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Memoria americana

versión On-line ISSN 1851-3751

Mem. am.  n.16-2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jul./dic. 2008

 

ARTÍCULOS

Identidades e conflito na fronteira: poderes locais e os chiquitanos 1

Identities and conflict at the frontier: local powers and the chiquitanos

Joana A. Fernandes Silva

Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás joana@fchf.ufg.br

Resumo

Pretendo apresentar, baseando-me na teoria das identidades e na idéia do fundamentalismo cultural, uma reflexão sobre as relações interetnicas entre os Chiquitanos e não índios, em uma região de fronteira nacional situada entre dois estados nacionais (Brasil e Bolívia). Trato aqui de um fato notável que vem ocorrendo na área estudada e que se refere à discussão da etnicidade por parte dos regionais (fazendeiros, políticos e etc.). Uma campanha, promovida por alguns políticos e pelo governador de Mato Grosso, foi veiculada entre 2005 e 2006 pela imprensa escrita no estado buscando convencer a população mato-grossense da não indianidade dos Chiquitanos e comprovar que são estrangeiros, imigrantes da Bolívia para o Brasil. O que está em jogo i não é apenas uma questão ligada à identidade e autenticidade, mas uma disputa por terras indígenas por parte dos donos de terra da região. Neste sentido, a afirmação recorrente de que ali não há índios, apenas estrangeiros e imigrantes, é uma maneira própria do fundamentalismo cultural, que admite as diferenças, mas ao admiti-las, esvazia o diferente de seus direitos legítimos e advogam-se os direitos de quem é brasileiro e nacional. Neste artigo apresenta-se uma breve história dos Chiquitanos no Brasil, buscando-se o entendimento de sua situação atual.

Palavras chaves: Identidade; Nacionalidade; Fronteira; Etnicidade; Fundamentalismo cultural.

Abstract

I intend to present, based on identities theory and on cultural fundamentalism ideas, a reflection about interethnical relations, among the Chiquitanos and non-indians, in a region of national frontier, located between two national states (Brazil and Bolívia). I deal here with a remarkable fact lately occurring in this área which refers to ethnicity debates among regional population (politicians, farmers, etc.) A campaign, promoted by some politicians and by State of Mato Grosso governor, during 2005 and 2006, through written press, tried to convince state population of the non-indianity of the Chiquitanos and to prove that they are foreigners, i.e. Bolivian immigrants in Brazil. What is at play here, is not only a matter related to identity and authenticity, but a dispute for indigenous lands on the part of local land owners. In this sense, recurring affirmations that there are no indians in those lands, only foreigners and immigrants, is in itself a way of cultural fundamentalism, which admits differences, but when admitted, turn them empty of legitimate rights, advocating brazilians and national populations rights. It is presented in this article a short history of the Chiquitanos in Brazil, with the objective of understanding their current situation.

Key words: Identity; Nationality; Frontier; Ethnicity; Cultural fundamentalism.

Introdução

No Brasil, os Chiquitanos vivem no Sudoeste de Mato Grosso, nos municípios de Cáceres, Porto Espiridião e Vila Bela da Santísima Trindade e na Bolívia na província de Velasco e Nuflo de Chaves, básicamente nos mesmos locais onde existiram os aldeamentos jesuíticos e nas suas proximidades.

As pesquisas de campo no Brasil demonstraram que a aparente dispersão dos Chiquitanos entre os vários municípios mencionados obedecem a uma lógica de agrupamentos que se baseiam em relações de parentesco, casamentos, redes de amizade e de trocas. Assim, foram identificados seis núcleos principais que, diferentes entre si, guardam similitudes internas e mantém a unidade étnica entre os Chiquitanos (Silva et al. 2000) 2. São eles os seguintes:

a- No Núcleo de Limão estão incluídos os estabelecimentos de Limão, da Beira da Estrada e de Corixa Grande. Estes são os mais vulneráveis em relação aos demais, pois Limão é um bairro rural, muito próximo a Cáceres e um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que deu títulos de pequenos lotes não apenas aos Chiquitanos e a duas famílias de Bororo e Guató, mas também a migrantes do Nordeste. Limão fica nas margens da rodovia entre Cáceres e San Matias, na Bolívia. Em uma distância relativamente próxima havia, na época da coleta de dados, um pequeno agrupamento, de oito famílias, que acamparam na beira da estrada após terem sido expulsas por um fazendeiro da região. Ali construíram suas casas, plantaram suas roças e estavam levando suas vidas. A comunidade de Corixa Grande localiza-se no ponto geográfico da fronteira da Bolívia com o Brasil, na zona neutra entre os dois países e tem uma população predominantemente de Chiquitanos. Está muito próxima ao Destacamento Militar de Corixa Grande e é um local mencionado tradicionalmente na bibliografia histórica.

b- O núcleo de Fortuna, cujo nome remete-se ao Destacamento Militar no local, abriga as comunidades de Fazendinha e Acorizal, atualmente identificadas pela Terra Indígena Portal do Encantado3. Sua sobrevivência baseou-se, até recentemente, no trabalho que faziam nas fazendas próximas; depois da identificação de suas terras os conflitos acirraram-se com os fazendeiros 4, que não os contratam mais como mão de obra. É sobretudo deles que se fala nesse artigo.

c- Osbi, que inclui aldeias de Nossa Senhora Aparecida, São Miguel, Santa Clara, Morrinhos, São Simão, Santa Mônica e As Cruz; estes estabelecimentos são bem estruturados, mas sofrem pressões extremas dos fazendeiros ao redor e ao mesmo tempo, em geral são assalariados e trabalham como peões nas fazendas. Santa Monica e São Simão estão ao redor de destacamentos militares. Afirmar que estão ao redor é força de expressão, uma vez que todas as histórias sobre a territorialidade dos Chiquitanos demonstram que o exército brasileiro instalou-se onde os Chiquitanos viviam.

d- O núcleo de São Sebastião inclui São Sebastião e Bocaina. Em 2000, período em que fizemos trabalho de campo, moravam cerca dezessete famílias em São Sebastião, que tinham chegado por volta de 1950, quando era "sertão bruto", mas foram expulsos pela chegada da fazenda São João do Guaporé. Os relatos colhidos apontam para uma região densamente povoada, mas esvaziada a partir de 1976, pelas novas fazendas instaladas; seus moradores relatam a intensa expulsão de Chiquitanos.

e- No núcleo de São Fabiano, estão incluídas Asa Branca e Vila Nova. São Fabiano, um assentamento do INCRA, tem cerca de vinte e duas famílias  de Chiquitanos, que não se identificam oficialmente como tais, mas pela origem histórica é possível perceber que têm a mesma história dos demais estabelecimentos estudados. Um dos motivos que os levam a evitar a auto-identificaçao de índios, nos explicaram, seria porque lhes disseram que caso a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) os identificasse como tais, teriam que andar nus e não poderiam mais fazer suas roças tradicionais. Ao lado do destacamento militar de Asa Branca vivem algumas famílias  de Chiquitanos, com terras também tituladas pelo INCRA. Asa Branca tem casas dispostas ao longo de duas pequenas ruas, com pouco espaço para agricultura.
Vila Nova, próxima a São Fabiano, é constituída de uma população que foi expulsa da aldeia de Barbecho, limítrofe à Bolívia. Atualmente é um pequeno agrupamento de pessoas, suscetível às pressões e ameaças de um fazendeiro que pretende que as terras de Barbecho sejam suas.

f- População na cidade. A população urbana dos Chiquitanos, que vive em Cáceres, Porto Espiridião, Vila Bela ainda não está estimada, pois não há pesquisas sobre eles. As informações sobre essa população emanam dos trabalhos de campo e das entrevistas realizadas.  Sempre há pais, mães, tios e avós que se referem a filhos ou netos que vivem nessas cidades; a maior parte deles migrou respondendo às pressões de fazendeiros que expulsaram moradores Chiquitanos de suas terras. No caso de moradores próximos aos Destacamentos Militares (Asa Branca, Fortuna, Santa Rita, Santa Mônica, Corixa Grande, Palmarito e Casalvasco), parte das novas famílias constituídas foi obrigada a mudar-se para a área urbana, uma vez que o exército não concedia permissão para  novos casais construírem suas casas e fazerem suas roças.  Em geral, eles moram em periferias, realizam trabalhos braçais e as mulheres trabalham como empregadas domésticas.

No lado boliviano, do "outro" lado da fronteira brasileira, vive a maior parte dos Chiquitanos. Se no Brasil a população em aldeias pode chegar a cerca de duas mil pessoas, na Bolívia é estimada entre 40.000 e 60.000 pessoas. Os padrões de estabelecimento dos Chiquitanos no país vizinho variam entre "ranchos"(talvez um equivalente a aldeia, em português), em Santo Corazón, San Jose e San Inácio de Velasco, "pueblos"etrabalhadores em fazendas.

Na Bolívia, assim como no Brasil, os Chiquitanos também trabalham em fazendas (estâncias e establecimiento), onde são também muito explorados. Na  província de Nuflo de Chaves, de acordo com Riester, "[el hombre] gana un pantalón al año y su mujer un vestido. Para el dueño de establecimento el indígena tiene que trabajar arduamente a lo largo del año y, además, regalarle al patrón pollos y huevos para las fiestas" (Riester 1976: 138).

Historicidades fraturadas e as territorialidades suspensas

Na fronteira mais interior da Bolívia estão as remanescências das missões  jesuíticas, os "pueblos", que muito têm importância para esse trabalho, principalmente San Ignacio, Santa Ana, San Rafael e San Miguel, em virtude das redes de relacionamento e de parentesco que se estendem do Brasil para esses locais. Essa referência é, sobretudo, dos mais velhos, pois com a crescente militarização da fronteira e crescente controle por causa do tráfico de drogas e da dificuldade em viajar, essas relações podem estar sofrendo certo processo de afrouxamento, na medida em que as nacionalidades estão se tornando mais patentes e mais presentes 5.

Pela literatura e pela observação realizada, pode-se dizer que a fronteira tem algo de abandono, algo de vulnerável e, ao mesmo tempo, de ameaçador. Algo de desarrumado, algo de que está ainda por se tornar, por se fazer. Talvez porque seja resultado não apenas de uma conjunção de dois países, mas por ser um espaço historicamente pouco diferenciado e diferenciador em termos das nacionalidades de seus moradores, mas enormemente diferenciado em relação ao restante de seus países.

Ou seja, na fronteira os poderes constituídos da nação estão praticamente ausentes. A presença dos poucos destacamentos militares em uma longa fronteira seca não permite um forte controle do que ocorre na divisa entre os países e há como que uma lógica própria e uma paisagem singular nesse lugar de passagem.

No entanto, estar aqui ou lá, no Brasil ou na Bolívia, traz marcas diferenciais. Pelo fato dos Chiquitanos serem separados pela fronteira entre dois estados nacionais, mas em um território relativamente contínuo, vivenciam uma situação bastante singular que é a de terem sido sujeitos de duas histórias diferentes -a boliviana e a brasileira- e de sofrerem diferentes tipos de pressões e conflitos com não índios. A fronteira, além dessa linha que separa dois países, que os limita geopoliticamente, da perspectiva da dinâmica das relações entre as populações locais, é um espaço de sociabilidade diferenciada, de comércio, de situações lingüísticas compartilhadas e etc. Roberto Cardoso de Oliveira (2006), propõe o entendimento deste espaço da fronteira como um lugar de convivência entre culturas e povos, um espaço transnacional.


Populações indigenas na área estudada, de acordo com Crequi-Monfort e Rivet.

Desta perspectiva, os Chiquitanos também compartilham elementos da história e da cultura, uma vez que a linha divisória da fronteira nem sempre foi muito clara e ter sofrido constantes modificações através dos vários tratados e limites entre Brasil e Bolívia. A guerra do Chaco 6, por exemplo, que ocorreu entre os anos de 1932 e 1935 atingiu os Chiquitanos de ambos os lados, pois meninos de apenas quinze anos eram arregimentados pelo exército para lutar. Muitas famílias esconderam-se em lugares mais interiores da fronteira no Brasil, tentando evitar a morte prematura de seus filhos. As marcas dessa guerra ainda estão na memória de muitas famílias e, de certa maneira, nas impressões deixadas no território desse povo. Muitos dos Chiquitanos do lado brasileiro, sobretudo os mais idosos, "cortam a castilha", isto é, falam o espanhol, herança de um tempo em que a fronteira existia apenas no nome.

A separação dos Chiquitanos em dois povos, um boliviano e um brasileiro, ocorreu de uma maneira tão traumática que não aparece em seus discursos a concepção de que são um único povo; sua territorialidade, no entanto, é costurada, até certo ponto, pelas relações de parentesco e pelos núcleos populacionais e suas redes, entre um e outro lado da fronteira, jogos de futebol e pela procissão de Santa Ana, estudada por Moreira da Costa (2006) 7. A fratura na história reside na geopolitica, pois os Chiquitanos mantiveram amplamente seus laços, de parentesco, de amizade e rituais, independentemente dos assuntos de fronteiras nacionais.

O mapa a seguir, demonstra a presença dos Chiquitanos desde a margem do rio Guaporé até a Bolívia, onde aparecem os Pauserna, os Saraveka, os Kuruminaka e os Kurukaneka, alguns dos povos aldeados pelos jesuítas.

Metodología

A pesquisa para este trabalho vem sendo realizada desde 1998 em diferentes contextos, mas sempre com o mesmo tipo de orientação metodológica, qual seja, uma combinação de trabalho de campo, com a consulta de uma documentação que está depositada no Arquivo Público de Mato Grosso e lecturas bibliográficas. A primeira etapa, realizada em 1998, aconteceu relacionada a um trabalho de levantamento de populações indígenas na área de impacto do ramal do gasoduto Brasil-Bolívia, Cáceres-San Mathias. Tratava-se então de um trabalho no contexto de um relatório mais amplo, o Estudo de Impacto Ambiental - Relatório Impacto Meio Ambiente (EIA - RIMA). Neste levantamento foram localizadas doze comunidades de Chiquitanos, todas de pequeno porte (até 200 pessoas) e encontramos informações sobre outras tantas. No ano de 1999, a pesquisa foi encomendada pela FUNAI e destinava-se a um levantamento para localização de todas as aldeias e estabelecimentos Chiquitanos tendo como objetivo traçar uma política de regularização de terras, saúde e etc. Já em 2001 e em 2002, novamente a FUNAI contratou nossos trabalhos tendo em vista a necessidade de um estudo em uma área, que passou a ser denominada de Terra Indígena Portal do Encantado. Além desses contextos mais institucionais de pesquisa com fins práticos, realizei viagens mais curtas, tendo como objetivo coletar dados sobre a constituição da identidade dos Chiquitanos. Neste caso, adotamos a prática da observação participante, combinada com entrevistas abertas e direcionadas ao tema estudado. Um roteiro para as entrevistas sempre era previamente definido de acordo com a etapa a ser realizada. Inicialmente quase nada era sabido sobre os Chiquitanos e as entrevistas, bem como os resultados da observação eram muito ricas e muito era descoberto a cada conversa.

O diálogo entre antropologia e história sempre esteve presente; o ponto de partida da pesquisa era sempre antropológico, mas a abordagem da etnohistória dos Chiquitanos foi fundamental para conseguir entender o presente desse povo. Para isso, o estudo de fontes manuscritas e cartográficas teve uma enorme importância para os resultados da pesquisa. Embora não se tenha buscado um suporte teórico para o conceito de memória, durante as entrevistas, sobretudo com os mais velhos, na busca de recuperar informações sobre os trajetos, deslocamentos e modo de vida dos Chiquitanos, as lembranças e a memória foram elementos fundamentais buscadas pelos entrevistados. Dito de outra maneira, a montagem que se fez sobre a etnohistória dos Chiquitanos foi inspirada e conduzida pelo resultado das entrevistas, sempre com esse fio condutor que puxou pelas lembranças dos "primeiros tempos", dos pais, dos avôs e etc. A documentação pesquisada abrangeu o século XVIII e como a bibliografia dos Chiquitanos no Brasil, nos primeiros anos de nossa pesquisa versavam mais sobre os primeiros anos do século XX,  essa espécie de quebra-cabeças, qual seja o de compor uma narrativa sobre o percurso dos Chiquitanos foi de fato direcionada por eles, mas em muitos momentos uma bibliografia produzida na Bolívia, por pesquisadores dos Chiquitanos foi um valiosíssimo apoio o entendimento do que se buscava apreender do "lado de cá" da fronteira.

O embate dos regionais, políticos e fazendeiros com os Chiquitanos contido na imprensa regional, em Mato Grosso, bem como em uma revista de circulação nacional, colocando em cheque a etnicidade desse povo, é analisada mais especificamente no presente artigo; o material jornalístico serviu então de fonte de pesquisa, pois espelha as tensas relações interétnicas entre os Chiquitanos e regionais. O material coletado refere-se ao ano de 2005 e 2006.

A constituição dos chiquitanos

A produção acadêmica a respeito dos Chiquitanos comprova a enorme importância da Missão de Chiquitos8 e seus onze aldeamentos na Bolívia para a conformação desse povo. Na Bolívia já há muitos estudos realizados, mas no Brasil a produção ainda é incipiente9 e há uma carência acentuada de estudos etnográficos. Nos estudos mais clássicos há grande interesse no estudo do período jesuítico, mas os dados anteriores à expansão missionária no território Chiquitano são mais difíceis de recuperar.

Tomichá (2002) menciona a presença de cerca de 25 povos indígenas que foram aldeados pelos jesuítas. Alcide D'Orbigny (2002), deixou relatos muito interessantes dos dez aldeamentos que compunham a missão de Chiquitos. Uma outra referência interessante para os estudos dos Chiquitanos é de Alfred Métraux (1948) que demontrou, através de um mapa etnohistórico, a presença de inúmeros grupos indígenas cujo território, vizinho ao dos atuais Nambikwara e Paresi em Mato Grosso, fazia limites com as margens do rio Guaporé. Este mapa é importante para demonstrar que os Chiquitanos, resultantes de um amálgama de inúmeras nações indígenas, não são bolivianos ou estrangeiros no Brasil, mas estavam em solo nacional anteriormente à ocupação portuguesa do século XVIII, na província de Mato Grosso. Radding (2005) fez um amplo estudo sobre a constituição étnica e sobre as identidades formuladas pelos povos que foram aldeados pelos jesuítas, demonstrando que muitos dos nomes elencados pela literatura na verdade eram nomes referentes a parcialidades de um povo ou a localização geográfica. Todos esses dados são extremamente importantes para entender a configuração étnica do povo Chiquitano, mas para o âmbito desse trabalho não é possível entrar em maiores detalhes e deixamos aqui anotada a complexidade e a dinâmica territorial e identitária experimentada por esse povo, muito bem estudado por Radding (2005) e por Tomichá (2002).


Mapa de Métraux (1948)

As Missões de Chiquitos, localizadas no atual território da Bolívia, foram instaladas entre 1691 e 1754, quando os jesuítas foram expulsos. Riester (1986) observa que a presença das missões em territórios espanhóis ocorreu onde não havia ouro, como era o caso das regiões do altiplano andino. Os povos aldeados pelos jesuítas localizavam-se em um amplo território, desde o rio Guaporé até, provavelmente, onde atualmente passa a estrada de ferro Santa Cruz-Corumbá10. Os jesuítas adotaram como língua franca o Chiquito, mesmo nome que os espanhóis atribuíram ao grupo11.

D'Orbigny, que visitou em 1831 as missões de Chiquitos12 afirma que

la provincia de Chiquitos estaba muy poblada en el siglo XVI. Agricultores y cazadores, los pueblos destas regiones vivían diseminados en una multitud de pequeñas naciones, de tribus aisladas unas de las otras sin mas barreras entre ellos que la espesura de la selva [...]. La más considerable, la nación de Chiquitos, ocupaba el centro, las mesetas y sus laderas, en donde estaban diseminadas en una multitud de pequeñas tribus (D'Orbigny 2002, tomo IV: 6, grifo da autora).

Deixou preciosas informações sobre os aldeamentos, que após a expulsão dos jesuítas foram governados por um "governador y el Obispo de Santa cruz, Don Ramón Herboso" (D'Orbigny 2002: 25); havia, de acordo com ele, uma tendência de desaparecimento de várias línguas dos povos aldeados, e a língua adotada oficialmente tendia a afirmar-se como majoritária.  Muitos povos originalmente aldeados, no século XVI, no século já haviam desaparecido e dado lugar aos Chiquitos ou Chiquitanos. Então o nome dado atualmente a esse povo não se refere aos Chiquitos conhecidos pelos espanhóis no início da colonização, mas a um novo povo, surgido a partir de um conjunto anterior de 25 outros e resultado de um processo histórico determinante.

Assim, os Chiquitanos são resultantes de um amálgama de povos que ocupavam desde as margens do rio Guaporé no Brasil, até as planícies bolivianas, conforme foi demonstrado a partir de Silva (2001-2002); o território dos vários povos que configuraram os atuais Chiquitanos, através do processo histórico da presença das missões, claramente era um continuum e a fronteira geopolítica transformou em estrangeiros povos que estão comprovadamente nessa região há vários séculos. Uma parte desse grande território transformou-se em Brasil e outra parte, em Bolívia13.

Riester (1986) observou que alguns grupos reconquistaram sua autonomia e voltaram a viver longe dos aldeamentos, mas após a expulsão dos jesuítas. No entanto, esse processo não significou a liberdade para a maior parte dos índios aldeados. Crescentemente, partir de 1768, os Chiquitanos foram incorporados aos trabalhos nas fazendas (estancias), no sistema de apatronato, ou seja, em condições de trabalho forçado e extremamente explorados. Radding (2005 ) estudou o processo histórico ocorrido nas Missões de Chiquitos e o ocorrido posteriormente após a expulsão dos jesuítas, bem como sua incorporação no regime de trabalho das estâncias. De acordo com Riester (1976:125) esta foi a terceira etapa da história dos Chiquitanos.

Os aldeamentos foram pouco a pouco sendo esvaziados da presença indígena e transformando-se nas cidades (ou "pueblos") que conservam os mesmos nomes da época das missões jesuíticas. O envolvimento dos Chiquitanos, já no século XIX, com os seringais ou gomales, que poderia ser pensada como uma quarta etapa de sua história. No Brasil e na Bolívia eles desempenharam um importante papel, mas também foram vitimizados pela violência desse sistema de trabalho, o que se comprova através de um registro deixado por Frei Badariotti:

Ao penetrarmos no vasto terreiro, a nossa primeira occupação consistio, a nosso pezar na pacificação da cachorrada que travara luta desesperada. A algazarra infernal atrahiu das choupanas muitas pessoas, velhos, mulheres e crianças de physionomia um tanto estranha para mim: eram índios Chiquitanos mansos provenientes da Bolívia e empregados como colonos pelo Dr. Marcellino Prado, um dos homens mais beneméritos do Estado (1898: 60).

Com relação ao trabalho dos Chiquitanos nos seringais na Bolívia, Riester observa que

en la zona cauchera de ambas provincias (San Ignacio de Velasco e Concepción), las condiciones de vida eran tan increíblemente malas, que hacia 1930, se podía predecir que un indígena obligado a trabajar en un bosque cauchero, no sobreviviría  más de dos años en tales condiciones (1976:125).

Frei Galibert, cujo testemunho foi recuperado por don Maximo Biennes, relatou já em finais do século XIX, a situação triste dos Chiquitanos que trabalhavam em fazendas e seringais no Brasil e no país vizinho:

quando a extração de goma tornou-se importante no baixo Guaporé, tanto no Brasil como na Bolívia, os patrões bolivianos e estrangeiros acostumaram-se a vir procurar a mão-de-obra que lhes faltava nas aldeias chiquitanas. Com inteira cumplicidade das autoridades locais, para seduzir os índios, mostravam-lhes libras esterlinas, davam-lhes aguardente ú (sic) ­vontade. E à medida que os Chiquitos, iludidos, consentiam ou ficavam fora de si, eram encurralados, e, completado número necessário, dirigidos à força para os gomais. Em pouco tempo, a caravana estava aniquilada, devido ao impaludismo e sobretudo à fome e aos maus tratamentos. Cada ano, os patrões voltavam para refazer seu pessoal pelos mesmos meios.

Quando os homens não bastavam mais, levaram mulheres e crianças. Em 1913, achando-se na antiga cidade de Mato Grosso, um dos nossos padres viu descer Guaporé abaixo uma caravana de 60 pessoas, poucos homens, muitas mulheres, algumas de idade bem avançada, alguns meninos de 12 para 14 anos...

[...] Na fronteira boliviana, os abusos contra os Chiquitos não se praticam na mesma escala de antes; porém, a sua situação continua triste. Segundo informações que me parecem fidedignas, a maior parte dos seringueiros do baixo Guaporé é ainda composta de Chiquitos malpagos (sic) e sem possibilidade de se livrar da espécie de cativeiro que estão detidos. Nos mesmos, viajando na fronteira, temos encontrado famílias fugindo para o Brasil, porque patrões bolivianos queriam tomar-lhes os filhos (Biennes 1987: 116-117).

No Brasil, os Chiquitanos sobressaíram-se também como trabalhadores em fazendas de criação de gado, uma habilidade herdada dos jesuítas. Nos dias de hoje são praticamente a única reserva de mão de obra na zona rural onde vivem, ou seja, nos municípios de Pontes e Lacerda, Porto Espiridião, Vila Bela e Cáceres, em Mato Grosso. Um entrevistado, no Portal do Encantado, afirmou explicitamente, durante uma entrevista colhida em 2002, que eles, os Chiquitanos, praticamente implantaram todas as fazendas que lá existem, seja desmatando, plantando pastos, cuidando do rebanho bovino.

Já no início do século XX, informações muito consistentes sobre os Chiquitanos no Brasil provém de major Federico Rondon. O trecho, a seguir, tornou-se consagrado pelos vários pesquisadores atuais dos Chiquitanos, mas é interessante que ele seja reapresentando, porque prova de maneira inequívoca a presença dos Chiquitanos na fronteira do Brasil com a Bolívia. O major Federico Rondon (1936) afirmou categoricamente que

os Chiquitos constituem o agrupamento indígena mais numeroso do Pantanal. Vivem disseminados, nos Municípios de São Luiz de Cáceres e Mato-Grosso, em cujas fazendas e usinas se empregam como vaqueiros ou lavradores. A maior parte, porém, vive na zona fronteira com a Bolívia, em rancharias de cinco a dez moradores isolados, fazendo pequena lavoura ou caçando animais silvestres para o comércio de peles... Vestem-se como os nossos sertanejos. O traje das mulheres é mais simples que o de nossas caboclas. Resume-se a uma camisola presa á cintura (Rondon 1936:267).

Os registros de finais do século XIX, até as primeiras duas décadas do século XX, documentam a inserção dos Chiquitos em fazendas e em seringais, e também como poaieiros. A fazenda Descalvados, por exemplo, às margens do rio Paraguai, grande exportadora de extrato de carne para a Europa, utilizou amplamente o trabalho indígena, sobretudo dos Chiquitos, dos Bororo e dos Guató. Observe-se que os povos indígenas da região tratada foram os únicos trabalhadores disponíveis, uma vez que a população não indígena era rarefeita, e mesmo nos dias atuais eles ainda constituem uma importante massa de mão de obra a ser contratada nos trabalhos das fazendas. Pode-se afirmar com bastante segurança que houve um genocídio nessa área de fronteira, pois a maior parte dos povos mencionados na literatura e encontrados na documentação não existe mais. Os Chiquitanos lograram sobreviver, mas como se demonstrará mais abaixo, com pressões muito fortes e a custo de muitas perdas, tais como a de sua língua e de suas terras.

Entre estas referências mencionadas, a de Rondon, a de Galibert e a de Badariotti, e um documento de Mario Friedlander, um fotógrafo que em 1980 denunciou a expulsão dos Chiquitanos de suas terras, há um lapso grande de tempo sem informações sobre esse povo. Denise Maldi, antropóloga contratada para uma vistoria na fazenda Triunfo II, para verificar a presença de indígenas, já não os encontra aí em 1995. Ao contrário, registra muitas evidências das presenças dos Chiquitanos através dos relatos dos regionais, o que comprova que esse povo não tinha desaparecido e não estava extinto, mas deparava-se naquele momento com graves problemas relativos à permanência em suas terras, em virtude de um processo de consolidação da propriedade privada e de instalação de empresas agro-pecuárias, de grandes extensões nessa região.

Silva et al. (1998) verificaram que em finais da década de 1990 prosseguia um processo, que havia se iniciado em 1976 pelo INCRA, de titulação de fazendas e de expulsão dos Chiquitanos de locais onde viviam historicamente. A movimentação desse povo ocorria em direção às cidades próximas da região ou para as bordas das fazendas agora reconhecidas como propriedade privada; nesses locais (que serão listados logo abaixo), eles permaneceram em estabelecimentos que se constituíram em bolsões de reserva de mão de obra.

O mapa de Métraux (1948) é muito rico em detalhes e mostra a diversidade cultural e étnica dos povos que viveram na região das Missões de Chiquitos. Observe-se que ao lado direito, acima, estão os nambikwara, território ainda atualmente ocupado por eles; no entanto, os povos aldeados em sua maior parte já desapareceram, ou dando lugar aos Chiquitanos, ou simplesmente foram extintos.

Conflito e identidades silenciadas

Roberto Cardoso de Oliveira (1976) observou que as relações interétnicas são permeadas pelo conflito, não apenas em virtude do estranhamento em face às diferenças culturais e à necessidade da demarcação das fronteiras étnicas. Esse conflito é alimentado pela divergência dos interesses dos grupos indígenas em relação à terra, uma relação totalmente diferente da dos proprietários rurais e fazendeiros. No caso específico dos Chiquitanos, há poderosos interesses por parte da elite rural mato-grossense dedicada ao plantio de soja e às empresas agro-pecuárias.

As teorias sobre identidade (Cardoso de Oliveira 1976, 2006) evidenciaram o jogo de interesses e a formulação das identidades como resultado de um embate político em relações contaminadas pela diferença de poder. Analisando-se os jogos identitários dos Chiquitanos e dos não índios (fazendeiros, regionais) nessa região de fronteira, bem como as negociações em torno da formulação de identidades durante os últimos oito anos, percebe-se claramente que uns e outros fizeram deslocamentos em seus discursos dependendo da conjuntura política e do que esteve em jogo nos momentos de confronto, sobretudo de interesses.

Esses deslocamentos evidenciaram um notável jogo organizado por políticos e regionais (em Mato Grosso) que se colocam contra a regularização das terras já comprovadamente de direito dos Chiquitanos. A manipulação, por parte dos não índios, da atribuição externa da identidade dos Chiquitanos, chegou a um clímax quando passou-se a fazer uma campanha, veiculada pela mídia, buscando convencer a população de Mato Grosso de que os Chiquitanos não são índios, mas sim imigrantes bolivianos, estrangeiros portanto. A maneira como isso ocorreu, nessa região de fronteira, será analisada mais abaixo.

Weber e Barth demonstraram claramente que o compartilhar de laços de sangue não é o suficiente para a definição de uma comunidade étnica. Não são aspectos somáticos, físicos, cor de pele ou cabelo que conferem o pertencimento, mas é a construção, o processo social que leva à existência de uma comunidade cultural ou étnica. As relações interétnicas também são definidoras das etnicidades e, enfatize-se, através das relações entre grupos e povos diferentes é possível eleger um conjunto de elementos definidores da etnicidade, ou sinais diacríticos, e da identidade. Nada há de natural nesse processo, conforme Weber notou.

Como demonstrou Barth (1998), pertencer a uma etnia não significa necessariamente ter um parentesco biológico. Não são aspectos físicos que emprestam a etnicidade, mas sim, as relações entre grupos distintos que buscam definições de quem é e quem não é uma etnia. A suposta pureza racial pode fazer parte de discursos, mas não se comprova enquanto possibilidade genética. Este entendimento interessa para o âmbito dessa discussão de uma maneira muito central, pois um dos pontos nevrálgicos para a negação dos direitos dos Chiquitanos à terra e á sua etnicidade é certamente o discurso baseado fortemente no argumento de que eles não são índios, mas uma invenção da FUNAI o atual órgão de defesa dos povos indígenas brasileiros.

É recorrente a afirmação, por parte de fazendeiros e políticos da região, de que os Chiquitanos são bolivianos que migraram para o Brasil procurando melhores condições de vida. Esse argumento é muito forte e como demonstrou Stolke, "assume uma série de contra-conceitos simétricos, como o de estrangeiro, o alienígena em oposição ao nacional, ao cidadão, entendidos como membros de comunidades culturais distintas e irredutíveis (Stolke 1993: 27).

Stolke (1993) observou que o fundamentalismo cultural difere do racismo, onde o outro é pensado em termos de uma hierarquia. No multiculturalismo há uma percepção de que todos os povos ou etnias em um sistema são portadores de culturas, mas no fundamentalismo cultural a discriminação é muito mais radical da que ocorre no racismo.

Houve durante um tempo, uma notável invisibilidade dos Chiquitanos na fronteira: ao mesmo tempo em que eram reconhecidos, visíveis como povo, paradoxalmente eles buscavam a invisibilidade. Não se reconheciam como índios, mas a população regional os apontava com o dedo e os qualificava de bugre. Se bem que bugre naquele contexto não queria dizer exatamente povo, mas uma espécie de gente, muito procurada para o trabalho, mas pouco qualificada enquanto ser humano. Um exemplo brutal do etnocentrismo e do estranhamento.

O fato de serem considerados bugres garantia uma espécie de aliança com os fazendeiros locais e com os poderes regionais: eles trabalhavam nas fazendas, as mulheres eventualmente como domésticas, voltavam para suas casas, em terras consentidamente ocupadas por eles, consentimento proveniente de donos de terras ou do exercito em áreas em que os destacamentos coincidiam com as aldeias (consideradas regionalmente como comunidades).  Um acordo tácito garantia o silenciamento e ocultamento da identidade de Chiquitano e/ou de bugres. A repressão à língua é mais antiga, talvez remonte ao início do século, mas a renuncia à língua materna implicou, talvez, em uma espécie de acordo tácito, no silenciamento dessa língua em troca de um acolhimento e de uma convivência pacífica, embora potencialmente conflituosa.

Porque eles permitiram tamanho silenciamento e porque optaram pela busca da invisibilidade e do silêncio? Essa resposta talvez possa ser encontrada na história desse povo e cujas origens residem pelo menos no inicio do século XVI, com o contato com os espanhóis, mas talvez o mais marcante tenha sido a experiência sob o domínio jesuítico. Tomichá (2002) entende que, apesar de tudo, a presença dos jesuítas foi fundamental na defesa e na sobrevivência dos Chiquitanos. O fato de tantos povos provenientes de um território tão grande, terem sido colocados nos mesmos aldeamentos e das muitas singularidades culturais terem desaparecido durante a ampla temporada dos jesuítas, pode ter contribuído para a vulnerabilidade desse novo povo, ou seja, dificultado uma política mais incisiva de marcação e defesa de territórios e de identidades.

A política da tolerância aos invasores de seu território (fazendeiros e etc.) foi um método apropriado para poder reproduzir a ordem social, política e econômica dos Chiquitanos, embora tenha custado bastante caro em termos do quase total desaparecimento da língua. Provavelmente durante o século XIX e até meados do XX,  a presença de não índios não se apresentava como um perigo para sua soberania em seu  território ou para sua sobrevivência enquanto povo. O padrão de mobilidade espacial adotado para iniciar um novo estabelecimento através de siblings, pode tê-los deixado mais vulneráveis, pois não havia, aparentemente, uma unidade forte, como por exemplo a que existiu entre os kayapó, que guerrearam contra a presença de outros povos em seu habitat.

Mas, com a passagem do gasoduto e o trabalho da FUNAI pela recuperação e demarcação de terras dos Chiquitanos aflorou o conflito interétnico que estava controlado pelas relações cordiais de exploração do trabalho dos homens deste povo.

Ou seja, o relativamente invisível, o confortavelmente invisível, que promovia um consentimento silencioso de ambas as partes (eu sei que você é outro, mas deixo você em paz, desde que trabalhe muito para mim e, na outra via, nós trabalhamos para vocês, mas nos deixam viver nessa pouca terra que você consente em não nos roubar totalmente).

Não há como negar que o trabalho assalariado transformou-se em uma necessidade vital em decorrência da enorme perda de terras que sofreram historicamente e ao aceleramento mais recente dessas perdas, e pelo aumento crescente de necessidades de bens de consumo: bicicletas, máquinas de costura, remédios, roupas, óleo de cozinha e etc...

A imprensa e as campanhas políticas de negação da etnicidade

Com a presença da FUNAI e os estudos de identificação de área indígena que colocaram em risco a hegemonia "terrateniente", uma série de ataques se iniciou: alguns no plano mais simbólico e outros no plano mais material, traduzido por invasões na área do Portal do Encantado, ameaças de morte em Os Bi, por parte de fazendeiros, queima de casas em Vila Nova e outros tipos de constrangimento nada corteses, como se manifestavam as relações interétnicas anteriores. Dispensa de trabalhadores e recusa em empregá-los também tem sido um método de recusa ao relacionamento e uma forma de punição dos fazendeiros da região.

Acompanhando as ações mais truculentas e explícitas de desagrado, as ações simbólicas também têm contribuído para aterrorizar as comunidades de Chiquitanos na região estudada. Desde 2004, uma campanha pela imprensa regional, mas que pode incluir duas reportagens da revista nacional, Veja, vem questionando mais do que o direito à terra, a identidade dos Chiquitanos e sua nacionalidade.

Em uma edição da Veja, no ano de 2005, intitulada Índios por imposição - A Funai quer transformar descendentes de bolivianos em aborígines, em Mato Grosso, de José Edward, esses embates são muito claros. O tom de sua matéria é de que os Chiquitanos estão revoltados por serem chamados de índios e os que têm terras doadas pelo INCRA, temem perdê-las, pois 

De acordo com a lei, os chiquitanos perderão o direito à propriedade caso sejam classificados como índios. Seu patrimônio voltaria ao controle da União. Seriam proibidas a exploração econômica da terra e a construção de estradas perto das "aldeias". Não lhes seria permitido recorrer a empréstimos bancários nem receber dinheiro destinado pelo governo aos assentados da reforma agrária.

O autor da matéria procura demonstrar que eles estão ameaçados pela política da FUNAI. Aqueles em piores condições, os assentados pelo INCRA, que têm pouquíssima terra e são muito mais vulneráveis à cobiça de suas terras, porque foram individualizadas e desmembradas de uma propriedade comunal, seriam os mais ameaçados pela demarcação de terras indígenas, de acordo com a Veja.

Nesta reportagem observa-se uma insidiosa maneira de discutir a identidade dos Chiquitanos. Afirma o repórter José Edward que "O projeto oficial de conversão dos chiquitanos (sic) em índios foi baseado em um estudo antropológico." Conversão aqui deve ser entendida como transformação compulsória em algo que não se é. Na reportagem, em consonância com as opiniões ligadas ao poder econômico da região, o autor reafirma enfaticamente a idéia de que os Chiquitanos não são índios e acusa a FUNAI de má fé, pois está forjando a existência de um povo.

O autor prosseguiu seus argumentos afirmando que "a Fundação adotou uma tese da Organização Internacional do Trabalho (sic) segundo a qual só é considerado índio o indivíduo que se declara como tal. No caso dos chiquitanos, está longe de ser assim."

No dia 13 de fevereiro de 2006, o autor de uma reportagem do jornal O Diário de Cuiabá, expressa sua indignação pelo fato de a FUNAI estar tomando iniciativas para demarcação da Terra Indígena Portal do Encantado. Aqui já há prenúncios do plebiscito que foi realizado posteriormente e se acena novamente com a tese de que é possível transformar, por força de um órgão governamental, um povo em outro. A tese de que os Chiquitanos são bolivianos é reafirmada.

O governador Blairo Maggi e o prefeito do município, José Serafim Borges, o Zezinho (PPS), foram à casa de Cornélio da Silva, na rua João Ferreira, 418. Cornélio e a mulher Leonilda Zeferina Ortiz são filhos de bolivianos. Os dois e os filhos, nora e neto pertencem a comunidade da fronteira que é uma mistura de brasileiros com bolivianos que fala português mesclado com portunhol, mas nenhum deles admite a idéia de serem transformados em indivíduos da etnia chiquitânia. "Nascemos aqui. A gente é do Brasil", resume Cornélio. (Diário de Cuiabá, 13/02/2006).

 A imprensa noticia algo absolutamente inédito em termos de relações interétnicas e de relações políticas entre índios e não índios, passando pelo governo do estado. Pela primeira vez, um governador estadual apóia um plebiscito para que uma população, através do voto, diga se é ou não indígena.

Para resolver definitivamente o assunto, será realizado um plebiscito nas 32 duas comunidades envolvidas para detectar o desejo dos habitantes e acabar com o impasse. "Pelo que eu vejo, a Funai e o Cimi estão enganados. Não vejo nenhum morador indígena e nenhum morador afirmando ser. Há muito interesse envolvido nessa questão", discursou o governador Blairo Maggi (PPS), que garantiu o apoio na realização do plebiscito (Redação 24 HorasNews, 25/11/2005).

Na audiência pública, no dia 26 de novembro de 2005, no município de Porto Espiridião, em que estiveram presentes o governador, vários políticos e centenas de pessoas, o deputado José Riva fez a seguinte pergunta: "Quem for favorável que os brasileiros descendentes de bolivianos sejam transformados em chiquitanos, permaneça sentado. Quem for contrário que se levante!"

Logo, segundo a reportagem do Diário de Cuiabá,

mais de duas mil pessoas presentes no ginásio de esportes de Porto Esperidião se levantaram. Aos fundos uma faixa com a frase "Somos descendentes de bolivianos não índios, como quer a Funai", reforçava a manifestação dos participantes da audiência pública da Assembléia Legislativa, realizada ontem, nesta cidade, para debater o projeto de demarcação de terras indígenas na fronteira com a Bolívia (Jornal o Diário de Cuiabá, 26/11/2006).

O que se pode refletir sobre esse tipo de episódio ocorrido? O que se pode pensar sobre uma multidão que é colocada em um ginásio de esportes, para votar se são - ou não - índios? Do desafio em entender este episódio, gostaria de trabalhar sobre dois aspectos que estão relacionados com política indigenista e relações interétnicas e com o que é ser índio na atualidade.

Certamente se percebe que os tempos são novos em termos de atribuição de identidades e isso expressa, além dos interesses políticos e fundiários envolvidos no dilema, uma novidade no campo das sociedades indígenas. Até as décadas de 1960 e 70, os índios eram radicalmente "outros" com vários sinais diacríticos reconhecíveis, tais como corte de cabelo e pinturas corporais; a identificação étnica era realizada por critérios biológicos e também nas formas de vida econômica, social, lingüística e etc. No final do século XX a identificação de quem é "índio" como um outro radical nem sempre é esclarecedora sobre a diferença. Os chamados grupos ressurgentes nem sempre estampam sinais diacríticos convincentes do ponto de vista das diferenças radicais em relação à sociedade nacional. É o caso dos tapuios de Goiás, grupo que tem alguns indivíduos de pele negra, mas considerados indígenas.

Esta relativa indiferenciação abre possibilidades de manipulação na atribuição  de identidades, abre espaço político para a negação de direitos e pode legitimar a exclusão radical. Ao discutir a autenticidade de um povo (como se ele estivesse fingindo, ou pudesse fingir o que não é, ou pudesse fingir que é um outro), solapa-se uma política indigenista que até o momento tinha muito claro a quem atender e como atender, mesmo que sua ação não fosse 100% eficaz. A afirmação de que a FUNAI  quer "converter", ou transformar alguém não índio, em "índio", com nome, terras, direitos e distintividade, expressa uma manipulação visando a negação a todos esses elementos e, fundamentalmente, o acesso à terra.

Ainda em novembro de 2005, outra reportagem, em tom de denúncia tem o título de Fronteiriços não querem ser índios; esta matéria busca informações em Ponta do Aterro, uma localidade muito próxima à fronteira da Bolívia, onde vivem de fato, entre outros, descendentes de bolivianos e que não foram identificados pelos estudos  propostos pela ENROLL ou pela FUNAI (Silva et al. 1998) como indígenas, mas não há referências sobre esse aspecto.

O problema é os quase 5 mil moradores da região não querem ser 'transformados' em índios. De acordo com representantes dos moradores, a Funai quer obrigá-los a aceitar uma  identidade indígena (Home Page FUNAI / Clipping, 15/11/2005 - Fonte: Folha do Estado, MT).

Novamente a tônica é a transformação de não índios e índios por força da autoridade do órgão tutor. Na citação a seguir, se observa a afirmação de que

uma etnia, chamada Chiquitano, teria habitado a região há cerca de trezentos anos: O fato é que a Funai alega que os cidadão que lá estão, são descendentes da etnia  Chiquitano, que habitou a região há quase 3 séculos, e que devem ser reconhecidos como tal (Home Page FUNAI / Clipping, 15/11/2005 - Fonte: Folha Do Estado - MT).

Essa campanha consistiu amplamente na afirmação de que os moradores que não eram índios, mas seriam "transformados em índios" por decreto e que seriam impedidos de usar certas técnicas agrícolas modernas.

O fazendeiro João Bosco disse que dentre as cinco mil pessoas, apenas uma está a favor da Funai, e que o órgão está prometendo aos moradores a 'terra dos sonhos'. "Eles tentam comprar as pessoas com a idéia de que se a área for transformada em reserva, eles vão ter muitas terras e ficarão ricos, mas o que eles não falam é que nada poderá ser feito nessa terra, além de agricultura manual, sem uso de nenhum tipo de maquinário. Quem é que vai querer viver assim?" (Home Page FUNAI / Clipping, 15/11/2005 - Fonte: Folha do Estado, MT; grifo da autora).

Neste movimento, vozes foram dadas a não índios, para se afirmarem enfaticamente enquanto tais e vozes também foram dadas a alguns Chiquitanos que tinham alguma dissidência com o coletivo de seu grupo ou então que se sentiam extremamente pressionados por fazendeiros. Surge então, a foto de uma família sentada em frente a um prédio do governo, com uma faixa com os seguintes dizeres: "somos descendentes de bolivianos e não índios como quer a Funai", e em outra, "Não nos obriguem a ser o que não somos!" (Revista Veja, 14/12/2005: 94).

O biótipo dos fotografados pela revista nacional é certamente de indígena, mas o que chama a atenção nessa foto é a expressão dessa família. A mulher, segurando um bebê, aparece muito preocupada e seu marido, aparenta também tristeza. As versões que colhi em trabalho de campo, apontam sempre na direção de que essas pessoas estavam muito preocupadas com o trabalho assalariado e que teriam feito tal gesto em total desespero. O medo parece ter influenciado a todos eles para aceitarem participar de tal tipo de ato.

O que é preciso atentar agora é sobre a gravidade dos dizeres desta faixa e das implicações políticas dessa conivência com políticos, incluindo o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi e com poderosos interesses econômicos da região.

Nacionalidade e fronteira: "Índios" e "povos originais"

Interessante notar que nesse discurso negando a nacionalidade de brasileiros aos Chiquitanos. Indiretamente questiona-se a sua não autenticidade como índios, mas a tônica recai na nacionalidade. Weber, a esse respeito afirma que

A "nacionalidade" em seu sentido "étnico corrente", comparte com o "povo", normalmente, a vaga idéia de que aquilo que se sente como "comum" tem sua base numa comunidade de procedência, ainda que, na realidade, pessoas que se consideram pertencentes à mesma nacionalidade, não apenas ocasionalmente, mas com muita freqüência, estão muito mais distantes entre si, no que se refere à sua procedência, do que outras que se consideram pertencentes a nacionalidades distintas ou hostis (Weber 2000: 275).

Esse aspecto mencionado pelo autor de uma "vaga idéia" é muito interessante, pois nos remete à pergunta sobre quem são os opositores aos Chiquitanos: há uma população regional, em que parte dela é mesma de origem dos Chiquitanos expulsos de suas terras, mas há, certamente, um contingente de migrantes provenientes de outros locais do Brasil. A documentação comprova a existência e permanência deste povo na região, pelo menos desde o século XVIII14 e todos depoimentos dos Chiquitanos entrevistados convergem para uma única via histórica: a maioria dos fazendeiros chegaram bem depois deles em Mato Grosso.

Há também uma curiosa inversão: os Chiquitanos são moradores tradicionais na região estudada, com uma história que se remete a uma grande profundidade temporal, explicitada através da memória dos mais velhos, mas, criou-se um discurso hegemônico de que eles são recém-chegados, estrangeiros ou apenas descendentes de estrangeiros.

Weber (2000) refere-se à crença subjetiva ao pertencimento construída a partir de indicadores que podem ser considerados simbólicos, tais como religião, "hábitos" e "costumes". Como esta população regional parece ser de origens muito diversas (paulistas, baianos, gaúchos, e etc.) a idéia de pertencimento foi recentemente elaborada em função da necessidade de criar uma contrastividade e argumentos para excluir os Chiquitanos do cenário político legítimo, lugar que deveriam ter pela história e participação que tiveram desde há tanto tempo, na construção e enriquecimento dessa região.

É possível observar o processo mesmo da formulação dessa crença ao pertencimento, sobretudo por parte dos opositores aos Chiquitanos. Os Chiquitanos, por sua vez, passaram a adotar, pelo menos em sua maioria, e com maior positividade, uma identidade de índios, claramente em resposta às pressões de seus vizinhos fazendeiros e dos políticos que se envolveram na negação de seus direitos às terras. Nesse processo então se observa a formulação de duas novas identidades: a de índios e a de regionais que passam a acreditar que fazem parte de um todo mais amplo, a nação brasileira.
Neste jogo de relações, inter-relações e interesses conflituosos surgem "novos índios" e "novos brasileiros", uns e outros que anteriormente podiam conviver em uma comunidade de interesses convergentes, desde que a desigualdade fosse mantida para sempre.

Na fronteira pelo lado boliviano, onde os Chiquitanos são hegemônicos, sua população é calculada entre 40 e 60 mil pessoas, dependendo da fonte. Na Bolívia, o conceito de pueblos originários equivale ao que no Brasil se chama de indígena ou de índio. Nesta região, a palavra indígena ou é desconhecida ou então recebe uma carga forte de preconceito, talvez por relacionar-se com uma idéia de selvageria. Essa diferença conceitual pode ter levado alguns antropólogos contratados por fazendeiros para contestar um relatório de identificação da FUNAI (Silva 2003), a afirmarem que os Chiquitanos não são índios nem na Bolívia. O termo Chiquitano é mais uma referência geográfica do que cultural ou étnica e abrange os moradores da Província de Chiquitos, sejam ou não "pueblos originales".

Ao serem identificados "oficialmente" pela população regional, pelo governo do estado e pela imprensa, como bolivianos, estrangeiros, portanto, revê-se o sistema anterior de identificações hegemônicas, onde "civilizados brasileiros" opunham-se aos "bugres", para brasileiros e bolivianos estrangeiros. Nas poucas oportunidades em que os Chiquitanos explicitaram sua identidade, disseram-se "brasileiros pobres", brasileiros porque fala português e pobres, porque sempre trabalharam muito e nunca conseguiram ter nada de seu. Também recolhi expressões como "espremidos em um tipiti"15, para explicar que eram expulsos de suas terras e não tinham mais para onde ir, sempre ao sabor de interesses de fazendeiros.

Assim como houve um deslocamento da identidade dos fazendeiros, genericamente patrões, antes do conflito pelas terras, para brasileiros, os Chiquitanos viram-se também com um deslocamento de sua identidade e de seu papel na região. Embora o conceito de bugre seja extremamente desconfortável, pois encerra um mundo de preconceitos, era inevitável não enquadrar-se nele, porque uma categoria histórica das relações interétnicas extremamente forte. A identidade discreta de Chiquitanos, mesmo ocultada, passa a ser visibilizada por eles. O contato com a FUNAI impõe novidades no terreno das identificações: Chiquitanos são índios, e aqui começaram os problemas. Pela legislação brasileira os povos indígenas têm direito à terra e as fazendas no sudoeste de Mato Grosso instalaram-se em terras indígenas, terras dos Chiquitanos.

A construção de um discurso atribuindo uma nacionalidade estrangeira a eles e a busca de informações históricas através de antropólogos contratados por fazendeiros, traz uma novidade na arena da luta pelas terras, conforme pode ser lido em um trecho da reportagem abaixo.

De acordo com os estudos realizados pela equipe da Funai, a reserva Ponta do Encantado fica numa área de 43 mil hectares. O prazo para os proprietários das terras recorrerem expira no dia dois de dezembro. Domingos contou que os fazendeiros interessados contrataram um antropólogo da Universidade de Brasília para fazer um outro estudo antropológico para contrapor ao da Funai. Antes que o estudo estivesse assinado, o antropólogo morreu. Um segundo estudo foi encomendado para outro antropólogo e deverá ser entregue nos próximos dias.
"Os estudos mostram que essas pessoas nunca foram índios. Não há índios na região. Vamos recorrer", afirmou Domingos, que terá um pequeno pedaço de terra incluído na reserva pela existência de um antigo cemitério chiquitano. (Diário de Cuiabá, 17/11/2005).

Pode-se localizar o início da construção do discurso que nega a etnicidade dos Chiquitanos inicialmente, para depois identificá-los como estrangeiros. As contestações, junto à FUNAI, escrita pelos dois antropólogos contratados, trazem a idéia de que os Chiquitanos são imigrantes, provenientes da Bolívia. Esse discurso foi imediatamente apropriado porque conveniente do ponto de vista político. O fato de ser um povo singular, com uma história também singular, é contestado. Estrangeiros não podem ter direitos específicos em relação aos cidadãos nacionais ou as etnias indígenas. Entende-se, nessa lógica, que os Chiquitanos tenham uma cultura própria, mas não são brasileiros.

Os Chiquitanos no Sudoeste de Mato Grosso, ao serem considerados estrangeiros em uma estranha lógica de negação de sua nacionalidade brasileira e de negação de sua etnicidade e indianidade, podem sofrer uma exclusão radical: nem índios, nem brasileiros, mas estrangeiros em um lugar que não é seu. Mas o fundamentalismo cultural, de acordo com Stolke, promove a reterritorialização, no sentido de separar espacialmente os considerados como portadores de outra cultura. É a extrema discriminação e a radical negação de direitos. É a consideração de que os Chiquitanos são radicalmente outros, invasores em um promissor lugar para o plantio de soja e para a criação de gado bovino.

Inverte-se nessa lógica, a lógica da história: de moradores tradicionais, ocupantes de um território há séculos, passam a ser considerados irredutivelmente outros, não brasileiros, não nacionais. E acrescente-se a essas ponderações, a observação de que para o Brasil, o termo boliviano é carregado de conotações negativas, quase que de cunho racial. Se os "índios tradicionais" são percebidos como preguiçosos e incapazes, o sentido do ser boliviano agrega outros preconceitos relacionados a uma dinâmica da vida na fronteira: traficantes de drogas, ladrões de caminhões, ignorantes, e outras juízos revoltantes. Aqui não há apenas o fundamentalismo, há também o etnocentrismo e o preconceito, todos combinados para a discriminação dos Chiquitanos. Neste sentido é possível, agora, entender com profundidade a recusa em assumirem uma identidade diferenciada (de bugre, ou de índio, ou mesmo de boliviano). Através do silêncio e de calar sua língua materna eles vêm buscando proteção através de sua invisibilidade. De alguma maneira eles intuíam que sua "descoberta" lhes tiraria o restante de seu território e de seus direitos. Portanto, a negativa em dizerem-se índios era uma opção política, com riscos calculados.

Por outro lado, o conceito de índio é totalmente exterior às etnias brasileiras, que é uma invenção européia e colonizadora que se remonta ao século XVI. O conceito de índio apenas faz sentido após o contato e quando um não índio com autoridade suficiente atribui essa qualidade a uma etnia. Para os Chiquitanos, nos primeiros tempos de minha pesquisa, índio era aquele que "vivia no mato e que atacava". Claro que eles não se enquadravam nesta equação. Bugre, por outro lado, os desgostava, mas pouco podiam fazer para evitar assim serem identificados; um termo extremamente carregado de preconceitos, classificador e ordenador de relações sociais e empregatícias hierárquicas.

Últimas palavras

O entendimento das relações interetnicas entre os Chiquitanos e os regionais, a partir de uma reflexão sobre a dinâmica da constituição das identidades étnicas, permitiu revelar de que maneira os conflitos de interesses podem acionar um conjunto de medidas para salvaguardar os interesses hegemônicos. A busca de antropólogos para proverem argumentos a desfavor dos Chiquitanos, a articulação política institucional, através de alianças com o governador de Mato Grosso e outros políticos, a veiculação de matérias pela imprensa e a manipulação de informações (como por  exemplo a de que a FUNAI iria demarcar 32 áreas indígenas na fronteira), foi orquestrada por uma campanha em que a categoria de estrangeiro foi acionada para legitimar os interesses considerados nacionais e legítimos pelos fazendeiros da fronteira do Brasil com a Bolívia. O argumento da imigração foi eficaz no sentido de que, em se aceitando a indianidade dos Chiquitanos, aceitar-se-ia sua proteção constitucional, mas a imputação de uma nacionalidade estrangeira a eles tornou mais fácil a luta por terras nessa arena política, pois sensibilizou amplamente a opinião pública, já tradicionalmente contrária aos direitos indígenas. Como resultado dessa luta, até o momento em que termino de escrever esse artigo, permanece parado o processo de identificação da Área Indígena Portal do Encantado e sem demarcação, e a FUNAI está engessada para continuar o estudo previsto de outras duas áreas indígenas para os Chiquitanos.

Notas

1. Neste artigo adoto o plural para designar o nome desse grupo indígena, aparentemente fugindo da norma lingüística estabelecida em 1953, que determina o uso no singular para o nome de um povo indígena, desde que seja auto-denominação. Como o nome  "Chiquitano" foi atribuído externamente e não provém do português, mas do español, tomo a liberdade de utilizá-lo no plural, Chiquitanos, mas sempre em maiúscula.

2. Provavelmente há outras localidades habitadas por Chiquitanos, mas estas não estão ainda suficientemente estudadas.

3. Fazendinha e Acorizal, localizam-se na Terra Indígena Portal do Encantado, e certamente são as comunidades no Brasil melhor estudadas. Há trabalhos de pesquisa nas áreas da lingüística, história e antropologia. Apenas estas duas aldeias têm suas terras reconhecidas oficialmente, embora não demarcadas.

4. Utilizarei o termo "fazendeiros" como uma categoria genérica para designar proprietários de terras com titulação e posseiros sem titulação que invadiram áreas devolutas da união. Essa categoria não está estudada, mas certamente inclui uma diversidade de situações, desde pequenos criadores de gado, pecuaristas, plantadores de soja e etc. Para o âmbito desse trabalho, essa categoria cobre suficientemente as relações interétnicas, pois todos opõem-se aos Chiquitanos do mesmo lugar: o de cidadãos brasileiros legítimos, conforme se buscará esclarecer ao longo desse trabalho.

5. Em outro trabalho tive a oportunidade de estudar de que maneira a fronteira boliviana vem sofrendo por parte do Brasil uma espécie de fechamento.

6. Na Guerra do Chaco Bolívia e Paraguai disputaram a região do Chaco Boreal. Calcula-se que morreram 60.000 bolivianos.

7. A procissão de Santa Ana sai uma vez por ano, do "pueblo" com o mesmo nome, acompanhada de alguns fiéis e, de lá, passa por pequenas vilas, aldeias, atravessa a fronteira e visita algumas aldeias brasileiras. Durante a caminhada, de acordo com Moreira da Costa (2006), outras pessoas se agregam na procissão.

8. A atuação dos jesuítas ocorreu entre os anos 1691 até 1754, quando foram expulsos.

9. Destacam-se os estudos de Moreira da Costa, A Coroa do Mundo: religião, território e territorialidade Chiquitano, editado pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso; Estudos sobre os Chiquitanos no Brasil e na Bolívia: história, língua, cultura e territorialidade, organizado por mim e editado pela Editora da UCG e a tese de Doutorado de Renata Bortoletto, intitulada Estrutura Social Chiquitano, defendida em 2007, na USP. Dois trabalhos da área de lingüística também são importantes e foram defendidos na UFG, de autoria de Ema Dunck e Áurea Cavalcante Santana.

10. Data deste período a habilidade desenvolvida para a música erudita entre os Chiquitos, tão apreciada durante a visita de D'Orbigny e mantida até os dias de hoje.

11. Metraux (1948), afirma que esse nome deriva da altura das portas das casas desse povo, e que os espanhóis teriam pensado que eram pessoas muito baixinhas; por isso o nome de "Chiquito" que significa pequeno em espanhol e Chiquitano é uma derivação de Chiquito.

12. Os nomes dos aldeamentos eram os seguintes: San Javier, Concepción, San Miguel, Santa Ana, San Ignácio, San Rafael, San José, Santiago de Chiquitos, Santo Corazón de Jesus e San Juan. Atualmente persistem esses lugares, já com características distintas, mas com uma população remanescente. As igrejas restantes dos aldeamentos são agora patrimônios da humanidade e estão em ótimo estado de conservação.

13. Sobre os inúmeros tratados de fronteiras e limites entre os dois países, consulte-se Silva (2001-2002) e Moreira da Costa (2006).

14. A documentação que comprova a presença dos Chiquitanos nessa região de Mato Grosso está no Arquivo Público de Mato Grosso e foi estudada durante minha pesquisam, mas não está tratada aqui, pois não caberia no âmbito deste artigo.

15. Tipiti é um instrumento indígena para espremer a mandioca brava, dela separar o caldo e, após a secagem, fazer farinha.

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Fecha de recepción: 2 de abril de 2008.
Fecha de aceptación: 6 de agosto de 2008.

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