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Avá

versão On-line ISSN 1851-1694

Avá  no.37 Posadas dez. 2020  Epub 23-Jul-2020

 

DOSSIER

ONTOLOGÍAS ESTÉTICAS: A REPRESENTAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE OS SERES DO MUNDO

Yago Quiñones Triana1  2 

1Universidade de Brasília

2Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

O presente artigo discute o tema antropológico das ontologias a partir de um enfoque especifico de tipo estético. Exploram-se o nascimento e consolidação do modelo ocidental de figuração baseado na perspectiva (frame ocidental) e seus condicionamentos nas formas de interpretar expressões artísticas de outros contextos. A partir daí aborda-se a configuração das demais ontologias identificadas pela antropologia no plano estético, com especial ênfase na expressão artística de uma particular cultura ameríndia e, finalmente, se propõe uma ulterior distinção ontológica não considerada até agora pela disciplina antropológica.

Abstract

This article discusses the problem of ontologies within anthropology from an aesthetic approach. It considers the birth and consolidation of the western model of figuration based on perspective (western frame) and how this model has conditioned the way we interpret artistic expressions from other contexts. The article then discusses the configuration of other ontologies identified by anthropology on the aesthetic level, emphasizing the artistic expression of a particular Amerindian culture. Lastly, this essay proposes an ontological distinction not previously considered by anthropology.

Keywords Ontologies; Perspectivism; Amerindian art; Aesthetic ontologies

INTRODUÇÃO

A partir dos últimos anos a reflexão e o debate antropológico têm se enriquecido fortemente com certas discussões de fundo que levam a falar de uma renovação no paradigma conceitual deste campo de saber.[1] Estes empenhos têm levado a consolidar uma corrente teórica e de pesquisa relativamente definida, ainda que impulsada por diversos autores e com notáveis nuances de visão e interpretação, que se identifica como abordagem ontológica (Descola, 2005) ou perspectivismo (Viveiros de Castro et al, 2003)[2] no caso do enfoque específico que interpreta alguns povos ameríndios de Sul América. Neste trabalho nos apoiaremos basicamente nos aportes teórico de Philippe Descola e especificamente na sua proposta ontológica, a qual reconhece quatro tipos diferentes de “ontologias”: naturalismo, totemismo, analogismo e animismo. Este último muitas vezes é considerado como a manifestação do que, no campo específico da etnografia ameríndia das terras baixas sul-americanas, tem se entendido como perspectivismo, ainda que eles não coincidam em vários aspectos (Descola, 2005). Já na área específica da arte indígena, a partir de reflexões que permitem problematizar de forma ampla o ato de figuração, o olhar, a agencia e a alteridade para além dos limites geográficos sul-americanos, a referencia básica usada será o valioso aporte de Els Lagrou.

Fortemente inspirado pelos materiais etnográficos das sociedades ameríndias das terras baixas (Descola, 2005) e, claro, pelas analises que sobre eles têm sido propostas, este movimento teórico tem levado a avançar conclusões que rediscutem esferas essenciais do pensamento antropológico, e inclusive humano em geral, como é a dicotomia axiomática entre natureza e cultura ou a distinção essencial (ontológica) entre humanos e outros seres. Onde o termo essencial, neste sentido específico, não se faz referência a algum tipo de essencialismo, mas a um tipo de identificação identitária que não depende da exterioridade, da aparência, mas de traços não evidentes, que se expressam na interioridade e, portanto, de certa forma essenciais. Consideramos aqui como ontologias os vários sistemas, devidamente identificados pela antropologia, de classificação, distinção e identificação dos seres (humanos e não-humanos), a partir dos modos de entender as relações entre interioridade e exterioridade, e entre a fisicidade e a essência dos viventes (Descola, 2005).

Neste contexto conceitual, se propõe então a seguir fazer um recorte e dedicar uma especial atenção aos desenvolvimentos no campo estético dos paradigmas de compreensão e vivencia da realidade, definidos pelas diversas configurações ontológicas. Isto é, onde se manifesta uma determinada ontologia, segundo os vários tipos que veremos, as ideias sobre a essência dos seres e os modos de identificação e distinção interespecífica, trazem condicionamentos sobre a forma como se compreende a interioridade e a exterioridade dos elementos do real num sentido bem amplo (Descola, 2010a; 2010b). Não é difícil assumir que a forma em que entendemos e justificamos a divisão tipológica entre os seres e as lógicas de distinção entre eles, influi de forma decisiva nos processos e ferramentas que interveem na representação formal da realidade, na expressão estética dos diferentes grupos humanos (Lagrou, 2007; Severi e Lagrou, 2013).

A manifestação mais comum do fenômeno anterior se dá na configuração clássica dos protocolos de representação ocidentais, onde à rigidez do mundo exterior, da percepção, corresponde à unidade material e física de todos os seres, e contrasta com a essência interna e imaterial do ser humano, que o distinguiria dos demais elementos viventes e formais. Esta visão objetivante do entorno natural, este particular naturalismo, tem marcado evidentemente as formas de figurar o perceptível (Descola, 2005) e, de forma coerente, tem encontrado na técnica de base cientifica da perspectiva pictórica, um insumo decisivo para reforçar a concepção de uma realidade perceptiva externa ao ser (Panofsky, 2003). Isto é, passível de ser representada formalmente por meio da figuração estética objetiva e que acaba, em teoria, por recortar um quadricula, um frame, neste mundo (Belting, 2012). Com outras palavras, acaba levando para um suporte material uma fração do entorno experiencial.

Porém, um enfoque que contempla os condicionamentos ontológicos no plano da figuração estética permite, a partir da reflexão antropológica, observar o caráter histórico e não-universal desta proposta. O que nos levará no curso do texto a resenhar as repercussões, no universo representacional, das alterações que sugerem as características das diferentes ontologias identificadas no campo antropológico recente. Já que, em alguns contextos não ocidentais, a fluidez das formas físicas naturais não mais define fronteiras entre as espécies e a identificação não está mais baseada numa essência interna e etérea (Lagrou, 2013). Como veremos, estas outras configurações ontológicas levam a cânones de representação diferenciados e que revelam o caráter situado do frame ocidental.

Finalmente se propõe introduzir uma ulterior ontologia que, até o momento, não teria sido considerada no conjunto da reflexão especializada sobre o tema. Trata-se da forma de figuração surgida de pensamento matemático do mundo árabe, relativamente contemporâneo ao surgimento da perspectiva renascentista e que demonstra a possibilidade de representação de elementos e formas totalmente reais, mas que surgem de uma visão aniconica do trabalho estético (Belting, 2012). O que coloca em discussão a pretensão de reduzir o representável ao visível, e onde os processos matemáticos podem ser representados tendo o mundo como modelo e fonte, mas de forma teórica e não visual (Belting, 2012).

FRAME OCIDENTAL

Ao redor do ano 1400, após um longo trabalho de aperfeiçoamento, Filippo Brunelleschi botava em prática na Piazza del Duomo em Florença, Italia, um artefato que daria pé ao mito fundacional da perspectiva renascentista (Damisch, 2007). Com ele, este artesão, mistura de técnico e artista, dava as bases para uma nova forma de representação através das imagens que é ainda hoje relativamente dominante em Ocidente. Tratava-se de um experimento com uma técnica capaz de ajudar o artista a colocar os objetos no seu lugar, isto é, assim como eles são percebidos no mundo real. Desta forma se aperfeiçoava, dando-lhe um caráter objetivo, o projeto de fazer das pinturas uma espécie de janela aberta à realidade. Com o uso desta técnica davam-se contornos definidos ao quadro da janela que se pretendia oferecer ao espectador, o artista adquiria um ponto de observação único, fixo e privilegiado (Panofsky, 2003). O seu olhar era domesticado para se adaptar ao universo perceptível através duma prática concreta que definia uma serie de postulados com a intenção explicita de gerar um tipo específico de representação. Tratava-se de um frame dentro do qual funcionavam algumas regras que permitiam a compreensão do que ali está sendo representado.

A nossa exposição ao regime visual que traz implícita a arte figurativa ocidental, inclusive para o frequentador leigo dos museus não especialista em arte, se reflete numa familiaridade com uma certa gramatica da representação. Dentro desta gramatica o frame representa um axioma fundante. Ele demarca claramente, e de forma indubitável, a linha divisória entre a representação artística e o resto do real. Dentro da área demarcada estão em vigor certos parâmetros funcionais à interpretação do conteúdo, os quais são sugeridos pelo mesmo frame. Isto é, o frame oferece uma mensagem de tipo meta comunicativa (Bateson, 2000), nos fala sobre a mensagem que está dentro do quadro e nos dá as indicações sobre as regras do jogo. Aliás, a metáfora do jogo é amplamente explícita e oferece uma exemplificação esclarecedora para fixar este ponto. Durante o jogo, inclusive entre animais não humanos, há uma serie comportamentos que funcionam como sinais que denotam mensagens compreensíveis somente dentro do contexto do jogo. Uma dentada não é interpretada como uma agressão, mas como uma agressão dentro do jogo, dentro do frame do jogo, trata-se de uma mensagem metalinguística (Bateson, 2000).

É claro, antes de Brunelleschi e a consolidação da perspectiva renascentista, também havia uma área de representação na pintura que era delimitada por um quadrilátero físico, a tela, e simbólico, as pautas necessárias para abstrair a representação ali incluída do resto da realidade. Mas é com o desenvolvimento da pintura pós-Brunelleschi que estas caraterísticas adquirem um caráter ontológico denotativo altamente determinante. A perspectiva vira uma “técnica cultural” que não concerne só aos artistas, mas justifica a forma como é capturado o mundo e simboliza uma forma de pensa-lo também (Belting, 2012). Dentro da pintura, entendida a partir do conceito de frame, opera uma lógica similar que nós acabamos por naturalizar. Nos quadros figurativos, antes da revolução iconoclasta das vanguardas abstratas do século XX, temos de forma geral uma figura representada identificável que habita num fundo que é diferenciado do real pelo enquadre, pelos limites da tela. Este fundo é um campo visual que antes de Brunelleschi era representado com uma cor uniforme padronizada azul. É ele precisamente quem introduz o uso de uma superfície refletiva para figurar o céu por trás do batistério (Damisch, 2007), trata-se não somente de um recurso técnico que aponta ao realismo. É também, e muito mais relevante, o reconhecimento estético do fundo da pintura como um espaço com profundidade, não mais uma cor plana. As figuras não estão mais como coladas na superfície do quadro, mas habitam um espaço, o qual extraí suas caraterísticas de profundidade da realidade, já que o objetivo é olhar para ela como desde uma janela, então a figuração é subordinada à realidade perceptível como modelo da representação.

Este frame, com suas regras, seu inner discourse (Gonçalves, 2012), tem se considerado por muito tempo como único e objetivo. Porém, suas bases são passíveis de reconstrução histórica, visando desmontar o seu suposto caráter universal. Neste texto, pretendemos explorar a desmontagem do frame renascentista a partir dum olhar antropológico, o qual é capaz de pôr em discussão não somente o quadro próprio do frame, mas os paradigmas que estão por trás do mesmo mecanismo de representação posto em prática. Empenho este que não é absolutamente inédito ou original e, pelo contrário, se remonta a autores que têm abordado o tema com dedicação e competência (Belting, 2012; Descola, 2010a; 2010b; Lagrou, 2013; Severi e Lagrou, 2013).

INTERIORIDADE E EXTERIORIDADE

A primeira vista o experimento de Brunelleschi, seu brinquedo pseudocientífico, trouxe uma inovação na forma como se pensava o espaço de representação, isto é, a forma de plasmar no suporte físico o mundo que serve como modelo no empenho artístico: “A perspectiva artística quis fazer da percepção a regra da representação” (Belting, 2012: 8). O reconhecimento de uma grande transformação do modelo representativo, do regime de representação no Ocidente, com a consolidação da perspectiva renascentista obriga, sob um olhar histórico, a fazer uma arqueologia dos parâmetros que, no âmbito deste processo, foram superados e, rapidamente, considerados como arcaicos e atrasados. Baste pensar a certos exemplos de arte religiosa medieval, onde se aplicava uma perspectiva teológica ou hierárquica, que admitia uma relação direita entre a importância dos personagens representados e as suas dimensões na tela. Tratava-se de uma representação muito afastada dos resultados obtidos após a janela “brunelleschiana”, porém, embora vejamos diferencias importantes, há por trás uma continuidade fundamental na arte europeia na relação básica entre interioridade e exterioridade (Descola, 2010a). Isto é, permanece intacto o pressuposto de haver um mundo exterior ao ser humano, passível de ser representado, ação para a qual entra em campo um espirito, uma alma sede da sensibilidade, interna ao ser humano - neste caso o artista - capaz de realizar dita representação, que não é outra coisa senão a expressão perceptível de dito espirito. A criação da imagem habita neste interstício, nascendo sob uma forma virtual (eidolon) ao interior do agente que a faz possível e expressando-se de uma forma concreta (kolossos) (Belting, 2007). Compreende-se que o mediador neste processo é o sujeito capaz, a través da sua corporeidade, de estabelecer uma ponte entre o universo externo e interno (Belting, 2007).

Dito processo, apoiado nesta tríade básica, é anterior a Brunelleschi e data da idade clássica. A mudança que traz a perspectiva linear do ‘400 é a pretensão de objetivar o modelo a partir do qual se cristaliza a imagem. Se antes ela morava de forma etérea no artista, na sua imaginação, ainda que considerando a realidade como matriz e modelo, já que não se trata de arte abstrata, após Brunelleschi se pretende que o modelo esteja fortemente ancorado à realidade. Todo o cenário deve ser fiel à realidade, isto é, ao que pode-se ver com os olhos, ao que qualquer sujeito pode ver. O trabalho do artista, seu talento ou habilidade, não se vem afetados com a possibilidade de possuir uma técnica que facilita a imitação da realidade, ele pelo contrário ganha uma nova dimensão de representação, ganha uma nova tarefa: a de figurar o invisível. Se tudo o visível está no espaço, e pode ser representado de forma técnica e padronizada, a faceta artística, interna e sensível do artista, permanece na função de conseguir representar o que não todos podem ver, ele consegue ver e passar na tela a alma das figuras representadas. Eis a chave de toda a arte religiosa que domina a Renascença. Quando não se tratava da divindade eram os conceitos clássicos, como o de equilíbrio ou a harmonia das formas, os que buscavam serem fixados na imagem produzida.

A consolidação do frame renascentista não somente superou as representações anteriores, planas, incapazes de propor a janela objetiva sobre o mundo. Mas, ao instaurar um régime de representação hegemónico, dificultou, até hoje, a compreensão de outros regimes de visão paralelos, portadores de uma relação entre a exterioridade e a interioridade baseada num estatuto ontológico totalmente diferenciado. Inclusive algumas correntes artísticas que podem intuitivamente parecer como uma quebra no paradigma da arte ocidental nas épocas contestatárias vanguardistas, não seriam mais do que uma ulterior e sofisticada fase deste projeto de representação fiel da exterioridade. Assim, o impressionismo por exemplo não seria a irrupção do subjetivismo na figuração da realidade, mas uma forma ainda mais fiel de fixar na tela a impressão da imagem retiniana percebida, restando importância à interpretação para passar a sensação física intersubjetiva dos efeitos da luz na nossa apreensão do entorno visual (Descola, 2010b). Desta forma, obras como as impressionistas que podem parecer num primeiro momento como dissidentes do frame ocidental, na verdade atuam na acentuação, poética sim, dum projeto de figuração da exterioridade por meio das capacidades plásticas que residem na interioridade do artista.

NATURALISMO

A celebre e celebrada experiência de Brunelleschi representa então um ponto de chegada dum regime de representação próprio do Ocidente num determinado período histórico, e que podemos identificar, seguindo os termos da reflexão antropológica sobre as ontologias, como naturalismo (Descola, 2010a; 2010b). Isto é, no âmbito da relação entre as interioridades e exterioridades dos seres, temos uma serie de princípios de identificação que sustentam recursos cosmológicos, modelos de laços sociais e teorias de identidade e alteridade que conformam diferentes tipos de ontologias (Descola, 2005). Dentro da abordagem ontológica, mas especificamente no plano estético, na figuração comum, à que estamos habituados, as imagens mostradas permitem a interpretação a partir do que é visível diretamente no espaço de representação, baseados na configuração de qualidades detectadas nos objetos do mundo. É o naturalismo, a crença no ser humano como única entidade a possuir uma interioridade diferenciada, em contraposição ao mundo sensível qual apresenta uma serie de propriedades objetivas comuns a todos os seres, e que pode ser representado a partir de uma distribuição racional dentro dum espaço homogêneo (Descola, 2010a). É neste espaço que é possível propor uma quadricula capaz de localizar e enraizar, sem alguma dúvida, sem alguma intervenção da subjetividade, o lugar certo de cada objeto. Com o procedimento técnico desenvolvido na Renascença conseguia-se uma construção abstrata, de tipo matemático, que relacionava de forma estrita e objetiva os elementos do representado, assim “os corpos e os intervalos constituídos pelo espaço vazio achavam-se sob as mesmas leis” (Panofsky, 2003: 46). Trata-se de um mecanismo, automático quase, capaz de propiciar uma relação controlada e repetível, através de um processo padronizado entre o modelo, o mundo sensível e externo, e o trabalho do artista, possuidor da interioridade pronta a se expressar.

A objetivação da exterioridade e o seu controle por meio da submissão a um quadricula homogênea inclui também a própria corporeidade do artista, do sujeito por meio do qual é possível criar a imagem. Isto é, o médium sensível capaz de captar a realidade e propor um correlato sensorial e duradouro baseado no seu olhar. Embora seja claro que a visão humana é móvel e dupla, a partir dum par de olhos que permitem perceber a profundidade, a perspectiva renascentista cria a ficção de um olhar fixo, único, imóvel, a partir do qual se constrói um espaço que tende a se estender de forma uniforme e infinita (Panofsky, 2003). Esta concepção da função perceptiva do ser humano faz parte da domesticação da exterioridade - neste caso o próprio corpo do artista - visando rende-lo mais dúctil à função de transposição técnica num suporte concreto. A transformação que traz a perspectiva lineal ou matemática, como foi conhecida naquele momento, é tão simples quanto revolucionaria. Ela faz do olhar uma imagem (Belting, 2012). Assim, o mundo vira imagem, pois a pintura representa o olhar do espectador sob o mundo, transformando-o então numa visão deste (Belting, 2012). É na verdade uma transformação que marcaria o caráter diferencial da arte ocidental. A transposição do mundo perceptível que surge do olhar humano em uma figuração exterior concreta (a imagem), não é um processo natural, e mais ainda, aquele produto não é a imagem per se, mas um tipo de imagem produzida. Trata-se de um condicionamento sob a nossa concepção de imagem que não pode não ter consequências paradigmáticas. Eis talvez o motivo da dificuldade do Ocidente para aceitar outras matrizes como produtoras de uma arte tão valiosa quanto a própria.

No nível da representação temos então uma figuração homogênea do mundo exterior ao qual pertence também o corpo humano, e que se diferencia somente pela alma, a qual pode-se representar, de fato é um dos temas recorrentes da pintura europeia. A arte do norte da Europa (Flandes) no século XV, é uma demonstração desse tipo de figuração, com ênfase na ideia de uma janela a través da qual é possível ver o mundo representado de forma realista (Descola, 2010a). Quando há figuras humanas, esta arte visa a expressar a sua unicidade, não um conceito, uma ideia, uma categoria ou um status, mas uma personagem com todas as suas singularidades, trata-se de um movimento de individuação (Descola, 2010a). Muito diferente do que acontecia no mundo clássico, onde a figurações humanas eram de tipo icônico e seguiam mais um modelo de figura do que um intento de representação realista. Do lado da representação individualizada dos seres humanos, temos no norte da Europa também o desenvolvimento da técnica da paisagem. Com a representação dos personagens e da paisagem de forma realista, as bordas do quadro acabam por serem o recorte na profusão do visível. “É o mundo naturalista, no qual reina o espaço homogêneo e infinito da res extensa.” (Descola, 2010a:87). Este espaço representado na perspectiva matemática não existe a nível sensitivo, pois ele não coincide sequer com o espaço retiniano, condicionado pela curvatura do olho (Panofsky, 2003). É por isso que a perspectiva pode ser considerada como uma forma simbólica, ela é um símbolo da mirada ao invés de um aparato da percepção (Belting, 2012). O observador que deve entrar em ação para produzir uma imagem deste tipo é uma metáfora do olhar humano que a arte da Renascença queria criar. É uma função na pratica de produção da imagem: possui capacidade estereoscópica, que pressupõe dois olhos, para perceber a profundidade, mas com um único ponto fixo de observação alinhado com o horizonte a partir da geometria. Além disso, é insensível à deformação das linhas retas fruto da curvatura da superfície sensível do olho (Panofsky, 2003). Este observador artificial fazia possível a figuração e dava sentido às figuras representadas em relação a ele como ponto fixo e central. Era expressão nas artes do antropocentrismo da época se libertando do teocentrismo medieval (Belting, 2012). Em outras palavras, um impossível fisiológico na perfeição visual ideal da representação. A perspectiva da Renascença constrói um mundo baseado numa espacialidade que responde a um olhar simbólico, um mundo coerente com uma ideia abstrata geométrica de homogeneidade matemática.

Toda esta série de parâmetros que foram-se ensamblando para constituir uma específica forma de representação e um determinado regime visual que podemos compreender e fixar sob a categoria naturalismo, não representam somente uma determinada disposição que tem consequências estéticas. Trata-se, pelo contrário, de um processo de corte ontológico, embora suas consequências mais explícitas sejam estéticas e tenham sido plasmadas num determinado tipo de figuração, por isso mesmo interpretado muito frequentemente a partir de categorias estéticas. Porém, o que produz o naturalismo é precisamente a consolidação de uma figuração que traz em si uma particular compreensão do que é gerado em termos ontológicos a partir desta representação que acabou sendo considerada como a arte per se. Isto é, a arte como uma forma de figuração específica, uma espécie de metonímia onde a parte justifica, dá forma e legitima o tudo. Temos então que em contextos onde se vive uma relação diferenciada em relação às imagens produzidas, é possível identificar outras disposições na relação exterioridade - interioridade e a forma como estes polos dialogam na hora da criação estética. Trata-se de regimes visuais diferenciados ao nível ontológico e que trabalham com outra ideia de modelo a representar e inclusive da própria ação de representar. Assim, são colocados em discussão não somente as formas de figuração, mas o status ontológico da imagem mesma como a conhecemos a partir do naturalismo.

OUTRAS ONTOLOGIAS

Para explorar esses outros universos figurativos é a antropologia o campo disciplinar que aporta ferramentas adequadas para lê-los e tentar compreende-los. Para elucidar e eventualmente tentar a desmontagem do frame forjado a partir da perspectiva renascentista, é necessário então olhar para outras artes. Mas precisa-se de um olhar com um enfoque bem determinado, já que não se trata simplesmente de estudar as expressões estéticas não-ocidentais como se fossem arte (Gell, 2009). A importância que teve que ser reconhecida às obras de certos povos africanos quando elas prorromperam na idade das vanguardas artísticas do século XX, fez com que se concedesse a estas um certo status de arte, o que levo a fazer análises de tipo estético. Porém, dito análise corre o risco de aplicar a estas obras uma teoria estética que assemelha muito a uma teoria da arte exclusivamente ocidental: o que ela no fundo é (Gell, 2009). Se visamos desenvolver um analise antropológico da representação formal que não se reduza à aplicação de teorias estéticas às expressões artísticas não ocidentais, então é necessário considerar não somente o caráter estético de outros povos, a sua ideia de belo, mas também o regime visual que estas sustentam. Já que o regime visual ocidental foi fortemente influenciado pelo frame consolidado a partir do ‘400, teríamos que considerar outros eventuais frames não condicionados por esse processo histórico. Da mesma forma, reconhecer também que este dispositivo de enquadramento possui uma capacidade de determinação que vai além da expressão figurativa e que, pelo contrário, carrega um poder de enunciação de tipo ontológico que às vezes não é fácil perceber. Um estudo da figuração que possa se dizer antropológico não deveria então se limitar a preencher um vazio na disciplina, mas também oferecer as bases teóricas para ver as artes dos povos estudados a partir de um enfoque que inclua, não somente o fato estético, mas também o recorte ontológico que está por trás destas expressões.

Sendo assim, temos que a produção artística em geral nasce de um diálogo condicionado com as formas que nós percebemos e imaginamos, e que podem-se compreender a partir da relação interioridade e exterioridade assinalada acima. Ditas formas não são objetivamente dadas, pelo contrário, elas dependem do discernimento que fazemos do fluxo continuo do real. Um discernimento que depende das qualidades que nós assignamos às figuras que percebemos em nosso entorno ou às imagens que surgem em nosso interior, qualidades que juntas formam sistemas que podem ser chamados de ontologias (Descola, 2010a). Para um olhar antropológico esses sistemas não são subjetivos e indeterminados, muito pelo contrário, os recursos etnográficos permitem-nos estabelecer algumas ontologias básicas a partir das quais tentar propor uma grelha de análise para a produção artística. Estabelecendo assim um ponto de partida que se encontra na mesma realidade imagética das sociedades, e não numa concepção da arte baseada num viés estético influenciado pelo frame específico do Ocidente. Embora que falar em ontologias diferentes pressupõe diferencias básicas no plano amplo da visão e interpretação da realidade, vamo-nos centrar nas suas consequências no ato da figuração. Especificamente, no nascimento da imagem a partir binomio interioridade - exterioridade, e na ideia de modelo de representação que entra em jogo no trabalho que podemos chamar de artístico.

Vejamos então essas ontologias que seguem patrões fora do frame específico ocidental que tentamos discutir até aqui. Na figuração no âmbito do totemismo por exemplo há uma relação com o espaço muito particular. Embora que nestas expressões gráficas vejamos uma tensão cartográfica de figuração, de lugares e pontos que tem uma significação forte no percurso fundacional dos seres do tempo do Sonho, não há uma ideia do espaço como sendo homogêneo, não se trata de uma paisagem, mas da figuração de trajetos de morfogênese (Descola, 2010a). Por meio de recursos figurativos que variam, aquilo que é representado se matêm constante dentro desta ontologia: o ancestral fundador do clã e o seu percurso mítico pelo território que gera marcas, pegadas indeléveis, atemporais (Descola, 2010b). Não se trata simplesmente da representação, mais ou menos figurativa, do animal totêmico. Temos a evocação através de diversas técnicas e com resultados estéticos variados, do itinerário do ser primordial de cada clã, o qual traz toda uma serie de vínculos com o território e com os outros membros do grupo, humanos e não-humanos. Sendo a ligação com o Ser fundador uma herança que se deve renovar e reafirmar a cada geração, numa espécie comunhão transespecífica que consolida os vínculos comuns que estruturam a identidade do clã. Este tipo de expressões artísticas participa de tais processos e o totemismo como ontologia específica dialoga com as práticas estéticas. A figuração, dentro desta ontologia, concentra-se no ato de mostrar a identidade essencial e material dos membros humanos e não-humanos pertencentes a uma classe totêmica. Na qual todos compartilham o mesmo protótipo originário que lhes confere princípios de individualização e uma identidade física, pois são feitos da mesma matéria (Descola, 2010a). Assim, nesta arte, o que é possível ver é o registro dos indícios provenientes do tempo do Sonho, no qual se dá a gênese ontológica de uma filiação, indícios que se concentram numa narração de caráter cartográfico.

Figura 1 Canguru totêmico ancestral. Alligator River, Arnhem Land. Noni, Australia. 

Já na ontologia analógica, o que se tenta figurar é a rede de correspondências existentes no mundo. Assim, no ato de desenhar uma paisagem, pode-se figurar a presença do ser humano, inclusive se não há uma figura humana nele, porque a ontologia analógica é capaz de perceber as ligações que há no mundo e que incluem aos seres humanos (Descola, 2010b). É capaz de figurar numa pequena imagem o cosmos todo, a intenção é a de criar um microcosmos, onde as relações fundamentais do mundo e as suas caraterísticas básicas são sugeridas, são registradas criando redes espaciais ou temporais que permitem o diálogo entre algumas propriedades do universo e certas qualidades humanas (Descola, 2010b). No analogismo, presente em várias culturas localizadas nos cinco continentes e por meio de técnicas estéticas ricas e diferentes, a arte revela a rede de relações significativas que vincula elementos diversos no cosmos num sistema coerente (Descola, 2010b). A imagem revela os princípios ontológicos e funcionais que ordenam o mundo, desvenda uma série de correspondências nas coisas do mundo que permitem que este não seja um caos. Isto é, a corrente analógica que explica o universo oferecendo a ilusão da continuidade lá onde reina a ditadura do discreto (Descola, 2010a). E não se trata, como poder-se-ia supor, de uma simples escolha estética. Pelo contrário, esta arte deriva de uma leitura do mundo que consegue ver nele uma serie de causalidades transitivas que o explicam e se concentram numa visão ontológica que é possível figurar.

Movido por traços ontológicos diferentes, o animismo produz uma arte preocupada em fazer perceptível o rasgo de subjetividade, ou de humanidade, comum a seres com aparências externas diferentes. (Descola, 2010b). Busca-se mostrar a subjetividade, associada com traços humanos, nas espécies não-humanas, a intencionalidade associada com o humano que faz possível uma vida social nestes seres. Por trás de uma exterioridade objetiva diferente, interpretada como uma envoltura dispensável, há uma interioridade comum que se expressa figurativamente geralmente por meio de elementos antropomórficos (Descola, 2010a). No animismo a arte registra então o mundo dinâmico da transformação, da viagem interespecífica propiciada pelos rituais xamânicos (Viveiros de Castro, 1996). A figuração não está numa imitação de alguma realidade perceptível ou metafísica, mas na cristalização do nexo entre seres que convivem num espaço marcado pelos sinais reconhecíveis deste vínculo interno, animista. Em algumas pinturas corporais da Amazônia, por exemplo, o modelo não está na imitação de alguma figura ou forma natural, mas na ornamentação que os animais adotam para se apresentar a seus congêneres. Não se trata de um processo de mimese estética, mas de diálogo heráldico com os seres que se vem diferentes, mas possuem sinais de reconhecimento accessíveis por meio de algumas práticas específicas (Lagrou, 2007).

ONTOLOGIA AMERINDIA

É no campo da etnografia ameríndia das terras baixas sul-americanas que encontramos reflexões mais aprofundadas sobre os desdobramentos da interação dos postulados ontológicos com as formas de figuração com eles associadas. No esquema que temos tratado até aqui, estas expressões entrariam dentro do animismo mas, vista a grande e rica quantidade de reflexões antropológicas em campo, seja no campo estético ou de forma teórica mais ampla com a corrente do perspectivismo, vale a pena lhe dedicar um breve apartado próprio. Num contexto em que as formas não são consideradas como dadas ou fixas, é na fluidez do perceptível onde reside a agencia humana (Lagrou, 2007). Trata-se de um ambiente ontológico em que a intercambiabilidade das formas revela transações exteriores entre seres que compartilham um substrato essencial comum. O que leva o campo da produção estética a ocupar o mais alto nível de dialogo ontológico com os elementos que definem quem (ou que) é ou não é num determinado momento. Isto é, a produção das formas, o empenho estético, tem um impacto direito no plano ontológico, já que o aspecto dos corpos e sua transformação tem implicações no estatuto variável do ser que as protagoniza (Lagrou, 2007). Especificamente, os materiais etnográficos mostram como exterioridade e interioridade não são necessariamente coincidentes, e delineiam uma relação em que a figuração, genericamente associada com o perceptível, age no campo essencial do ser, que é comumente relacionado com o imperceptível (Lagrou, 2013). Este trabalho estético se dá principalmente sobre os corpos, mas também sobre objetos, o que abre interessantes implicações sobre o tema do suporte e da área do visível dentro de um frame totalmente desenquadrado. Para ilustrar este contexto etnográfico tomaremos como base algumas reflexões sobre a arte ameríndia sul-americana, especialmente os materiais sobre a cultura kaxinawa (Lagrou, 2007). Já que, ainda reconhecendo a variedade das expressões das terras baixas, este povo pode ser considerado como um representante fidedigno da ontologia, o animismo, que se pretende aqui resenhar desde um enfoque estético.

Neste contexto, o trabalho estético, especificamente aquele associado com os grafismos, se enquadra em ambientes rituais que visam basicamente à transformação dos corpos como um processo exterior e paralelo que acompanha a variabilidade ontológica dos seres. Estes desenhos acompanham a transformação corporal incentivada ritualmente e revelam o caráter culturalmente fabricado dos corpos (Lagrou, 2007; 2013). Assim, os desenhos nos corpos - em processo de fabricação - das crianças kaxinawa aumentam sua permeabilidade para que possam receber a intervenção necessária para se fazer pessoas (Lagrou, 2013). Isto é, para se fazer gente, já que os membros do grupo não possuem per se uma essência que os faz parte do coletivo, mas devem adquirir tais características que se expressam também externamente. Assim, nesta forma de arte indígena a noção de suporte se apresenta de forma totalmente particular com relação a sua expressão mais comum. A figuração não mais ocupa ou utiliza um suporte, delimitado física e simbolicamente pelo frame, mas participa da sua fabricação e transformação. Ele não é predefinido, mas vai se fazendo com o ato de figuração estética, a qual não se reduz então aos limites do suporte, mas o extravasa, concedendo inclusive maior importância ao que não é visível, a aquilo que é sugerido mais do que mostrado (Lagrou, 2007). Neste estilo de representação temos frequentemente uma interrupção sistemática do desenho que sugere que ele continua além do suporte. Os Kaxinawa valorizam esta independência do grafismo com relação ao suporte, colocando o motivo de modo oblíquo sobre o suporte, o que tem levado a sugerir que estes grafismos possam ser considerados como “janelas ao infinito” (Lagrou, 2013). Desta forma, é o sujeito do olhar quem cumpre a função ativa, agentiva, de completar a figuração a partir do que foi sugerido, dando assim relevância extrema ao invisível, ao que se encontra fora do frame, mas que faz parte da imagem representada.

Figura 2 Arte kaxinawa 

Este fenômeno da representação pode ser associado e compreendido a partir do conceito estético da quimera. Onde as fações de dois animais compartilham um corpo só uma única representação, sem constituir, porém, a representação de dois animais diferentes, é sim a testemunha de um ato do olhar. Enquanto traço material, a representação faz emergir um trabalho mental, isto é, uma série de operações mentais que se associam a um traço e dele fazem surgir uma parte invisível ou potencial (Severi, 2013). Esta estratégia de representação pode se chamar de quimérica e se caracteriza pela condensação da imagem em alguns traços essenciais. Uma quimera não representa seres, mas relações possíveis ou pensadas, entres seres. Aquilo que pode ser visto é considerado uma parte de outra forma, cuja presença é imputada e, eventualmente, representada (Severi, 2013). Trata-se então de um ato do olhar, onde se faz necessária a intervenção do sujeito observador na criação completa do sentido, o qual só é sugerido no plano visual. Na representação quimérica, o princípio mesmo da organização do espaço é o que orienta à percepção e à projeção. Isto é, o elo entre o visível e o invisível coincide com a definição mesma do espaço. O que caracteriza a representação quimérica é que remete, mediante uma indicação icônica fragmentaria, a uma presença representada por índices que só se torna imagem quando o olhar mobiliza o seu estilo cognitivo particular (Severi, 2013).

Esta capacidade de perceber os fragmentos não desenhados, depende de capacidades e habilidades culturalmente adquiridas. Quer dizer que há uma afinidade entre estilos de ver e estilos de pensar. A relação entre um estilo de pensar, de perceber e de mostrar no estilo formal da arte gráfica kaxinawa se evidencia na técnica, que consiste em ocultar sistematicamente a maior parte do que pode ser visto, assim, muitas formas latentes só se oferecem a serem vistas através dum engajamento ativo do olhar com a trama das linhas (Lagrou, 2013). A intercambiabilidade entre figura e fundo visa a desfazer a possibilidade de delimitar uma figura sobre um fundo. Assim, nestas formas particulares de figuração nativa existiria uma afinidade entre a inversão de figura e fundo e a percepção de uma simultaneidade dos mundos visíveis e invisíveis da realidade (Lagrou, 2013). Na representação quimérica, o que é dado como marco de percepção, ainda que sob a forma de um fundo, pode tornar-se princípio de interpretação projetiva, portanto forma. A quimera reflete um jogo de pressuposição reciproca entre percepção e projeção, elas se exercem apenas quando estabelecem uma complementaridade provisória, intercambiando seus papeis: forma e fundo, fragmento e totalidade, focalizado e periférico (Severi, 2013). O jogo estilístico produz um desequilíbrio entre simetria e assimetria que aponta para a simultaneidade de mundos visíveis e invisíveis, onde o olhar não se fixa numa figura delineada por um fundo, mas oscila entre a possibilidade de perceber uma figura simultaneamente com a outra, a contrafigura, capturando o olhar de quem contempla o desenho (Lagrou, 2013).

ONTOLOGIA GEOMÉTRICA

Revisamos, no apartado anterior, a expressão estética com implicações ontológicas a partir de materiais etnográficos das terras baixas sul-americanas, porém, parece relevante anotar que o caráter não universal e historicamente determinado do frame ocidental, não se faz evidente somente no paralelo com culturas que podemos associar com ontologias, em vários sentidos, afastadas dos processos iniciados na Europa da Renascença. A seguir, e para concluir, se propõe então a resenha de uma ulterior expressão não incluída nas anteriores nem, até agora, nas elaborações teóricas da antropologia sobre o assunto. Ela abre interessantes vias de reflexão, especialmente pela sua peculiaridade histórica. A partir de um enfoque sincrônico no período da consolidação do frame renascentista, é possível entrever talvez mais uma ontologia, concorrente cronologicamente com aquela predominante no Ocidente. E compreender como, no momento da formação da perspectiva lineal, o modelo de representação e de percepção, o conhecimento matemático - um dos seus pilares - estava fortemente influenciado pela cultura árabe, na qual a teoria visual estava baseada no conceito abstrato de luz, relegando num segundo plano a percepção humana como fonte das imagens. Se apoiando assim numa proposta aniconica, onde as imagens pertenciam ao plano interior, as imagens mentais, e a fixação do olhar num suporte externo, a imagem visual, não tinha sentido.

À obra Perspectiva do gênio matemático Alhazen, que tratava dos princípios básicos do comportamento da luz nos objetos, foi mudado seu título em Ocidente para Ótica quando seus aportes viraram uma das bases para a técnica da perspectiva lineal da Renascença, já que o livro não tinha alguma aplicação imagética (Belting, 2012). Tratava-se de um estúdio sobre os aspectos físicos que intervinham na visão e não sobre imagens, ou seja, fazia parte da disciplina que até aquele momento era conhecida como perspectiva, palavra que naquele momento passou a indicar uma específica forma de representação. Na cultura árabe da época o mundo que se forma como imagens para cada sujeito segue um fenômeno singular e interno que não é possível estudar de forma objetiva, o que contradiz todo o aparelho conceitual que suporta o projeto da perspectiva lineal. Se no mundo árabe daqueles anos a expressão em imagens não era uma prerrogativa, na Europa ocidental tratava-se de uma obsessão. Eis o interesse em compreender como foi que uma serie de princípios voltados a decifrar fenômenos físicos relativos à luz, puderam transmutar nas bases de uma técnica de representação da percepção humana das imagens que se pretendia realista. Neste caso é possível identificar o sesgo cultural que participou na consolidação do frame, já que o mesmo recurso técnico, os princípios óticos e geométricos árabes, foram aplicados de formas distintas segundo condicionamentos diferentes no Ocidente e no mundo árabe da mesma época.

A geometria matemática árabe não tinha alguma relação com a visão humana, a qual alias era uma capacidade bastante pouco fiável e enganosa, influenciada por condições ambientais imprevisíveis e subordinada aos órgãos internos, ou seja, um processo incerto e nada objetivo (Belting, 2012). Por isso uma representação das imagens, uma sua réplica, não tinha algum sentido. A produção de imagens estava reduzida à reprodução de padrões e superfícies provenientes do mundo matemático, o qual não tem uma contrapartida empírica visual. O cálculo geométrico levava à produção de superfícies organizadas que não eram simplesmente decorações ou enfeites artesanais sem algum significado. Pelo contrário, se tratava de uma forma simbólica assim como o era a perspectiva na Europa. Aliás, estas produções eram consideradas em Ocidente como abstratas, pois não se conseguia perceber a sua ligação com a realidade. Eram consideradas como arte decorativo, o polo oposto da arte pictórica (pictorial) que passaria a ser sinônimo da arte em geral (Belting, 2012), o que demonstra a capacidade de determinação do frame ocidental.

Figura 3 Exemplo Muqarna 

Na realidade, estas decorações representavam conceitos que provinham de uma reflexão abstrata e que produziam estas imagens onde o olho não tinha alguma função criadora. Se tratava de exercícios de cálculo que acabavam por ter uma contrapartida estética que pode se interpretar como uma representação da geometria como princípio universal por si mesmo. Preexistente e autônomo com relação a qualquer fixação perceptível localizada e concreta, mas também temporal e material. Por isso mesmo estas representações são tendencialmente infinitas; quando há um quadro (frame) que circunscreve a obra é claro que este não demarca o fim da representação, mas simplesmente as fronteiras do fragmento significativo reproduzido dentro de uma matéria infinita, que não é reduzível e controlável pelo ser humano. A complexidade do universo é muito grande para poder colocar uma janela que permita um olhar privilegiado capaz de compreende-lo. As muqarnas (ver figura 3) representam o exemplo vivo desta forma de arte, na qual a partir de um jogo geométrico gerado na base do cálculo são produzidas formas que, efetivamente têm uma função decorativa – especialmente na arquitetura – mas que não dependem do olhar humano. Trata-se de estruturas que combinam uma serie de superfícies que em contato com a luz criam um jogo visual com sofisticados efeitos estéticos. É a geometria ganhando vida, entrando no mundo perceptível, libertando-se da sua condição bidimensional, já que as muqarnas aproveitam a profundidade da superfície elaborada para criar os seus efeitos (Belting, 2012).

Acreditamos que possa se falar aqui de uma expressão não contemplada no conjunto das ontologias antes definidas. Já que ela é caraterizada por uma forma de presentificação especial, que possui um diferencial especial. O seu traço distintivo não é trazer para o mundo sensível elementos ou conceitos que não se encontram na realidade perceptiva. O seu principal diferencial é trabalhar com imagens alheias à percepção retiniana, anteriores a esta. Ou seja, trabalhar com imagens mentais, na desconfiança pela percepção visual, e conseguir gerar representações de uma elaboração interna que se produz a partir da reflexão racional de corte geométrico e matemático. Na ontologia geométrica, como poderíamos provisionalmente denominá-la, a figuração não é a contrapartida estética de uma determinada relação com o mundo ou com outros seres. Mas é a contrapartida visual de uma exploração não visual das leis e regras matemáticas que regulam o mundo. Os vínculos significativos que podem se estabelecer com o entorno não surgem dos órgãos da percepção, mas da reflexão sobre as entidades numéricas que geram padrões. O que não quer dizer que se trate de arte abstrata como poder-se-ia pensar, não há abstração porque o modelo, a matriz concreta, não é o mundo visual, mas a dimensão interna do comportamento dos elementos geométricos sendo representados. Se trata de um processo em que o valor estético está subordinado a um trabalho racional de imitação do belo intrínseco nas correlações numéricas.

É claro, trata-se aqui simplesmente de um esboço de reflexão que pode ser o alicerce inicial de uma análise mais aprofundada. A definição de uma eventual quinta ontologia precisa de um estudo mais aprofundado das consequências estéticas e hábitos de figuração da arte árabe aqui referida. Talvez ela não possua a intensidade ontológica que se manifesta estudando a arte kaxinawa, por exemplo, não está colocado em discussão o próprio estatuto do ser e o processo de construção dele em relação com a figuração estética. Também não temos o registro visual da formação mítica de grupos de seres como no totemismo. Mas há sim uma síntese universal, como no analogismo, mas de um tipo particular e que envolve de certa forma a relação de interioridade e exterioridade. Ainda sem colocar em discussão a contuidade do exterior, do real, isto é, do que é contraposto à interioridade impalpável e que diferencia os humanos doa animais no naturalismo, esta expressão discute as fontes de figuração até aqui vistas. Nesta arte geométrica, o exterior, o mundo, não se reduz a um ato de figuração dado pelos sentidos, pela capacidade interna de alguns seres de percebê-lo e fixá-lo. A interioridade, dada pela reflexão matemática e geométrica, adquire uma presentificação, como na arte ameríndia, a partir de práticas que somente estão revelando o que já está ali. Essa arte geométrica, deixa ver o que já faz parte da realidade e que não está nem escondido na interioridade dos seres, sejam humanos ou não, e nem da fisicidade do mundo percebido ou não. É como se o ato de figuração fosse um só episódio, de caráter visual, num universo matemático que independe de um agente para existir que, aliás, deve desconfiar das capacidades distorcidas dos sentidos humanos. É uma ontologia que revela ou, melhor, presentifica um universo que é indiscutivelmente real, isto é, que tem um estatuto ontológico, lhe dando uma faceta visível, mas sem passar pelo crivo da visão humana. A qual é o ponto final de um processo em que o ser humano não é criador das imagens, no sentido que lhe é comumente dado, mas o facilitador de um processo de geração estética que não é possível circunscrever em nenhum frame, pois o alcance de sua eventual aparição visual não se reduz ao campo perceptivo humano. Isto é, a matemática e a geometria se encontram inclusive em espaços imperceptíveis pelos sentidos humanos, no infinitamente pequeno ou enorme, ou no inimaginavelmente longínquo. Ainda assim, ainda fora da visão humana, ali devem estar. Seria uma ontologia de outro olhar, não de ver, mas de projetar, de entender e desvendar um universo que não se compreende se mantemos a dualidade exterioridade-interioridade. Pois as formas geométricas não proveem do interior do ser, da mente humana, são por ela somente trazidas e, eventualmente, recebem uma forma visual, mas dela não dependem, nem nascem.

CONCLUSÕES

Todas estas formas do pensamento humano, que envolvem parcelas fundamentais da relação dos seres com o mundo, e que podemos efetivamente considerar como ontologias, no nível da expressão artística registram um diferencial fundante que pode se concentrar na relação entre interioridade e exterioridade e que quebra de forma irremediável com as bases do frame ocidental. Se, como já vimos, a arte europeia a partir da Renascença se empenha numa representação formalmente fiel da exterioridade como ela aparece ao olho por meio da expressão artística interna ao realizador; nas outras ontologias teríamos uma configuração deste binômio fundamental totalmente diferente. Embora que com especificidades próprias, é possível notar um desabamento da separação quase hermética entre os dois universos com a figuração artística como mediador privilegiado, onde a janela sobre a realidade permite reconhecer o exterior e a qualidade artística está na fixação ordenada dessa realidade num suporte. Já em outras culturas não condicionadas, ou não totalmente, por dito frame, especialmente algumas culturas ameríndias vistas acima, a figuração permite trazer outros elementos. A sua base, é claro, não deixa de ser a realidade, mas não se trata mais do que se vê no mundo, mas do que há no mundo a partir de uma certa compreensão, do que atua no mundo a partir de uma certa ontologia. Parece difícil então falar em representação já que esses elementos não são identificáveis com a simples observação do mundo, mas também não se trata da figuração de elementos mágicos ou metafísicos. Pelo contrário, esses elementos fazem parte do mundo e a sua presença tem consequências concretas e bastante reais. Assim, o poder de transformação dos desenhos corporais em âmbito ritual não traz uma intervenção somente externa nos sujeitos, mas implicam a visualização de formas que preexistem potencialmente nos indivíduos e seguem modelos não visuais.

Assim, a aparente inadequação do termo representação não está no fato do modelo não ser evidente, empiricamente sustentado, mas no fato de que o ato artístico não sempre procura mostrar o objeto, este último parece expressar-se de forma independente a sua figuração. A figuração faz presente uma essência anterior e que participa do funcionamento ontológico do universo. Não se representa o mundo, mas se faz visível a sua essência intrínseca, se presentifica um caráter autónomo da função artística mas que depende do ato figurativo para se fazer visível ao observador comum. A posição do agente criador, com a capacidade de representar o universo muda, já não pode se pensar a representação como a capacidade de colher o mundo visível fisiologicamente; mas o próprio mundo participa da criação, pois já não é objeto mas entidade que age por meio dos mecanismos que se refletem nos fenômenos que o vinculam com a existência, com a vida, e se expressam na série de relações que se fazem explícitas num olhar ontológico fora do frame clássico.

O frame está totalmente desmontado, pois não há já realidade que se possa observar a partir de um aquém asséptico baseado somente na observação fisiológica, não se mostra mais o mundo como ele é, mas como ele se faz com relação a nós, ele aparece como forma gráfica não por imitação formal, mas como argumentação ontológica. É fácil também notar como não tem mais cabida uma interpretação do naturalismo na arte que se pretenda natural ou espontânea. Se as outras ontologias vistas revelam um mundo complexo e rico, o naturalismo também esconde uma serie de assunções que não são simples nem naturais; primeira entre todas acreditar na possibilidade de criar imagens que sejam representações do mundo porque a percepção é capaz de transformar o mundo em imagens. Esta atitude revela uma serie de elaborações ontológicas que rivalizam em abstração e complexidade com qualquer outra ontologia, com a única diferença que neste caso os processos querem se passar por racionais e universais, enquanto que nas demais culturas eles têm um viés espiritual e não permitem uma compreensão absoluta baseando-se na razão e, especialmente, na visão, o sentido privilegiado do Ocidente.

REFERENCIAS

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1Este artigo surge a partir das reflexões teóricas suscitadas pelo trabalho da Profa. Els Lagrou. A minha compreensão sobre as ideias básicas do perspectivismo e das ontologias e sua relação com a arte e figuração, se devem à análise e síntese que ela consegue realizar e transmitir. Porém, nesse sentido, qualquer imprecisão ou leviandade cometida na apresentação destes conceitos deve se atribuir exclusivamente ao autor do texto. Da mesma forma, é importante frisar que todas as fontes deste trabalho são secundárias, já que não houve trabalho de campo e sim revisão bibliográfica na construção da reflexão e desenvolvimento do texto.

2As obras de referência que podem ser citadas para enquadrar este movimento teórico são numerosas, porém, as publicações acima mencionadas apresentam conteúdo conclusivo e capacidade de síntese suficientes para oferecer um panorama geral das discussões sobre o assunto.

Recibido: 04 de Julio de 2019; Aprobado: 19 de Noviembre de 2020