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Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.37 Posadas dez. 2020  Epub 23-Jul-2020

 

DOSSIER

POPULAÇÃO DE RUA, SOFRIMENTOS E DESIGUALDADES: EXCLUSÕES E RESISTÊNCIAS FACE À COVID-19

Patrice Schuch1 

Calvin da Cas Furtado2 

Caroline Silveira Sarmento3 

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul

3Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo

Este artigo tomará o caso do Brasil e, a partir de um engajamento etnográfico de longa duração junto à população de rua e o acompanhamento das ações de um coletivo de ativismo, realizado entre março de 2020 e março de 2021, terá como objetivo analisar as mobilizações sociais em relação à proteção da população de rua realizadas na cidade de Porto Alegre/RS. Apontaremos como esse coletivo realizou-se a partir de modos de ação diversificados, concomitantemente demandando direitos e promovendo práticas associadas à caridade e à filantropia. Trabalhando a partir de sua ambiguidade constitutiva, chamaremos atenção para o fato de que, neste contexto, a pandemia parece funcionar tanto como um evento que acentua dinâmicas humanitárias, quanto age para renovar ativismos cotidianos, os quais denunciam as estruturas desiguais de existência e a violência estatal frente à população de rua.

Abstract

This article will take the case of Brazil and, based on a long-term ethnographic engagement with homeless population and following-up a collective of activism between March 2020 and March 2021 carried out through a WhatsApp group, it will aim to analyze the social mobilizations in relation to the protection of the street population carried out in the city of Porto Alegre/RS. We will point out how this network took place through diversified modes of action, simultaneously demanding rights and promoting practices associated with charity and philanthropy. Working from its constitutive ambiguity, we will draw attention to the fact that, in this context, the pandemic seems to function both as an event that accentuates humanitarian dynamics, and acts to renew daily activisms, which denounce the unequal structures of existence of this population and state violence against the homeless population.

Keywords COVID-19; Homeless persons; Inequality

Com consequências que podem ser letais, especialmente para os contingentes vulneráveis e marginalizados, a pandemia de COVID-19 trouxe uma série de mobilizações sociais, que se engajaram na proteção de grupos particulares de populações marginalizadas. Este artigo toma o caso do Brasil e tem por objetivo analisar um conjunto de mobilizações sociais em relação à proteção da população de rua realizadas na cidade de Porto Alegre/RS, para mostrar que tais formas de engajamento contrastam com as medidas generalistas promovidas pelo Estado e por suas instituições. Essas medidas, muitas vezes, trabalham com perspectivas “vírus-centradas” e desconsideram as situações de vulnerabilidade e as condições desiguais de existência de populações marginalizadas (Das, 2020; Fernandes, 2020; Mbembe, 2020; Segata, 2020; Segata et al, 2021 e Schuch, Furtado e Sarmento, 2020a e 2020b).

Através da análise das políticas de atenção à pandemia de COVID-19 em Porto Alegre mostraremos como as políticas generalistas de gerenciamento da pandemia, quando analisadas a partir da perspectiva das realidades locais de comunidades marginalizadas, acabam funcionando como uma necropolítica, nos termos de Mbembe (2006). Para este pesquisador, a necropolítica implica o engendramento de políticas de morte para populações consideradas descartáveis, que abarcam não apenas ações de extermínio direto de determinadas populações, mas também negligências estatais, submissões e subjugações de corpos a explorações diversas e a condições de vida precárias, para além de efeitos de morte que podem ser realizados até mesmo em nome da proteção de vida de determinadas populações. A partir de Mbembe, podemos destacar que a pandemia de COVID-19 parece questionar os fundamentos e os limites de nossa comunidade política. E então faz sentido perguntar, em relação à população de rua e a problemática da pandemia de COVID-19: sob quais condições práticas se exerce o direito de matar, deixar viver ou expor à morte?

Essa é a questão que nos propomos a debater, a partir das reflexões e dados de um engajamento etnográfico de longa duração com a população de rua na cidade de Porto Alegre, fundamentado na realização de estudos diversos: a) duas pesquisas quali-quantitativas sobre as características sociais, condições de vida e relações com os serviços públicos realizadas por Schuch nos anos de 2012 e 2016 (Schuch 2015; Schuch et al, 2008 e Schuch et al, 2017); b) uma pesquisa etnográfica de doutorado sobre a produção da morte das pessoas em situação de rua e a gestão estatal dessa problemática, atualmente em fase de finalização (Furtado, 2018); c) um estudo etnográfico sobre a gestão da maternidade das mulheres em situação de rua e as lutas dos movimentos sociais em torno do tema, que constituiu a dissertação de mestrado de Sarmento (2020). Esses estudos nos permitiram realizar pesquisas com metodologias de cunho antropológico, mas também um engajamento com movimentos sociais, como o Jornal Boca de Rua em que Sarmento é colaboradora há cerca de seis anos, e o Movimento Nacional da População de Rua, que analisamos nas pesquisas anteriores e também mantivemos relações com ativistas, no momento da pandemia, através de redes digitais.

Consideramos que este conjunto diverso de relações de pesquisa e ativismo nos possibilitou ingressar, como convidados, num grupo de WhatsApp, criado especialmente durante a pandemia de COVID-19, para criar e divulgar ações de proteção à população de rua frente à pandemia; neste grupo, realizamos o que Leitão e Gomes (2017) descreveram como um “acompanhamento” realizado no meio digital, ele próprio possibilitado pelos contatos off line anteriormente realizados na área do ativismo e no estudo das políticas para população de rua[1]. No grupo de WhatsApp, seguimos as discussões, um de nós participou das reuniões para elaboração de documentos assinados pelo coletivo, entregues à Prefeitura de Porto Alegre, realizamos e divulgamos algumas ações de recolhimento de alimentos na UFRGS, divulgamos eventos e reportagens em jornais, mídias sociais e universidades, em que participamos falando da problemática da situação de rua. Todas essas ações foram realizadas em sintonia com a ideia de criação do coletivo, de apoiar, dar visibilidade e ampliar as preocupações sociais e políticas sobre a situação de rua no contexto da pandemia de COVID-19.

A partir desse acompanhamento da mobilização dessa rede de proteção à população de rua, feito ao longo de 2020 e início do ano de 2021, evidenciaremos as resistências políticas contra as tentativas de (re)constituir a descartabilidade dessas vidas. Apontaremos como essa rede realizou-se a partir de modos de ação diversificados, concomitantemente demandando direitos e promovendo práticas associadas à caridade e à filantropia. Trabalhando a partir de sua ambiguidade constitutiva, chamaremos atenção para o fato de que, neste contexto, a pandemia parece funcionar tanto como um evento que acentua dinâmicas humanitárias marcadas pela urgência da ação em face aos “sofrimentos” individuais e à manutenção da vida, quanto age para renovar ativismos cotidianos que denunciam as estruturas desiguais de existência dessa população e a violência estatal frente à população de rua. Entre modos de exclusão e formas emergentes de resistência, abre-se um espaço para formas analíticas menos homogêneas e totalizantes sobre a pandemia.

A Pandemia de COVID-19 e a População de Rua no Brasil

Há mais de uma década estamos engajados na pesquisa, na realização de projetos de extensão e na colaboração para a organização política da população em situação de rua em Porto Alegre. No Brasil, a população de rua abarca um número crescente de pessoas – a última estimativa nacional foi realizada em 2015, totalizando cerca de 100.000 pessoas (IPEA, 2016) – e é alvo de programas e políticas nacionais para sua atenção desde 2009, a partir da implementação da Política Nacional para População em Situação de Rua.

Apesar disso, o estudo antropológico junto a esta população vem mostrando que o incremento das políticas e a maior visibilidade dos corpos e modos de vida destas pessoas não conseguem reverter duas fortes perspectivas sobre o assunto: (1) aquela pautada pela visão de que a população de rua deve ser suprimida a partir da simples retirada das pessoas da rua; (2) aquela que subentende as pessoas em situação de rua como os sujeitos da “falta” (Schuch et al, 2008). Em tempos de pandemia de COVID-19, os riscos associados a tais posturas implicam, de um lado, a produção de políticas de concentração compulsórias realizadas a partir de um modus operandi da segurança pública (hierarquizar, segregar e vigiar) e, de outro lado, a retirada da agência dos sujeitos, tornando a população de rua alvo de ações que acentuam os processos de repressão e de exclusão social.

Embora a COVID-19 se dissemine democraticamente, as taxas de mortalidade não são democráticas e diferentes populações estão sujeitas a maiores e menores riscos. Estar isolado no conforto de uma casa pode fazer diferença entre a vida e a morte. Ter acesso a serviços de saúde, a medicamentos e a uma alimentação saudável também são elementos diferenciadores. Possuir condições de acessar água e produtos de higiene corporal e doméstica são outros fatores nessa balança de riscos, bem como a presença de vínculos relacionais de proteção. A ameaça da COVID-19 não é apenas viral, mas coproduzida na relação entre pessoas, vírus, animais, ambientes, tecnologias, vínculos relacionais, políticas de saúde e infraestruturas urbanas (Das, 2020; Schuch, Víctora e Siqueira, 2020; Segata, 2020). Como salientam Segata et al (2021) a pandemia de COVID-19 é um evento múltiplo e desigual e “distinções socioeconômicas, culturais, políticas, ambientais, coletivas ou mesmo individuais tensionam a homogeneidade do risco, da vulnerabilidade, da doença e do cuidado ‘vírus centrado’” (Segata et al, 2021: 2).

Se isso é verdade, as pessoas em situação de rua estão bastante suscetíveis. A última pesquisa censitária quali-quantitativa feita em Porto Alegre, realizada em 2016 (Schuch et al, 2017), mostrou que a maior parte da população de rua dormia prioritariamente em lugares de risco, improvisados e com forte exposição ao ambiente natural (52%). A opção de uso de abrigos e albergues foi referida por apenas 40% das pessoas estudadas, sendo que a falta de vagas de acolhimento – que hoje não abarcam nem metade da população de rua da cidade, realidade que também acontece em outros lugares do país, como São Paulo – bem como o controle institucional rígido, foram informados como os principais motivos para o não uso desses equipamentos. O censo também mostrou que cerca de 60% tinha mais de 35 anos e que quase a metade da população pesquisada (47,5%) estava na rua há mais de 5 anos, sendo que 30% estava na rua há mais de dez anos. Essas informações revelam uma cronicidade da experiência da rua como forma de vida, que se refletiu também na alta percepção de adoecimento dos entrevistados. Os problemas de saúde mais citados estavam relacionados à “dependência química/álcool” (58,1%), “problema nos dentes” (47,8%) e “dores no corpo” (43,7%), esse último item abarcando situações e diagnósticos indefinidos que também informam sobre o precário acesso dessa população ao sistema de saúde.

De outro lado, para além dessas informações relacionadas à vulnerabilidade social, dados do mesmo estudo mostraram que 45% das pessoas pesquisadas disse já ter sido expulso de algum lugar, 60,6% afirmou já ter vivenciado alguma situação de violência (Schuch et al, 2017). Além disso, percebiam que a sua presença era indesejada no ambiente em que viviam e tinham uma percepção de recebimento de tratamentos negativos em suas relações sociais, sentindo-se tratados com desconfiança (82,4%), medo (80,7%) e preconceito (79,4%). Tais informações mostram uma brutal percepção de ilegitimidade de suas vidas e evidenciam uma terrível recorrência, a de que para grande parte da população de rua, o espaço público encontra-se interdito.

Ou seja, à vulnerabilidade social das condições de vida, expressa nos indicadores anteriormente citados associa-se o que poderíamos denominar de uma vulnerabilidade política, produzida na interseção entre as formas e políticas de reconhecimento social que engendram diferentes oportunidades de acesso aos bens, espaços e serviços públicos. Essa não é uma realidade apenas brasileira e o pesquisador Patrick Gaboriau (2011), antropólogo que estudou as dinâmicas das pessoas sem domicílio em Los Angeles, Paris e Moscou, aponta uma recorrência entre as condições de existência da população de rua que varia entre assistência e repressão, amabilidade e culpabilização, o que coloca as pessoas em situação de rua enquanto uma população extremamente vulnerável politicamente.

A Produção Política da Morte

Em tempos de pandemia de COVID-19, esta situação de vulnerabilidade social e política dificulta o acesso às políticas de prevenção à contaminação. Por suas condições precárias de vida, as populações de rua têm maior dificuldade de acessar políticas de prevenção – como, por exemplo, obter água, sabão, álcool em gel e uma casa que permita o distanciamento social. Essas dificuldades fazem com que fiquem à margem de políticas generalistas, as quais uniformizam o risco, excluem as desigualdades das condições de vida, trabalham a partir da perspectiva de um sujeito ideal capaz de autoconhecimento, autoconsciência e autorepresentação e focam-se no combate às ameaças biológicas do vírus.

Como apontaram Schuch, Víctora e Siqueira (2020), a gestão da pandemia no Brasil tem sido realizada por estratégias baseadas, fundamentalmente, em três aspectos: a) controvérsias em torno do perigo da pandemia e questionamentos sobre dados científicos de informação sobre o tema, os quais vão desde a negação do perigo do vírus e incitamento à livre circulação de pessoas sem qualquer equipamento de proteção ao contágio, quanto os debates em torno da eficácia farmacêutica de determinados remédios em contraposição à vacinação; b) incentivos morais à necessidade de isolamento da população e medidas de certos governadores e prefeitos – em contraposição ao governo federal que os recusava veementemente – com objetivo de incentivar o distanciamento social, como por exemplo a implementação de horários reduzidos de funcionamento do comércio e uso de transporte público; c) ações para reduzir o impacto econômico em face da COVID-19, destacando-se a regulamentação da suspensão e redução da jornada de trabalho de trabalhadores e a produção de um auxílio emergencial destinado à população economicamente vulnerável.

O que chama atenção nestas políticas, de um lado, é sua heterogeneidade em termos de controvérsias que produzem um cenário de incerteza e desconfiança sobre formas de ação entre diferentes níveis de governo, avanços científicos e tratamentos eficazes e oposições simplificadoras entre economia e saúde; de outro lado, é o seu caráter uniformizante e generalista em relação à distribuição do risco. À exceção da população de idosos, constituída como “grupo de risco” preferencial da pandemia a partir de uma ênfase num corpo orgânico compreendido unicamente pelo seu viés etário (Schuch, Víctora e Siqueira, 2020), não há espaço para dimensionamento das desigualdades presentes nas dinâmicas de vidas de populações específicas[2]. Isto porque a maior parte das políticas postas em prática no Brasil excluiu sistematicamente as desigualdades de acesso às infraestruturas de cuidado e negligenciou as realidades locais das populações marginalizadas, como as pessoas em situação de rua.

Variados pesquisadores das ciências humanas têm mostrado que a pandemia de COVID-19 é um espelho da desigualdade (Biehl, 2021; Caduff, 2020; Das, 2020; Segata, 2020; Schuch, Víctora e Siqueira, 2020). Se isso é verdade, o combate à pandemia implica necessariamente enfrentar uma urgência (o aparecimento do vírus da COVID-19) e uma permanência (a desigualdade entre as condições de vida de indivíduos e populações); é neste relacionamento entre urgências e permanências que tem sentido utilizar a ideia da pandemia de COVID-19 como um “evento crônico agudizado”, tal como Paul Farmer (2012) propôs para a análise do terremoto no Haiti, o qual acentuou vulnerabilidades e violências estruturais ora presentes na sociedade haitiana[3].

Levar em conta a associação entre urgências e permanências implica reconhecer que as biopolíticas generalistas podem ser necessárias, mas insuficientes para proteger populações marginalizadas. A boa estruturação do sistema de saúde, o investimento em políticas científicas, a expansão da testagem, a democratização da vacinação e um aparato eficiente de gerenciamento de populações precisam estar associados a políticas específicas, visando o combate da permanência da situação de precariedade social e política em que certas populações se encontram. Para populações social e politicamente vulneráveis, as políticas podem fazer diferença decisiva entre a vida e a morte.

No caso da população de rua em Porto Alegre, argumentamos, a política generalista de gestão da pandemia pode ser percebida como uma necropolítica, nos termos propostos por Achille Mbembe (2006). Chamar a atenção para a noção de necropolítica em face da pandemia do novo coronavírus é importante não apenas porque enfatiza o caráter relevante das políticas na produção da vida e da morte, mas também porque oportuniza reflexões acerca da própria constituição da relação entre soberania, comunidade e política. Tal como sugere Mbembe (2006), as teorias normativas de democracia tomaram como expressão máxima da soberania a produção de normas gerais por um corpo composto por homens e mulheres livres e iguais, capazes de autoconhecimento, autoconsciência e autorepresentação. Ao contrário, a proposta de Mbembe (2006) está dirigida à consideração de categorias da política menos abstratas do que a razão como a verdade do sujeito, destacando a centralidade das definições em torno da vida e da morte de populações.

Quando direcionadas à análise das formas globais de gerenciamento da pandemia, percebemos o quanto as teorias normativas da democracia podem estar subjacentes aos modelos nacionais de seu enfrentamento – inclusive ao obtuso modelo brasileiro, em que a distinção entre economia e saúde, disputas entre diferentes níveis de autoridades (federal, estaduais e municipais) sobre possibilidades de intervenção governamental e questionamento e/ou endeusamento da ciência biomédica vem marcando um cenário pouco homogêneo de intervenções. Como já afirmamos, neste cenário heterogêneo de disputas entre a realidade da pandemia e seus modos de enfrentamento, chama a atenção a ausência de discussões sobre as desigualdades que, em qualquer local, são condições de possibilidade para o vírus se metamorfosear em crises maiores e, também, sobre a importância do entendimento das dinâmicas de vida de populações marginalizadas, relevantes para orientar modelizações de políticas de acordo com tais comportamentos (Das, 2020).

Carlo Caduff (2020), escrevendo sobre a gestão global da crise da pandemia do novo coronavírus salienta que, apesar da ênfase que a Organização Mundial da Saúde (OMS) manifestou nas testagens e no sucesso inicial que a Coreia do Sul e Alemanha tiveram na contenção ao contágio do vírus a partir dessa estratégia, a maioria dos países considerou a testagem uma baixa prioridade e apostou numa versão mais rígida do modelo chinês regionalizado do lockdown. Tal versão trabalhava a partir da generalização de riscos e uniformidade da população alvo, tornando-se a norma internacional de gerenciamento político da pandemia. Avaliando esse processo, Caduff (2020) questiona-se se esse experimento de saúde pública realizado em nome da “sobrevivência/saúde” ocorreu com a suficiente consideração de seus efeitos sociais, políticos e econômicos.

Considerando o estudo realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário e o Conectas Direitos Humanos (2021), que analisou as estratégias federais brasileiras de gestão da pandemia de COVID-19, vê-se que o Brasil contrasta sobremaneira com as formas hegemônicas globais de gerenciamento da pandemia. Sem investir na testagem e na vacinação e contrapondo-se tanto aos lockdowns regionalizados quanto aos mais totalizantes, o governo federal incentivou a propagação do vírus, numa tentativa de promover a imunidade coletiva e diminuir os impactos à economia do país[4]. Considerando tal dimensão, propomos que a ênfase nas políticas generalistas e uniformizantes de incitação ao contágio tem um efeito perverso, pois ao excluir as desigualdades das formas de existência acaba produzindo um efeito de diferenciação das possibilidades de vida e morte de determinadas pessoas.

É neste sentido que o obscurecimento das variações locais de vida de determinadas populações conformado nos modelos uniformes de gerenciamento da pandemia – sejam aqueles que se realizam em nome da prevenção ou em nome do contágio – age para privilegiar o sujeito preferencial do modelo normativo de democracia: capaz de autoconhecimento, autoconsciência e autorepresentação.

Descolonizando a Pandemia

Como diversos trabalhos na área da antropologia com as políticas públicas insistem, é preciso ir além das políticas globais para investir em estratégias de combate afinadas com a cultura, infraestruturas de saúde e condições de vidas locais; ao invés de meros “detalhes” contextuais, tais engajamentos podem ser ferramentas importantes de proteção e prevenção ao contágio e de seus efeitos. Neste sentido, recuperamos aqui a importante noção de “descolonizar” a pandemia, já trazida em Biehl (2021) e Segata et al (2021), que fundamentalmente implica: de um lado, ir além das perspectivas “vírus-centradas” e dos modelos globais que privilegiam soluções uniformes, com poucas relações com a variedade das realidades locais (Segata et al, 2021); de outro lado, significa engajar-se criticamente sobre formas de conhecimento e intervenção que reproduzem e invisibilizam mecanismos de exclusão, bem como colocar em evidência formas emergentes de política, de cuidado e de resistência que podem ser mecanismos eficazes de enfrentamento à pandemia (Biehl, 2021).

É nesta direção de privilegiar as relações locais e as linhas de exclusão, mas também os emergentes mecanismos de resistências, que passamos a descrever uma rede de mobilização social em proteção à população de rua, que emergiu na cidade de Porto Alegre no início de abril de 2020. Formada por ativistas, pesquisadores, trabalhadores sociais da área e filantropos, acompanhamos esse coletivo durante todo o ano de 2020 e início de 2021, por meio de um grupo de WhatsApp, criado para informar e gerir tais formas de mobilização. Participamos dessa rede porque estamos de diferentes formas envolvidos com o estudo e ativismo da população de rua há vários anos, seja realizando pesquisas e orientando trabalhos na área, seja produzindo estudos, materiais de divulgação social e participando de coletivos ativistas da área, como por exemplo, o Jornal Boca de Rua e o Movimento Nacional da População de Rua.

A rede iniciou suas atividades a partir de poucos ativistas da área, mas se expandiu rapidamente, motivada por uma percepção coletiva de que a população de rua estava especialmente vulnerável à pandemia de COVID-19, tanto por suas condições precárias de vida, quanto pela percepção da inoperância do poder público na gestão de estratégias específicas de proteção para essas pessoas. Sem uma coordenação unitária, a inserção de novos participantes no grupo de WhatsApp foi sendo realizada através das próprias redes das pessoas ingressantes, na medida em que as ações de proteção iniciais – fundamentalmente, doações de roupas, alimentos, refeições e materiais de higiene e proteção ao vírus, como sabão, álcool em gel e máscaras – iam acontecendo.

Essas ações passaram a ser publicadas via grupo de WhatsApp, produzindo a inscrição de uma memória dessas formas de mobilização política, contando com o registro de eventos de distribuição de cestas básicas e refeições para pessoas em regiões marginalizadas da cidade, bem como de materiais de higiene e roupas. Pode-se dizer que a rede funciona como um circuito de trocas materiais, simbólicas e políticas dinâmicas onde os participantes oferecem itens, mas também se disponibilizam a receber as doações oferecidas para ações do projeto de assistência a que estão vinculados.

Sofrimentos, Desigualdades e sua Inscrição Política

Além da inscrição da memória das formas de mobilização e resistência política, ao longo de sua existência o grupo também passou a funcionar como uma maneira de controle social das próprias transformações sociais na vida de sujeitos e populações marginalizadas provocadas pela pandemia de COVID-19. É neste sentido que tomamos tais registros como fundamentais modos de inscrever politicamente os efeitos da pandemia no agravamento das desigualdades sociais e seus impactos na vida de determinados sujeitos. Possibilitam compreender, também, que a pandemia se torna um evento que suscita a consideração da indissociável relação entre a desigualdade social e a configuração da situação de rua, rompendo com a visão comum que a toma como um problema individual causado por vícios ou por certos rompimentos de vínculos sociais. Isso fez com que o trabalho desenvolvido acabasse abarcando não apenas os sujeitos em situação de rua, mas as populações marginalizadas na cidade: “Ontem, um caso emblemático: 2 mulheres e 4 crianças (a maior em torno de 7 anos), pedindo doações à noite. Ainda não eram sem teto. Mas as duas mulheres eram faxineiras sem trabalho nesse período de coronavírus. Preparemo-nos!” (13/04/2020).

Por outro lado, é interessante perceber que à acentuação da situação de desigualdade social trazida à tona no cenário da pandemia agregaram-se os clamores de engajamento motivados pela própria urgência da ação devido à mais básica necessidade de sobrevivência: a comida. É neste sentido que variadas foram as solicitações de doações motivadas pela temática da fome: “Pessoal as famílias da Vila Maria... São 30 famílias. Precisando de comida” (14/04/2020); “Boa noite! Tenho conversado com as pessoas em situação de rua da Vila Valência e elas estão dizendo que estão passando fome aos domingos. Se algum grupo pudesse cobrir essa lacuna. Posso auxiliar nos locais onde deixar a alimentação” (16/04/2020).

O clamor em torno da fome reverberava para além das pessoas do coletivo, as quais traziam ao grupo, nos meses iniciais da pandemia (abril e maio de 2020), oferecimentos de doações que chegavam até nós, advindos de pessoas e grupos sem proximidade direta com o ativismo na área. Tais agentes estavam interessados em “ajudar” as pessoas em situação de rua, mostrando-se afetivamente comovidos com o sofrimento daqueles que permaneciam na rua em um contexto de pandemia.

Essa forma de motivação das práticas de mobilização também se evidenciou em campanhas públicas sobre o tema. Como exemplo, temos a recente campanha nacional brasileira, produzida por organizações sociais e humanitárias diversas – como a Anistia Internacional, Instituto Ethos, Oxfam Brasil, Grupo Prerrogativas, Coalizão Negra por Direitos, Redes da Maré e outras –, que enfatiza os apelos de doação via centralidade da fome como um operador político: “Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer”. A campanha foi lançada em março de 2021 e está dirigida “à arrecadação de fundos para ações emergenciais de enfrentamento à fome, à miséria e à violência na pandemia da Covid-19”[5].

Esses modos de mobilização são relevantes porque, de um lado, descentram o risco frente ao vírus para o perigo da fome, chamando atenção não apenas para os determinantes biológicos das políticas de sobrevivência frente à pandemia, mas também para os seus efeitos políticos nos corpos que sofrem pela fome. Sugerimos que tal dimensão pode ser aproximada ao que Luc Boltanski (1999) denominou de política de piedade, operada pela sensibilização dos espectadores provocada pelo sofrimento à distância, muitas vezes configurado a partir de situações singulares de tragédias e desastres e epidemias. As reflexões de Boltanski (1999) contribuem ao chamar atenção para a relação de atenção que se faz numa dupla via que implica tanto o distanciamento do espectador, quanto a condição de excepcionalidade do evento causador – neste caso, a pandemia de COVID-19. É estratégico lembrar, neste sentido, o contraste entre a solidariedade na emergência e a permanência da vulnerabilidade social e política da população de rua, que chamamos atenção no início do texto.

Também, as produções de Didier Fassin (2001 e 2010) sobre as políticas de compaixão e as políticas de justiça trazem nuances importantes à nossa reflexão. Analisando as solicitações de asilo por razões humanitárias e os pedidos de concessão de auxílio para desempregados e sem documentos na França (Fassin, 2001), o autor percebe a importância do que denomina de política da compaixão, em que a retórica do sofrimento e dos sentimentos morais associados à variabilidade das situações de sofrimento sobrepõe-se a da política da justiça (da equidade, dos direitos), raramente mencionada pelos solicitantes. Além de trazer à tona o conceito de biolegitimidade para apontar os recursos políticos associados à “vida como bem supremo” – a análise de Fassin (2001, 2010) é especialmente interessante para o caso das mobilizações em questão.

Isto porque as perspectivas assistencialistas e caritativas são históricas nesta área de intervenção aos outrora chamados “sofredores de rua” (Gaboriau, 2011; Melo, 2013; Schuch, 2015; Vieira, Bezerra e Rosa, 1992). Nos últimos anos, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) tem recusado tais engajamentos e insistido que é preciso passar da “ajuda” aos “direitos” – veja-se o slogan frequentemente usado no ativismo: “A população de rua tem fome. Tem fome de direitos” (Melo, 2013; Schuch, 2015)[6]. Desde sua criação, o movimento social vem reivindicando o direito à vida, à permanência no espaço público e às políticas públicas (Melo, 2013; Schuch, 2015; Silva, 2017). Em anos recentes, também tem denunciado com veemência frequentes ações de extermínio frente à população em situação de rua e a negligência estatal na prevenção e apuração de crimes realizados contra pessoas em situação de rua (Schuch, 2015).

Como um evento crítico que simultaneamente suscita mobilizações que trabalham a partir e na relação com as infraestruturas desiguais de vida das populações marginalizadas, mas também provoca a atualização de engajamentos preocupados com a emergência da fome e com as políticas básicas de sobrevivência, a pandemia parece atualizar uma tensão estruturante desse campo de intervenção social (Furtado, 2017 e 2018; Gaboriau, 2011; Melo, 2013; Sarmento, 2020 e 2021; Schuch, 2015; Schuch et al, 2017; Silva, 2014 e 2017). Trabalhando a partir de sua ambiguidade constitutiva, chamamos atenção para o fato de que, neste contexto, a pandemia funciona simultaneamente como um evento que acentua dinâmicas humanitárias marcadas pela urgência da ação em face aos “sofrimentos” individuais, quanto renova ativismos cotidianos que acionam uma subjetividade política calcada na denúncia das estruturas desiguais de existência dessa população e da violência estatal frente à população de rua.

As Políticas e as Infraestruturas da Vida

Outra dimensão importante das mobilizações do coletivo foram as divulgações de estratégias de arrecadação financeira presentes em variados editais de fundações não governamentais, lançados para possibilitar a permanência da vida de populações marginalizadas num contexto de crise sanitária. Ao longo dos primeiros meses da pandemia, muitas divulgações de editais foram realizadas por membros do grupo de WhatsApp:

“Faz parte de algum grupo ou conhece um coletivo organizado que quer agir para combater os impactos do Covid-19? Estão abertas até dia 19/04 as inscrições para uma turma excepcional do Programa de Mobilizadores da Rede Nossas Cidades. Dez grupos e coletivos pelo Brasil serão selecionados para um treinamento gratuito de duas semanas em metodologias e tecnologias ativistas de ponta para criar e lançar campanhas de mobilização em suas cidades. Financiamentos coletivos para ajudar populações mais vulneráveis, pressões nos políticos para a implementação de medidas de contenção e redes de solidariedade para apoiar quem mais precisa. Vamos juntos tirar do papel ideias com impacto real para enfrentar a pandemia e criar uma onda de ação em todo o Brasil!” (15/04/2020)[7].

“Organizações da Sociedade civil podem se inscrever para edição emergencial do Programa Comunidade, Presente! Com o objetivo de apoiar as famílias mais vulneráveis aos impactos econômicos do coronavírus, Itaú Social financiará kits essenciais de consumo, como alimentos, produtos de higiene e gás de cozinha” (15/04/2020)[8].

Não temos ideia de quantos projetos da rede, efetivamente, receberam recursos advindos deste tipo de iniciativas, na medida em que o próprio levantamento sobre o tema, bem como sobre a totalização das ações de entrega de alimentos, roupas e materiais de higiene começou a ser realizado apenas no mês de março de 2021, motivado por um desejo de apresentação pública das práticas realizadas. Entretanto, a antropóloga Lucía Eilbaum (2020) acompanhou mobilização semelhante, referente a coletivos de moradores de comunidades periféricas na cidade do Rio de Janeiro, que se organizaram não apenas para higienizar as regiões em que viviam frente à pandemia de COVID-19, mas para produzir uma rede de apoiadores com objetivo de escrever projetos para envio a editais lançados ao longo do ano de 2020.

Como explica Eilbaum (2020), o lançamento dos editais obedeceu de forma imediata ao contexto pandêmico, atendendo à população vulnerável. Com orçamentos variados entre R$ 10.000,00 e R$ 130.000,00 e com duração de cerca de seis meses de efetivação, os seus tópicos se dirigiam à segurança alimentar, saúde mental, ações de prevenção e conscientização acerca das medidas sanitárias. Os editais financiaram ações relevantes de distribuição de “cestas básicas”, produtos de limpeza e higiene, medicamentos, quentinhas prontas[9], confecção e distribuição de máscaras e a elaboração e distribuição de material de prevenção (Eilbaum, 2020: 3). Sobre os resultados das ações, diz a pesquisadora:

“Iniciamos com 7 coletivos que já conhecíamos a partir de nossa interlocução de pesquisa. Desse levantamento, foi possível contabilizar em torno de 20 mil cestas básicas, 40 mil máscaras descartáveis, 12 mil frascos de álcool gel, 2.500 saquinhos de Cosme e Damião[10], e em torno de mais de 100 mil pessoas que receberam alguma ação, [entre moradores de Manguinhos, Maré, Alemão, Akari, população de rua, travestis, familiares de presos]. Essa movimentação de mercadorias, alimentos, produtos de higiene e de limpeza, máscaras e álcool gel, e a movimentação de pessoas se organizando, circulando, contatando outras, distribuindo, entregando, poderia ser analisada em vários sentidos, evidentemente muitos deles em relação ao circuito de trocas materiais e simbólicas envolvidas” (Eilbaum, 2020: 4).

Além do conhecimento sobre as formas de mobilização política de comunidades marginalizadas no Rio de Janeiro – o que poderíamos associar a uma forma coletiva emergente de cuidado – a proposta desenvolvida por Eilbaum (2020) é potente para ressaltar um argumento que vemos funcionar também para o caso que estamos analisando, em Porto Alegre: de que a luta desses coletivos não se faz simplesmente motivada pela ausência das estruturas estatais de proteção, mas contra as políticas de morte que afirmam a ilegitimidade das vidas das populações marginalizadas, a partir da desconsideração de suas condições desiguais de existência.

Nesta direção, é pertinente evocar o quanto as mensagens trocadas pelo grupo de WhatsApp do coletivo criado em Porto Alegre também são instrumento de mapeamento das formas de exclusão politicamente engendradas através de certas políticas de atendimento à população de rua, postas em prática no período da pandemia. Nesse caso, é particularmente interessante contrastar os heterogêneos discursos em torno dos modos de gestão da pandemia, já discutidos em seção anterior, com a pragmática das infraestruturas materiais próprias ao atendimento estatal em relação à situação de rua. Importam aqui uma série de registros acerca dos impactos da pandemia em tais infraestruturas, como, por exemplo, o fechamento e a posterior diminuição dos horários de atendimento de serviços como a abordagem social de rua, a diminuição das vagas em abrigos e albergues para acatar os protocolos das medidas de distanciamento social sem a correspondente criação de qualquer espaço adicional de acolhimento e a ausência da distribuição de materiais básicos de proteção, como máscaras e álcool gel:

“- Alguém sabe dizer se a prefeitura entregou álcool em gel e ou máscaras pra moradores de rua?

- Não tenho notícias de nenhuma ação da prefeitura em relação a isso. As máscaras nem para os trabalhadores dos serviços da Assistência Social, que estão trabalhando, eles forneceram.

- Cada equipe está se virando como pode. A Marilene nos doou máscaras e dividi com os colegas” (17/04/2020).

O questionamento das infraestruturas materiais necessárias para a manutenção da vida em tempos de pandemia de COVID-19 também foi realizado pelo grupo através dos debates sobre as dificuldades que as pessoas em situação de rua estavam encontrando no acesso ao Auxílio Emergencial, política de assistência social do governo federal destinada a assegurar uma renda mínima para as pessoas em situação de vulnerabilidade social, durante a pandemia.

Apesar de serem formalmente elegíveis ao recebimento do benefício, os relatos dos agentes da rede evidenciavam o conhecimento de inúmeras dificuldades enfrentadas por pessoas em situação de rua para se cadastrarem e efetivamente conseguirem acesso ao benefício. Isto porque para realizar o cadastro ao benefício era preciso preencher um formulário de solicitação online, em programa próprio para tanto (CAIXA TEM), além de ter que dispor de um aparelho de telefone celular para realizar a confirmação da solicitação, via senha e código individualizado. Em meio às informações incertas sobre os modos de funcionamento do benefício e as dinâmicas desiguais de vida de grande parte da população de rua que, muitas vezes, dificultam o acesso à internet e ao próprio telefone como infraestrutura material garantidora do cadastro, os participantes da rede manifestavam contrariedade às dinâmicas práticas envolvidas na implementação do benefício, tomadas como “exigências perversas” e vistas como excludentes e burocratizadas.

Os diálogos abaixo reproduzem certos debates, eminentemente realizados, neste âmbito, a partir das ações da Defensoria Pública da União (DPU) para tentar “desburocratizar” o acesso aos recursos. O tema surgiu a partir de um pedido de um defensor público, membro do grupo de WhatsApp, para receber informações a respeito da situação da população de rua em Porto Alegre com relação ao acesso ao benefício. Embora longa, a conversa entre diversos agentes da rede mostra informações desconexas sobre o funcionamento do cadastro e as possibilidades de uso de um mesmo aparelho para cadastramento de vários beneficiários:

“- Em âmbito nacional a Defensoria Pública da União (DPU) está tentando desburocratizar o auxílio-emergencial. Se possível, informem se as pessoas em situação de rua que vocês estão atendendo nos serviços e no apoio estão conseguindo acessar ou não o auxílio-emergencial. Como está a situação nesta semana?

- O saque em dinheiro somente a partir do dia 27. Ai poderemos ter ideia. Por enquanto muitos nos acessando para cadastrar o acesso ao Caixa TEM para senha e código.

- Desculpa a minha ignorância, o que é este CAIXA TEM?

- É mais uma burocracia pra conseguir sacar. É um aplicativo da Caixa Econômica Federal (CEF) que precisa ser acessado pra gerar pelo CPF uma senha e um código e aí com documento poder sacar a partir do dia 27.

- Putz!!! Vou conversar com os colegas lá de Brasília sobre mais este obstáculo.

- Fiquei com uma dúvida: este segundo cadastro para acessar a poupança digital é possível que sejam feitos vários através do mesmo celular?

- Não tenho certeza sobre essa informação, pois não chegou oficialmente para nós. Seria bom alguém fazer esse teste. Pois a princípio, o aplicativo CAIXA TEM é baixado no celular e a inscrição é realizada pelo CPF da pessoa, com cadastro de senha.

- O que eu sei é que as pessoas também estão tendo dificuldades em acessar o aplicativo depois de baixado. Não sei se está relacionada a alta demanda.

Eu gostaria de fazer o teste, porém, o aplicativo é pesado e a memória do meu celular não comporta. Se alguém conseguir, seria bom compartilhar a experiência por aqui.

- Não é possível.

-Bom dia, pelo que presenciei é um cadastro “aparelho de celular”. para algumas pessoas é fundamental ter quem auxilie. No meu caso era uma pessoa domiciliada, e o sistema não avança sem todos os dados preenchidos, rua, número, bairro, CEP...

- Sim, eu estava vendo o documento compartilhado aqui, são 23 passos para fazer a tal poupança digital. Isto é insano!

- Exatamente!!

- Uma colega me disse agora que conseguiu fazer para mais de uma pessoa através do celular dela!

- O Acesso ao Caixa TEM pode ser feito de qualquer celular (diferente do cadastro ao auxílio emergencial que pede um número para receber o código).

- No Caixa TEM se baixa um aplicativo. Informa o número do CPF, se essa pessoa está com a conta digital avança e pede uma senha de 6 dígitos; confirma e gera um código que deve ser anotado manualmente. Como disse antes de posse da senha, desse código gerado e do documento, a pessoa acessa a CEF para o saque em dinheiro a partir do dia 27.

- Podemos fazer um mutirão com a pop rua então. Aqueles que têm CPF? Avisem. Poderia ser na praça ou na escola Porto alegre ou em frente ao Amada Massa.

- Eu topo.

- 👍

- Não é o CPF que dá o tom. Peço que leiam novamente o que escrevemos. Se não tivermos clareza da ação, só causa mais tensionamento nas pontas do atendimento” (16/04/2020).

Os trechos evidenciam as dificuldades das operações burocráticas necessárias para o acesso ao recurso, que funcionam como barreiras práticas de acesso aos recursos assistenciais. Herzefeld (1992) têm chamado atenção para a produção social da indiferença que se realiza através do funcionamento dos mecanismos burocráticos estatais; Gupta (2012), na mesma direção, ainda acrescenta a dimensão de que as ações estatais sistematicamente produzem arbitrariedade, a partir da multiplicação de mediadores, formulários e técnicas e dispositivos burocráticos. Ao invés de se mover na direção de uma racionalização progressiva de procedimentos, a burocracia deveria ser melhor entendida a partir dos operadores de contingência e caos controlado.

Mais do que descrições totalizantes referentes à produção de um Estado homogêneo, Gupta (2012) sugere que as abordagens etnográficas compreendam conjuntamente as direções mais abrangentes das políticas estatais e a base procedimental dessas visões. Somente desta maneira, destaca o autor, seria possível entender como processos de inclusão política podem coexistir com violências contra as populações marginalizadas. No caso aqui presente, vale a pena confrontar a política espetacular que propaga um benefício estatal destinado a populações marginalizadas, mas que em sua base procedimental acaba acentuando os mecanismos de exclusão que visa idealmente reparar.

O Episódio das Pias: um monumento do irreconciliável

Em paralelo à distribuição de alimentos, materiais de higiene e das práticas de controle social das ações estatais em relação à gestão da pandemia de COVID-19, a mobilização do coletivo via grupo de WhatsApp deu origem à elaboração do que foi chamado de “Plano de Contingenciamento da Pandemia do Corona Vírus (Covid-19) para a População em Situação de Rua de Porto Alegre”, que consistia numa série de orientações práticas, destinadas ao Poder Público, com fins de proteção da população de rua. Segundo o documento, era preciso investir na disponibilização de água e produtos de higiene para limpeza de mãos, roupas e utensílios; na ampliação de espaços de acolhimento como abrigos e albergues; no investimento em programas de habitação; na atenção especializada de saúde para população de rua; na testagem em relação à COVID-19 e na criação de espaços de quarentena para permanência dos atingidos pelo vírus, bem como de espaços protegidos para grupos de maior risco; na garantia de segurança alimentar e de uma renda mínima que possibilitasse a sobrevivência de pessoas que, em muitos casos, dependiam da realização de pequenos serviços eventuais e do recolhimento de bens de caridade, escassos em tempos de isolamento social.

A primeira medida que constava no plano de contingenciamento solicitava justamente o deslacre das torneiras que existiam nas praças públicas. Sugeriu-se, inclusive, que se ampliasse o oferecimento de água potável através dos acessos externos em pontos de água das instituições públicas, escolas e igrejas. Em relação aos banheiros públicos, solicitou-se a abertura dos espaços nas diferentes regiões da cidade, com oferta de chuveiro e material de higiene pessoal, bem como, a contratação de uma equipe para limpeza e manutenção destes espaços. Defendeu-se, inclusive, que esta equipe fosse formada entre as pessoas em situação de rua a partir da capacitação e custeio dos equipamentos de proteção individual. Contudo, formalmente, esta comunicação, datada do dia 19 de março, não obteve nenhum retorno do governo municipal.

As solicitações referentes ao acesso à água foram reforçadas através de dois ofícios no mês de abril, de autoria de dois coletivos independentes. Um deles atuava com foco na segurança alimentar da população de rua a partir da distribuição de alimentos, e o outro atuava nas estratégias de inovação social urbana na área da arquitetura. Eles demandavam ao município a abertura de sete pontos de água, em diferentes pontos da cidade, para a instalação de lavatórios portáteis, que nada mais eram que pias plásticas que armazenavam e bombeavam a água a partir de um sistema construído na própria estrutura. Mais um outro ofício, feito por uma pessoa física, foi endereçado diretamente para a chefia do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), reivindicando a reinstalação urgente das torneiras que outrora existiam, mas que haviam sido retiradas de praticamente todos os equipamentos públicos, como parques e praças.

Ainda no mês de abril, inspirada na mobilização e no documento resultante daquele esforço, a Defensoria Pública do Estado, em conjunto com a Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal, mobilizou uma ação civil pública para que fosse elaborado um Plano de Contingência Emergencial Intersetorial. Na ação endereçada ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, as entidades alegaram que os esforços da Prefeitura Municipal eram insuficientes e sugeriram uma série de medidas a serem tomadas. Dentre elas, estava a questão do acesso à água potável e aos banheiros públicos.

Apesar deste esforço, contudo, o acolhimento da ação no judiciário obteve um tratamento técnico, uma vez que, apesar da urgência da matéria, dada a situação de calamidade pública deflagrada, a abrangência das medidas fez com que o juiz aceitasse o argumento da Prefeitura Municipal sobre a ilegitimidade da Defensoria Pública da União no pleito. O juiz aceitou o argumento da Prefeitura Municipal a respeito da competência desta instituição federal perante a justiça de nível estadual e a excluiu do processo. Sugeriu, por fim, uma audiência de conciliação entre as partes, tendo em vista que os demandantes não teriam apresentado evidências que refutassem os levantamentos dos serviços e atividades então ofertados pelo município de Porto Alegre.

Em uma carta aberta às autoridades, em 1º de maio 2020, o coletivo que redigiu o plano de contingenciamento endossou as solicitações para o acesso à água e aos banheiros públicos, apresentando-se agora enquanto “grupo suprapartidário para o combate da pandemia da COVID-19 junto a população de rua de Porto Alegre” e reunindo a assinatura de 38 organizações, coletivos, entidades, movimento social e instituições. No texto da carta, houve uma prestação de contas destas ações:

“Desde lá, este grupo vem atuando de forma a atenuar algumas das necessidades mais urgentes da PSR neste momento, tendo realizado no período de 23/03 a 01/05 a distribuição de 58.595 marmitas, 33.268 sanduíches/lanches, 8.884 litros de água/suco, 4.717 kits de higiene completos, 2.886 máscaras, 900 peças de roupa, 661 sabonetes, 500 barbeadores, bem como a disponibilização de 10 pias em locais de maior fluxo de pessoas em situação de rua”. (Carta às Autoridades, 2020: 1)

As soluções apresentadas referentes ao acesso a água, especialmente o deslacre das torneiras das praças e parques, além da abertura, em caráter emergencial, de novos pontos de água, ao fim e ao cabo, foram processadas a partir das perspectivas dominantes; uma concepção de risco foi mobilizada pela Prefeitura Municipal e ficou entendido que os espaços a serem ofertados poderiam transformar-se em focos de contágio e propagação do coronavírus para a população em geral, ainda que a finalidade fosse justamente oposta, isto é, possibilitar a higienização para um público específico, com acesso sanitário precário. Desta forma, de público alvo a ser protegido, a população em situação de rua foi constituída como um possível foco de contágio. Situada em uma encruzilhada necropolítica, a população em situação de rua de Porto Alegre foi entendida não como um grupo de risco a ser protegido do contágio tendo em vista as suas suscetibilidades sociais e políticas, mas como um fator de risco no sentido da disseminação para o restante da população.

Entretanto, as fatídicas pias portáteis foram, enfim, teimosamente instaladas em dez espaços públicos como viadutos e praças da cidade em abril de 2020, sem a anuência do poder público municipal. Apesar da insistência dos ativistas, a Prefeitura Municipal se manteve convicta e não concordou com a liberação dos acessos de água. Foi necessária a contratação de um caminhão pipa, por parte de uma das organizações filantrópicas, e a improvisação de um sistema de reservatórios para o funcionamento destes lavatórios que, entretanto, não se sustentaram como práticas de longo prazo, finalizando-se em junho de 2020. Em sua existência efêmera, as pias portáteis passaram a existir na cidade tal como um monumento do irreconciliável: a conquista de um importante processo de resistência política que afirmou o valor e a legitimidade das vidas das pessoas em situação de rua, em meio à árdua tentativa de sua obstrução pelo poder público.

Considerações Finais: exclusões e resistências face à COVID-19

Argumentando que o conhecimento das desigualdades e das dinâmicas locais de vida de populações marginalizadas é fundamental para o gerenciamento das urgências sanitárias, nos inspiramos pela noção de necropolítica (Mbembe, 2006) para problematizar as definições em torno da vida e da morte de populações. A partir desta ótica, analisamos as políticas governamentais de gestão da pandemia de COVID-19, destacando a sua generalidade e pouca atenção às desigualdades sociais que acentuam as possibilidades de morte durante a crise sanitária. Ao situar as precárias condições sociais das pessoas em situação de rua e sua relação com o contexto pandêmico, utilizamos a noção de “evento crônico agudizado”, de Paul Farmer (2012), para destacar a necessária relação entre urgências e permanências para o enfrentamento da pandemia, que acentuou vulnerabilidades e violências já presentes nas condições de vida da população de rua.

Na tentativa de “descolonizar” a pandemia, indo além das perspectivas “vírus-centradas”, apontamos não apenas tais produções de exclusão, mas também das resistências que acompanharam a vivência da pandemia junto à população de rua, descrevendo um conjunto de mobilizações sociais de uma rede heterogênea de ativistas, pesquisadores, trabalhadores sociais da área, a qual buscava enfrentar as vulnerabilidades sociais e políticas da população de rua face à pandemia. Atentando para as experiências de mobilização que se contrapõem às políticas estatais de gestão da pandemia, salientamos a importância das formas de inscrição da violência política dirigidas à população de rua, realizadas a partir da denúncia do coletivo em relação à falta de equipamento de proteção e diminuição das vagas em abrigos e albergues. Também, destacamos os esforços de divulgação de editais para mobilização da sociedade civil organizada, que se colocam como alternativas de ações que se contrapõem às políticas estatais vigentes, bem como a análise das infraestruturas materiais e das experiências dos agentes com relação à base procedimental em que programas e políticas de atendimento funcionam para produzir exclusões que idealmente visam mitigar.

Na tentativa de seu enfrentamento, notamos que a rede se realizou a partir de modos de ação diversificados, concomitantemente demandando direitos e promovendo práticas associadas à caridade e à filantropia. Trabalhando a partir de sua ambiguidade constitutiva, histórica nessa área de intervenção, destacamos que a pandemia parece funcionar tanto como um evento que acentua dinâmicas humanitárias, quanto age para renovar ativismos que colocam em xeque as estruturas desiguais de existência e a violência estatal frente à população de rua. Se a gramática da urgência da ação provocada pela pandemia trabalhou para incentivar a mobilização do coletivo, simultaneamente a efetivação das ações possibilitou compreender a indissociável relação entre a permanência da desigualdade social e a configuração da situação de rua, rompendo com a visão comum que a toma como um problema individual causado por vícios ou por certos rompimentos de vínculos sociais.

Na interseção entre processos de exclusão e maneiras emergentes de resistência política, concluímos que os esforços de inscrição política das formas desiguais de gerenciamento da vida face à pandemia de COVID-19 podem contribuir para a descolonização das formas de saber biomédico frequentemente associadas a uma imagem “vírus-centrada” da pandemia. Ao mesmo tempo, evidenciam possibilidades de criar, contra todas as hipóteses, aberturas e brechas em formas analíticas que tomam a pandemia como um evento homogêneo e totalizante.

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1O grupo de Whatsapp é formado atualmente por cerca de 40 participantes, de diversos posicionamentos no campo de atenção à população de rua em Porto Alegre. Para fins deste artigo, não nos deteremos na especificação de cada sujeito ou associação que compõe o grupo, bastante diverso, em função de estarmos privilegiando analiticamente a sua força de resistência política frente às ações generalistas das políticas públicas, denunciadas pelo coletivo. Para preservar o anonimato dos sujeitos participantes, todos os nomes de instituições, sujeitos e localidades da cidade de Porto Alegre citadas foram modificados. Entretanto, todas as citações aqui colocadas foram individualmente autorizadas pelos sujeitos que as escreveram para o grupo.

2Como Schuch, Víctora e Siqueira (2020) apontaram, a associação entre maior idade cronológica e risco é um dos efeitos da ênfase biomédica que têm privilegiado a noção de um corpo orgânico sujeito ao risco de infecção por um vírus.

3Outros pesquisadores também têm se inspirado neste conceito de Farmer (2012) para refletir sobre a pandemia da COVID-19, entre os quais Biehl (2021) e Joseph e Neiburg (2020).

4Fundamentalmente, segundo o Boletim do CEPEDISA e Conectas (2021), a estratégia federal compôs-se dos seguintes eixos: a) propaganda contra a saúde pública; b) combate às propostas de determinados prefeitos e governadores que buscam conter a propagação do vírus; c) atuação normativa (decretos que ampliam as definições de “serviços essenciais” para uma ampla gama de atividades durante a pandemia e vetos às leis que visam conter a disseminação do vírus – como uso de máscaras).

6O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) foi criado a partir do Massacre da Sé em 2004, quando sete pessoas foram brutalmente assassinadas e seis ficaram com sequelas irreversíveis, apenas porque estavam dormindo em frente à Igreja na Praça da Sé, no centro de São Paulo.

8Notícia repassada ao coletivo, disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/ oscs-podem-se-inscrever-para-edicao-emergencial-do-programa-comunidade-presente/

9No Brasil, o termo popular “quentinhas” é utilizado para denominar refeições embaladas em papel alumínio. Também são conhecidas popularmente como “marmitas”.

10No Brasil, os “saquinhos de Cosme e Damião” referem-se a sacos de papel cheios de guloseimas como balas, pirulitos e bananadas. Tais “saquinhos de Cosme e Damião” têm origem no sincretismo religioso, pois são distribuídos na comemoração do dia de São Cosme e São Damião, data em que tanto católicos, como os religiosos do candomblé e da umbanda distribuem doces e brinquedos às crianças nas ruas, para marcar a festividade.

Recibido: 22 de Marzo de 2021; Aprobado: 23 de Julio de 2021