portanto, apenas uma constelação foi discutida.

[14] Borges e Lima (2009) reconstroem conhecimentos astronômicos dos tupinambá (pela leitura de textos de antigos missionários) e citam conhecimentos dos guarani de hoje, que também observam esta constelação, dando-lhe o nome de kuruxu, que deve ser, segundo penso, uma influência de nosso Cruzeiro do Sul, pois a palavra lembra a pronúncia de “cruz”, seguindo a fonologia da língua guarani.

[15]Ou seja, às 4 horas da manhã, na posição em que, posteriormente, o sol nascerá, mais próximo do horizonte. A localização da aldeia juruna onde tal observação foi feita é no estado do Mato Grosso, Território Indígena do Xingu, aldeia Tubatuba, na foz do rio Manitsauá Miçu, entre 10 e 11 graus sul de latitude.

[16]“Marcadores celestes estão constantemente confrontados com marcadores terrestres, permitindo aos kayapó verificar se os ritmos terrestres estão de acordo com os celestes” (minha tradução)

[17]Considerada a tartaruga amazônica, Podocnemis unifilis é uma espécie de cágado, que vive na beira de rios e lagos. É abatido para alimentação entre os xinguanos, que também comem parte dos ovos encontrados enterrados em ninhos na praia do rio. Sua carapaça é utilizada para confecção de instrumento musical percussivo.

[18]Penso no cântico do coelho, que serve para fazer brotar as batatas na plantação, uma vez que coelhos gostam de comê-las: Nakuru, nakuru iya. Nakuru, nakuru iya. Atãu ixiixi ba. Nakuru iya. Atãu ixiixi ba. Nakuru iya. “Coelho, coelho. Coelho, coelho. Come muita batata. Coelho. Come muita batata. Coelho.” Este cântico foi registrado por mim em campo, em 2017, sem gravação disponível no momento, apesar de já existirem gravações de músicas juruna como Fargetti (2017, 2012) e Miranda (2014), bem como um trabalho de registro feito pelo ISA, de acesso restrito. O CD de Marlui Miranda (2014), todo sobre música juruna, rendeu a ela um prêmio nacional de música brasileira em 2016.

[19]Apesar da expressão “mudança climática” parecer algo de nossa cultura, de nossa discussão acadêmica, ela também está presente entre os juruna, quando dizem kaapa duzide literalmente “clima diferente”, ou “mudança climática”.

[20]A transcrição adotada é, em parte, a ortográfica. A diferença da ortografia em uso pelo povo consiste na escrita das vogais nasais, não marcadas aqui por til, mas sim por uma consoante nasal subsequente, para evitar problemas de editoração. A ortografia lança mão do til para as vogais nasais devido à análise fonológica que realizei, constatando que tais vogais eram intrinsecamente nasais, mesmo porque a estrutura silábica da língua é (C)V, consoante mais vogal como sílaba padrão, podendo também ter sílaba com apenas uma vogal. Apesar das dificuldades de impressão do til em vogais outras que não a e o, os juruna não quiseram realizar uma reforma ortográfica, quando lhes propus isso. Esta convenção utilizando a consoante nasal em coda silábica foi adotada por eles, inclusive, para digitar na internet, embora continuem com a ortografia por mim proposta em 1994, com o uso do til.

[21]Cf. Fargetti (2007) para informações sobre a língua juruna, que é tonal. Para informações sobre o povo, cf. Lima (1995).

[22]Para mais detalhes, consulte-se o texto em sua íntegra, com referência indicada ao final.

[23]Os 19 volumes do DHPB permanecem inéditos, apesar das tentativas já feitas para sua publicação.

[24]Hula baha – o que vemos como Via Láctea.

[25]Segundo Marcio D’Olne Campos (em comunicação pessoal), “pássaro de ferro”, para os kayapó.

[26]“O ano de 2019 já tinha sido de recorde de queimadas no bioma (Pantanal), com o maior número de focos nos últimos 16 anos. Em relação aos primeiros três meses de 2019, houve (em 2020) um aumento nas queimadas de 169%.” Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/noticias/coronavirus/2020/05/01/NWS,139115,70,1668,NOTICIAS,2190-MESMO-SOB-PANDEMIA-PANTANAL-TEM-RECORDE-HISTORICO-QUEIMADAS-INICIO-2020.aspx . Acesso:19/5/2020

[27]Esta porcentagem é questionada por pesquisadores ligados ao agronegócio, com interesses na agricultura de grande produção transgênica e de alto índice de agrotóxico. Mas a porcentagem é confirmada por pesquisadores que trabalham com orgânicos e inclusive pelas Nações Unidas, que, entre seus objetivos para os próximos anos, aponta: “Até 2030, dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores, inclusive por meio de acesso seguro e igual à terra, outros recursos produtivos e insumos, conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não agrícola.” Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/ods2/ Acesso: 19/5/2020

Recibido: 26 de Septiembre de 2019; Aprobado: 07 de Noviembre de 2019