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Información, cultura y sociedad

On-line version ISSN 1851-1740

Inf. cult. soc.  no.31 Ciudad Autónoma de Buenos Aires Dec. 2014

 

ARTÍCULOS

A Sociedade da Informação como sociedade de disciplina, vigilância e controle

The Information Society as a Society of Discipline, Surveillance and Control

 

Rubens da Silva Ferreira

Universidade Federal do Pará. Faculdade de Biblioteconomia / rubenspa@yahoo.com

Artículo recibido: 6-07-2014.
Aceptado: 29-09-2014

 


Resumo

O trabalho discute a sociedade da informação sob a concepção de sociedade disciplinar de Michel Foucault e a abordagem teórica de Gilles Deleuze sobre a sociedade de controle. Assim, objetiva mostrar como disciplina, vigilância e controle se manifestam no mundo contemporâneo em que as relações sociais ocorrem também em redes digitais como a Internet. Entendendo a sociedade da informação como síntese da sociedade disciplinar e de controle, o trabalho aponta para novas lutas sociais em torno de causas como privacidade. Nesta direção, cada vez mais a informação e o conhecimento aparecem como recursos de poder mobilizados pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade civil na defesa de seus interesses.

Palavras-chave: Sociedade da Informação; Sociedade disciplinar; Sociedade de controle; Vigilância; Privacidade

Abstract

The work discusses the information society under the conception of Michel Foucault's disciplinary society and the theoretical approach of Gilles Deleuze's society of control. Thereby, it aims to show how discipline, surveillance and control are manifested in the contemporary world wherein social relationships also occur in digital networks like the Internet. Understanding the information society as a synthesis of the disciplinary and control society, the work points to new social struggles around causes like privacy. In this regard, information and knowledge increasingly appear as power resources mobilized by the State, the market and the civil society in defense of their interests.

Keywords: Information Society; Disciplinary society; Society of control; Surveillance; Privacy

Resumen

El trabajo discute la sociedad de la información bajo la concepción de Michel Foucault acerca de la sociedad disciplinaria y el enfoque teórico de la sociedad de control de Gilles Deleuze. Así, el objetivo es mostrar cómo la disciplina, vigilancia y control se manifiestan en el mundo contemporáneo, en el que las relaciones sociales tambíen ocurren en redes digitales como Internet. Entendiendo la sociedad de la información como una síntesis de la sociedad disciplinaria y de control, el trabajo sugiere nuevas luchas sociales alrededor de causas como la intimidad. En este sentido, cada vez más la información y el conocimiento son recursos de poder movilizados por el Estado, por el mercado y por la sociedad civil en la defensa de sus intereses.

Palabras clave: Sociedade de la información; Sociedad disciplinaria; Sociedad de control; Vigilancia; Intimidad


 

1. Introdução

Naquilo que se tornou conhecido como sociedade da informação, o código binário legível por computador se consagrou, no século XXI, como o meio representacional que permite a conversão de quase tudo em sequências combinatórias de zero e de um, a fim de viabilizar a comunicação digital. Na Comunicação e na Ciência da Informação, entre outras áreas do conhecimento, tal possibilidade abre caminho para se pensar as novas dinâmicas da circulação da informação e do conhecimento, na medida em que elementos políticos, econômico, culturais, legais, tecnológicos e sociais afetam e são afetados por essa realidade de alcance global. Como um acontecimento que ressoa desde os anos de 1960, a sociedade da informação está longe de constituir-se em experiência homogênea, haja vista que de país para país ou dentro de uma mesma nação ela se manifesta de maneira bastante diferenciada, seja em termos de investimentos governamentais em infraestrutura, número de domicílios e/ou de indivíduos conectados à Internet, tamanho da banda, tecnologias utilizadas, desempenho das empresas do setor de telefonia, concorrência, custos, preços, qualidade dos serviços e outras variáveis possíveis de se identificar.
Tendo nas redes digitais seu símbolo maior, em que se destaca a Internet, a sociedade da informação entra na primeira década deste milênio questionada quanto ao alcance das promessas de liberdade de acesso e de uso, aspecto até então defendido pelos teóricos das redes mais otimistas que se alinham, por exemplo, ao pensamento de Manuel Castells (1999, 2009, 2013), dedicado aos estudos da ação social nesse ambiente tecnológico. Uma incerteza que mais recentemente se justifica pelos escândalos envolvendo o vazamento de informações governamentais sigilosas, pela espionagem de lideranças políticas e de civis, bem como pela censura e pelo bloqueio a sites e a conteúdos disponíveis na Internet, ações essas que colocam em evidência as relações intrínsecas e cada vez mais fortes entre informação, conhecimento e poder no mundo contemporâneo. É neste sentido que hoje são travadas outras lutas sociais que se colocam para além da educação, da saúde, da segurança, da moradia e da renda, de forma que os indivíduos se preocupam não apenas com as garantias de acesso à informação, ao conhecimento e à cultura como também com a proteção de sua privacidade e com o direito ao esquecimento de suas ações no ciberespaço1.
Assim, diante de uma realidade que toca a todos nós, este trabalho tem como objetivo pensar a sociedade da informação à luz da visão de Michel Foucault, precisamente sobre o que designou conceitualmente como sociedade disciplinar, cuja base encontra-se estruturada no livro "Vigiar e punir". Por certo uma construção teórica que se mostra atual, notadamente pelo papel que a disciplina, a vigilância e o controle desempenham no ambiente de circulação de informações e de conhecimentos propiciado pelas redes digitais. Não é para menos que a Internet pode ser entendida como a expressão mais sofisticada do panóptico, ideia essa concebida pelo jurista e filósofo inglês Jeremy Bentham (1843), na primeira metade do século XIX, que propôs uma matriz arquitetônica aplicada a qualquer instituição de confinamento humano.

Ao conduzir a discussão aqui traçada, faz-se uma articulação entre os elementos conceituais presentes em "Vigiar e punir" bem como aqueles registrados em outras obras, quais sejam do próprio Michel Foucault, quais sejam de autores como Antonio Negri, Félix Guattari e Gilles Deleuze que também tiveram produções influenciadas pelo pensamento pós-estruturalista do filósofo francês. Gilles Deleuze, aliás, é trazido para o debate com a ideia de sociedade de controle, cuja emergência se dá com as transformações do capitalismo após a II Guerra Mundial e com o desenvolvimento tecnológico que daí decorre e se acelera, modificando também as formas de produzir (inclusive a si mesmo) e de viver. Logo, para Gilles Deleuze, vive-se não mais na sociedade disciplinar, mas, na de controle. É neste sentido que aqui se questiona se haveria de fato uma sucessão entre essas duas abordagens conceituais, como em uma espécie de transição evolutiva, em que uma sucumbiria à outra mais eficiente e de traços mais sofisticados. Ao contrário do que sugere Gilles Deleuze, defende-se a ideia de que as duas concepções de sociedade se encontram profundamente imbricadas na sociedade da informação, haja vista o modo como os mecanismos de funcionamento da disciplina e do controle estão a operar simultaneamente na vida dos indivíduos que se utilizam das tecnologias digitais.
Destarte, pensando a sociedade da informação como uma realidade na qual se fundem tanto os princípios de funcionamento da sociedade concebida por Michel Foucault quanto os da abordagem teórica proposta por Gilles Deleuze, o trabalho está organizado em três partes que seguem a esta introdução. Na parte segunda, nos ocupamos do plano da obra "Vigiar e punir", o que inclui sua dimensão metodológica, orientada pela genealogia, e teórica, onde disciplina e vigilância figuram como expressões específicas de poder que são colocadas a serviço da domesticação das subjetividades, portanto, do controle das multidões em sua potência de ação para a transformação da realidade. A parte terceira é dedicada às inferências possíveis sobre a ideia de sociedade disciplinar e de controle, especialmente quanto às questões recentes colocadas por Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier (2013), que se relacionam ao volume de dados que circula pelos dispositivos tecnológicos de comunicação e de informação, colocando em cheque a ideia de privacidade e de anonimato, o que abre caminho para uma nova frente de lutas sociais na contemporaneidade.
Ainda na parte terceira, e sem perder de vista a sociedade de controle de Gilles Deleuze, procura-se discutir como a disciplina, a vigilância e o controle estão a funcionar na sociedade da informação, com base naquilo que os indivíduos publicam e colocam em fluxo nas redes digitais. Nas considerações finais, por sua vez, verifica-se que informação e conhecimento não devem ser confundidos com poder uma vez que servem a ele como recursos importantes, tanto na perspectiva dos mecanismos de dominação quanto do ponto de vista das estratégias de luta para a construção de um modelo de sociedade da informação mais justo, equitativo e seguro para os cidadãos.

2. Disciplina e vigilância como formas de poder na leitura deMichel Foucault

Em "Vigiar e punir" (Surveiller et punir), livro originalmente publicado em 1975, Michel Foucault interessa-se pelo estudo do aparecimento de um novo tipo de poder, que passa a circular nas sociedades modernas. Uma nova moral, que resulta da mudança no direito de punir, cuja origem situa na passagem do século XVIII ao XIX, e que se consolida no século XX. A partir de então se tem a articulação da justiça criminal com a ciência na conformação de uma epistemologia científico-jurídica, que se funda em um conhecimento capaz de se apropriar do sujeito não mais em seu corpo físico, tal como se dava pelo suplício dos condenados diante da punição emanada dos tribunais; uma prática descrita em "Vigiar e punir" como revestida pela barbárie, que perdurou até os tempos medievais. Sob o pretexto de proteger a sociedade, essa nova moral, esse novo tipo de poder de que fala Michel Foucault tem como foco a subjetividade e, com ela, a docilidade e a utilidade da potência que subjaz a ação dos indivíduos.
Michel Foucault utiliza uma diversidade de fontes para pensar a vigilância e a disciplina. Em "Vigiar e punir" não faltam referências a processos criminais, jornais, regulamentos, discursos de parlamentares e muitos outros documentos. Documentos entendidos não no sentido amplo de que se ocupa Paul Otlet (1868-1944), ou seja, como suportes materiais de diferentes formatos, nos quais os signos linguísticos representam o produto do intelecto humano (Otlet, 1934). Em um olhar neodocumentalista é possível pensar que Michel Foucault os toma em sua informatividade, procurando explorar o potencial daquilo que está oculto sob as normas da língua, em sua estrutura sintática e semântica. Como a ordem das palavras é utilizada como recurso de ocultamento, a ele interessa aquilo que está nas entrelinhas dos documentos, razão pela qual sua análise recai sobre o discurso, sobretudo em seus primeiros trabalhos, em que observa que tudo aquilo que é dito carrega algo que "está longe de ser [...] elemento transparente ou neutro" (Foucault, 2012: 9), haja vista sua ligação instrumental com o poder.
Para Michel Foucault (2010; 2012), discurso, verdade e poder estão intimamente relacionados entre si. Expresso pelo falar e/ou registrado pela escrita, o discurso tem, na visão do filósofo francês, certa propriedade que o faz perdurar ao longo do tempo, assumindo a forma de uma verdade socialmente aceita enquanto tal. Por outro lado, concebendo o poder como algo que se exerce nas relações sociais -entendidas por ele como relações de força-, o poder só pode ser produzido e colocado em circulação mediante uma economia dos discursos de verdade. Assim, em outra obra, "A ordem do discurso", Michel Foucault (2012: 8) coloca a hipótese de que o perigo do discurso reside no fato de que:

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Um desses procedimentos corresponde à interdição, àquilo sobre o que não se pode falar sob as mais diversas circunstâncias, quais sejam políticas, legais, religiosas ou morais, transformando temas como a sexualidade, por exemplo, em tabu. Outro seria a separação, estratégia pela qual discursos como o do louco são arrebatados para zonas de silenciamento.
Porém, em "Vigiar e punir", entre outras possibilidades, Michel Foucault olha o procedimento de separação dos sujeitos não mais no plano discursivo, como em "A ordem do discurso", mas na dimensão física, onde os corpos dos indivíduos em um dado momento histórico passam ao confinamento em espaços de disciplinamento, de treinamento e de correção, tais como o ambiente das prisões, das escolas, dos quartéis, dos hospitais e mesmo das fábricas.
Os discursos registrados nas fontes documentais que Michel Foucault utiliza são submetidos a uma investigação genealógica (Dortier, 2010). O método é atribuído a Friedrich Nietzsche (1844-1900), e conforme destaca Nicola Abbagnano (2012:556-557), se tornou caro aos pós-estruturalistas na interpretação de uma realidade tida como histórica e socialmente construída pelos indivíduos. Destarte, Michel Foucault olha a história a fim de situar o desenvolvimento de uma mudança no direito de punir na modernidade, em que todo um conhecimento especializado no campo da Psicologia, da Psiquiatria e da Pedagogia se coaduna à justiça criminal. Um saber que toma por objeto a figura do delinquente, agora abolido de toda sorte de violência física -às vezes infligida até a morte- para ser submetido a um tipo de controle menos bárbaro e agressivo, cujos efeitos são internalizados de tal forma que o próprio corpo desempenha a função da prisão. Com a substituição do poder de punir pelo poder de vigiar, a figura do carrasco, do sentinela, do carcereiro ou do policial se torna desnecessária nas sociedades modernas na medida em que, pelo olhar constante, os indivíduos inspecionam os gestos, as atividades, os discursos e os comportamentos uns dos outros e, também, de si mesmos.
Dirigindo-se do corpo à alma, esse conhecimento passa gradativamente a descrever o indivíduo a partir do seu interior, razão pela qual são construídos conceitos como "psique, subjetividade, personalidade, consciência" (Foucault, 2013: 32). Ainda que a genealogia sustente a investigação de Michel Foucault em "Vigiar e punir", é na coletânea "Em defesa da sociedade" que o método se revela em sua dupla função: dar conta não só da construção de um conhecimento científico-jurídico, que se impõe e que se apodera dos indivíduos em uma determinada sociedade, como, também, do oposto desse movimento, ou seja, dos saberes locais e cientificamente desqualificados que constituem a resistência, ensejando a luta e, com ela, o contrapoder. É assim que o método genealógico utilizado por Michel Foucault se propõe a desconstruir a visão do poder como algo hierarquizado, unilateral, formal e científico, pois toma por análise as relações indissociáveis entre saber e poder, incorporando as lutas históricas travadas entre grupos dominantes e grupos dominados em uma "guerra" discursiva que mobiliza informações e conhecimentos.
No trânsito do século XVIII ao XIX assistiu-se ao surgimento do que Michel Foucault designa como sociedade disciplinar. Nela, o conhecimento científico que se produziu sobre os indivíduos e as mudanças nos ordenamentos jurídicos foram essenciais para submetê-los à disciplina, a fim de produzir sujeitos mais dóceis, e, assim, diminuir o potencial de luta, neutralizando "os efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios - tudo o que pode se originar das conjunções horizontais" (Foucault, 2013: 207). Daí resulta o papel onipresente do poder disciplinar em gerir o tempo dos invíduos, mantendo-os ocupados e constantemente vigiados nos espaços privados e/ou sociais, onde agem e se movimentam na vida cotidiana.
Por poder disciplinar Michel Foucault define um tipo de poder modesto, discreto, calculado e permanente, que tem como objetivo adestrar as singularidades que compõem as multidões para delas obter usos melhores, sobretudo no contexto de um processo produtivo que se generalizou e que produz não somente mercadorias, mas, também, indivíduos e subjetividades. Indivíduos que devem ser capazes de reproduzir os mecanismos de funcionamento desse tipo de poder que se edifica pela disciplina, pela vigilância e pelo controle, conformando assim uma tecnologia política do corpo e sobre o próprio corpo. Neste ponto, Antonio Negri (2003) se aproxima do autor de "Vigiar e punir" pela leitura que faz das obras de Benedictus de Spinoza (1632-1677), para quem o conceito de multidão (multitudo) -exatamente no singular- evoca a potência da ação de uma multiplicidade de corpos que dão movimento à história. Como conjunto heterogêneo de indivíduos, a multidão se constitui fora da normatividade da relação capital/trabalho, o que lhe confere capacidade autonôma e inovadora, não somente na esfera da produção, mas principalmente nas lutas, onde assumem formas de organização e de resistência que se contrapõem às forças do capital e do Estado. Logo, é diante de tal ameaça à ordem instituída que a disciplina deve ser imposta a cada indíduo em toda a sua eficiência, a fim de controlar a potência criadora, o desejo de liberdade e de democracia absoluta da multidão. Elementos estes que encontram força num poder político que é sempre constituinte, logo, como ensina Antonio Negri (2002: 24), primeiro, "onipotente, expansivo, ilimitado e inconclusivo".
A eficiência do poder disciplinar se deve à associação íntima ao poder de vigilância, parte integrante de suas engrenagens e que se dissemina por meio de uma rede de relações ramificadas em todas as direções. Para Michel Foucault, a disciplina como poder é exercida segundo um princípio de redução dos custos. Redução tanto do ponto de vista econômico -ao demandar pouca despesa-, quanto do ponto de vista político - ao gerar, segundo Michel Foucault, pouca resistência, dadas as sutilezas que bem caracterizam o funcionamento do poder disciplinar, a exemplo das normas, dos horários e da rotina de atividades a que são submetidos os indivíduos no ambiente dos quartéis, das escolas, dos hospitais, das fábricas e em outros espaços de confinamento de corpos. Nesta direção, o filósofo francês relê o conceito arquitetônico do panóptico de Jeremy Bentham (1843), idealizado como uma construção prisional de vigilância contínua, que é, ao mesmo, onipresente e onisciente, e do qual emanam informações no sentido periferia/centro sobre o comportamento dos indivíduos, sem que haja qualquer tipo de comunicação, seja entre o vigilante e os vigiados, seja entre os próprios vigiados.
Em toda a sua materialidade, o panóptico é convertido por Michel Foucault na própria ideia de sociedade disciplinar. Uma transformação incorpórea, diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), uma vez que no pragmatismo da língua os corpos são modificados instantaneamente pelos atributos que os discursos imprimem sobre eles, de maneira que cada corpo em sua individualidade assimila a lógica da arquitetura panóptica, convertendo-se de corpo em prisão -melhor dizendo, corpo-prisão. Por isto, a sociedade disciplinar transmuta-se no próprio panóptico, agora desmaterializado na forma de valores, normas de comportamento e de códigos de conduta que regulam o conjunto das relações sociais segundo os binômios moralidade-imoralidade, normalidade-desvio, certo-errado. Com efeito, Michel Foucault considera o panóptico como um dispositivo de funcionamento global, já que possibilita o aperfeiçoamento do exercício do poder na sociedade como um todo.

3. Disciplina, vigilância e controle na sociedade da informação

Transcorridos quase cinquenta anos desde a primeira edição de "Vigiar e punir", trazer essa obra para o debate na Comunicação e na Ciência da Informação permite pensar questões diversas que emergem tanto no contexto dos países desenvolvidos quanto do Sul Global (Global South), precisamente quanto àquilo que concebem como modelos tecnopolíticos de sociedade da informação, ou, na perspectiva acadêmica de Manuel Castells (1999), como uma sociedade informacional. Questões como a da circulação da informação e do conhecimento, processo esse de dimensões política, econômica, social e cultural, cada vez mais mediado pelas redes digitais, cujo acesso é facilitado sobretudo pelo barateamento de tecnologias como microcomputadores e, mas recentemente, tablets e smartphones, viabilizando, desse modo, a comunicação e a sociabilidade remota entre pessoas. Ferramentas que, no entendimento de Gilles Deleuze (1992), surgem exatamente na conformação da sociedade de controle, um enfoque ulterior à sociedade disciplinar de Michel Foucault e previsto por ele próprio, que emergiu após a Segunda Guerra Mundial como o produto de uma crise nos espaços tradicionais de confinamento, a exemplo das famílias, das escolas, dos hospitais, das prisões, dos quartéis e das fábricas. Instituições que sofreram e sentiram pressões sociais por novas formas de liberdade, enfrentando, por outro lado, novos meios de controle engendrados pelas mutações próprias do capitalismo.
É bem verdade que o controle da potência das multidões já aparece em "Vigiar e punir" como finalidade da sociedade disciplinar. Contudo, para Gilles Deleuze, o poder disciplinar diminui em importância diante das possibilidades oferecidas pelo poder de controle sobre as atividades dos indivíduos no dia a dia. Enquanto a disciplina demanda por um longo e descontínuo período de tempo necessário ao adestramento dos comportamentos, o controle se exerce em curto prazo, além de ser contínuo e ilimitado. Por isto, a eficiência do controle produz efeitos mais rápidos, haja vista o desenvolvimento da informática que, por meio de uma linguagem binária, criou um recurso simples, a senha, capaz de identificar e de localizar as pessoas onde quer que estejam, e o que quer que estejam fazendo. Aliás, ninguém participa das experiências sociais e infocomunicativas nas redes digitais sem que possua uma conta de correio eletrônico e uma senha, elementos estes que funcionam como credenciais mínimas exigíveis para a mobilidade no ciberespaço. Todavia, diante da abordagem teórica proposta por Gilles Deleuze para pensar as relações sociais, teria ela superado em definitivo o esquema da sociedade disciplinar proposta por Michel Foucault em suas análises sobre o poder? Ou ambas encontram-se em um estágio de coexistência profusa e, deste modo, seguem operando concomitantemente as relações sociais na sociedade contemporânea?
Ao considerar Thomas Kuhn (2011) em sua noção de paradigma2, há que se entender que um novo modelo não implica no desaparecimento imediato ou completo de seu predecessor, de maneira que ambos podem coexistir por muito tempo. Ademais, o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle sobre os indivíduos não pode funcionar sem que estes estejam submetidos a alguma disciplina e à vigilância sistemática de suas atividades no dia a dia. Até mesmo os modernos dispositivos de comunicação e de intercambiamento de informação exigem um nível mínimo de adestramento, a fim de que sejam operados com alguma habilidade. Mas, tal como destaca Gilles Deleuze, diferente do que se tinha na sociedade disciplinar, esse adestramento se autonomiza, e corre muito ao largo da rotina no espaço das escolas, das prisões, das fábricas, dos hospitais ou dos quartéis. Na sociedade contemporânea, cada vez mais a responsabilidade da disciplina é deslocada das instituições, descentrando-se daqueles que detinham o poder para incuti-la no indivíduo, a exemplo da figura do pai, do chefe, do professor ou do militar de alta patente. Progressivamente ela vem sendo transferida para o próprio indivíduo, marcando a passagem para o autodisciplinamento, ou, para usar um termo mais sutil, para o autoaprendizado.
No plano ideológico, a disciplina se faz reproduzir pela ideia já difusa -e porque não dizer aceita- de uma liberdade que deve ser investida na autoformação, no autoaprendizado, enfim, no processo de subjetivação que potencialize as capacidades cognitiva e criativa do gênero humano. Um discurso que aparece escamoteado pelas visões mais otimistas e utópicas de sociedade da informação, do conhecimento ou da aprendizagem, ou qualquer que seja a forma como se prefira designar as crenças que são depositadas em um modelo de desenvolvimento que caminha para um estágio supostamente mais democrático de acesso a todo e a qualquer tipo de conteúdo compartilhado nas redes digitais. Na sociedade de controle de Gilles Deleuze, esse processo de autoinstrução do indivíduo já se revela elementar, pois nela "nunca se termina nada" nem mesmo a própria formação do sujeito (Deleuze, 1992: 221). Este pressuposto, aliás, pode ser observado no discurso da competência informacional, também designada como alfabetização informacional ou competência em informação (information literacy), segundo o qual os indivíduos precisam orientar seus comportamentos, suas habilidades e suas atitudes para o melhor uso da informação e do conhecimento ao longo de toda a vida. Isto significar dizer nada mais nada menos do que incutir nos indivíduos uma autodisciplina infocognitiva a serviço de si e a serviço da coletividade, o que faz lembrar as palavras de Michel Foucault (2013, 143) ao constatar que "a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo", conectanto, deste modo, o individual ao coletivo.
Ainda neste sentido, basta lembrar que o termo information literacy foi utilizado pela primeira vez por Paul Zurkowsky, em 1974 (Rodríguez Castilla, Sánchez Chávez, Cabrera Ramos y Díaz Bravo, 2014; Campello, 2003). Como presidente da Information Industries Association ele recomendava, em relatório ao governo americano que a população fosse devidamente instruída para utilizar a variedade dos produtos tecnológicos então disponíveis no mercado. Ora, como representante do setor lucrativo movimentado pelas tecnologias aplicadas à comunicação e à informação, Zurkowsky estava a defender a criação de demanda para esses produtos. Não é a toa que, para Michel Foucault, disciplina e utilidade são forças que estão minuciosamente ligadas ao controle. É assim que em uma estratégia de simplificação deste processo a própria indústria de tecnologia de informação tem produzido computadores e dispositivos móveis com interface mais amigáveis, tornando-os mecanismos eficientes de autoaprendizagem (autodisciplinamento), onde cada um decide o tempo e a forma como pretende utilizá-los. Sendo assim, o grau de disposição da sociedade para não abrir mão das facilidades oferecidas pelos recursos infocomunicativos é o caminho pelo qual se pode compreender o modo como a disciplina entrou para o século XXI já devidamente incorporada no espírito dos seres humanos.
Quanto à vigilância, esta nunca se mostrou de maneira mais ininterrupta, bem distribuída, geral e, ao mesmo tempo, individual. É justamente pelos recursos tecnológicos a serviço da sociedade de controle de Gilles Deleuze que olhares remotos observam a tudo e a todos sem que sejam vistos, a exemplo do episódio que, em 2013, colocou o presidente Barack Obama, Edward Snowden e a National Security Agency (NSAL) no centro de um escândalo de espionagem internacional, que se estendia aos usuários de vários serviços de Internet como Gloogle, Facebook, Twitter, Yahoo e outros, bem como gravações de chamadas telefônicas (Edward, 2013; Petry, 2013). Conforme Michel Foucault (2013: 181), se entre os séculos XVIII e XX um "poder de escrita" próprio do campo documentário já se aplicava à disciplina, registrando tudo o que alcançava os olhos de observadores especializados, convertendo-se em uma espécie de saber sobre os indivíduos, tal como se dava nos domínios de ciências como Medicina, Educação, Psicologia e Psiquiatria, no século XXI o que se verifica é um novo regime de vigilância, cujas regras de funcionamento se descolam da coleta de volumes de informações em suportes analógicos para a acumulação de grandes quantidades de dados digitais e/ou digitalizáveis; do registro que estava a cargo do observador para uma documentação agora produzida pelo próprio observado, notadamente a partir do que ele próprio escreve, fala, filma, fotografa, acessa e/ou compartilha nas redes digitais.
Tempos de uma vigilância cuja tática se sustenta sobre mecanismos mais sofisticados de dataficação (datafication), pelos quais os mercados e os Estados recolhem e acumulam terabytes de dados para depois organizá-los, analisá-los e aplicá-los a usos ainda não tão bem conhecidos pela população mundial. Como prática, Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier (2013) reconhecem a dataficação como algo muito antigo, estando intimamente ligada à natureza dos seres humanos em suas necessidades de previsão, de planejamento e de controle. Todavia, o que coloca essas práticas em evidência na contemporaneidade é a velocidade com a qual os dados são processados em grande quantidade por meio de sistemas computadorizados de ponta, que os capturam com ou sem o consentimento consciente dos indivíduos. De fato se está diante de um problema que atualiza o debate liberal entre o público e o privado, na medida em que as relações sociais têm experimentado novas formas de interação que se estendem do mundo real para o ambiente virtual, viabilizando, neste sentido, a maximização da vigilância e do controle sobre as ações dos indivíduos, inclusive no que se refere à circulação de informações e de conhecimentos nas redes digitais.
Visto o problema desta forma, não parece arriscado dizer que o poder disciplinar e o poder de controle têm sido progressivamente desvelados na sociedade da informação, justapondo-se mais do que superando um ao outro. Até mesmo o poder de punir ainda encontra meios para seu exercício na atualidade, não só pela justiça nos países de democracia consolidada, onde os cidadãos movem processos contra usurpadores de identidades, invasores de computadores, caluniadores e difamadores, mas especialmente nas sociedades submetidas a regimes ditatoriais, tal como é o caso da Coréia do Norte, da China e de muitos países árabes que não hesitam em aplicar penas que variam entre o exílio, a prisão, a tortura e a morte daqueles que fazem oposição ao governo pelos recursos oferecidos pela Web 2.0 ou pelos telefones celulares3. Por isto a censura à Internet é prática recorrente nesses países em que as informações são submetidas a um crivo rigoroso, sob a justificativa da segurança de Estado e da proteção da sociedade, muito embora o que se defenda de fato são os interesses de grupos dominantes.
Felizmente nesses países de liberdades de expressão duramente cerceada, a crítica e mesmo a denúncia contra a violação de direitos humanos sempre escapam ao controle das autoridades, graças às iniciativas de contrapoder e à criatividade social no uso dos dispositivos tecnológicos de comunicação e de informação que a população tem acesso.
De todo modo, seja para fins de resistência ou mesmo criminosos, a ação dos indivíduos não foge por completo à vigilância e ao controle do panóptico high-tech que é a Internet, de modo que a ideia do anonimato do agente se mostra cada vez mais enganosa. Conforme alertam Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier (2013), isto nada mais é do que um mito na era das redes digitais, pois existem alternativas de rastreamento que estão além da obviedade do número de IP dos computadores e dos dispositivos móveis conectados às redes digitais. Nem mesmo as técnicas de anonimização oferecidas pelos sites para ocultamento de nomes, correios eletrônicos, endereços residenciais e números de documentos ou de cartões de crédito são completamente seguras. Assim, com o big data torna-se relativamente fácil estabelecer relações entre dados pessoais e preferenciais de navegação e de compras na Internet, elementos esses frequentemente fornecidos pelos próprios cidadãos a cada acesso que fazem a serviços virtuais. Isto já é o suficiente para que sistemas de recomendação, experts ou mesmo criminosos sejam capazes de identificar indivíduos em meio a multidão4 e, assim, torná-los alvos não só de propagandas dirigidas e de golpes virtuais como -também e se necessário- de punição judicial.
Se no advento do desktop a disciplina, a vigilância e o controle já eram experiências em franco desenvolvimento, com essa espécie de computador portátil em que se transformaram os telefones celulares elas maximizaram seu alcance e eficiência. Basta lembrar que alguns desses dispositivos de comunicação funcionam com Global PositioningSystem (GPS), recurso capaz de registrar dados dos indivíduos em sua mobilidade5. Na perspectiva de Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier (2013), tal tecnologia oferece possibilidades que vão desde a segurança de pessoas e de objetos até o uso de dados coletados para fins empresariais e epidemiológicos. Entretanto, há que se mencionar o risco de usos ainda desconhecidos pelos usuários, especialmente quando os aplicativos instalados exigem o acesso irrestrito a dados referentesà geo-localização, à rede e ao proprietário mediante o aceite de termos de uso nem sempre lidos, claros ou compreendidos. Ou, quando os indivíduos são obrigados a acatar a esses termos mesmo que isto signifique abrir mão da privacidade e dos direitos sobre os usos que serão feitos de seus dados pessoais.
Embora na atualidade só seja possível ver a ponta do iceberg, o problema tenderá a se agravar na medida em que as liberdades individuais e a privacidade forem cada vez mais ameaçadas pelo Estado e pelo mercado quanto à utilidade futura dos dados e das informações que os indivíduos colocam em circulação sobre seus modos de pensar, de ser e de viver. Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jérémie Zimermann (2013), por exemplo, denunciam os investimentos do governo americano em grandes bancos de dados não somente para armazenar dados e informações sobre risco de terrorismo e para o combate ao crime, mas também para vigiar ações de dissidentes políticos e as comunicações de cidadãos americanos ou não, inclusive com a autorização do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Uma prática de vigilância em massa por meio da qual o tráfego de dados de texto, de voz e de imagem que corre pela Internet e/ou pelo serviço de telefonia móvel é capturado e armazenado em grande quantidade e a baixo custo.
Paralela à vigilância de Estado, há também a vigilância de civis pelo setor privado, sobretudo pelas corporações Google, Facebook, Twitter e Yahoo, entre outras, que acumulam grandes volumes de metadados sobre perfis de milhões de pessoas em todo o mundo, registrando hábitos de uso da Internet, leituras, sites e blogs gerenciados e/ou acessados, comunicações intercambiadas, padrões de consumo, quadro de saúde, comportamento, visões políticas, preferências sexuais e crenças religiosas.
Na verdade, tanto o Estado quanto o mercado podem ser pensados como agentes de vigilância que estão relacionados entre si e se articulam conforme os interesses que possuem sobre a vida dos civis, tal como revelou o caso Snowden, em 2013. Mas seja como for, o fato é que esses agentes só conseguem reunir grandes volumes de dados e de informações porque os próprios indivíduos já estão disciplinados para fornecê-los sem grandes esforços.
Assim, para finalizar a discussão que se fez ate aqui, entende-se que disciplina, vigilância e controle são as três facetas de uma realidade que marca um novo cenário de lutas em conformação na sociedade contemporânea. Nele, as forças em tensão agora se organizam por meio do volume de dados, de informações e de conhecimentos que Estado, mercado e sociedade civil são capazes de mobilizar em torno da defesa de seus interesses. É nesta direção que ao revés de qualquer determinismo em favor do poder no comando, Michel Foucault acredita que as relações de poder sempre trazem consigo movimentos de resistência que transformam a história e produzem novas realidades, novos sujeitos. É assim que nas lutas que estão em curso nada está dado, sinalizando, dessa maneira, a abertura de caminhos possíveis para a construção de uma sociedade da informação mais justa, equitativa e segura, com garantias de liberdade de expressão, proteção à privacidade e o acesso livre a conteúdos do interesse público, ao modo do que expressa a máxima do movimento cypherpunk: "Privacidade para os fracos, transparência para os poderosos" (Assange, et al., 2013).

4. Considerações finais

Com as redes digitais atingimos um nível de desenvolvimento tecnológico que permite a maior circulação de informações e de conhecimentos, muito embora isso implique, ao mesmo tempo, colocar em fluxo dados que dizem respeito à privacidade dos indivíduos que nutrem esses espaços virtuais com seu tempo e com suas vidas. De certa maneira, a superexposição parece ter se tornado prática já naturalizada na sociedade da informação, precipuamente diante do imperativo de que é preciso existir também na Internet, apesar de toda vigilância e de todo controle que essa experiência de sociabilidade represente. É assim que o condicionamento diário ao uso das tecnologias digitais e à conexão às redes se difunde por todos os lugares do globo, fazendo com que pessoas de diferentes grupos etários, gêneros, classes sociais e etnias se submetam a uma disciplina desejada pelo Estado e pelo mercado, na medida em que esses agentes buscam monitorar os civis e para capturar suas subjetividades e controlar sua potência de luta.
Por outro lado, ao considerar que o poder não tem centralidade, essa mesma disciplina que se aplica ao uso das tecnologias digitais se transforma em instrumento de resistência, passando a ser reinvestida contra os mecanismos de dominação na forma de contra vigilância, a exemplo das denúncias que a imprensa, as organizações não governamentais e os próprios civis são capazes de realizar quando burlam fortes esquemas de censura. Logo, como se verifica em Michel Foucault, informação e conhecimento não devem ser confundidos com poder, mas são recursos de poder que os indivíduos e/ou grupos são capazes de acionar na defesa de seus interesses individuais ou coletivos. E tal como o poder, esses recursos estão a circular nas relações sociais vivenciadas tanto nas redes digitais quanto no mundo real, de modo que são disputados por grupos dominantes e por grupos dominados, especialmente quando a sociedade da informação desvela sua faceta disciplinar, vigilante e controladora, impulsionando os movimentos civis de luta contra abusos cometidos pelo Estado, pelo mercado e até mesmo por outros civis.

Notas

1 Cabe lembrar aqui as batalhas judiciais travadas nos tribunais do mundo inteiro pelo ajuizamento de causas de cidadãos que reivindicam a retirada de textos, fotos e/ou vídeos pessoais postos em circulação em serviços de grandes empresas da Internet. O direito ao esquecimento, como tem sido chamado, vem ganhando força sobretudo depois da decisão da Corte Europeia de Justiça, em maio deste ano, em favor de usuários que desejam ter seus dados pessoais desatualizados, inadequados ou imprecisos excluídos dos mecanismos de busca do Google, a exemplo do que reivindicava, desde 2010, um cidadão espanhol que não queria mais ter seu nome associado a um embargo judicial realizado em 1998 (Justiça..., 2014). No Brasil, uma possibilidade nesta direção é dada pela recente aprovação do Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.965, de 23.04.2014), haja vista as garantias previstas sobre a proteção da privacidade e dos dados pessoais dos cidadãos.

2 Kuhn (2011) apresenta diferentes definições de paradigma, sendo aqui tomado como um modelo que coaduna as bases teóricas e metodológicas cultivadas e partilhadas de maneira mais ou menos hegemônica pelos membros da comunidade científica (ciência normal), até que outras bases divergentes passam, gradativamente, ser introduzidas e ganhar espaço (crise), conquistando, assim, novos adeptos, e, desse modo, inaugurando um novo paradigma (revolução científica).

3 Ao se ocuparem da análise dos riscos relacionados ao big data, os autores citam o caso envolvendo a AOL, que em agosto de 2006 divulgou o resultado de várias pesquisas virtuais realizadas junto a 657 mil usuários, substituindo nomes e IPs por identificadores numéricos. Dias após a divulgação, ao combinar uma série de perfis e respostas, um jornalista do New York Times conseguiu identificar o usuário registrado sob o código 4417749 como Thelma Arnold, 60 anos, viúva, moradora de Lilburn, Georgia. Caso semelhante também aconteceu no mesmo ano com a Netflix, que lançou um concurso no qual os participantes deveriam melhorar o sistema de recomendação de filmes em uma meta de 10%. Embora os dados dos clientes tenham sido anonimizados pelas equipes participantes do concurso, publicamente foi possível identificar uma usuária dos serviços como mãe lésbica, não assumida, moradora do Meio Oeste dos EUA que, uma vez exposta em sua intimidade, decidiu processar a empresa.

4 Mais emblemático nesta direção tem sido o caso da China, que não censura apenas o acesso a redes sociais populares como Facebook e Twitter, ou, ainda, às críticas ao governo feitas por jornalistas ou por blogueiros nacionais ou estrangeiros, como também inibe o acesso a qualquer site que contenha palavras ou frases consideradas perigosas à ordem. Cidadãos que criam "fatos" na Internet são inclusive condenados à prisão, a exemplo do jovem de 16 anos, da província de Gansu, acusado de insinuar negligência policial na apuração da morte de um empresário local (Ninio, 2013).

5. Ao se pensar a mobilidade global, é razoável imaginar que a circulação de pessoas entre países possa depender dos usos que os Estados farão de dados e de informações pessoais para a concessão ou não de vistos de turismo, de trabalho e/ou de estudo, a fim de impedir que certos estrangeiros cruzem suas fronteiras. No âmbito do mercado, também é possível pensar a mobilidade dentro de um mesmo país, de maneira que as empresas possam utilizar dados e informações pessoais de civis como uma espécie de filtro moral para a contratação de trabalhadores baseada mais na intimidade do que nas qualificações profissionais que os indivíduos efetivamente possuam.

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