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Revista Pilquen

versión On-line ISSN 1851-3123

Rev. Pilquen. secc. cienc. soc. vol.20 no.4 Viedma dic. 2017

 

RESE‘A

Miriam V. Gárate. Entre a letra e a tela: literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017, 228 pp., ISBN 978-85-92989-05-7.

Palmireno Couto Moreira Neto
palmireno.neto@gmail.com

Universidad Federal de Rio de Janeiro; Universidade Estadual de Campinas. Brasil

Recibido: 01|12|2017
Aceptado:
11|12|2017

  

"O espetáculo da moda no México é o cinematógrafo. Sua apari§£o tem comovido a capital." ‰ o que informa Luis G. Urbina em uma cr´nica publicada no jornal mexicano El Universal em agosto de 1896. O relato registra a repercuss£o local de algumas das primeiras proje§µes realizadas na América Latina com o aparelho inventado pelos irm£os Lumi¨re. No mªs anterior, o cinematógrafo já havia sido apresentado no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. No mesmo ano, chegaria a Santiago. Em 1897, seria a vez de Lima.1

Comparando o cinematógrafo ao quinetoscópio de Thomas Edison e a um conjunto de fotografias apresentadas na Exposi§£o Imperial, Urbina elege o primeiro como o vencedor de uma disputa implícita pela aten§£o dos espectadores. Além de prevalecer pela capacidade de representar o movimento, o cinematógrafo liberaria o olhar do pºblico da lente imposta pela cria§£o de Edison. O resultado, para Urbina, era admirável:

Aos poucos se apagam as l¢mpadas elétricas que, retorcidas, fulguravam dentro de sua voluta de vidro e, no quadro alvo, uniforme e limpo como uma página em branco, se apresenta de improviso uma estampa, uma fotogravura, uma ilustra§£o de revista, grande, do tamanho natural e cujas duas silhuetas adquirem, evidentemente, um relevo e uma vivacidade que n£o possuem no quinetoscópio. S£o dois bebªs sentados em sendas cadeiras, num jardim, um do lado do outro, e que brincam e se arrebatam suas ninharias. O menor, que n£o tem um ano, fica com raiva de que o outro, que apenas o dobra em idade, abuse de sua for§a e lhe arranque das m£os o que ele considerava nesse momento a coisa mais preciosa do mundo: uma colher. Por uma colher se trava o combate, um combate cheio de acidentes e pormenores variadíssimos. Vence a for§a como sempre e, enquanto o rapaz de vinte meses ri de mandíbula aberta por seu triunfo, o de dez, convulso pelos solu§os, levanta as m£os ao céu em sinal de desespero e pedido de socorro. N£o se ouve chorar este nem rir aquele, mas os gestos e a mímica foram tomados com tal exatid£o que o sentimento de realidade se apodera do espectador e o domina por inteiro. Está-se diante de um fragmento da vida, clara e singela, sem pose, sem fingimentos, sem artifícios.2

A cena mencionada por Urbina é notória. Trata-se do ºnico plano de Querelle Enfantine, filme realizado em 1896 e atribuído a Louis Lumi¨re. Apesar de silenciosa, a disputa infantil por um utensílio prosaico provoca tal sensa§£o de realidade que adquire, na linguagem do escritor, o estatuto de objeto vivo.

Mais de dez anos após as exibi§µes iniciais na Cidade do México, em novembro de 1907, Olavo Bilac narraria na Gazeta de Notícias uma breve (mas exaustiva) passagem por algumas salas de proje§£o da ent£o capital brasileira: "Venho escrever esta ‘Cr´nica’ depois de uma longa excurs£o. Estou derreado, tenho dores nos rins e nas pernas, doem-me os olhos de ter visto tanta coisa, dói-me o cérebro de haver pensado tanto. A minha viagem durou duas horas: entretanto, em t£o escasso tempo achei meio de ver meio mundo: estive em Paris, em Roma, em Nova York, em Mil£o." Depois de descrever um surpreendente itinerário visual, o debilitado cronista brasileiro prossegue enumerando os eventos que seus olhos haviam frequentado no período dedicado ao cinematógrafo: "vi Cristo nascer e morrer, desci ao fundo de uma mina de carv£o; estive ao lado de um faroleiro, no alto de um farol, entre os uivos das ondas; assisti ao tumulto de uma greve na Fran§a; vi o imperador Guilherme passar revista no exército alem£o na Westfália; vi Sans£o ser seduzido e vencido por Dalila, e sepultar-se sob as ruínas do templo derrocado..." Mesmo exaurido após o passeio, Bilac, pressionado pelas demandas da imprensa diária, redige o seu comentário para a gazeta.3

Em setembro de 1913, outro escritor, novamente no México, também elegeria o cinema como tema de uma cr´nica: "O sal£o encerra uma apertada multid£o. Embaixo, a eleg¢ncia dos personagens, das almofadinhas e das damas importantes; os rostos polidos das mo§as que buscam com olhares dissimulados seus namorados e a inquieta§£o das crian§as ávidas em contemplar a magia das proje§µes." Assinada por Tristán, pseud´nimo de Ramón López Velarde, o texto publicado em El Eco de San Luis Potosí apresenta inicialmente um olhar voltado para o lado oposto   tela. No espa§o construído para a implementa§£o do espetáculo cinematográfico, descobrimos que, apesar da frequªncia conjunta ao cinema, as distintas classes sociais de San Luis Potosí, como as de tantas outras cidades ao redor do mundo, reencenavam, dentro da própria sala, as posi§µes bem marcadas da ordem social: "Nos primeiros balcµes, famílias de classe média que, no descanso dominical, recompµem-se das fadigas da semana. As galerias, ocupadas por uma multid£o popular que, em seu instinto de curiosidade primitiva, do tempo das cavernas, quer divertir-se a pre§o ínfimo." Decerto, uma heran§a do espetáculo teatral, que já havia definido, por meio de uma disposi§£o semelhante da plateia, um modo de controlar a heterogeneidade do pºblico. Na mesma cr´nica, acompanhamos mais uma vez o fascínio despertado pela proje§£o cinematográfica: "A orquestra irrompe com uma valsa de simples compassos, o sal£o some em penumbras e na tela sucedem-se quadros diversos: cenas marinhas, desfiles medievais, episódios de galanteria moderna, lances refinados e covardes de Salºstio, idílio no campo, magias infernais, revista Pathé..." A imers£o de López Velarde é, no entanto, parcial. Embora acompanhe essa sucess£o de cenas t£o díspares, o cronista permanece atento   artificialidade do espetáculo: "E sobre as cabe§as atentas fulge, como uma fita diáfana, o raio da proje§£o, enquanto se escuta o ruído monótono do aparelho, como uma voz que dá ordens constantes  s imagens da tela." (37-38)

Entretecer essas e outras cr´nicas dedicadas ao cinema é aquilo que propµe Miriam Gárate, pesquisadora e professora do Departamento de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Em Entre a letra e a tela: literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932), livro recém-lan§ado pela Papéis Selvagens Edi§µes, Gárate aproveita a sua frequªncia pelos universos brasileiro e hispano-americano (a autora é natural de Rosário, na Argentina, onde concluiu a gradua§£o em Letras, e leciona desde 1992 na UNICAMP, universidade na qual realizou o doutorado em Teoria e História Literária) para problematizar algumas vincula§µes entre literatura, imprensa e cinema na América Latina na virada do século XX.

Os ensaios reunidos pela autora, voltados para a produ§£o cinematográfica do período do cinema silencioso, retªm o tema da viagem como princípio unificador. No caso da cr´nica de Urbina, esse motivo poderia ser identificado na abordagem de diversos dispositivos óticos realizada pelo cronista, bem como nas imagens apresentadas por meio desses diferentes métodos de representa§£o visual. Na de Bilac, escrita em um momento no qual o cinematógrafo já havia sido absorvido como uma forma de entretenimento característica das grandes metrópoles da regi£o, a viagem seria instaurada por meio do percurso seguido pelo olhar do escritor (olhar direcionado para a tela e para as ruas da cidade) durante a sua passagem por algumas salas de proje§£o do Rio de Janeiro. Finalmente, na cr´nica de López Velarde, intuímos a presen§a do tema nos filmes mencionados e na própria descri§£o do espa§o de exibi§£o. Considerando as outras cr´nicas analisadas ao longo do livro, a proposta de Gárate torna-se ainda mais ampla. O motivo da viagem seria retomado "tanto em cr´nicas que testemunham a chegada do cinematógrafo   América Latina e o desenvolvimento do novo espetáculo durante o início do século XX, quanto em fic§µes narrativas que se trasladam   que se constituiria na Meca do cinema, ou em escritos e filmes que retomam, mas simultaneamente reavaliam a tradicional peregrina§£o  s metrópoles do velho continente." (8)

O tratamento do tema, como aponta a autora, n£o caracterizava apenas parte da produ§£o cinematográfica do período ou cr´nicas dedicadas ao cinema. A matéria marca um vasto conjunto de narrativas, cole§£o na qual poderíamos incluir guias, relatos e artigos publicados na imprensa oitocentista. Modo de familiarizar o pºblico leitor a geografias e culturas longínquas, a explora§£o do assunto em revistas e magazines também foi afetada pelo aprimoramento das formas de representa§£o:

A crescente incorpora§£o de ilustra§µes possibilitada pelo desenvolvimento das técnicas de reprodu§£o (inicialmente, litografias, fotografias, depois), faz parte desse universo, no qual a viagem em suas várias acep§µes e a cultura visual em expans£o se associam intimamente. Estampas, cartµes-postais, panoramas, lanternas mágicas, mas também avenidas, alamedas, parques, confeitarias, bares, exposi§µes e vitrines, integram uma paisagem social modernizada   qual as capitais latino-americanas n£o s£o alheias e em que se amalgamam a viagem do sujeito pelos espa§os pºblicos, a viagem de seu olhar, endere§ado tanto aos outros quanto  s coisas, a viagem propiciada por entretenimentos ou espetáculos específicos e também, é claro, as viagens efetivas em bondes, trens, navios " n£o por acaso, imagens onipresentes nas primeiras vistas cinematográficas. (8-9)

Como sustenta Gárate, o cinematógrafo, uma das maravilhas técnicas do processo de moderniza§£o,4 foi incorporado ao cotidiano das cidades latino-americanas dentro do quadro mais amplo das op§µes de lazer que a urbe oferecia aos seus habitantes. Além disso, a imagem cinematográfica estava associada a um conjunto de práticas desenvolvidas ao longo do século XIX. Em Entre a letra e a tela, tal vincula§£o entre cinema e cultura aproxima-se, segundo a própria autora, da proposta formulada por Leo Charney e Vanessa Schwartz sobre a forma§£o de uma ampla cultura visual na modernidade, cultura da qual o cinema seria apenas mais uma express£o. (9)5

Nessa perspectiva, o cinema também fazia parte também de um circuito de trocas simbólicas no qual a palavra, igualmente sensível ao processo de moderniza§£o, estava inserida. Recorrendo  s pesquisas de Julio Ramos sobre a moderniza§£o da imprensa nos países hispano-americanos6 e  s de Marlyse Meyer e Dimas sobre a cr´nica, Gárate defende no primeiro ensaio do livro que os escritores-cronistas respondiam nesse período a uma dupla demanda: produzir textos dentro de uma cultura do entretenimento e demarcar uma posi§£o distinta daquela ocupada pelo repórter. Ademais, concorrendo com o cinema na cultura do lazer da virada do século, a cr´nica compartilharia com o cinematógrafo a abordagem ao tema que perpassa a análise da autora: "A cr´nica urbana, gªnero volátil e versátil, palavra em viagem que se arroga a fun§£o de transportar a literatura   imprensa cotidiana, adota com frequªncia um recurso estruturador homólogo: o da retórica do passeio." (9)7

No mesmo ensaio, Gárate utiliza a pesquisa de Flávia Cesarino Costa sobre o cinema da virada do século XX8 e mobiliza a defini§£o de "cinema de atra§µes" de Tom Gunning para delinear um espa§o comum ocupado pela imagem e pela palavra:

Embora o termo tenha sido empregado por Tom Gunning para enfatizar o caráter heteróclito e fortemente sensorial do cinema prévio   consolida§£o do cinema narrativo de f´lego como modelo hegem´nico, percebe-se a sintonia existente entre a heterogeneidade do espetáculo cinematográfico primitivo, a do jornal diário e, no interior deste, a da cr´nica. Cada mídia possui suas especificidades; elas integram, no entanto, um mesmo mundo, no qual   for§a do descontínuo e do heteróclito se contrapµem estratégias de religa§£o.(32)

Nos ensaios seguintes, Gárate prossegue, ampliando o corpus de análise (que inclui, entre outros, escritos de Alfonso Reyes e Martín Luis Guzmán, Jo£o do Rio, Roberto Arlt, Horacio Quiroga e Ant´nio de Alc¢ntara Machado) a sua abordagem das rela§µes entre cinema silencioso, literatura e imprensa. S£o examinadas diversas compara§µes estabelecidas entre cinema, teatro e romance; os riscos sociais apontados na produ§£o cinematográfica e o seu suposto papel na forma§£o moral dos espectadores; narrativas ficcionais que exploram o cinematógrafo como tema; e, por fim, a convergªncia entre a literatura, a imprensa e o cinema em algumas manifesta§µes das vanguardas artísticas. Um mosaico bem construído que permite apontar Entre a letra e a tela, livro no qual a autora adota uma atitude ensaística que recusa previamente (e sabiamente) qualquer pretens£o   totalidade, como uma obra fundamental para os estudos dedicados  s mºltiplas vincula§µes entre literatura e cinema silencioso na América Latina.

Notas

1. A cita§£o de Urbina pode ser conferida em Gárate. Miriam V. Entre a letra e a tela: literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932), p. 22. A cronologia das primeiras exibi§µes realizadas com o Cinématographe Lumi¨re na América Latina segue a mesma obra, p. 21-22.

2. Urbina, Luis G. apud ibid., p. 26-27.

3. Bilac, Olavo apud Gárate, Miriam V. Entre a letra e a tela: literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932), p. 32-33.

4. Para Edgar Morin, uma máquina t£o miraculosa quanto o avi£o: "o prodígio consistia, dessa vez, n£o mais em se lan§ar para além dos limites aéreos onde moravam apenas os mortos, os anjos e os deuses, mas em refletir a realidade de forma bem terra a terra. O olho objetivo " e o adjetivo aqui tinha tal peso que se tornava substantivo, a objetiva " captava a vida para reproduzi-la, ‘imprimi-la’, segundo a palavra de Marcel L’Herbier.", O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica. S£o Paulo: ‰ Realiza§µes Editora, 2014. pp. 21-22.

5. A respeito dessa quest£o, ver Charney, Leo (org.); Schwartz, Vanessa R. (org.) O cinema e a inven§£o da vida moderna. Na abertura de Entre a letra e a tela, S£o Paulo: Cosac Naify, 2004, ao explicitar as razµes que a levaram a evitar problemas relacionados   adapta§£o de obras literárias ao cinema, Gárate antecipa a abordagem adotada em sua obra: "Sem desconhecer a crescente sofistica§£o das reflexµes conduzidas nesse ¢mbito (limitadas, no passado,   avalia§£o de supostos graus de fidelidade ou infidelidade na transposi§£o), ou a precoce reconvers£o do repertório literário   linguagem cinematográfica, optou-se por abrir a indaga§£o para outras formas de intera§£o entre a letra e a tela inscrevendo-as, de saída, em um horizonte cultural mais fluido e mais vasto." (7)

6. Para analisar o mesmo processo no contexto brasileiro, Gárate recorre aos estudos de Flora Sussekind.

7. Retórica do passeio, como reconhece a autora, é uma ideia tomada da obra de Julio Ramos.

8. Ver Costa, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narra§£o, domestica§£o. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.

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