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Revista Pilquen

On-line version ISSN 1851-3123

Rev. Pilquen  no.12 Viedma Jan./June 2010

 

ARTÍCULO

Sobre o conceito de América Latina: uma proposta para repercutir nos festejos do Bicentenário

Gizlene Neder y Gisálio Cerqueira Filho
gizlene@superig.com.br - gizalio@superig.com.br
Universidade Federal Fluminense Sede Niterói - Brasil

Resumo
O presente ensaio ressalta as análises comparativas entre os processos históricos dos países constituídos a partir da colonização européia na modernidade levando-se em conta aspectos culturais e religiosos (Catolicismo romano e Protestantismo), e suas implicações nas opções sociais, políticas e ideológicas. Visa breve discussão sobre a história do conceito de América Latina a partir da contribuição teórica de Reinhart Koselleck; o que implica a semantização presente e atuante nas diferentes lógicas de nomeação, classificação e, enfim, expressão das interpretações políticas em diferentes temporalidades. Sugere-se a implicação do afeto (uma gramática de sentimentos) e, portanto, da subjetividade na política latinoamericana. Por fim, destaca-se na opção pelo multilateralismo a necessidade de compreensão da(s) cultura(s) jurídica(s) nacionais visando a integração regional latinoamericana.

Palavras chave: América Latina; História do conceito; Subjetividade & poder; Cultura política.

About the concept of América Latina: a proposal to think Bicentenaries'celebrations

Abstract
This issue focuses the comparative analyses on historical process of countries built through European modern colonization; it takes account cultural aspects and religion (Romanic Catholicism and Protestantism), and their relations with social, ideological and political choices of these countries. It aims to discuss the history of the concept of Latin America, supported in the contribution of Reinhart Koselleck; so it deals with the strong semantic process in different temporalities. The issue suggests the implications of affects (concerning a grammatical of political feelings), taking in account Latin American policy and subjectivity. Finally, the issue suggests the choice toward the multilateralism, as a necessity for the comprehension of legal cultural of the different nations, aiming the regional Latin American integration.

Key words: Latin America; History of concept; Subjectivity & power; Political culture.

Sobre el concepto de América Latina: una propuesta para pensar en los festejos del Bicentenario 

Resumen
El presente ensayo se focaliza en el análisis comparativo entre los procesos históricos de los países constituidos partir de la colonización europea en la modernidad teniendo en cuenta aspectos culturales y religiosos (Catolicismo romano y protestantismo) y sus implicancias en las opciones sociales, políticas e ideológicas. Para ello brevemente tiene en cuenta la discusión sobre la historia del concepto de América Latina a partir de la contribución teórica de Reinhart Koselleck lo que implica la semantización del presente y las diferentes lógicas de nominaciòn, clasificación y, finalmente, la expresión de las interpretaciones políticas en diferentes temporalidades. Se atiende, además, la implicación del afecto (una gramática de sentimientos) y por lo tanto de la subjetividad en la política latinoamericana. Finalmente se centra en la opción por el multilateralismo la necesidad de comprensión de la(s) cultura(s) jurídica(s) nacionales revisando la inegración regional latinoamericana.

Key words: América Latina; Historia del concepto; Subjetividad y poder; Cultura política.

Recibido: 03/03/10
Aceptado: 15/03/10

O Bicentenário do título diz respeito à comemoração dos 200 anos de inependência política de nove países americanos (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador. El Salvador, México, Paraguai, Venezuela). A data mobiliza também a península Ibérica e temos uma diversidade muito grande de festividades. Desde aquelas ufanistas que celebram a hispanidade e afirmam que a globalização teve efeito "civilizatório" sobre as populações americanas até a que promove o seminário "Todos somos Negros" que reúne intelectuais, pesquisadores, professores na rede "Conceptualismos del Sur" no Museu Rainha Sofia, a acontecer em maio de 2010 em Madri. O título é uma alusão ao artigo 14 da Constituição haitina de 1805 ("Todos os cidadãos, de aqui por diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros"), a evocar a afirmação da afrodescendência e o fato de que as independências latinoamericanas começaram antes de 1809. O mesmo museu (dirigido por Manuel Botja-Villel) celebra também os distintos eventos com uma formidável mostra para defender a hipótese de que a modernidade está mais diretamente relacionada com a acumulação primitiva realizada pelas conquistas peninsulares do que com a poesia de Baudelaire ou o impressionismo europeu de per si. O título da mostra é eloqüente: "Princípio Potosi".1

De fato, a proposta de ensino aludida neste artigo e as considerações trabalhadas pelos autores resultam das práticas acadêmicas desenvolvidas na Escola de Niterói2, sediada no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Estão fundamentadas em pesquisas e práticas docentes dos dois autores: aulas e orientação nos cursos de graduação (de Ciências Sociais e História) e de pós-graduação; estas referidas a mestrandos e doutorandos de três programas de pós-graduação do ICHF. As pesquisas estão inscritas na linha "Teoria Política e Subjetividade", do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP), desenvolvida através dos projetos de Gisálio Cerqueira Filho3, e seu reflexo nos seminários de pós-graduação4; inscrevem-se também nas linhas de pesquisa "História do Poder e das Idéias Políticas", do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) e "Direitos Humanos, Justiça e Cidadania", do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), desenvolvidas através dos projetos de Gizlene Neder5. O espaço acadêmico aglutinador destas atividades é o Laboratório Cidade e Poder, grupo de pesquisa multidisciplinar, atuante no ICHF desde 1992. As discussões teóricas e metodológicas, além das disciplinas ministradas nos cursos de graduação e de pós-graduação, são encaminhadas através de grupos de estudos e dos seminários internos de pesquisa.

Colocamos em tela a discussão de uma problemática que há mais de um século vem povoando o campo intelectual nas Américas (do Sul, do Norte e Central). As análises comparativas entre os processos históricos dos países egressos da colonização européia na modernidade têm sido encaminhadas levando-se em conta aspectos culturais e religiosos (catolicismo e protestantismo), e suas implicações nas opções sociais, políticas e ideológicas. Aqui certamente podemos falar em jogo de espelhos.

Acreditamos que um breve rastreamento do posicionamento dos principais pensadores brasileiros sobre a diferença entre as duas vertentes da cristandade ocidental faz-se necessária.

Tavares Bastos, ainda em meados do século XIX, pensou e propôs (enquanto representante na Câmara dos Deputados) uma política imigrantista que levava em conta uma preferência para contratação de imigrantes oriundos da Europa nórdica; especialmente aquela identificada com a modernidade, o progresso e a conformação de trabalhadores disciplinados e operosos, que estaria relacionada ao protestantismo6. Joaquim Nabuco, em seu livro de memórias7, refere-se às suas relações com Tavares Bastos, bom amigo e assíduo freqüentador da casa de seu pai, o senador Nabuco de Araújo8. Joaquim Nabuco deu seqüência a estas preferências anglófilas, onde a alteridade foi vista através do "espelho de próspero"9. Nesta mesma linha de reflexão que leva em conta a distinção em tela -e bastante influenciado por Nabuco- não podemos deixar de mencionar Gilberto Freyre10 e a interpretação do luso-tropicalismo, onde a questão desta distinção está muito presente. Tanto mais se mencionarmos o fato de Gilberto Freyre ter sido aluno do colégio metodista em Recife e ter sido enviado para realizar estudos universitários nos EUA numa rede de sociabilidade intelectual protestante11.

Por fim, numa variante da linhagem ideológica acima situada, a interpretação de Sérgio Buarque de Hollanda12 sobre o iberismo e o bacharelismo, leva em consideração as diferenças entre o individualismo do norte da Europa (culturalmente fundamentado na cultura religiosa protestante) e o catolicismo romano. Também não se pode deixar de mencionar que o mais conhecido livro de Sérgio Buarque de Hollanda foi escrito enquanto o autor encontrava-se em Berlim. Portanto, a análise comparativa presente nas interpretações destes pensadores sobre o Brasil enfocou mais as relações entre religião e cultura e menos as relações entre religião e economia política. Como bem sabemos, esta segunda tematização esteve presente nos estudos de Max Weber, Scheller e Tawney, por exemplo.

A diferença entre as duas vertentes da cristandade ocidental, convertida em distinção entre a América do Norte (protestante) e a América Latina (católica romana), na extensão dos prolongamentos ultramarinos europeus, não constitui originalidade ou genialidade dos autores brasileiros, ou de qualquer outro país. Na história das idéias políticas que povoaram as formações sociais, no caso, americanas (de norte a sul, voltamos a frisar), o lugar das idéias é sempre uma construção histórica, portanto, um não-lugar; sua vigência e pregnância expressavam, ao fim e ao cabo, as relações de força que se apresentaram na luta política no plano mundial. Queremos com isso dizer que esta discussão do campo intelectual ocorreu a partir da prática ideológica emergida das classes sociais (suas lutas e correlação de forças sociais e políticas), e dos grupos sociais (religiosos, econômicos, políticos e institucionais) presentes na dinâmica das lutas políticas pelas independências. O resultado de todo este processo, na pena de seus mais ilustres intérpretes, que naturaliza teleologicamente os "destinos históricos" destes países, submete ao silêncio os "futuros passados", referidos aos projetos políticos derrotados13; aquelas tantas outras possibilidades históricas não realizadas, cujo não-reconhecimento estreitam nossas próprias escolhas políticas no tempo presente.

Não podemos, portanto, ignorar o quanto a ação política da maçonaria (especialmente em sua vertente inglesa) esteve presente nos processos de independência das Américas. Se a articulação política nas duas margens do Atlântico esteve fortemente sediada em Londres (e a historiografia tem tratado à exaustão a influência inglesa nestes processos de independência), não podemos deixar de destacar o papel desempenhado pela Filadélfia na costura política das alianças e gestões para o controle político do mercado mundial, em substituição aos impérios ibéricos. Se a proeminência era inglesa, ainda assim não podemos, ademais, deixar de mencionar as disputas por este mercado mundial empreendidas pela França napoleônica. Contudo, a derrota francesa, num plano mais geral, fortaleceu a presença inglesa (e por extensão norte-americana). No entanto, as possibilidades históricas colocadas em termos das escolhas políticas que se apresentavam aos agentes históricos implicados naquelas disputas eram muito maiores do que aquelas dadas a conhecer pelo repertório das práticas historiográficas positivistas do iluminismo; nelas campeavam as perspectivas teleológicas, de naturalização de que a "única saída" possível para o "destino histórico" das sociedades submetidas à dominação dos impérios ibéricos era a independência, gerida e articulada pela emergente proeminência inglesa.

Queremos empreender a discussão sobre a história do conceito de América Latina (que surgiu em meados do século XIX), a partir da contribuição teórica de Reinhart Koselleck14. A história dos conceitos empreendida pelo autor implicou um mpeeamento do processo de semantização presente nas diferentes lógicas de nomeação, classificação e, enfim, expressão das interpretações políticas em diferentes temporalidades. Contudo, a precedência na formulação da história dos conceitos encontra-se no livro "Os Reis Taumaturgos" (1924) de Marc Bloch, um dos fundadores da Escola dos Annales15. O corte epistemológico empreendido pela mais influente escola historiográfica francesa no século XX visava à superação do positivismo e a consideração das mediações entre tempo, sociedade e indivíduo no processo cognitivo; daí a importância da datação e identificação e análise (histórica) dos significados e dos recursos heurísticos dos conceitos; tal como qualquer outra dimensão de análise nos estudos humanistas. "Mas a história dos conceitos -ou dos sentimentos- políticos não deve ser procurada nas obras dos teóricos; certos modos de pensar ou de sentir são mais bem revelados pelos fatos da vida cotidiana do que pelos livros"16. Sublinhe-se a chamada de atenção de Bloch para a história dos sentimentos políticos, considerados, por ele, forte componente nos processos de legitimação e aculturação.

A política externa e o campo da diplomacia nos países da Íbero-América passaram, portanto, pelo crivo político e ideológico londrino; com uma grande articulação com a maçonaria da Filadélfia17. Foi a partir da Filadélfia que se construiu, historicamente, o conceito de "América Latina"18. Na sua formulação original, na referência à latinidade encontramos a associação com o 'atraso' e o conservadorismo clerical do catolicismo romano.

Contudo, e o que nos parece mais importante, a referência à América Latina esteve ligada às investidas do imperialismo norte-americano em formação no século XIX, como situado por João Feres. De fato, sem discordar do rastreamento empreendido por Feres, consideramos que o processo de ideologização que dá suporte ao conceito expressa muito mais uma "idéia de América Latina" do que um "conceito de América Latina". A hegemonia da idéia de América Latina vai ocorrer principalmente a partir das últimas décadas do século XIX; esta idéia substituiu as referências geográficas até então predominantemente usadas de América do Norte, do Sul e Central.

Se, nas apropriações da interpretação comparativa no pensamento social e político no Brasil (com Tavares Bastos e outros) a idéia de América Latina estava referida a catolicidade da latinidade dos americanos (do sul e central); e se, nos processos sucessivos de apropriação cultural e atualização histórica, a latinidade, nas primeiras décadas do século XX, foi interpretada pela falta (aquele menos de progresso e modernidade), ela sofreu um deslizamento semântico, desde o segundo pós-guerra (século XX). Este deslizamento semântico deve ser atribuído à militância política de esquerda, especialmente aquela empreendida pelo campo literário latino-americano, que romantizou e re-significou a idéia de América Latina.

Esta a razão porque optamos para trabalhar a análise do campo político latinoamericano a partir do que denominamos gramática dos sentimentos. É no prisma dos sentimentos políticos, especialmente aqueles expressos no campo da estética (literatura especialmente), que capturamos a mudança de sentido da idéia de América Latina. Por exemplo, alguns autores e romances foram previamente selecionados e referidos com maior ou menor ênfase ao longo do curso oferecido no Programa de pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (PPGCP/ UFF), no segundo semestre de 2008: Manoel Scorza, com Dança Imóvel (Peru); René Depestre(Haiti) com Adriana Sempre nos meus Sonhos; Nestor Taboada Terán (Bolívia) com Manchay Puyto: el amor que quiso olvidar Dios ; Ernesto Sábato (Argentina) com O Túnel; Alejo Carpentier (Cuba) com Concerto Barroco;Machado de Assis (Brasil) com Memórias Póstumas de Brás Cubas; Gabriel García Márquez (Colômbia) com O Outono do Patriarca; Miguel Asturias (Guatemala) com Vento Forte; Augusto Roa Bastos (Paraguai) com Yo, El Supremo.

Foram destacados ainda como fio condutor do curso uma metodologia voltada para análise política de conjuntura, com ênfase na abordagem de Reinhart Koselleck relativa à semântica das temporalidades históricas. Por original e por trazer de modo contundente a problemática indígena na América Latina para a reflexão política, selecionamos ainda o pensamento político de José Carlos Mariátegui, capaz de iluminar as reflexões contemporâneas sobre América Latina.

A aula inaugural do Seminário foi ministrada pelo Professor Dr. Theotonio dos Santos sob o título "Processo Civilizatório e Desenvolvimento". O Seminário contou ainda com a presença de uma professora doutora convidada (Gizlene Neder) e com uma doutoranda que cumpria seu estágio docente vinculado a CAPES (Monica Bruckmann). Acompanhou o curso, à distância, Daniella Amaral Diniz da Silva, ex-bolsista no Mestrado em História na UFF e atualmentedoutoranda da Columbia Unniversity, Programa de Espanhol e Português.

Para além de introduzir a literatura nos estudos sobre ciência política como já o fazem vários departamentos universitários de estudos de língua francesa, estudos germânicos, literatura hispânica, etc., queríamos acentuar a importância desta relação do poder com os estudos sobre subjetividade, o que fazemos desde que apresentamos o ensaio Emotion in Motion, na Universida Antigua de Oñati, Pais Basco, no início da década de 1990. Este encaminhamento metodológico e a tematização dos sentimentos políticos (que chamamos de gramática dos sentimentos) vislumbram a construção de uma possibilidade de refletirmos comparativamente, e prospectivamente, sobre as formações sociais americanas latinas; desta vez jogando a luz reflexa na direção sul. Defendemos que os estudos no campo político que levam em conta a subjetividade devem alargar sua dimensão empírica para o campo da produção literária19, uma vez que o registro estético não está fora das relações de poder. A abrangência da prática ideológica do humanismo crítico presente no discurso literário abre a possibilidade de formulação teórica para o campo político e seus embates, inclusive naqueles referidos ao campo jurídico.

Aqui sugerimos que a questão das identidades, tanto latinoamericanas quanto sulamericanas, sejam pensadas também a partir dos estudos sobre as ideologias jurídicas. Por seu turno, estes estudos devem estar ancorados nas investigações mais gerais sobre cultura, etnodiversidade e especialmente a cultura política e jurídica concebida na pluralidade da sua manifestação na América do Sul nestes últimos 200 anos comemorados como Bicentenário. ¿Por que na atualidade, os governos sul-americanos preferem os mecanismos multilaterais como, por exemplo, a Corte Penal Internacional e o Mercosul, como instrumentos vitais para fortalecer as normas sobre direitos humanos em seus próprios países? O que queremos é compreender, no marco histórico, como chegam os sulamericanos a estas alternativas multilaterais no âmbito da cultura e do direito visando assegurar direitos ontem espezinhados pelos históricos colonizadores e hoje por aqueles que se sentem à vontade para impor, pela força, o seu poder político.

Os debates sobre a codificação legal (os diferentes códigos comerciais, criminais, civis, constitucionais, etc., dos diversos países da América do Sul) que se estenderam durante o largo período de ruptura com os projetos coloniais visando à independência nacional, constituem um dos principais sítios em que essas mesmas sociedades confrontaram mudanças sociais mais ou menos radicais associadas à modernização, à identidade social e à formação do Estado numa época de contestação e efervescência culturais.

Opções pelo multilateralismo no campo do direito que visam um direito internacional público em construção devem mirar o horizonte mínimo de princípios gerais da integração regional flexível que devem reger a proposta de um fórum visando a integração regional da América do Sul.20

Tais princípios podem ser assim explicitados:

1- A integração regional impõe-se a nós, sulamericanos, como exigência da mundialização e via para superação dos obstáculos internos e externos ao desenvolvimento.

2- A integração regional sul-americana faz emergir gradualmente uma cultura de globalização solidária do conhecimento. Esta deve ser capaz de incluir a cultura popular sulamericana, visando a sua valorização.

3- A integração regional sulamericana não acolhe projetos de hegemonia do unilateralismo, mas abraça o multilateralismo (solidário) do ponto de vista econômico, político e cultural.

4- A integração regional sulamericana se realiza a partir do mapeamento dos significantes históricos de resistência tanto aos projetos de dominação colonialista quanto ao "dever de obediência e submissão" inscrito no unilateralismo da vanglória de mandar. A grande lição que nos dá o filósofo Slavoj Zizek, apoiado em Chesterton, é que, contra o antigo lema obscurantista "não pense, obedeça", Imanuel Kant levanta-se com seu brado iluminista "pense o quanto quiser, com toda a liberdade que você quiser, mas obedeça!". Este suposto lema libertário, mas de natureza burguesa e liberal, não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta. Daí o seu caráter fundamentalmente autoritário e conservador na atualidade. O direito deve olhar-se no espelho da pós-modernidade e inquirir-se diante deste paradoxo do imperativo categórico kantiano. Em que consiste, na época pós-moderna, a liberdade de desconstruir, duvidar, distanciar-se?

5- A integração regional sulamericana visa um padrão de interlocução a partir da diversidade nacional, étnica, religiosa, de gênero e de qualquer outra natureza, explorando-se a riqueza multitudinária das singularidades históricas numa perspectiva pluralista.

Isto posto, podemos então nos referir à formação das sociedades nacionais na América do Sul, no âmbito de um direito constitucional de base e influência romanista. Na América de colonização espanhola e portuguesa (ibérica, portanto), a influência jurídica românica vem envolta no Direito Canônico tomista e nas sucessivas leituras escolásticas dos padres da Igreja Romana até render-se ao absolutismo ilustrado, travestido de iluminismo, de caráter regressista e conservador, porém modernizante. (recorde-se aqui a célebre máxima de Lampedusa em Il gattopardo: "mudar para não mudar")

Devemos, pois, priorizar o estudo dos juristas sul-americanos da época da independência; por exemplo, os iniciadores das denominadas "Codificação do Pacífico" e "Codificação do Atlântico Meredional", respectivamente Andrés Bello e Augusto Teixeira de Freitas. No mesmo diapasão devem ser estudados, entre outros, o jurista argentino Vélez Sarsfield e os brasileiros Clóvis Bevilácqua e Rui Barbosa.

Trata-se, na verdade de rastrear, nos distintos países sulamericanos, a codificação nacional, sua inspiração última, a idéia de política que norteava os debates legais para que possamos alcançar os desdobramentos tanto na modernidade quanto na atualidade pós-moderna. ¿Será que podemos falar de um direito íberoamericano na América do Sul? ¿Ou mesmo de um direito sulamericano? ¿Como se realizam as influências da segunda e terceira escolástica neste direito? ¿Como se dá, sob a bandeira dos códigos criminais, a judicialização da polícia civil ou judiciária? Sob a legislação de exceção, em distintos momentos mais ou menos comprometidos com regimes ditatoriais, ¿como se dá a militarização da polícia ostensiva e repressiva, em muitos países denominada de polícia militar? ¿São temas da maior relevância tanto para a discussão da formação das polícias, nos estados nacionais, quanto para o formato que vai adquirir o procedimento do inquérito penal (a sua presidência e devida condução) e o próprio código de processo penal. Sobretudo, que partido se pode tirar deste forte legado cristão na contemporaneidade?

Os estudos propostos caminham na direção de se pensar a possibilidade um direito penal internacional de base sulamericana, mas também uma nova visão de direito público a partir de alguns elementos já postos pela realidade: uma nova teoria da empresa, com a existência de empresas públicas, controladas socialmente, de empresas privadas de interesse público, de empresas privadas voltadas para o mercado, etc. No âmbito da relação estado e sociedade, talvez tivéssemos que pensar uma esfera que não fosse nem estatal nem puramente civil-privada; uma esfera pública não-estatal, onde se devem produzir uma nova normatividade e novas formas de controle sobre as políticas públicas e sobre a gestão propriamente dita.

Notas

1. Ver A Bienal de Xangai - 2008 vale 'um potosi': cidade, poder e circularidade culturalin PASSAGENS Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica - Ano I, n. 1 janeiro/ junho de 2009. págs. 94/ 109. http://www.historia.uff.br/revistapassagens/        [ Links ]

2. A designação, "Escola de Niterói", está desenvolvida em texto de nossa co-autoria: Cerqueira Filho, Gisálio e Neder, Gizlene. "A Teoria Política no Brasil e o Brasil na Teoria Política", in Anais do 4º. Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, Rio de Janeiro: www.iuperj.br, 2004.         [ Links ]

3. Cerqueira Filho, Gisálio. Vulnerabilidade Psíquica, Poder e Teoria Política, Niterói: Universidade Federal Fluminense, Projeto de Pesquisa, 2006-2010.         [ Links ]

4. Gisálio Cerqueira Filho vem, desde 2006, ministrando disciplinas no PPGCP, especificamente sobre a problemática da Teoria Política no Brasil. "Teoria Política no Brasil e o Brasil na Teoria Política: Euclides da Cunha", "Teoria Política no Brasil e o Brasil na Teoria Política: Gilberto Freyre", "Teoria Política e Gramática dos Sentimentos na América Latina"; e "Teoria Política no Brasil e o Brasil na Teoria Política: Sérgio Buarque de Holanda".

5. Neder, Gizlene. Cultura Jurídica e Cultura Religiosa no Iluminismo Penal (1830-1940), UFF, Niterói: 2007-1010;         [ Links ] e Neder, Gizlene. Conservadorismo, Diplomacia e Idéias Jurídicas no Segundo Reinado, UFF/CNPq, Niterói: 2008-1011.         [ Links ]

6. Gugliotta, Alexandre Carlos. Entre Trabalhadores Imigrantes e Nacionais: Tavares Bastos e seus Projetos para a Nação, Niterói: 2007, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Orientadora: Gizlene Neder.         [ Links ]

7. Nabuco, Joaquim. Minha Formação, São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949.         [ Links ]

8. As relações entre autores de temporalidades distintas (Tavares Bastos, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre) encontram-se desenvolvidas em: Neder, Gizlene e Ribeiro da Silva, Ana Paula Barcelos. "Intelectuais, Circulação de Idéias e Apropriação Cultural. Anotações para uma discussão metodológica", In Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Niterói: 2009, vol. 1, n. 1, p. 29-55, http://www.historia.uff.br/revistapassagens/num_public.php        [ Links ]

9. Morse, Richard. O espelho de próspero. Cultura e Idéias nas Américas, São Paulo: Companhia das Letras, 1988.         [ Links ]

10. Freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975.         [ Links ]

11. Pallares-Burke, Maria Lúcia. Gilberto Freyre, um vitoriano nos trópicos, São Paulo: EdUNESP, 1995.         [ Links ]

12. Hollanda, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1976.         [ Links ]

13. Koselleck, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto/EdPUC-RIO, 2006.         [ Links ]

14. Koselleck, Reinhart. Crítica e Crise, Rio de Janeiro: Contraponto/ EdUERJ, 1999;         [ Links ] Koselleck. Reinhart. Futuro Passado, Op. cit.

15. Bloch, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.         [ Links ]

16. Idem, p. 152.

17. O que constitui uma prática geral da política externa norte-americana: López Michelsen, Alfonso. La estirpe calvinista de nuestras instituciones políticas, Bogotá: Ediciones Tercer Mundo, 1966.         [ Links ]

18. Feres Jr., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: EdUSC/ANPOCS, 2005.         [ Links ]

19. Não nos esqueçamos que o texto inaugural da 'Escola de Frankfurt', ao romper com o positivismo, aborda justamente a inclusão da sensibilidade no processo cognitivo. Adorno, Theodor e Horkheimer, Max. "Teoria Tradicional e Teoria Crítica", in Os Pensadores, volume XLVIII, Rio de Janeiro: Abril Cultura, 1975, p. 123-162.         [ Links ]

20. Ver o GT-13 do Fórum Universitário do Mercosul (FoMERCO), coordenado pelos autores.

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